Rio de Janeiro – Edifício sede da Petrobras no Centro do Rio. (Fernando Frazão/Agência Brasil)

 

Mariana Davi Ferreira e Nataly Santiago Guilmo* 

 

O dia 1º de janeiro de 2023 foi uma data que entrou para a história brasileira, assim como o dia 8 de janeiro também. Tivemos a posse de Lula como presidente da República e, uma semana depois, o movimento bolsonarista atacou as sedes dos três poderes da democracia brasileira em uma ação terrorista. Os fatos explicitam a atual polarização política da sociedade brasileira, que perpassa a defesa de projetos antagônicos para o nosso país. Por um lado, o governo Lula, eleito democraticamente a partir de uma frente ampla, defende as instituições democráticas e tem na centralidade de seu programa o combate à desigualdade social. Isso exigirá do governo uma política econômica que também tenha como foco a utilização das riquezas do país para combater a desigualdade e garantir os direitos do povo brasileiro. Por outro, o bolsonarismo sintetiza um projeto antidemocrático, conservador e de cunho neofascista derrotado nas urnas. No campo econômico, defendem um projeto privatista e neoliberal ortodoxo, que endossa e agrava as desigualdades sociais. Embora se apresentem como nacionalistas, esse projeto de austeridade não defende a soberania nacional e tem como consequência a entrega das riquezas nacionais aos interesses da burguesia associada ao capital externo e, principalmente, ao capital americano. Isso ficou explícito na política externa bolsonarista.

Vários decretos assinados pelo presidente Lula, assim que tomou posse, buscam reverter medidas dos governos de Michel Temer (2016 – 18) e de Jair Bolsonaro (2019 – 22). O despacho publicado no dia 02 de janeiro de 2023 revoga o processo de privatização de oito empresas estatais centrais para o desenvolvimento econômico do país: a Petrobras, os Correios, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), a Dataprev, bens da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), o Nuclebrás Equipamentos Pesados S.A. (Nuclep), a Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural S.A. (PPSA) e o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro). A retirada dessas empresas do “pacote de privatizações” em curso no governo anterior é uma importante decisão que demonstra a concepção deste governo sobre o papel que devem desempenhar as empresas estatais em um país como o Brasil.

No âmbito do Instituto Tricontinental, estamos pesquisando as privatizações de empresas que possuíam controle acionário estatal nos governos Temer e Bolsonaro. A literatura baseada na economia neoclássica e a mídia tradicional abordam o tema descredibilizando a viabilidade dessas empresas, acusando-as de “corrupção”, “morosidade”, “lentidão” e que “não se sujeitam aos mecanismos de lucros e prejuízos”. Apontam como saída que as estatais devem se inserir na lógica de mercado por meio de privatizações.

Os resultados iniciais da pesquisa em curso demonstram que nos governos de Temer e Bolsonaro, as empresas estatais sofreram um profundo desmonte por pressão do capital internacional, em sua fração produtiva e financeira, que buscava ajustar sua forma de dominação imperialista a partir de 2015. Assim, o despacho que retira as empresas do pacote de privatizações pode ser sinal de que o controle estatal de importantes empresas pode contribuir para investimentos públicos direcionados ao desenvolvimento nacional.

É possível visualizar que a vitória de Lula representa um freio ao processo de privatizações das estatais em curso no governo Bolsonaro. Ao discursar no dia 13 de dezembro de 2022, Lula afirmou que “Vai acabar privatizações nesse país. Já privatizaram quase tudo, mas vai acabar e nós vamos provar que algumas empresas públicas vão poder mostrar a sua rentabilidade”. 

É cedo para tirarmos conclusões, mas é possível levantar elementos para o debate sobre o tema. As empresas estatais cumprem um papel central no desenvolvimento da economia brasileira desde o século XX, como ilustra o histórico caso da Petrobrás. No período recente, sabemos que as empresas estatais tiveram papel central na construção do projeto neodesenvolvimentista dos governos petistas, que se opôs à política privatista de Fernando Henrique Cardoso na década de 1990. A condução da política externa brasileira e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) cumpriram um papel central para impulsionar o crescimento e a internacionalização de empresas estatais e também empresas privadas – as campeãs nacionais. Essa política possibilitou ao Brasil avançar no desenvolvimento de tecnologia própria em setores estratégicos, diminuir nossa dependência do capital estrangeiro, aumentar a nossa margem de manobra com um melhor posicionamento da nossa economia no mercado internacional e, como consequência, contribuiu para a construção de soberania nacional. Essas empresas nacionais precisam estar vinculadas a um projeto de desenvolvimento autônomo e independente.

