Meas Sokhorn (Camboja), Inverted Sewer [Esgoto Invertido], 2014.

Queridas amigas e amigos,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

É notável como a mídia em alguns poucos países é capaz de determinar a abordagem sobre as questões que se apresentam em todo o mundo. Os países europeus e norte-americanos gozam de um monopólio quase global sobre a informação, seus meios de comunicação dotados de uma credibilidade e autoridade herdadas de seu status durante os tempos coloniais (BBC, por exemplo), bem como seu domínio da estrutura neocolonial de nossos tempos (como a CNN). Na década de 1950, as nações pós-coloniais identificaram o monopólio do Ocidente sobre a mídia e a informação e buscaram “promover o livre fluxo de ideias, através da palavra e da imagem”, conforme define a Constituição de 1945 da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

Como parte do Movimento Não-Alinhado, os países e regiões da África, Ásia e América Latina desenvolveram suas próprias instituições nacionais e regionais de notícias: em 1958, um seminário da Unesco realizado em Quito (Equador) levou à criação de uma escola regional para formar jornalistas e profissionais da comunicação conhecido como Centro Internacional de Estudos Avançados em Comunicação para a América Latina (Ciespal),  em 1960; um ano depois, uma reunião realizada em Bangkok criou a Organização das Agências de Notícias da Ásia-Pacífico (Oana); e em 1963, uma conferência realizada em Tunis criou a União das Agências Africanas de Notícias (Uana). Essas agências tentaram amplificar as vozes do Terceiro Mundo por meio de sua própria mídia, mas também – sem sucesso – dentro das empresas midiáticas do Ocidente. Juntamente com esses esforços, na Conferência Geral da Unesco de 1972, a União Soviética e os especialistas da Unesco de mais de uma dúzia de países apresentaram uma resolução intitulada Declaração de princípios orientadores para o uso de radiodifusão por satélite para o livre fluxo de informações, a disseminação de educação e maior intercâmbio cultural, que pedia que nações e povos tivessem o direito de determinar quais informações seriam transmitidas em seus países. Como outros esforços desse tipo, houve a oposição dos Estados ocidentais, com os Estados Unidos no comando. Mesmo que todas estas conferências, de Bangkok a Santiago, tenham levado a sério a questão da democratização da imprensa, essa oposição significava que pouco avanço seria possível.

 

Dominique Bwalya Mwando (República Democrática do Congo), Discurso de Lumumba, 2005.

 

Nas décadas de 1970 e 1980, esses esforços se uniram no movimento de construção da Nova Ordem Mundial da Informação e Comunicação para enfrentar os desequilíbrios globais nessa esfera entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Essa ideia influenciou a Comissão Internacional para o Estudo dos Problemas de Comunicação da Unesco, ou Comissão MacBride, criada em 1977 e presidida pelo político irlandês e Prêmio Nobel Seán MacBride, que produziu um relatório importante, mas pouco lido, sobre o tema (Many Voices, One World, 1980). Em 1984, os Estados Unidos se retiraram da Unesco em resposta a essas iniciativas. A privatização da mídia na década de 1980 acabou com qualquer tentativa do Terceiro Mundo de criar redes de mídia soberanas – mesmo quando essas redes eram anticomunistas (como a Asia-Pacific News Network, estabelecida em Kuala Lumpur, Malásia, em 1981).

No entanto, nos últimos anos, esse sonho do livre fluxo de informações foi revivido por movimentos do Sul Global, frustrados pela quase total ausência de seus pontos de vista nos debates internacionais e pela imposição de uma visão de mundo estreita e estrangeira sobre seus países e os dilemas que enfrentam (guerra e fome, por exemplo). Como parte desse renascimento, centenas de editores e jornalistas do Sul Global se reuniram em Xangai (China) no início de maio para o Fórum Internacional de Comunicação do Sul Global. Ao final de dois dias de intenso debate, os participantes redigiram e votaram um Consenso de Xangai, que pode ser lido na íntegra abaixo.

 

Apresentação cultural de abertura do Global South International Communication Forum, 4 de maio de 2023. Crédito: Instituto de Pesquisa de Comunicação Internacional da Universidade Normal da China Oriental

 

Promovendo a construção de uma nova ordem mundial de informação e comunicação do século 21

Na década de 1970, como parte do processo do Movimento Não-Alinhado para estabelecer a Nova Ordem Econômica Internacional, os Estados do Sul Global, juntamente com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), tentaram estabelecer o Novo Mundo da Informação e Ordem de Comunicação. Essa tentativa foi destruída pela ascensão da hegemonia neoliberal durante a década de 1980. A onda de globalização neoliberal se acelerou devido à crise da dívida do Terceiro Mundo e ao fim da União Soviética. O Ocidente estabeleceu uma “ordem internacional baseada em regras” para mascarar suas estruturas neocoloniais e ações imperialistas. Samir Amin argumentou que a estrutura neocolonial é construída sobre “cinco controles”: finanças, recursos naturais, ciência e tecnologia, armas de destruição em massa e informação.

