Informe OBSAL #14/Parte III

Observatório da Conjuntura na América Latina e no Caribe

Durante os meses de julho e agosto, as políticas repressivas anti-imigração dos EUA continuou na fronteira com o México, com o aumento de prisões e deportações, principalmente de menores: em julho atingiu o número de 19 mil crianças.

 

Nesta publicação, apresentamos a terceira e última parte do relatório #14 do Observatório da Conjuntura na América Latina e no Caribe (OBSAL). Nela, estão presentes as análises dos países da região da Mesoamérica e do Cone Sul. No que tange a Mesoamérica, a onda de mobilizações impacta uma região atravessada pelas crises migratórias, sociais e políticas, enquanto os EUA aumentam as políticas repressivas anti-imigração na fronteira sul com o México.

A crise migratória cresceu nos últimos meses, atingindo principalmente México, Panamá e Colômbia. Já Guatemala, Nicarágua, El Salvador e Honduras vivem crises sociais e políticas internas que abalam a região como um todo.

Os destaques para o Cone Sul centram-se no cronograma eleitoral de três países: a Argentina, com as  eleições legislativas de meio de mandato; o Paraguai, com eleições municipais; e o Uruguai, rumo ao referendo sobre a Lei de Consideração Urgente, que confere a enquadramento do plano de governo de Lacalle Pou. Porém, a situação da região não escapa ao dinamismo do resto do continente. Portanto, embora com particularidades de diferentes origens e desdobramentos, a crise política por aqui também está tensa, com destaques para os casos brasileiros e chilenos.

Na primeira parte do relatório, apresentamos a conjuntura latino-americana no contexto da pandemia do Covid-19 e a atualidade do imperialismo na região, enquanto na segunda tratamos das regiões do caribe insular e andina.

Mesoamérica e a onda de mobilizações

A questão da migração é um dos problemas centrais que a região atravessa. Os dois focos críticos se encontram na fronteira sul dos Estados Unidos com o México e na região de Darien, fronteira entre Colômbia e Panamá. Em relatórios anteriores, analisamos as múltiplas crises – sociais, econômicas, políticas e de saúde – que afetam os países da América Central e em particular os do Triângulo Norte (El Salvador, Guatemala e Honduras) que produziram um aumento do fluxo de pessoas em situação migratória irregular para os Estados Unidos. Durante os meses de julho e agosto, a tendência de crescentes políticas repressivas anti-imigração dos Estados Unidos continuou na fronteira sul com o México. Isso é demonstrado pelo aumento das prisões e deportações, principalmente de menores: em julho atingiu o número de 19 mil crianças. Na última semana de agosto, houve um aumento do fluxo migratório na região de fronteira de El Ceibo, entre o México e a Guatemala. Eles mandaram de volta, e na maioria dos casos pela força, cerca de 2500 pessoas que buscavam cruzar a fronteira para os Estados Unidos.  Exército mexicano e a Guarda Nacional desmantelaram a caravana de migrantes na cidade de Tapachula, no México.

Em 29 de julho, o governo dos Estados Unidos apresentou o “plano integral” para lidar com a situação migratória. A “estratégia dos Estados Unidos para enfrentar as causas profundas da migração na América Central” consiste em cinco pontos: 1) abordar a insegurança econômica e a desigualdade; 2) combater a corrupção, fortalecer a governança democrática e promover o Estado de Direito; 3) promover o respeito pelos direitos humanos, direitos trabalhistas e liberdade de imprensa; 4) combater e prevenir a violência, extorsão e outros crimes perpetrados por gangues criminosas, redes de tráfico e outras organizações criminosas organizadas; e 5) combater a violência sexual, de gênero e doméstica.

A corrupção é considerada pelos Estados Unidos como uma das causas estruturais da crise política que os países da região atravessam. Sem fazer mea culpa sobre suas responsabilidades na estrutura  criminosa e corrupta, o governo Biden usa as sanções contra funcionários públicos, juízes e líderes políticos como mecanismo de pressão aos governos centro-americanos. É o caso da publicação pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos da Lista Engels, que contém uma relação de funcionários públicos e legisladores dos países do Triângulo Norte acusados ​​de corrupção.

No que diz respeito à área de fronteira entre o Panamá e a Colômbia, a crise migratória se aprofundou neste ano e, em particular, durante os meses de julho e agosto. A região de Darien, caracterizada pela sua composição selvática, é a área geográfica em que um dos maiores fluxos de mobilidade humana ocorre de forma irregular. Isso se aprofundou com as múltiplas crises pelas quais a região está passando, que se intensificaram com a pandemia de Covid-19. De janeiro a agosto deste ano, 49 mil migrantes de diferentes países cruzaram o Darien, 11 mil o fizeram em julho e em agosto cerca de 2 mil pessoas tentam cruzar a fronteira por dia. São vários os perigos enfrentados por quem é forçado a migrar, tanto pelas condições naturais da selva, com a presença de animais silvestres, quanto pela presença de grupos armados e do crime organizado.

Em 6 de agosto, representantes dos governos do Panamá e da Colômbia acordaram ações para regular o fluxo migratório e para que os migrantes sejam recebidos de maneira segura e ordenada no Panamá. Os Médicos Sem Fronteiras apontam que, para além das medidas acordadas, deve ser garantida uma rota segura e proteção aos migrantes.

