Wilfried Balima (Burkina Faso), Les Trois Camarades (‘The Three Comrades’), 2018.

Wilfried Balima (Burkina Faso), Les Trois Camarades [Os Três Camaradas], 2018.

Queridos amigos e amigas,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social

Em 30 de setembro de 2022, o capitão Ibrahim Traoré liderou um setor das forças armadas de Burkina Faso para depor o tenente-coronel Paul-Henri Sandaogo Damiba, que havia tomado o poder em um golpe de Estado em janeiro. O segundo golpe foi rápido, com breves confrontos na capital de Burkina Faso, Ouagadougou, na residência do presidente, o Palácio Kosyam, e em Camp Baba Sy, o quartel-general da administração militar. O capitão Kiswendsida Farouk Azaria Sorgho declarou na Radiodiffusion Télévision du Burkina (RTB), a emissora nacional, que seu colega capitão, Traoré, era agora o chefe de Estado e das forças armadas. “As coisas estão gradualmente voltando à ordem”, disse enquanto Damiba se exilava no Togo.

 

 

 

Este golpe não é um golpe contra a ordem dominante, uma plataforma militar chamada Movimento Patriótico para Salvaguarda e Restauração (Movementpatriotique pour la sauvegarde et la restauration ou MPSR); em vez disso, vem de jovens capitães dentro do MPSR. Durante o breve mandato de Damiba no poder, a violência armada aumentou 23% e ele não cumpriu nenhuma das promessas que os militares fizeram ao derrubar o ex-presidente Roch Kaboré, ex-banqueiro que governava o país desde 2015. L’Unité d’Action Syndicale (UAS), uma plataforma de seis sindicatos em Burkina Faso, está alertando sobre a “decadência do exército nacional”, sua desordem ideológica manifestada pelos altos salários pagos pelos líderes golpistas.

Kaboré foi o beneficiário de uma insurreição em massa que começou em outubro de 2014 contra Blaise Compaoré, que estava no poder desde o assassinato de Thomas Sankara em 1987. Vale a pena notar que em abril, enquanto exilado na Costa do Marfim, Compaoré foi condenado à prisão perpétua in absentia por seu papel nesse assassinato. Muitas das forças sociais nas revoltas de massa chegaram às ruas com fotos de Sankara, agarrando-se ao seu sonho socialista. A promessa desse movimento de massa foi sufocada pela agenda limitada de Kaboré, sufocada pelo Fundo Monetário Internacional e prejudicada pela insurgência jihadista de sete anos no norte de Burkina Faso, que deslocou cerca de dois milhões de pessoas. Embora o golpe MPSR tenha uma visão confusa, ele responde à profunda crise social que aflige o quarto maior produtor de ouro do continente africano.

 

Adokou Sana Kokouvi (Togo), L’un pour l’autre [Um pelo outro], 2020.

Em agosto de 2022, o presidente francês Emmanuel Macron visitou a Argélia. Enquanto caminhava pelas ruas de Oran, Macron experimentou a ira do público argelino, com pessoas gritando insultos – va te faire foutre! [vá se foder] – forçando-o a sair apressadamente. A decisão da França de reduzir o número de vistos concedidos a marroquinos e tunisianos alimentou um protesto de organizações de direitos humanos em Rabat (Marrocos), e a França foi forçada a demitir seu embaixador em Marrocos.

O sentimento antifrancês está se aprofundando no norte da África e no Sahel, a região ao sul do deserto do Saara. Foi esse sentimento que provocou os golpes no Mali (agosto de 2020 e maio de 2021), na Guiné (setembro de 2021) e depois em Burkina Faso (janeiro de 2022 e setembro de 2022). Em fevereiro de 2022, o governo do Mali expulsou os militares franceses, acusando as forças francesas de cometer atrocidades contra civis e conspirar com insurgentes jihadistas.

Ao longo da última década, o norte da África e o Sahel têm lutado contra os detritos produzidos pela guerra da Otan na Líbia, impulsionada pela França e pelos Estados Unidos. A Otan encorajou as forças jihadistas, que estavam desorientadas com sua derrota na Guerra Civil Argelina (1991-2002) e pelas políticas anti-islâmicas da administração de Muammar Kadafi na Líbia. De fato, os EUA trouxeram combatentes jihadistas endurecidos, incluindo veteranos do Grupo de Combate Islâmico da Líbia, da fronteira Síria-Turquia para reforçar a guerra anti-Kadafi. Essa chamada “linha de ratos” se moveu em ambas as direções, à medida que jihadistas e armas foram da Líbia pós-Kadafi de volta à Síria.

 

 

Inoussa Simpore (Burkina Faso), Rue de Ouaga (‘Ouaga Road’), 2014.

Inoussa Simpore (Burkina Faso), Rue de Ouaga, 2014.

