Informe OBSAL #14/Parte I

Observatório da Conjuntura na América Latina e no Caribe

 

O boletim #14 do Observatório da Conjuntura na América Latina e no Caribe (Obsal) analisou os principais acontecimentos na região nos meses de julho e agosto de 2021. A pandemia da Covid-19 continuou sendo o pano de fundo principal da realidade concreta global. No contexto sanitário latino-americano, se destacaram dois processos: o avanço da vacinação em alguns países e o surgimento e recrudescimento da variante Delta, que trouxeram inúmeras incertezas sobre a capacidade dos sistemas de saúde e as respostas sociais dos governos.

O contexto social se destacou pelo aprofundamento das desigualdades, do desemprego e da insegurança alimentar. Na área política, os países da região passaram por movimentações que chacoalharam o continente, efeitos da disputa global entre China e EUA e das próprias lutas internas de cada país.

Nesta publicação, apresentamos a primeira de três partes que o relatório #14 do OBSAL está dividido. Nesta primeira, encontram-se o resumo dos principais pontos do informe #14, a apresentação da conjuntura latino-americana, no contexto da pandemia da Covid-19 e, por fim, a análise da atualidade do imperialismo, a partir do descrédito da Organização dos Estados Americanos (OEA) como espaço de resolução de conflitos no continente e o crescimento da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) como órgão alternativo. Nas semanas seguintes serão lançadas as outras duas partes. Na próxima, estarão presentes as análises dos países da região do Caribe Insular e da região andina. Na terceira e última, serão destaques a conjuntura dos países da Mesoamérica e do Conesur.

 

Resumo

A América Latina e Caribe é uma região em movimento, de acontecimentos mutantes, resultado, por um lado, de uma disputa global, em um contexto de declínio da hegemonia estadunidense e ascensão da China, e, por outro lado, de uma disputa regional, manifesta nas lutas de movimentos populares contra setores de direita que buscam sustentar e aprofundar o status quo capitalista e dependente. O Relatório n.14 busca dar conta dos acontecimentos que marcaram o continente durante os meses de julho e agosto de 2021. Um continente que se desenrola entre a circulação das novas variantes da Covid-19 e o processo de vacinação, em meio ao agravamento das crises e tensões sociais que produzem instabilidade política e vínculos catastróficos nas diferentes regiões.

A cepa Delta abre um cenário de incertezas sobre a capacidade do sistema de saúde dos países e a resposta social dos governos. Nessa oportunidade, o aumento das infecções ocorre na Mesoamérica e no Caribe, sendo os países dessas regiões também os que apresentam o menor percentual da população vacinada. Após o fracasso do mecanismo Covax e dos obstáculos colocados pelas Big Pharma, a diplomacia vacinal abre um novo capítulo a partir da decisão de Biden de doar vacinas a países do continente.

As múltiplas crises sociais, econômicas e migratórias aumentaram com a pandemia. Soma-se ao aprofundamento das desigualdades, do desemprego e da insegurança alimentar, a crise socioambiental, produto do colapso ecológico para o qual o sistema capitalista está nos levando. Essa realidade se expressa, por exemplo, na seca do rio Paraná (Argentina, Brasil e Paraguai) e em incêndios como os que estão acontecendo na Amazônia. Diferentes organizações e movimentos, do Cone Sul à América Central, têm se levantado contra as políticas extrativistas e a expropriação dos bens comuns.

A integração regional está em disputa e na foto das tendências e contratendências que atravessam o continente, a Celac aparece como alternativa à fragmentação e parálise dos espaços de integração e, sobretudo, às tentativas intervencionistas e desestabilizadoras da OEA. O órgão presidido pelo questionado Luis Almagro está em crise e o Grupo Lima não só perdeu Lima, mas também viu derrotada sua estratégia para derrubar a Revolução Bolivariana. Por outro lado, o Grupo Puebla se afirma como um espaço político regional a partir da dupla México-Argentina e busca fortalecer a Celac para construir um novo organismo que substitua aquele que já em seus primeiros anos foi chamado “ministério das colônias estadunideses”.

Se falamos de uma agudização profunda das tensões sociais, a região caribenha é a expressão disso, durante os meses analisados ​​neste relatório. O assassinato de Jovenel Moïse, no Haiti, explica o aprofundamento da violência que se vive no país e expõe as intenções intervencionistas. Com o andamento das investigações, veio à tona a ligação Colômbia-EUA no assassinato do ex-presidente. O terremoto de magnitude 7,2 que afetou fortemente o povo haitiano intensificou a crise humanitária, e as propostas de eleições continuam sendo adiadas e relegadas a governos provisórios, ilegítimos e sem o consenso popular.