Na Guatemala, rompeu-se a tensa calma em que vivia a sociedade e foram as populações indígenas que lideraram a Greve Plurinacional de 29 de julho. As manifestações duraram vários dias e contaram com o apoio de organizações sindicais, camponesas, estudantis, feministas e religiosas. A jornada de luta foi a expressão do esgotamento social diante da denúncia constante contra o pacto corrupto que governa o país e a má gestão da pandemia, que gerou uma crise sanitária e o colapso do sistema de saúde. As palavras de ordem da greve pedem a renúncia do presidente Giammattei e da procuradora-geral Consuelo Porras, além da necessidade de uma Assembleia Plurinacional Constituinte.

Conforme analisamos em artigo publicado em ARG Medios, os prolegômenos da eclosão popular encontram-se no descontentamento social devido à cooptação das instituições do Estado por uma rede de políticos, empresários, ex-militares e grupos vinculados ao crime organizado,  no descaso do governo na gestão da situação sanitária e, sobretudo, na ausência de vacinas, sendo a Guatemala um dos países que menos forneceu doses à sua população no continente. Como consequência do colapso sanitário, o presidente Giammattei declarou no dia 15 de agosto “estado de calamidade pública” – suspendendo as garantias constitucionais e fazendo livre uso dos recursos públicos sem controle – e toque de recolher das 22h às 16h. O estado de calamidade ficou sem efeito depois que o Congresso Legislativo vetou, implicando assim uma derrota política para o governo.

Ao contrário das mobilizações de 2015, que afastaram o então presidente Otto Pérez Molina, há dois elementos novos. Um é que – ao contrário de seis anos atrás, quando as mobilizações ocorriam principalmente nas cidades – a convocação da greve partia das comunidades indígenas, como aponta Carlos Barrientos, do Comitê da Unidade Camponesa (CUC):

…nessa ocasião e tendo em conta que na Guatemala existe uma quantidade significativa de população indígena, especialmente maia, existem várias estruturas típicas dos povos indígenas que sobreviveram por muito tempo, formas de autogoverno dos povos indígenas. Uma dessas formas é o que se conhece como 48 cantões de Totonicapán, mais conhecido como conselho de administração dos 48 cantões. Outra é a prefeitura indígena de Sololá, e eles são os mais fortes que conseguem mobilizar milhares de pessoas. Esses dois são os que convocaram a mobilização da greve. Assim, nesse caso, o apelo partiu dos povos indígenas, dessas suas estruturas de autogoverno. A partir disso, a mobilização ocorreu em diferentes territórios. Cerca de 200 mil pessoas foram mobilizadas.

O outro elemento distintivo é a demanda por uma Assembleia Plurinacional Constituinte, que ganha cada vez mais força nos diversos setores sociais. Pretende-se a constituição de um novo Estado popular, plurinacional e antipatriarcal, pois não basta apenas a renúncia do presidente, mas também “erradicar o sistema corrupto”. As autoridades ancestrais deram prazo até 18 de agosto para Giammattei e o promotor Porras renunciarem. Passado esse período, eles estão em consulta permanente e analisando os passos a seguir para novas medidas de luta.

As populações indígenas têm sido vítimas da política repressiva do governo e do modelo econômico extrativista que ameaça seus territórios. A reivindicação da plurinacionalidade também faz parte do fato de que no dia 15 de setembro será realizado o ato oficial do bicentenário da Guatemala.

Em 1º de agosto, se realizou no México a consulta popular para Memória, Verdade e Justiça para processar os responsáveis ​​políticos por violações de direitos humanos durante governos neoliberais. A mobilização  foi promovida por Adriana Bahena, uma militante de Tierra Caliente, e Omar Garcia, um estudante de Ayotzinapa que foi porta-voz de sua escola em decorrência do desaparecimento de 43 alunos normalistas em Iguala, Guerrero. Foram coletadas  duas milhões de assinaturas. A iniciativa contou com o apoio do presidente López Obrador, que encaminhou o pedido de consulta ao Congresso Nacional. A consulta popular foi acompanhada e apoiada por organizações de direitos humanos, sociais e políticos que lutam há muitos anos contra a impunidade. O EZLN, por meio de nota assinada pelo Subcomandante Galeano, apoiou a ação  e instou os mexicanos a votarem:

…trata-se dos direitos das vítimas, de seu direito à justiça e à verdade. Seu direito de saber por que tais ações ou omissões foram decididas, com que leis foram apoiadas e quem foram ou são responsáveis ​​ou irresponsáveis, do mais alto ao mais baixo nível. Essa seria a verdade e sua consequência seria a justiça.

Para os promotores da consulta popular, foram os diferentes poderes institucionais que colocaram obstáculos para gerar confusão e desmobilizar a população para que não comparecesse ao voto. Os acusados ​​são o Instituto Nacional Eleitoral, que não forneceu informação suficiente e não disponibilizou os recursos necessários para que a votação se realizasse nas melhores condições possíveis; e os meios de comunicação, que se destacaram pela ausência e tornaram invisível o processo de consulta, assim como a oposição, já que seus ex-presidentes – Carlos Salinas, Ernesto Zedillo, Vicente Fox, Felipe Calderón e Enrique Peña Nieto – e funcionários políticos são acusados ​​das atrocidades cometidas durante seus governos. Por um lado a realização da consulta popular foi considerada uma vitória p, com 97% dos mexicanos e mexicanas votando pelo SIM, enquanto apenas 1,5% optaram pelo  NÃO. Por outro lado, somente 7% do total de eleitores compareceram, não atingindo 40% do padrão eleitoral, e, portanto, a consulta não será vinculante.