Essa política pode ser “reeditada” hoje? Não há resposta definitiva. O fato é que, mesmo com o decreto de desprivatização, a definição do papel das empresas públicas no governo Lula será um grande cabo de guerra. Se falávamos em polarização antagônica entre os governos de Bolsonaro e de Lula no que tange ao papel das empresas estatais, isso não significa que há um projeto consensual para as estatais brasileiras no governo Lula 3. Nesse cabo de guerra, há setores do governo que acenam para uma concepção mais desenvolvimentista das empresas públicas e outros que apontam para políticas mais liberalizantes em termos de privatizações. Lembremos que privatização não se limita a vendas e aquisições das empresas públicas pelo capital privado, mas envolve parcerias público-privadas, concessões, terceirizações de execução de serviços públicos, etc. 

Alguns episódios recentes demonstram como os debates em torno do papel das estatais estão em aberto. Fernando Haddad, ministro da Fazenda, defendeu em seu discurso de posse a parceria público e privada (PPP), criticando a polarização entre privatizar ou não. O ministro, que minutou o projeto de lei do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), defendeu que alguns empreendimentos não possuem retorno financeiro e essas não devem ser privatizadas, mas a maioria dos empreendimentos possuem rentabilidade e devem ser realizados conjuntamente (público e privado). 

A imprensa também vem dando destaque sobre a retirada da Petrobrás do “pacote de privatizações” e as possíveis alterações na mudança da política de preços da Petrobrás. A pressão do mercado não dará tréguas em um setor chave para o capital internacional, como demonstra a queda de 6% das ações da Petrobrás logo após o despacho de desprivatizações de Lula. A fala de Haddad buscou acalmar esse setor e mostrar que seus interesses serão considerados, explicitando o cabo de guerra sobre os rumos das estatais.

Os exemplos demonstram um cenário de disputas que era previsível, tendo em vista que Lula foi eleito por uma frente ampla, com interesses heterogêneos e complexos. Mas o freio às privatizações (referente a venda e estrangeirização das estatais brasileiras) já estava explicitado na publicação Carta para o Brasil de amanhã, na qual o Partido dos Trabalhadores (PT) afirma que retomará o desenvolvimento econômico a partir de investimentos nos quais “[…] os bancos públicos, especialmente o BNDES, e empresas indutoras do crescimento e inovação tecnológica, como a Petrobras, terão papel fundamental neste novo ciclo. Ao mesmo tempo, vamos impulsionar o cooperativismo e a economia solidária e popular. A roda da economia vai voltar a girar e o povo vai voltar e ser incluído no orçamento”.

Esse compromisso reforça a defesa das empresas estatais, que perdeu espaço na opinião pública, atrelado ao debate sobre corrupção e ineficiência. Em contrapartida, a visão de desenvolvimento econômico neoliberal baseada no investidor internacional ganhou espaço.  Além de estarmos de olho na política de gestão das estatais do governo Lula 3, precisamos retomar o debate na sociedade sobre o papel que as empresas estatais devem cumprir para garantia dos direitos da população. Isso significa tanto investimentos em áreas estratégicas como a busca do retorno financeiro para dinamizar nossa economia. Dessa forma, propostas de venda, de parcerias público-privado e de concessões não devem apenas considerar a rentabilidade da empresa pública como fator determinante para sua privatização. 

Para além do debate sobre a rentabilidade das empresas, as privatizações do governo Bolsonaro escancararam um projeto entreguista, bem distante do discurso nacionalista que só ficava no campo da retórica. Isso se explicitou na privatização da Eletrobrás e nas propostas de privatização de empresas públicas que possuem papel na segurança nacional, como Dataprev e Serpro, empresas com bancos de dados estratégicos.

Essas movimentações demonstram que o rumo das empresas públicas brasileiras está em disputa. Diante da correlação de forças do governo, eleito a partir de uma frente ampla – que inclui a classe trabalhadora e diferentes frações da burguesia brasileira-, é papel da esquerda brasileira a defesa ativa de um papel protagonista das empresas estatais num projeto de desenvolvimento nacional. Algumas perguntas seguem em aberto. Qual será a pressão do mercado frente a defesa da manutenção do controle acionário estatal dessas empresas? O governo conseguirá sustentar a não privatização das empresas públicas frente às reações do mercado? É necessário disputarmos o debate público sobre o papel das estatais, que pertencem ao povo brasileiro, e incidir no cabo de guerra no qual se encontra o rumo das empresas estatais brasileiras. 

*Militantes do Levante Popular da Juventude, doutorandas em Ciência Política na Unicamp e premidas pelo Edital 001/2022 do Observatório do Capitalismo Contemporâneo do Instituto Tricontinental.