Wilfredo Lam, A Selva, 1943.

Queridos amigos e amigas,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Um texto recente da Organização das Nações Unidas (ONU) tem um título que esconde seu sério conteúdo: Resumo para formuladores de políticas do relatório de avaliação global sobre biodiversidade e serviços ecossistêmicos da Plataforma Intergovernamental de Políticas Científicas sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos. Esse relatório foi publicado em 6 de maio em uma reunião em Paris (França). O texto é produto da reunião de 145 especialistas de 50 países, com a contribuição de outros 310 pesquisadores e autores. Ele se baseia na leitura de mais de 15 mil fontes científicas e governamentais e incorpora a sabedoria do conhecimento indígena. O “resumo” será elaborado ainda este ano em um relatório final de 1500 páginas. O peso da comunidade científica é central. A descoberta mais importante do relatório é a seguinte: 1 milhão de espécies de animais e plantas estão ameaçadas de extinção, muitas delas há décadas.

Theresa Ng’ambi, James Sakala, Maureen Lilanda, Pompi & ShapsSamalilani, 2018.
A taxa global de extinção de espécies é centenas de vezes mais veloz hoje do que nos últimos dez milhões de anos. É um relatório difícil de ler: o planeticídio está quase garantido, com 75% do ambiente terrestre “severamente alterado”, 680 espécies de vertebrados em extinção desde o século 16, sendo mais de 40% das espécies de anfíbios; quase 33% de formações de recifes de corais e mais de um terço dos mamíferos marinhos estão à beira da extinção.

Duas razões principais para essa catástrofe são evidentes e estão relacionadas: o atual e limitado paradigma de crescimento econômico e a mudança climática. Esse relatório da ONU, como vários anteriores, é medido por sua linguagem, mas não por sua análise. A frase – atual e limitado paradigma de crescimento econômico – é um eufemismo para o capitalismo, um sistema de atividade econômica que se baseia na propriedade, no lucro e na acumulação de capital como a razão da existência. Esse “atual e limitado paradigma de crescimento econômico” – em outras palavras, o capitalismo – se desenvolveu através do uso de formas de energia que liberam quantidades imensas de gases de efeito estufa. O capitalismo – dependente das emissões de combustíveis fósseis para alimentar seus motores – é o principal impulsionador do aquecimento global. O que leva o planeta ao seu desaparecimento não é “demografia” (muitas pessoas em um planeta muito pequeno), o que antes era conhecido como bomba populacional. Pelo contrário, é o “atual e limitado paradigma de crescimento econômico”, que produz aquecimento global e um apetite ilimitado para transformar nosso planeta em commodities para que o capital possa acumular indefinidamente.

Dora Maar, Les années vous guettent, 1936.
Em agosto passado, seis acadêmicos finlandeses lançaram um artigo para o Relatório de Desenvolvimento Sustentável Global da ONU, que será lançado no final deste ano. O trabalho deles estará no capítulo Transformação: a economia. Os cientistas, liderados por Paavo Jårvensivu, argumentaram que “a era da energia barata está chegando ao fim”. O capitalismo dos combustíveis fósseis já percorreu seu curso. Todos os potenciais substitutos para os combustíveis fósseis – propostos pelo setor de energia renovável – são muito menos eficientes em termos energéticos do que os baseados em carbono e muito mais caros. Mudanças gigantescas são necessárias não apenas no setor de energia, mas no próprio projeto de nossas sociedades, se quisermos levar as emissões líquidas globais para zero até 2050. “Ações baseadas no mercado não serão suficientes”, escrevem os acadêmicos, “mesmo elevando o preço do carbono”. O capitalismo, em outras palavras, não pode resolver o grave problema da extinção. Precisamos pensar em outras maneiras de administrar a vida humana no planeta, com um olhar atento às desigualdades que moldam os padrões de consumo e o desperdício. Nem todo mundo vive com o mesmo padrão exorbitante, e nem todos precisam arcar com os resíduos gerados pelos ricos.
Naomi Phillips and Thomas Hasel, The Rich, The Poor and The Trash, 2018.
As propostas são ambiciosas, embora as do relatório da ONU não enxerguem as necessidades diferenciadas dos ricos e pobres. É necessário, por exemplo, propor um uso de energia total mais baixo para as pessoas no Ocidente, cujo consumo é muito maior do que o dos trabalhadores sem-terra do Sul Global. Sistemas de transporte e sistemas de habitação precisam ser modelados para que haja mais confiança no transporte público e no cohousing. Os sistemas atuais de distribuição de alimentos fazem com que 33% de toda a comida colhida seja desperdiçada. É muito melhor, portanto, construir sistemas alimentares sustentáveis ​​que busquem colocar a segurança alimentar como elemento central e que tenha uma pegada de carbono menor na cadeia de suprimento de alimentos. O dinheiro para tudo isso está disponível, mesmo que seja difícil de encontrar: dezenas de trilhões de dólares em paraísos fiscais, dezenas de bilhões de dólares em subsídios dados a empresas de combustíveis fósseis e agronegócios que condenam o planeta à aniquilação. Se esse dinheiro pudesse ser reunido, seria um fundo suficientemente grande para reconfigurar sistemas de energia, transporte, habitação e alimentação.