Os e as ativistas da consulta exigem que apesar de o resultado não ser vinculante, os poderes do Estado avancem em uma comissão de verdade para esclarecer os fatos denunciados e assim avançar em um processo judicial sobre os responsáveis ​​pelas violações de direitos humanos durante os governos anteriores e atuais. Uma das questões que o resultado da consulta popular abre é a capacidade limitada que o partido no poder, MORENA, teve de mobilizar sua base social e política, o que exacerbou as tensões internas. É importante lembrar que AMLO [Andrés Manuel López Obrador] deve enfrentar em março de 2022 um plebiscito de revogação de mandato, impulsionado por seu governo.

No dia 30 de agosto, no âmbito do Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimentos Forçados, López Obrador, juntamente com familiares de vítimas e desaparecidos da guerra suja, anunciou a criação de uma comissão da verdade para o estabelecimento da memória, verdade e justiça no eventos das décadas de 1970 e 1980.

Um dos flagelos que ameaça a sociedade mexicana é a violência estrutural. Embora a taxa de homicídios dolosos tenha estagnado durante o governo López Obrador, ela permanece alta, no mesmo nível da gestão de seu antecessor, Peña Nieto. Esses atos de violência se devem, em grande medida, ao uso de armas de fogo adquiridas legal e ilegalmente. Cerca de 80% das armas vêm dos Estados Unidos e 70% das armas ilegais também vêm desse país. É por isso que o governo mexicano moveu uma ação contra 11 fabricantes de armas dos EUA perante o Tribunal Federal do país, com o objetivo de regulamentar a venda de armas ilícitas e punir aqueles que a praticam. Nesse sentido foram as declarações do chanceler Marcelo Ebrard, ao mencionar que a Iniciativa Mérida – pela qual o governo dos Estados Unidos financiava equipamentos e apoio técnico às forças de segurança mexicanas – “morreu”, expressando a necessidade de mudar o paradigma da cooperação nesse campo. A militarização das forças de segurança aprofundou a violência e causou a morte de muitos cidadãos, levando a violações dos direitos humanos.

No relatório anterior, analisamos a crise política que a Nicarágua atravessa desde 2018 até aqui. Isso se agravou nos meses de julho e agosto, como resultado de novas prisões de líderes da oposição e da publicação de informações que atestam o financiamento estrangeiro da mídia e de partidos não oficiais para desestabilizar o governo sandinista. Os detidos chegam a um total de 30, sete dos quais são pessoas que fingiram ser candidatos presidenciais. Por sua vez, aumenta a polarização social entre os setores da oposição – empresários, lideranças da Igreja Católica, partidos políticos e meios de comunicação – e o governo Ortega, com uma tensa calma social, que abre questionamentos sobre possíveis cenários antes das eleições presidenciais em 7 de novembro.

Os partidos políticos que participarão do ato eleitoral registraram nos primeiros dias de agosto perante o Conselho Superior Eleitoral (CSE) e o Parlamento Centro-Americano seus candidatos presidenciais e deputados nacionais . O FSLN ratifica a fórmula de Ortega-Murillo, enquanto na oposição há sete partidos, entre os quais se destaca a Aliança Cidadãos pela Liberdade, cuja chapa é formada pelo ex-militar Óscar Sobalvarro e pela ex-rainha da beleza Berenice Quezada. A polêmica surgiu quando foi anunciada a prisão da candidata a vice-presidente Quezada por apologia ao crime e incitação ao ódio, após a denúncia de familiares das vítimas das repressões contra as manifestações de 2018. Depois disso, houve a inibição e retirada do estatuto jurídico da aliança por parte do CSE, visto que a representante legal do partido é acusada de violar a Lei de Defesa dos Direitos dos Povos à Independência, Soberania e Autodeterminação pela Paz. Segundo levantamento da M&R Consultores, a chapa presidencial sandinista tem intenção de voto de 60% da população, enquanto a oposição gira em torno de 14% e os indecisos em 26%.

Em El Salvador, líderes e ex-integrantes do governo da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) foram presos em 22 de julho. Entre os detidos estão os ex-ministros e vice-ministros Violeta Menjivar, Calixto Mejía, Hugo Flores, Juan Ramón Cáceres e Erlinda Handal. Também foi emitido um mandado de prisão contra o ex-presidente Salvador Sánchez Cerén e os ex-ministros Manuel Quinteros, Lina Pohl e José Belarmino López. Eles são acusados ​​de desvio de dinheiro público, enriquecimento ilícito e lavagem de dinheiro. A FMLN condenou as detenções e as considera parte da perseguição política conduzida pelo presidente Nayib Bukele contra o partido desde que assumiu o poder. O pedido de prisão de Sánchez Cerén gerou atritos entre os governos de El Salvador e da Nicarágua, uma vez que o ex-presidente foi nacionalizado nicaraguense junto com sua família. É importante enquadrar esse fato em uma ofensiva de Bukele após a publicação da citada Lista de Engels, pela qual alguns governantes são acusados ​​de corrupção.

Ainda no país, no dia 7 de setembro, entrou em vigor a Lei Bitcoin, que estabelece a circulação legal da criptomoeda. Isso ocorre em meio a grandes incertezas por parte da sociedade em geral e dos comerciantes em particular. As poucas informações fornecidas pelo governo e os recursos econômicos que ele destinará para isso geram descontentamento em setores da população. Em 31 de agosto, o Parlamento aprovou um fundo de 150 milhões de dólares para a implementação da lei.