Não satisfeita com isso, a estratégia imperial voltou a açoitar Cuba, procurando desestabilizar e derrubar a Revolução. No dia 11 de julho houve uma série de protestos que foram estimulados pelas redes sociais e foram apoiados e viralizados pela mídia internacional. Algumas das reclamações surgiram do descontentamento com os cortes de energia, falta de alimentos e remédios em consequência do bloqueio que os EUA impõem a Cuba há mais de 60 anos e contra o qual 184 países se posicionaram na ONU. A direita cubana e internacional queria construir as condições para desestabilizar Díaz Canel. Isso forçou o governo a diferenciar entre demandas legítimas da população e uma estratégia encoberta por parte dos grupos golpistas. Também a necessidade de oxigenar o processo revolucionário para avançar na desburocratização do Estado para resolver os problemas colocados e para incorporar no processo uma geração de jovens que hoje não se sentem desafiados. O povo cubano deu um forte apoio à revolução que se manifestou nas mobilizações de apoio ao governo. No plano internacional, referentes sociais, políticos, intelectuais, científicos e artísticos publicaram a carta intitulada “Deixe Cuba Viver” que exige do governo Biden o fim das medidas coercitivas contra Cuba e o fim do bloqueio à ilha.

As águas se movimentaram nas Antilhas. Com a saída de Santa Lúcia do Grupo Lima após a vitória do Partido Trabalhista e a posse de Philip Pierre como primeiro-ministro. Barbados anunciou que deixará de ser uma monarquia constitucional para ser uma República. As mobilizações no continente repercutem nas ilhas – Antígua e Barbuda, Barbados, Guiana, Ilha Francesa de Guadalupe e São Martinho -, neste caso com foco na pandemia.

Depois de meses incertos, a região andina encontra algumas certezas, ainda que precárias, que cristalizam pequenas vitórias que sinalizam enormes desafios pela frente. É o caso da posse de presidente de Pedro Castillo, no Peru, após tentativas de golpe eleitoral. O caminho pedregoso sobre o qual transita o início de sua gestão encontra as rápidas tentativas de obter vacinas, mas com as dificuldades de uma direita e setores da oligarquia que buscam condicionar o governo e tiveram seu primeiro resultado com a renúncia de dois ministros, entre eles seu chanceler Héctor Béjar. Outro avanço importante ocorre na Venezuela com o início do processo de negociação com setores da oposição, que tem sede no México. Isso marca um antes e um depois de inúmeras tentativas de um setor da oposição liderado por Washington de não reconhecer Maduro como um presidente legítimo. Isso ocorre ao mesmo tempo que começam os preparativos para as eleições locais e regionais.

Na Bolívia, avançam as investigações para encontrar os responsáveis ​​pelo golpe contra Evo Morales em 2019. Com Añez na prisão, as denúncias avançaram em direção a cumplicidades internacionais, como os casos do ex-presidente argentino Mauricio Macri, do equatoriano Lenin Moreno e o papel desempenhado por Luis Almagro em legitimar o golpe da OEA. Quatro meses no ciclo de luta após a Greve Nacional, o povo colombiano continua resistindo a um governo enfraquecido que busca permanecer de pé mostrando sua faceta mais autoritária, repressiva e assassina sobre os lutadores sociais. Com os olhos postos em 2022, a unidade política é necessária para derrotar um uribismo confuso que – para não perder o controle – se endireita ainda mais. O projeto neoliberal busca se estabelecer no Equador pelas mãos de Lasso, que segue os passos de seu antecessor Lênin Moreno e busca fazer avançar medidas antipopulares como a nova lei trabalhista e o aumento dos combustíveis. A resposta é a mobilização dos setores sindicais e indígenas, estes últimos nucleados na Conaie.