O relatório da ONU desafia o pensamento econômico ortodoxo – a ciência do capitalismo. Em vez de “objetivos econômicos abstratos” – como a maximização do lucro -, o foco da atividade econômica deve ser “melhorar a vida e reduzir as emissões”. “A atividade econômica ganhará sentido não pelo alcance do crescimento econômico”, escrevem os acadêmicos finlandeses, “mas reconstruindo a infraestrutura e as práticas em direção a um mundo pós-combustível fóssil com um fardo radicalmente menor sobre os ecossistemas naturais”. O novo relatório resumido da ONU observa que a transição “implicaria uma mudança dos indicadores econômicos padrão, como o produto interno bruto, para incluir aqueles capazes de captar visões mais holísticas e de longo prazo da economia e da qualidade de vida”. Incapaz de dar um nome a tudo isso, os relatórios sugerem que o único antídoto para a extinção, nas mãos dos humanos, é o socialismo.

Käthe Kollwitz, Aufruhr, 1899.
Mas acreditar que uma abordagem socialista poderia deter a aniquilação do capitalismo de combustíveis fósseis não é suficiente. Mesmo que as condições objetivas existam, a possibilidade subjetiva para a consolidação do socialismo não é tão aparente. As reservas de poder da esquerda estão baixas, a fraqueza é aparente. A esquerda tem que ser construída, e com pressa.

Os mais ricos acreditam que podem se esconder da crise. Eles estão em busca de cidadelas e de novas maneiras de preservar sua riqueza na era da catástrofe. Com medo de que seus guardas possam virar suas armas contra eles, mergulham na fantasia de construir um exército de robôs para protegê-los em suas ilhas de prosperidade. A Europa constrói seu “muro” ao longo do Sahel, enquanto os Estados Unidos o fazem de forma profunda na América Central. Achille Mbembe chama a tentativa de deter seres humanos de migrarem de “paragenocídio”, pedindo, em vez disso, que tentemos imaginar “maneiras diferentes de reorganizar o mundo e redistribuir o planeta entre todos os seus habitantes, humanos e não-humanos”.

Os Mestres da Guerra estão gastando mais tempo para provocar a guerra no Irã e na Venezuela, e se retiram enquanto o Afeganistão continua a queimar e o Mar Mediterrâneo e o Deserto do Saara continuam a reivindicar vidas humanas. Para eles, o paragenocídio é uma realidade aceitável. Eles não estão dispostos a imaginar um mundo reorganizado. Para eles, vale a pena pagar qualquer preço se manterem sua riqueza – o assassinato de pessoas solidárias como Macli-ing Dulag, nas Filipinas, em 1980, enquanto tentava defender sua comunidade da construção de uma represa no rio Chico, ou o assassinato de milhares de outras pessoas por tentarem construir um futuro socialista.

Como você pode possuir daquilo que sobrevive a você?
Em 1964, Oodgeroo Noonuccal, um poeta de Minjerribah (na terra conhecida como Austrália) escreveu We Are Going [Nós vamos]. O poema, que dá título a esta carta semanal, observa a extinção do mundo do povo indígena, suas terras perdidas, seus costumes erodidos. (O anel bora é um espaço cerimonial e o corroboree é uma cerimônia de dança).

We are the shadow-ghosts creeping back as the camp fires burn low.
We are nature and the past, all the old ways
Gone now and scattered.
The scrubs are gone, the hunting and the laughter.
The eagle is gone, the emu and the kangaroo are gone from this place.
The bora ring is gone.
The corroboree is gone.
And we are going.

Nós somos os fantasmas-sombra, rastejando para trás enquanto os fogos do acampamento queimam lentamente.
Somos a natureza e o passado, todas as formas antigas
Fomo embora e nos espalhamos.
Os aventais desapareceram, a caça e o riso.
A águia se foi, o emu e o canguru se foram deste lugar.
O anel de bora desapareceu.
corroboree se foi.
E nós estamos indo.

A não ser que façamos algo a respeito.

A professora Sandra Díaz, que leciona na Universidade Nacional de Córdoba, na Argentina, e é co-presidente do relatório do IPBES, disse que embora a biodiversidade e a diversidade ecológica estejam “declinando rapidamente”, “ainda temos os meios para garantir um futuro sustentável para as pessoas e o planeta”.

Se fizermos algo a respeito.

Cordialmente,

Vijay.

PS: Nossos escritórios regularmente têm reuniões e eventos. Nesta sexta-feira (17 de maio), nosso escritório em Buenos Aires realizará uma discussão sobre seu boletim de abril – sobre a situação na Argentina. Veja o folheto abaixo. Para acompanhar nossos eventos em nossos escritórios, por favor, curta-nos no Facebook, siga-nos no Twitter e no Instagram (use os botões abaixo).