Honduras vive um contexto político convulsionado pela crise de saúde, pelo agravamento das tensões sociais em face das eleições presidenciais de 28 de novembro,  pela permanente desconfiança em relação ao processo eleitoral e pela crescente espiral de violência que atinge a sociedade hondurenha. Em 25 de julho, a ex-deputada do Partido Liberal Carolina Echeverría Haylock foi assassinada. Além disso, o dia 18 de julho marcou um ano do desaparecimento de cinco jovens da comunidade Garífuna. Em luta por justiça, a Organização Fraternal Negra de Honduras (Ofraneh) liderou um protesto com centenas de participantes em frente ao Ministério Público em Tegucigalpa, como forma de pressionar o governo do presidente Juan Orlando Hernández. Além disso, a discriminação e a violência contra a diversidade sexual se aprofundaram, e a comunidade LGTBQI denuncia que 90% dos 389 crimes de ódio registrados desde 2019 continuam impunes.

No dia 22 de agosto, foi realizado sorteio para definir a posição que os candidatos à presidência do país ocuparão nas urnas eleitorais. Num clima tenso, que culminou com atos de violência, que deixaram dirigentes políticos e jornalistas feridos, ficou evidente a tensão que atravessa a disputa eleitoral, da qual participarão 14 partidos, mas apenas quatro com possibilidade de chegar à presidência: Nasry Asfura, do Partido Nacional; Xiomara Castro, do Partido  Libre; Yany Rosenthal, do Partido Liberal e Salvador Nasralla, do Partido Salvador de Honduras. As pesquisas dão resultados incertos, mas coincidem que 25% do eleitorado ainda está indeciso, o que será chave para definir a votação.

Finalmente, em 30 de agosto, foi realizada uma mobilização nacional contra o ZEDE (Zonas Especiais de Desenvolvimento).. O povo Lenca, junto com o Conselho Cívico das Organizações Populares e Indígenas de Honduras (Copinh), manifestou-se em frente à Prefeitura Municipal de Intibucá. Em 1º de setembro, o município foi declarado livre do ZEDE.

 

Cone Sul, cronograma eleitoral e tensões sociais

No Cone Sul, a situação não escapa ao dinamismo das demais regiões. Já há vários meses, as crises políticas no Brasil e no Chile – e as particularidades de suas diferentes origens e desdobramentos – são os temas mais importantes. No caso do Brasil, está ligada ao processo de destruição levado a cabo por Bolsonaro e, cada vez mais, às possibilidades de que esse ciclo chegue ao fim. O Chile, por sua vez, está com a Convenção Constituinte em funcionamento e uma corrida já lançada para as eleições presidenciais de novembro. O resto do Cone Sul também apresenta cenas interessantes. Além dos diversos conflitos sociais, os outros três países contribuem para o intenso panorama eleitoral: Argentina e as  eleições legislativas de meio de mandato, Paraguai comeleições municipais e Uruguai rumo ao referendo sobre a Lei de Consideração Urgente, que confere a enquadramento do plano de governo de Lacalle Pou.

No caso do Brasil, o projeto de destruição bolsonarista teve novos capítulos em julho e agosto. A privatização da Eletrobrás, aprovada legislativamente como comentamos no último relatório, teve sanção presidencial em 13 de julho.

No dia 5 de agosto, enquanto o país observava os ataques de Bolsonaro às urnas eletrônicas e defendia a volta do voto impresso, a Câmara dos Deputados aprovou apressadamente, contornando as comissões, um projeto de privatização dos Correios. Importante notar que se trata de uma empresa lucrativa, presente em todo o Brasil, e a privatização dos serviços postais (cartas, cartões postais, telegramas) pode prejudicar o atendimento nas regiões mais remotas. No dia 10 de agosto, outra medida grave foi aprovada na Câmara, que viola direitos trabalhistas e a Constituição: a Medida Provisória (MP) 1045 que, entre outras coisas, institui uma modalidade de trabalho denominada REQUIP (Regime Especial de Trabalho de Incentivo à Qualificação e Inclusão Produtiva), sem os principais direitos trabalhistas. Essa modalidade é destinada a trabalhadores do sexo masculino e feminino entre 18 e 29 anos, sem carteira de trabalho assinada há mais de dois anos e pessoas de baixa renda beneficiárias de programas sociais. Esse contrato é celebrado sem direito a 30 dias de férias – sem o adicional de 1/3 do salário correspondente às férias – sem o décimo terceiro salário (ou gratificação de fim de ano) e sem a contribuição previdenciária. Receberiam apenas bolsa-auxílio, vale-transporte, curso de qualificação e descanso de 30 dias, que pode ser dividido em até três períodos. É um claro ataque à classe trabalhadora. Em 1º de setembro, a MP foi rejeitada pelo Senado por 47 votos contra e apenas 27 a favor, o que significou uma derrota para o governo.

Recentemente, a área da cultura também foi uma expressão da política de destruição. Um prédio da Cinemateca Brasileira, local onde existem inúmeros documentos sobre a história do cinema nacional, pegou fogo no dia 29 de julho. Em manifesto, seus funcionários afirmaram ter denunciado o perigo de incêndio há um ano, uma vez que não havia trabalhadores nas áreas de documentação, conservação e divulgação.

A lógica destrutiva do governo Bolsonaro termina, nesses dois meses, com ataques à democracia. Nas últimas semanas de agosto, o presidente intensificou suas declarações que questionam o processo eleitoral. O alvo é o voto eletrônico, sob a alegação de que ele não é confiável, e em defesa do retorno do voto em papel. Essas propostas constam da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 153/19, que torna obrigatório o voto impresso. Bolsonaro ameaçou não realizar as eleições caso essa PEC não fosse aprovada e, no dia da votação no Congresso, 10 de agosto, em nova ameaça, ordenou um desfile militar no momento da votação. No entanto, a PEC não foi aprovada pela Câmara dos Deputados, pois precisava de pelo menos 308 votos: 229 deputados votaram a favor e 218 contra.

