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Cartas Semanais

É preciso construir instituições de administração pública fortes no Sul Global | Carta semanal 27 (2025)

Em meio aos cortes impostos pelo FMI à administração pública e às inúmeras desvantagens econômicas impostas pelas estruturas neocoloniais, países como os EUA muitas vezes ficam atrás dos países do Sul Global nas negociações.

Youssef Abdelké (Síria), Figuras vermelhas, 1994.

Queridas amigas e amigos,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Há uma década, eu era uma mosca na parede durante uma negociação comercial entre os Estados Unidos e um pequeno país do Sudeste Asiático. O que me interessou não foi o conteúdo da negociação, as deliberações em torno de uma questão de menor interesse para os assuntos mundiais, mas de grande interesse para este país, mas a desproporcionalidade entre os funcionários na mesa de negociações.

A delegação dos Estados Unidos que chegou a esse escritório indefinido em Genebra, Suíça, era considerável em dois aspectos: primeiro, tinha uma superabundância de advogados e associados e, segundo, vieram armados com um grande número de pastas encadernadas que continham toda a papelada do caso, repleta de marcadores de página com etiquetas para que pudessem ir direto aos pontos que precisavam abordar na discussão. O contingente do país asiático, por outro lado, era escasso: composto por um único representante do escritório das Nações Unidas em Genebra, que não era especialista em comércio nem advogado e que veio armado apenas com uma pasta de papel pardo contendo algumas folhas. As negociações refletiram essa desigualdade, com os representantes comerciais dos EUA dando voltas em torno do burocrata asiático júnior. Depois fui tomar um café com esse burocrata. Ele ficou abalado. E se sentiu roubado.

Ian Banja (Quênia), Mão e boca, 2021.

Há alguns anos, um funcionário de nível médio de um país da África Oriental me disse que havia assinado um contrato de empréstimo com um banco asiático sem ter as habilidades necessárias para entender o documento ou tempo para lê-lo do início ao fim. Na mesma época, um funcionário de um ministério da América Latina me disse que eles terceirizaram a análise de documentos comerciais para uma fundação ligada a uma organização sem fins lucrativos dos Estados Unidos. Em outras palavras, suas negociações são baseadas nos resumos fornecidos por essa fundação e não em suas próprias análises e avaliações. Esses exemplos poderiam ser facilmente multiplicados, com as histórias recontadas vagamente para não constranger colegas e países que foram colocados em circunstâncias muito difíceis pelas estruturas neocoloniais.

Paul Ndema (Uganda), Nenhum Papa Africano, 2015.

É difícil quantificar o impacto de tais desequilíbrios institucionais, em grande parte porque não há nenhuma agência internacional que colete dados sobre autoridades governamentais em geral ou sobre negociadores em particular. Entre os dados esparsos que existem nessa área está o Painel de Indicadores de Burocracia Mundial do Banco Mundial, que mostra que cerca de 18,6% da população ativa total no Norte Global está empregada pelo governo, enquanto no Sul Global esse número está mais próximo de 10%. Um estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre a África mostra que os números são muito menores em muitos países, abaixo de 3% em países africanos como Chade, Costa do Marfim, Madagascar, Mali e Tanzânia. Embora não haja dados granulares sobre o número de negociadores comerciais ou advogados comerciais no governo, por exemplo, o exposto acima é um quadro razoável da disparidade geral entre a capacidade estatal no Norte e no Sul.

Dalton Paula (Brasil), Reisado, 2009.

A escala dessa disparidade é incrível (as exceções são os projetos estatais socialistas, como a China e o Vietnã, onde os funcionários do governo continuam bem treinados e em maior número — representando cerca de um quinto da força de trabalho na China). Muitas das razões para essa desigualdade são óbvias, mas vale a pena listá-las de qualquer forma:

  1. A maioria das escolas de administração pública no Sul Global sofreu enormes cortes orçamentários induzidos pelas políticas de austeridade da dívida do Fundo Monetário Internacional, impactando, por exemplo, a capacidade de treinar professores e criar programas de estudo que sejam atualizados e relevantes para as condições nacionais específicas nas quais esses futuros servidores públicos terão que operar.
  2. Juntamente com as medidas de austeridade impostas às escolas de administração pública, também houve um fechamento ou contração constante de comissões estaduais de planejamento e departamentos de pesquisa. Essas são as instituições que normalmente forneceriam aos quadros do governo uma orientação intelectual sobre a posição de seu país na economia internacional e as tarefas imediatas de um programa de desenvolvimento nacional. A falta de tais instituições deixa os quadros sem um mandato ou direção clara.
  3. Houve um desgaste do sentimento patriótico e anticolonial geral entre funcionários do governo que são mal pagos e mal treinados. Essa guerra psicológica provocada pelo neoliberalismo e pelo imperialismo cultural significa que as novas gerações de servidores públicos são incapazes de defender o bem-estar de seu povo e estão propensas a incentivos de vários tipos (incluindo corrupção). Um crescente senso de individualismo entre a população também levou ao carreirismo e ao acúmulo de riqueza e privilégios pessoais em detrimento do interesse nacional.
  4. À medida que as instituições estatais foram fechadas ou reduzidas, organizações não governamentais financiadas pelo Ocidente surgiram para fornecer “assistência técnica”. Esses programas geralmente são compostos por pessoas treinadas em universidades estrangeiras, que têm uma formação de classe que não necessariamente condiz com a grande maioria da população e têm uma compreensão limitada dos desenvolvimentos históricos e sociológicos em seu país. Além disso, as agendas dessas instituições são elaboradas por seus benfeitores estrangeiros, que muitas vezes são movidos por seus próprios interesses.

Ayotunde Ojo (Nigéria), Vinho envelhecido, 2022.

O desgaste das escolas de administração pública, combinado com a falta de vontade política dos governos em afirmar a soberania de suas sociedades, permitiu que as ambições de corporações multinacionais e instituições financeiras internacionais definissem a direção desses países. Essa falta de capacidade e clareza política faz com que os Estados do Sul Global rotineiramente se rendam às agendas bem elaboradas de instituições estrangeiras, que muitas vezes são muito claras sobre o que querem. A necessidade de desenvolver capacidades administrativas no Sul Global anda de mãos dadas com a necessidade mais ampla de uma nova teoria de desenvolvimento para o Sul, para que possamos definir nossa própria agenda, contra a dos invasores neocoloniais.

Sentado naquela reunião em Genebra, alguns anos atrás, observando as autoridades estadunidenses e seus advogados caminhando em círculos ao redor do oficial subalterno do Sudeste Asiático, pensei no poema de Nizar Qabbani de 1967, “Notas de rodapé para o livro do retrocesso”, escrito logo após a derrota dos palestinos na Guerra dos Seis Dias. O poema, publicado em Damasco, na Síria, foi posteriormente proibido e contrabandeado para países do mundo árabe. Dois versos do poema ricochetearam em minha mente:

Nossos inimigos não cruzaram nossas fronteiras.
Eles rastejaram entre nossas fraquezas como formigas.

Devemos fortalecer nossas fraquezas.

Cordialmente,

Vijay