 

Grupos como al-Qaeda (no Magrebe Islâmico), bem como al-Mourabitoun, Ansar Dine e Katibat Macina – que se fundiram no Jama’at Nusrat al-Islam wal-Muslimin [Grupo de Apoio ao Islã e aos Muçulmanos] em 2017 – varreu do sul da Argélia à Costa do Marfim, do oeste do Mali ao leste do Níger. Esses jihadistas, muitos deles veteranos da Guerra do Afeganistão, são unidos por uma causa comum com bandidos e contrabandistas locais. Essa “banditização da jihad”, como é chamada, é uma explicação de como essas forças se tornaram tão profundamente enraizadas na região. Outra é que os jihadistas usaram tensões sociais mais antigas entre os Fulani (um grupo étnico majoritariamente muçulmano) e outras comunidades, agora reunidas em grupos de milícia chamados Koglweogo [guardiões do mato]. A atração de várias contradições no conflito jihadista-militar militarizou efetivamente em grande parte a vida política de Burkina Faso, Mali e Níger. O envolvimento da França por meio da Operação Barkhane, uma intervenção militar no Mali em 2014, e o estabelecimento de bases militares não apenas não conseguiram conter ou erradicar as insurgências e conflitos, mas os exacerbou.

A Union d’Action Syndicale lançou um plano de dez pontos que inclui alívio imediato para as áreas que passam fome (como Djibo), uma comissão independente para estudar a violência em áreas específicas (como Gaskindé), a criação de um plano para lidar com a crise do custo de vida, e o fim da aliança com a França, que incluiria a “saída de bases e tropas estrangeiras, especialmente francesas, do território nacional”.

 

 

Françoise Huguier (France), Pays Lobi, Burkina Faso (‘Lobi Country, Burkina Faso’), 1996.

Françoise Huguier (França), Pays Lobi, Burkina Faso, 1996.

 

Um relatório recente das Nações Unidas mostra que 18 milhões de pessoas no Sahel estão “à beira da fome”. O Banco Mundial pontua que 40% dos burkinabes vivem abaixo da linha da pobreza. Nem os governos civis nem militares de Burkina Faso, nem os de outros países do Sahel, articularam um projeto para transcender essa crise. Burkina Faso, por exemplo, não é um país pobre. Com um mínimo de 2 bilhões de dólares por ano em vendas de ouro, é extraordinário que este país de 22 milhões de pessoas permaneça atolado em tal pobreza. Em vez disso, a maior parte da receita é desviada por empresas de mineração do Canadá e da Austrália – Barrick Gold, Goldrush Resources, Semafo e Gryphon Minerals – bem como suas contrapartes na Europa.

Essas empresas transferem os lucros para suas próprias contas bancárias e algumas, como a Randgold Resources, para o paraíso fiscal das Ilhas do Canal. O controle local sobre o ouro não foi estabelecido, nem o país conseguiu exercer qualquer soberania sobre sua moeda. Tanto Burkina Faso quanto Mali usam o franco CFA da África Ocidental, uma moeda colonial cujas reservas são mantidas no Banco da França, que também administra sua política monetária.

Os golpes no Sahel são golpes contra as condições de vida que afligem a maioria das pessoas na região, condições criadas pelo roubo de soberania por corporações multinacionais e pelo antigo governante colonial. Em vez de reconhecer isso como o problema central, os governos ocidentais desconversam e insistem que a verdadeira causa da agitação política é a intervenção de mercenários russos, o Grupo Wagner, lutando contra a insurgência jihadista (Macron, por exemplo, descreveu sua presença na região como “predatória”). Yevgeny Prigozhin, fundador do Grupo Wagner, disse que Traoré “fez o que era necessário (…) para o bem de seu povo”. Enquanto isso, o Departamento de Estado dos EUA alertou o novo governo de Burkina Faso para não fazer alianças com o Grupo Wagner. No entanto, parece que Traoré está buscando todos os meios para derrotar a insurgência, que absorveu 40% do território de Burkina Faso. Apesar de um acordo com a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) feito por Damiba e continuado por Traoré de que Burkina Faso retornará ao governo civil em julho de 2024, as condições necessárias para essa transferência parecem ser a derrota da insurgência.

 

Francisco Mampuya (República Democrática do Congo), Sankara, 2018.

 

Em 1984, o presidente Thomas Sankara foi à ONU. Quando assumiu o poder em seu país no ano anterior, seu nome colonial era Upper Volta, definido apenas por seu status geográfico como a terra ao norte do rio Volta. Sankara e seu movimento político mudaram esse nome para Burkina Faso, que significa “Terra do Povo Erguido”. Os burkinabes não mais curvavam os ombros e olhavam para o chão enquanto caminhavam. Com a libertação nacional, as “estrelas começaram a brilhar nos céus de nossa pátria”, disse Sankara na ONU, ao perceberem a necessidade da “revolução, a luta eterna contra toda dominação”. “Queremos democratizar nossa sociedade”, continuou, “abrir nossas mentes para um universo de responsabilidade coletiva, para que tenhamos a ousadia de inventar o futuro”. Sankara foi morto em outubro de 1987. Seus sonhos se firmaram no coração de muitos, mas ainda não influenciaram um projeto político suficientemente poderoso.

No espírito de Sankara, o cantor malinês Oumou Sangaré lançou uma música maravilhosa, Kêlê Magni [a guerra é uma praga], em fevereiro de 2022, que fala por todo o Sahel:

A guerra é uma praga! Meu país pode desaparecer!
Eu lhe digo: a guerra não é uma solução!
A guerra não tem amigos nem aliados, e não há inimigos reais.
Todas as pessoas sofrem com esta guerra: Burkina, Costa do Marfim… todos!
São necessários outros instrumentos: novas estrelas no céu, novas revoluções que se baseiem na esperança e não no ódio.

Cordialmente,

Vijay.