No dia 7 de setembro, Dia da Independência do Brasil, os bolsonaristas convocaram a população para ir às ruas e mostrar seu apoio ao governo e sua insatisfação com o Supremo Tribunal Federal (STF). A manifestação teve apoio de policiais militares de diferentes estados, incluindo coronéis da ativa e da reserva. Esse é mais um processo de tensão na democracia brasileira. Nos dois últimos relatórios do Obsal, levantamos o risco de um golpe do Bolsonaro. Essa possibilidade continua, mas sua efetivação não depende só dele. Como vimos, é importante analisar outras variáveis, como as classes dominantes nacionais, o exército, a polícia militar e o governo dos Estados Unidos.

As classes dominantes parecem pouco dispostas a embarcar em um processo de golpe, pelo menos algumas delas. Uma nota da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), assinada pela Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e mais de 200 entidades empresariais, demonstra preocupação com a ordem democrática e faz um apelo à boa convivência entre os três poderes. Os militares, que no contexto dos golpes reproduzem os interesses das classes dominantes, não mostraram, até agora, uma unidade clara para um processo de desagregação institucional. Os policiais militares em algumas regiões podem até estar mais dispostos a acompanhar as aventuras do golpe de Bolsonaro, mas correm o risco de  esbarrar na recusa das Forças Armadas ou na ação dos governadores dos estados, punindo a possível desobediência. Assim, mesmo que ocorresse um golpe efetivamente liderado pela polícia, seria difícil sustentar esse processo por um tempo razoável. Em relação à última variável, na primeira parte deste relatório fizemos algumas notas sobre a forma como o imperialismo estadunidense agia sob a liderança de Biden e dos democratas: a viagem do assessor de segurança nacional dos Estados Unidos, Jake Sullivan, revelou mais tensões que afinidades entre os governos, o que deixa pouco espaço, por enquanto, para o apoio efetivo dos EUA às aventuras do golpe de Bolsonaro.

Também há esperança, lutas e resistência. No dia 24 de julho, manifestações contra Bolsonaro tomaram as ruas do país. Cerca de 600 mil pessoas foram mobilizadas em mais de 500 cidades. As palavras de ordem foram #ForaBolsonaro, “comida no prato, vacina no braço” e a defesa da democracia. Para o dia 7 de setembro, em oposição aos apelos bolsonaristas, grupos progressistas e movimentos sociais realizarão ações em defesa da democracia e pelo #ForaBolsonaro.

Em nosso relatório n. 13 apontamos que a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara aprovou algo destrutivo para o meio ambiente e para os povos indígenas: o projeto de lei 490/2007. Se aprovado nas câmaras legislativas e sancionado pelo presidente, a tese do marco temporal vai virar lei, o que inviabilizaria a demarcação de terras indígenas. No entanto, a tese está sendo julgada pelo STF em relação a um processo no estado de Santa Catarina. Se declarado inconstitucional, o projeto perderá sua validade. Nos dias 26 e 27 de agosto, os povos indígenas realizaram fortes manifestações para mostrar sua oposição à tese do marco temporal e a todos os projetos que afetam o meio ambiente e a existência indígena no país. Com mais de seis mil pessoas, a manifestação foi uma das maiores organizadas por povos indígenas. Além disso, como extensão dos protestos, um acampamento de vigília foi montado até o retorno da votação ao STF. Por sua vez, no dia 18 de agosto, os trabalhadores estaduais de todo o país fizeram greve, manifestando sua oposição à proposta de Reforma Administrativa do governo federal, também analisada no relatório anterior.

Por fim, Lula segue na liderança e aumenta a vantagem nas pesquisas para a disputa eleitoral de 2022. Na pesquisa XP de agosto, o ex-presidente alcançou 51% das intenções de voto contra 32% de Bolsonaro em um possível segundo turno. Na mesma pesquisa de julho, Lula aparecia com 49% e Bolsonaro com 35%. Na pesquisa CNT/MDA publicada no início de julho, Lula venceria Bolsonaro por 52,6% a 33,3%. Enquanto isso, a rejeição do governo Bolsonaro marca um recorde. De acordo com a pesquisa PoderData, a taxa de desaprovação passou de 62% em julho para 64% em agosto.

No Chile, entre julho e agosto, destacam-se o início da Convenção Constituinte, em 4 de julho; a realização das primárias em duas das coalizões principais no dia 18 de julho e os debates internos nas outras duas coalizões restantes com possibilidade de chegar às urnas, ao longo do período.

O órgão que redigirá a nova Constituição funcionará por nove meses, até abril de 2022, podendo ser prorrogado por mais três meses. Em uma mensagem com forte conotação simbólica, em sua primeira sessão, elegeu a linguista Elisa Loncón como presidente. A primeira declaração oficial da Assembleia Constituinte, decorrente de sua terceira sessão, em 9 de julho, referia-se a “pessoas privadas de liberdade por ocasião da revolta social e da judicialização do conflito político e social que o Estado mantém com a nação Mapuche” e também implicou um forte gesto político, ao denunciar a repressão estatal durante a revolta e solicitar celeridade no tratamento do projeto de indulto geral inscrito no Senado, a retirada das denúncias oficiais, a reparação às vítimas e “a imediata desmilitarização do Wallmapu”.

Em relação às eleições presidenciais, no dia 18 de julho foram realizadas as primárias organizadas pelo Serviço Eleitoral. Em Chile Vamos, a coalizão de direita no governo, o vencedor foi o ex-presidente do Banco do Chile e ex-ministro do Desenvolvimento Social, Sebastián Sichel, o independente escolhido por Piñera para mostrar uma renovação do espaço. Sichel – talvez o melhor candidato possível para a direita – venceu com 49,1% dos 1,34 milhão de votos em suas primárias. Mais atrás estavam os favoritos nas pesquisas, Joaquín Lavín, da UDI (31,3%); Ignacio Briones, de Evópoli (9,9%) e finalmente Mario Desbordes, da Renovação Nacional (9,8%). Diante das eleições, o Chile Vamos decidiu mudar seu nome para Chile Podemos +.

