Queridos amigos e amigas,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Daqui a alguns dias – de 29 a 30 de novembro – um grande número de pessoas se reunirá em Nova Déli, capital da Índia, para dizer que estão ao lado dos agricultores indianos (kisans). Esse protesto – Dilli Chalo (Vamos para Déli) – reunirá certamente agricultores, mas também trabalhadores industriais e de alta tecnologia, estudantes e professores, advogados e banqueiros, trabalhadores da saúde pública e de creches. O objetivo da manifestação é exigir que o parlamento indiano realize uma sessão especial para discutir a crise agrária, que deixa 70% da população da Índia entregue a dívidas e ao desespero. A imagem acima é do nosso amigo e companheiro Orijit Sen.

No início deste ano, em março, 50 mil agricultores ocuparam a capital financeira da Índia, Mumbai, onde forçaram o governo de direita a atender algumas de suas demandas. Essa longa marcha, liderada pelo Kisan Sabha All-India (a frente de agricultores do Partido Comunista da Índia – Marxista ou PCI-M) capturou a imaginação do país. Em setembro, 200 mil agricultores e trabalhadores chegaram a Déli para pressionar o governo de direita que destruiu a base de seu sustento. Como T. K. Rajalakshmi escreveu em seu relatório para o Frontline, “não era uma coincidência que as mulheres constituíssem uma boa proporção dos quase 200 mil manifestantes. Aumento dos preços de itens essenciais, incluindo itens alimentares, sem aumento proporcional dos salários tem sido uma das principais causas de descontentamento”. Agora, não são apenas os agricultores que vão à capital, mas todos aqueles que acreditam que é imperativo ficar ao lado deles.

P. Sainath, membro sênior do nosso Instituto Tricontinental de Pesquisa Social foi um dos arquitetos dessa agitação de Dilli Chalo. Sua entrevista com Pranjal, do Newsclick, traz uma visão essencial. O governo mudou a forma como a seca é quantificada para que os agricultores não recebam ajuda, ao passo que as companhias de seguros e os bancos defraudam os agricultores por meio de esquemas de seguros. Além destes, os bancos têm sido extremamente duros com os camponeses que pediram dinheiro emprestado e absurdamente flexíveis com os bilionários corruptos que também fizeram empréstimos. Como um editorial do Economic & Political Weekly observa, “alguns bancos parecem ter adotado medidas duras e humilhantes para recuperar esses empréstimos. Notadamente, também, alguns desses bancos adotaram uma atitude bastante generosa em relação a certos indivíduos que são inadimplentes em seus empréstimos que chegam a vários milhares de crores [um crore é dez milhões]. Um grande número de agricultores é vítima dessa abordagem discriminatória dos bancos.

O título deste boletim vem de um poema de Mohammed Iqbal (1877-1938), um dos grandes poetas do sul da Ásia. Em seu poema, Farman-e-Khuda, Iqbal diz:

Se o campo não pode alimentar o camponês,
Então, queime cada feixe de trigo desse campo.

Nossos amigos da banda paquistanesa Laal cantaram uma bela versão desse poema durante a Marcha Anjuman Muzareen (Associação de Locatários) pelos direitos à terra, em 2010. Você pode assistir abaixo.

Laal, Farman-e-Khuda (2010).
Desde que a economia da Índia se liberalizou, mais de 300 mil agricultores se suicidaram. Esse é um problema universal, incluindo os Estados Unidos, onde os agricultores estão se matando em números recordes. Das Filipinas ao Peru, a agricultura está morrendo de forma lenta e segura. As terras agrícolas são vendidas para o mercado imobiliário – para construção de shoppings e residências. Os problemas são os mesmos: altos custos de insumos (sementes, fertilizantes, pesticidas), padrões inadequados de propriedade da terra (a agricultura inquilina é proibitivamente cara para o camponês), infraestrutura insatisfatória do Estado (centros cooperativos para o processamento de culturas para aumentar seu valor, irrigação, estradas) e, claro, problemas catastroficamente difíceis com as finanças (a dívida é o flagelo do agricultor). A cadeia global de commodities beneficia as firmas varejistas monopolistas em vez do campesinato. As grandes cadeias de supermercados continuam a ganhar dinheiro, enquanto os agricultores despencam do penhasco da dívida.

Se o campo não pode alimentar o camponês, então queime todo feixe de trigo desse campo.

Os fazendeiros e seus partidários que irão marchar em Déli o farão porque estão organizados. Um dos principais problemas do nosso tempo é o desespero da atomização. Estar sem um movimento ou uma organização é estar desarmado para a luta política. Se não fosse pelas organizações de agricultores e pelos partidos de esquerda, não haveria uma luta eficaz contra os ataques da direita contra seus meios de vida – e suas próprias vidas.

A importância da organização é reconhecida pelas forças de direita, tanto é assim que usam todos os elementos do poder do Estado para destruir a esquerda e quebrar a confiança dos ativistas da classe trabalhadora, do campesinato e das comunidades oprimidas. De Tripura, no nordeste da Índia, a Antioquia, no noroeste da Colômbia, militantes populares estão sendo derrotados um por um. Silenciar a dissidência por assassinato ou intimidação é silenciar a confiança dos trabalhadores e dos camponeses, das comunidades oprimidas e dos grupos sociais marginalizados. Temos listas de pessoas que foram mortas – Ana María Cortés, Felicinda Santamaria, Holmes Niscué, Luis Barrios, Ajendra Reang, Anima Das, Pradeep Deb Barma, Rakesh Dhar, Tapas Sutradhar. Eles trabalharam para organizar comunidades indígenas e trabalhadores de fábricas, agricultores e estudantes.