Hoje, embora alguns desses monopólios tenham se afrouxado, a estrutura desigual de informação e comunicação não apenas permaneceu inalterada, mas também se agravou. O paradigma teórico dominante na produção e comunicação de informação em todo o mundo permanece centrado no Ocidente, e a academia e a mídia do Sul Global carecem de mecanismos para gerar ideias e uma estrutura que vá além da perspectiva centrada no Ocidente.

 

 

Vijay Prashad, diretor do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social  faz o discurso principal, intitulado “A História não acabou: as três batalhas do nosso tempo”, 4 de maio de 2023. Crédito: Instituto de Pesquisa de Comunicação Internacional da Universidade Normal da China Oriental

 

Notamos a prevalência de estruturas neocoloniais, em particular na mídia, que são controladas pelo Ocidente. Essa mídia é incapaz de articular os desafios enfrentados pelos povos do mundo ou de comunicar e discutir de forma eficaz estratégias de desenvolvimento viáveis, em particular para o Sul Global.

Os imperialistas dos EUA e seus aliados armam a mídia, lançando guerras de informação contra países da Ásia, África e América Latina. Se o Sul Global busca colocar a paz e o desenvolvimento na agenda, o Ocidente responde com guerra e dívidas. Nas mãos dos monopólios da mídia ocidental, a ordem das comunicações não é usada para promover a paz mundial, mas para exacerbar a divisão humana e o risco de guerra.

Os imperialistas dos EUA e seus aliados usam a hegemonia da mídia para distorcer os belos conceitos de democracia, liberdade e direitos humanos. Eles atacam outros países sob o pretexto de democracia, liberdade e direitos humanos, enquanto permanecem em silêncio sobre seu próprio atropelamento da democracia, privação de liberdade e direitos humanos.

 

 

Professora Lyu Xingyu, reitor do Instituto de Pesquisa de Comunicação Internacional da Universidade Normal da China Oriental, faz as considerações finais do Fórum de Comunicação Internacional do Sul Global, 5 de maio de 2023. Crédito: Instituto de Pesquisa de Comunicação Internacional da Universidade Normal da China Oriental

 

Tecnologias digitais como internet, big data e inteligência artificial, que deveriam servir ao bem-estar humano, são usadas por alguns gigantes da mídia ocidental e plataformas monopolistas para dominar a produção e disseminação de informações e bloquear vozes que diferem de suas reivindicações. Dadas essas circunstâncias, acreditamos que é essencial para intelectuais e profissionais de comunicação simpatizantes do Sul Global reviver o espírito da Conferência de Bandung de 1955 e do Movimento dos Não-Alinhados (estabelecido em 1961), responder à Iniciativa de Civilização Global (2023) e estabelecer a solidariedade internacional por meio da teoria e prática da comunicação.

Acreditamos que é essencial para os intelectuais e simpatizantes do Sul Global promover as sínteses teóricas e a produção acadêmica do Sul Global (especialmente nas arenas da história e do desenvolvimento), engajar-se ativamente em intercâmbios e colaborações acadêmicas e formar uma teoria da comunicação sob a perspectiva do Sul Global.

 

Tings Chak, cofundadora da Dongsheng e diretora de arte do Instituto Tricontinental faz um discurso intitulado “Cultura do Terceiro Mundo, comunicação e solidariedade”, 4 de maio de 2023.

 

Acreditamos que é essencial que a mídia progressista e simpatizante do Sul Global forme uma rede de produção e disseminação de conteúdo distribuída e diversificada, compartilhe conteúdo e experiências de mídia e estabeleça uma frente unida de comunicação internacional contra o imperialismo e o neocolonialismo para defender a paz e desenvolvimento.

Acreditamos que é fundamental que o Fórum Internacional de Comunicação do Sul Global seja realizado anualmente para construir uma rede e plataforma diversa e multilateral de diálogo e intercâmbio entre intelectuais e profissionais da comunicação. Essa rede e plataforma servirá de base para várias formas de colaboração com governos, universidades, think tanks, mídia e outras instituições.

A missão histórica da Nova Ordem Mundial de Informação e Comunicação não foi cumprida, nem o espírito por trás dela foi erradicado. Anti-imperialismo e anticolonialismo ainda são o consenso do novo Movimento dos Não-Alinhados. Vamos trabalhar juntos, com base nessa fundação, para promover a construção de uma Nova Ordem Mundial de Informação e Comunicação do século 21 para beneficiar a humanidade.

 

Nor Tijan Firdaus (Malásia), Just Scan It [Apenas escaneie] (2021).

Nós, do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, estamos de acordo com a necessidade de promover a Nova Ordem Mundial de Informação e Comunicação e reviver o sonho do livre fluxo de ideias. Essa empreitada se baseia em esforços do passado, como o Non-Aligned News Agencies Pool, formado pela agência de notícias iugoslava Tanjug em 20 de janeiro de 1975, que reuniu 11 agências de notícias. Em seu primeiro ano de operação, as agências compartilharam 3.500 histórias; uma década depois, havia 68 agências de notícias na rede. Embora o pool de agências de notícias não alinhadas esteja extinto, a ideia por trás dele permanece vital. A recente conferência em Xangai faz parte da nova conversa para construir novos pools, novas redes e novas mídias, organizações como o Peoples Dispatch e projetos de mídia similares.

Cordialmente,

Vijay.