Desde 18 de outubro de 2019, a direita mantém o governo – com altíssimo nível de repressão – mas tem ido de derrota em derrota eleitoral. No geral, e apesar de ter mobilizado quatro candidatos, suas primárias foram escassas em número de votos e bem abaixo da convocatória da esquerda. Apesar de tudo, esse espaço vê com expectativa a retomada da imagem do governo Piñera, que também continua baixa (na ordem de 26% de aprovação, segundo a consultoria CADEM, junto ao governo) embora tenha crescido de 8-10% em relação a alguns meses atrás.

Em Apruebo Dignidad, coalizão que agrupa a Frente Ampla com o Chile Digno – formado por sua vez pelo Partido Comunista e outros -, o vencedor foi o deputado Gabriel Boric (FA, 60,4%), que prevaleceu sobre Daniel Jadue (PC, 39,6%). O resultado implica uma candidatura mais à centro-esquerda que à esquerda e gera incertezas quanto às possibilidades de expressão dos setores que se identificaram com os protestos que mudaram o país.

Sichel e Boric juntam-se a outra candidatura que surge inicialmente com expectativa de chegar às urnas. É a coalizão localizada mais no centro político, a chamada Unidade Constituinte, que reúne a Concertação, que governou o Chile entre 1990 e 2010 e depois como Nova Maioria entre 2014 e 2018. Ou seja, alternou-se com a direita na gestão do modelo neoliberal nas últimas três décadas, após o pinochetismo. Embora esse setor que hoje se chama Unidade Constituinte também tenha sido bastante atingido após os levantes de 2019, a configuração do cenário geral oferece algumas oportunidades. Depois de várias reviravoltas, o espaço definiu a candidatura de Yasna Provoste por meio de uma chamada “consulta cidadã”, realizada em 21 de agosto, na qual a candidata do Partido Democrata Cristão ultrapassou Paula Narváez (Partido Socialista) e Carlos Maldonado (Partido Radical).

Outro candidato a ser levado em consideração é José Antonio Kast, do Partido Republicano, que tem o compromisso de fazer crescer a extrema direita. Algumas pesquisas o colocam no caminho para essa meta, inclusive com a expectativa de superar Provoste. À direita, também está presente Franco Parisi, do Partido de la Gente, uma figura um tanto inclassificável, mas que como candidato independente em 2013 chegou a 10%. A lista de sete candidatos é completada por Marco Enríquez-Ominami, do Partido Progressista e Eduardo Artés, da aliança de esquerda União Patriótica.

Uma candidatura que prometia dar o que falar, se conseguisse repetir o desempenho dos constituintes, era a da Lista del Pueblo. Depois de alguns contratempos, como o anúncio seguido do recuo da candidatura de Cristian Cuevas, esse grupo de esquerda nomeou Diego Ancalao, mas a sua apresentação foi contestada pelo Serviço Eleitoral com graves acusações de falsificação de endossos e ficou fora de competição. A Lista del Pueblo anunciou que entrará com um processo contra seu candidato frustrado. O grupo perdeu pelo menos oito constituintes entre julho e agosto. Essa situação certamente agrava os debates internos.

As últimas pesquisas, de agosto, colocam Boric e Sichel como os principais concorrentes, com variações de 16% a 30%, segundo os institutos de pesquisa, que geralmente colocam Boric alguns pontos acima de Sichel. Essas pesquisas estimam uma porcentagem em torno de 9-11% para Kast e Provoste. Em todo caso, se olharmos para as imprecisões – senão a manipulação – das empresas de pesquisa no passado recente em toda a região, nunca devemos descartar o surgimento de alguma surpresa.

Enquanto isso, uma série de disputas importantes se desenrolam nos níveis econômico, social e territorial. Uma dessas questões é o conflito de terras entre a comunidade Mapuche e proprietários privados, exemplificado nas últimas semanas com o assassinato do jovem Pablo Marchant pelos Carabineros. Com a participação de constituintes dos povos indígenas, o assunto será objeto da Convenção. Dos 155 membros, 17 pertencem aos dez povos originários do território chileno: sete do povo Mapuche, dois do Aymara e um banco para cada uma das oito nações restantes: Colla, Chango, Diaguita, Kawashkar, Lican Antay (ou Atacameño), Quechua, Rapa Nui e Yagán (ou Yámana).

Do outro lado da Cordilheira dos Andes, na Argentina, também acontece uma campanha eleitoral: no dia 12 de setembro ocorreu a Primária Aberta, Simultânea e Obrigatória (PASO) e no dia 14 de novembro os que triunfarem vão se enfrentar nas eleições, que puseram em jogo a possibilidade de o governo de Alberto Fernández ampliar sua base de apoio ou ver sua margem de manobra limitada nos últimos dois anos de mandato.

Até o fechamento deste relatório, os principais concorrentes são o oficialista Frente de Todos – coalizão que reúne diferentes setores do peronismo a movimentos populares de base e progressistas não peronistas – e a oposição de direita, reunida na coalizão Juntos por el Cambio, integrada pelo Pro – partido de Mauricio Macri – e outros setores menores. Porém, em alguns distritos existe a possibilidade de uma boa eleição para setores mais identificados com uma retórica “libertária”, que disputam a direita com Juntos por el Cambio. Entre essas candidaturas podemos destacar a de Javier Milei, na cidade de Buenos Aires, e a de José Luis Espert na província homônima.