As investigações sobre suas mortes não são levadas a sério. É quase como se elas fossem inevitáveis; a ocorrência delas não parece gerar reprovação ou provocar a atenção do sistema judicial. O novo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, disse que a ditadura militar “deveria ter matado 30 mil pessoas” a mais do que mataram, em uma ação profilática para a oligarquia. A investigação sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco (Psol), em março, está congelada. Ninguém presta atenção ao assassinato do militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) Márcio Matos, assassinado em janeiro. Na última semana, 200 famílias de um assentamento de três anos, no Maranhão, foram despejadas. 450 famílias que vivem em um assentamento em Minas Gerais estão ameaçadas de despejo por uma ordem judicial. Bolsonaro não está esperando tomar posse para acelerar sua agenda de quebra do poder organizacional do povo e de transferência de recursos para os oligarcas e o capital monopolista.

Na minha coluna desta semana sobre esses assassinatos e sobre a tentativa de matar a confiança dos trabalhadores, imagino outra realidade:

Em um mundo alternativo, Holmes Niscué, um líder indígena colombiano de esquerda, encontraria Ajendra Reang, ativista do PCI-M e da Federação Tribal da Juventude, em uma reunião sobre direitos indígenas. Eles conversariam com a ajuda de um tradutor e encontrariam uma agenda comum, uma maneira de combater a marginalização das populações indígenas e o roubo de recursos retirados das terras controladas pelas comunidades indígenas. Nesse mundo alternativo, Ana María Cortés e Rakesh Dhar trocariam escritos sobre o colapso econômico de suas cidades e conversariam honestamente sobre a dificuldade de organizar a resistência. Essas eram todas pessoas decentes que queriam tornar o mundo um lugar melhor. Agora eles estão mortos.

No mês que vem, nosso dossiê do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social será sobre o trabalho de Abahlali baseMjondolo. O documento irá mostrar como os moradores das favelas lutam para construir sua confiança em sua luta contra um sistema sem coração. Também detalhará a violência vivida pelos organizadores muito pobres, violência que vai da intimidação ao assassinato. Por favor, fique atento (para uma prévia, veja o artigo do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social da coordenadora Celina della Croce, sobre Abahlali).

A pintura acima é de um jovem artista de Tripura – Mrinmoy Debbarma. É intitulada Oh My God (2015).

Na semana passada, Greg Wilpert, da The Real News Network, e eu falamos sobre o retorno do FMI à América do Sul (para mais informações, veja nosso Dossiê sobre o caso da Argentina). No final da entrevista, Greg me fez uma pergunta muito importante sobre a nova estratégia da instituição na região e em outros lugares. É verdade que, na maioria dos países, o FMI já conseguiu que os Estados desmantelassem seus regimes de subsídios e destruíssem o bem-estar social. Esse é o caso não apenas no Sul Global, mas também de países do Ocidente – como a Grã-Bretanha (veja aqui como o aumento da sua pobreza pode estar ligado à discussão em torno do Brexit). A nova agenda do FMI, que inclui assistência social direcionada ou testada em termos de recursos – foi concebida para romper quaisquer laços comunitários e sociais e criar um mundo cultural moldado pelo individualismo e pela atomização. O ethos básico é romper os laços comunitários e moldar os interesses segundo os interesses individuais (no máximo o interesse familiar).
Porém, é claro, como a “mão invisível” de Adam Smith mina os laços comunitários o “coração invisível” precisa assumir o controle da sociedade. Quando o relator especial da ONU, Philip Alston, diz que “a pobreza é uma escolha política”, ele diz claramente que é a política governamental, disfarçada de forças de mercado (a “mão invisível”), que cria o empobrecimento. Numa sociedade em situação de pobreza, a ausência de apoio institucional do Estado força as instituições familiares e comunitárias – o coração invisível – a assumir o controle. As mulheres, em particular, têm trabalhado em turnos extras para manter as vidas de familiares que, de forma lenta, porém segura, têm sido dificultadas à medida que o Estado retira seus vários mecanismos de apoio. Kate Donald e Nicholas Lusiani, do Centro de Direitos Econômicos e Sociais, com o Projeto Bretton Woods, têm um briefing muito importante – Os custos de gênero da austeridade: avaliando o papel do FMI nos cortes orçamentários que ameaçam os direitos das mulheres. As políticas do FMI que destroem a vida da comunidade – incluindo o apoio do Estado – afetam negativamente as mulheres da classe trabalhadora e do campesinato. Essa é a linha de fundo. Toda a conversa sobre a sensibilidade de gênero que ouvimos do FMI e do Banco Mundial é difícil de ser levada a sério quando suas prescrições políticas básicas minam a possibilidade de emancipação das mulheres.A arte – Victoria II (1996-2012) – acima foi feita por Graciela Sacco (1956-2017), uma das artistas feministas argentinas mais brilhantes.Hoje celebramos o nascimento de Zilda Xavier Pereira (1925-2015) – feminista, ativista e revolucionária brasileira. Nascida no Recife, ela se uniu ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) aos 20 anos de idade, e tornou-se uma militante exemplar. Após o golpe de Estado de 1964, entrou para a luta armada junto com Carlos Marighella como parte da liderança da Ação Libertadora Nacional (ALN), a maior organização guerrilheira do país. Seus dois filhos e companheiro, Marighella, foram todos assassinados por agentes da repressão. Zilda dedicou toda sua vida em defesa do povo brasileiro, contra a elite e o imperialismo

Cordialmente,
Vijay.

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