O fechamento das listas no final de julho foi a expressão da guerra interna no principal bloco de oposição, com uma liderança disputada após o fracasso de Macri. Além do ex-presidente, outras figuras são o chefe de Governo da Cidade de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, e a presidente do Pro e ex-ministra da Segurança – com fortes laços com os EUA e Israel – Patricia Bullrich. Do lado da Frente de Todos, as listas foram fechadas sem grandes sobressaltos, apesar de deixar em segundo plano  a militância da maioria dos movimentos populares e sindicais que compõem o espaço.

Com o início da campanha surgiram preocupações, na medida em que a figura do presidente estava no centro de um escândalo de violação da quarentena que ele mesmo havia instituído. Isso aconteceu em julho de 2020, mas ganhou status público com a circulação de fotos e um tratamento oficial desleixado, que beneficiou a oposição. Com o efeito contrário, um escândalo de teor muito diferente se desenvolveu nas últimas semanas, com a descoberta de que o governo chefiado por Macri contrabandeava material bélico para a Bolívia para apoiar o governo de fato. As revelações revelam uma verdadeira “internacional de repressão” que lembra o Plano Condor, pelo qual as ditaduras de direita das décadas de 1960 e 1970 foram coordenadas.

Além disso, a campanha é afetada pela situação sanitária, que melhorou com o importante avanço da vacinação nos últimos meses, e pela conjuntura econômica, em um contexto de crise que atinge principalmente os setores mais pobres, com inflação alta e indícios de recuperação que ainda não têm efeitos massivos. Sobre esse assunto, o escritório argentino do Instituto Tricontinental elaborou o relatório “Crise econômica, reativação incipiente e disputas distributivas no limiar do processo eleitoral”.

No marco dessa situação, duas grandes mobilizações foram realizadas na cidade de Buenos Aires em agosto. No dia 7, a União dos Trabalhadores da Economia Popular (Utep) realizou a já tradicional Marcha pela Terra, Teto e Trabalho. Entre as principais reivindicações, a jornada de mobilização exigia a universalização do salário-base. Juan Grabois, líder do Movimento dos Trabalhadores Excluídos, uma das organizações que convocaram o ato, fez uma análise dessa reivindicação:

A radiografia da crise nos mostra níveis insuportáveis ​​de pobreza e indigência para qualquer sociedade, situação que requer medidas corretivas urgentes e um planejamento de longo prazo que garanta os 3T por meio do desenvolvimento harmonioso e sustentável de nossa economia. Do nosso ponto de vista, isso implica a aplicação urgente de uma política de geração de renda massiva como o Salário Básico Universal que propomos desde o  Sindicato dos Trabalhadores da Economia Popular.

Poucos dias depois, em 18 de agosto, outros grupos – com maiores divergências com o governo – chegaram em grande número à capital, vindos dos subúrbios de Buenos Aires. Essas manifestações abriram um debate em torno do direito ao trabalho e benefícios sociais, no âmbito das discussões no governo em torno de uma possível aplicação do salário social universal.

Por outro lado, como em outros países da região, continua a luta pelo reconhecimento das terras indígenas ante a histórica desapropriação, com poderosos setores que se organizam para que as forças do Estado continuem a jogar a seu favor e, de outro lado, os povos que resistem.

Com menos destaque na imprensa, mas igualmente estratégico, outros assuntos estiveram presentes entre julho e agosto. Uma delas é a necessidade de proteger as zonas úmidas, em um momento em que os incêndios em muitas de suas ilhas são agravados pela perda de vazão do rio Paraná, principal curso d’ água de um sistema fundamental para a agricultura, energia, consumo humano e transporte. Com o objetivo de que o Congresso aprovasse uma lei tardia de proteção de manguezais, entre os dias 11 e 18 de agosto, foi feita uma travessia de caiaque de Rosário à cidade de Buenos Aires, que terminou com uma passeata. Cerca de 80% das exportações argentinas circulam pelo sistema hidrológico do Rio da Prata, a maioria pelo rio Paraná. O “severo estresse hídrico” tem diversas causas, entre outras, o processo estrutural de desmatamento típico de um modelo predominantemente extrativista. Nos próximos meses, o fenômeno La Niña deve agravar a situação de seca na bacia do Paraná e em várias partes do país, incluindo os pampas úmidos. Isso também pode afetar as principais safras (principalmente soja e milho), que representam uma das principais entradas de divisas.

No fechamento deste relatório, uma polêmica perpassa a relação entre Chile e Argentina, depois que o presidente Sebastián Piñera estabeleceu por decreto os limites da plataforma continental chilena e esta coincide com o que foi estabelecido pela Argentina. O governo argentino imediatamente rejeitou a medida, por meio de uma declaração oficial do Ministério das Relações Exteriores e declaração pública do governador da província de Tierra del Fuego, Antártida Argentina e Ilhas do Atlântico Sul, Gustavo Melella. Obviamente, é um assunto de grande importância; e, por essa razão espera-se que o debate se intensifique durante setembro e outubro.

Em relação ao Paraguai, o país caminha para as eleições municipais, que ocorrerão no dia 10 de outubro, sendo a mais decisiva delas a da capital, Assunção. Lá, o setor “cartista” (do ex-presidente Horacio Cartés, enfrentando o atual, Mario Abdo) da Associação Nacional Republicana (ANR) confia na vitória de seu candidato Oscar “Nenecho” Rodríguez, que busca a reeleição. Contra o poderoso aparato Colorado compete Eduardo Nakayama, do Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), que lidera a Aliança Juntos pela Assunção. O PLRA converge nessa lista com o partido de direita Patria Querida e com outros espaços, como o Encontro Nacional e a Democracia Cristã. Além delas, são apresentadas outras candidaturas que, em princípio, aparecem com menos possibilidades, como Johanna Ortega para a Aliança Asunción Para Todos e Luis Martínez Navaja para a Frente Guasú. Outra eleição que merecerá atenção é a de Ciudad del Este – onde Miguel Prieto, do Movimento Consciência Democrática del Este, pode se reeleger, mas enfrenta outros doze candidatos -, além de San Lorenzo e Luque, outros municípios importantes no país.

O Paraguai é uma potência hidrelétrica, baseada nas represas Itaipu (projeto compartilhado com o Brasil) e Yacyretá (com a Argentina), mas nos últimos meses cresceram os protestos contra a política energética do governo da ANR. Em 30 de agosto, diversas entidades apresentaram ao Congresso um projeto de lei para a criação de uma Comissão de Verdade e Justiça e anunciaram a criação de um Tribunal Ético de Dívidas Espúrias em Itaipu. Do espaço da Causa Nacional Itaipu 2023, indicaram que “o governo de Abdo Benítez, com o apoio de Horacio Cartes, está acelerando o plano de entrega de nossa soberania hidrelétrica em Itaipu e Yacyretá”.

Uma questão central na sociedade paraguaia é o conflito territorial entre grandes produtores e famílias camponesas. Em agosto, diversas organizações camponesas se manifestaram na capital. Outro conflito do período tem como protagonistas as transportadoras, que promoveram dias de greve e mobilizações em busca de uma lei que fixe o preço do frete.

Ainda no Paraguai, no final de julho, três soldados, membros da Força-Tarefa Conjunta, foram mortos em um ataque com um artefato explosivo que o governo atribuiu ao EPP, ativo no departamento de San Pedro, área do ataque, localizado no centro do país. Em outro episódio que envolve diretamente a FTC, o dia 2 de setembro marcou um ano desde o ataque em que as forças do Estado assassinaram duas meninas argentinas de 11 anos: Lilian Mariana Villalba e María Carmen Villalba. Pouco depois, em novembro de 2020, sua prima de 15 anos, Carmen (“Lichita”), também argentina, desapareceu. Como parte de sua campanha de busca, uma missão de direitos humanos visitou em julho o Paraguai, mas foi expulsa pelo governo.

No fechamento do panorama do Cone Sul, no Uruguai, o caminho rumo ao Referendo sobre a Lei da Urgência (LUC) começa a ganhar um lugar importante no cenário político, após o espaço que promove a revogação da lei alcançou, no início de julho, as 800 mil assinaturas exigidas pelo regulamento para sua convocação. A LUC é um pacote de mudanças legislativas promovidas por Lacalle Pou desde o início de seu governo, aprovadas no Congresso em julho de 2020, que a oposição política e social descreve como um retrocesso, porque “afeta direitos fundamentais”. O referendo, originalmente agendado para dezembro de 2021, seria em março ou abril de 2022.

Enquanto isso, cresce o conflito social, originado pelo agravamento das condições de vida pela situação pandêmica, somado à orientação do governo de direita. Em rejeição à política de Lacalle Pou, a central sindical unitária – o PIT-CNT – convocou uma greve nacional para 15 de setembro em resposta ao que eles consideram “a aplicação de um programa antioperário e antipopular”. Entre os exemplos de políticas que rejeita, o comunicado central menciona “os critérios de redução de salários dos trabalhadores públicos e privados, a aceleração da entrega da Antel [companhia telefônica estatal], do porto e da Ancap [estatal petrolífera] para grande capital transnacional”. Também há indícios de certo desgaste político do governo Lacalle Pou, com sua aprovação no nível mais baixo desde sua posse, segundo algumas pesquisas, embora continue com uma imagem positiva relativamente elevada, em torno de 46%. No trimestre anterior registou um valor de 55%, pelo que há uma queda de 9 pontos líquidos.

Por fim, há notícias também sobre a vida política da Frente Ampla, que busca se reorganizar após as derrotas nas duas últimas eleições. As eleições internas vão se realizar no dia 5 de dezembro, e nos últimos dias aumentou a possibilidade de Fernando Pereira, líder máximo do PIT-CNT, assumir a presidência do espaço histórico de unidade da esquerda, na oposição desde o início de 2020. Em relação aos candidatos às eleições presidenciais, se mantêm os nomes da prefeita de Montevidéu, Carolina Cosse; o prefeito de Canelones, Yamandú Orsi (MPP) e o senador Oscar Andrade (PC).

 

Em perspectiva

Conforme desenvolvemos no relatório, há mais preocupações e portas abertas que conclusões que podemos ter sobre os efeitos dos eventos de julho e agosto. Por enquanto, a maioria deles projeta a continuação das lutas sociais, disputas eleitorais e reivindicações dos setores mais atingidos pela pandemia, enquanto continua a disputa pelo modelo de integração de nossa região.

Esses meses correspondem a um período anterior que se inaugurou em um segundo semestre convulsionado, que abre inúmeras esperanças de articulação e novos paradigmas de integração continental, permanência das lutas populares nos campos e nas ruas. Enquanto isso, a geopolítica dos Estados Unidos e de seus principais aliados regionais não para e busca defender de qualquer forma sua zona de controle sobre o continente. Diante disso, os povos da América Latina e do Caribe enfrentam um desafio estratégico: a possibilidade de plantar bandeiras de soberania. No final de outubro veremos a correlação de forças nesta disputa pelo futuro do continente.