Os países do Cone Sul passam por diversos processos eleitorais que são catalisadores de contradições sociais. No Chile, a linha de partida para as eleições presidenciais tem Gabriel Boric (Aprovar Dignidad) e Sebastián Sichel (Chile Puede +) como favoritos para chegar ao segundo turno, mas com a centrista Yasna Provoste (Unidad Constituyente) e o direitista Antonio Kast (Partido Republicano) na expectativa. Junto com o processo eleitoral, deu-se início ao lançamento da Convenção Constituinte, que em sua primeira sessão elegeu como presidente Elisa Loncón, linguista Mapuche. Isso por si só foi vivido como um fato político em torno das reivindicações das populações indígenas e pelo reconhecimento da diversidade cultural.

Enquanto isso, o povo brasileiro se mobiliza contra o projeto destrutivo de Jair Bolsonaro, que coloca em xeque a democracia com ameaças e demonstrações de poder com as Forças Armadas nas ruas e o avanço das privatizações da Eletrobrás e dos Correios. Além disso, os efeitos destrutivos impactam a natureza com os incêndios na Amazônia e a desapropriação de terras de povos indígenas.

Na Argentina, a campanha eleitoral para renovar o Congresso Nacional está polarizada entre as duas grandes coalizões – Frente de Todos e Juntos por el Cambio, embora nas grandes cidades tente conquistar a direita “libertária” – em meio a importantes mobilizações sociais  e avanço no processo de vacinação. No Paraguai também há eleições, no caso municipais, em um panorama em que avançam investigações e polêmicas sobre a hidrelétrica de Itaipu e conflitos territoriais entre empresários do agronegócio e camponeses. Por fim, resta destacar um dos primeiros contra-ataques que Lacalle Pou enfrenta no Uruguai, com o referendo sobre a Lei de Urgente Consideração (LUC). Isso ocorre em um clima de piora das condições de vida da população. Em 15 de setembro, a central sindical unitária – PIT-CNT – convoca uma greve nacional contra as políticas do governo.

Subindo para a região mesoamericana, encontramos o eco das mobilizações do continente na Guatemala, onde a tensa calma social foi quebrada e um processo de luta começou a partir da greve plurinacional de 29 de julho, que pediu a renúncia do presidente Giammattei, da Procuradora-Geral Consuelo Porras e a convocação de uma Assembleia Plurinacional Constituinte. No México, a consulta popular contra a impunidade marcou um acontecimento histórico em relação à importância do debate, mas não atingiu o número de eleitores necessários para ser vinculante. Isso ocorre em meio a altos índices de homicídios e desaparecimentos, produto da militarização das forças de segurança que continua no governo de López Obrador.

A América Central vive uma forte crise migratória na fronteira entre México e EUA, o que leva a Casa Branca a implementar um plano estratégico para enfrentar o que considera ser a causa desse problema. Outro foco migratório está na região de Darien, na fronteira entre Colômbia e Panamá. Por sua vez, a instabilidade política caracteriza a região. Em El Salvador, Nayib Bukele aumenta sua perseguição aos líderes da FMLN, enquanto há incerteza social sobre a implementação do bitcon como moeda legal. Na Nicarágua, as prisões de oponentes e a interferência imperialista aprofundam a polarização social diante das eleições presidenciais de novembro. Honduras é outro dos países que terão eleições para eleger seu presidente, em meio às incertezas devido à transparência do processo eleitoral e às mobilizações sociais contra as ZEDE (Zonas de Emprego e Desenvolvimento Econômico).

Seguindo o fio das lutas, resistências, avanços e retrocessos é que elaboramos este relatório nº 14 do Obsal, entre os escritórios de São Paulo e Buenos Aires do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Com a esperança de que os ventos constituintes, plurinacionais e dos sujeitos protagonistas desta fase política escrevam a história – seguindo a poética zapatista – desse outro mundo possível, onde caibam muitos mundos.

 

Avanço da variante delta, magnitude da crise social e ambiental

Globalmente, desde o final de junho, o número de infecções e óbitos por Covid-19 voltou a subir, impulsionado pela expansão da variante Delta, que se manteve no final de agosto. Nesse sentido, nos mais de 100 países em que essa variante já predomina, ao final deste relatório a disseminação do vírus estava crescendo significativamente em quase 80 deles, principalmente na Ásia e no Oriente Médio – mais de 50% dos novos casos estão concentrados nessa região – e também em partes da Europa e dos EUA.

No caso da América Latina e Caribe, a situação é diferente e quase inversa ao panorama registrado no período coberto pelo relatório anterior (maio-junho). Em julho-agosto, um crescimento de infecções é registrado na área da Mesoamérica e do Caribe – por exemplo: México, Guatemala, Honduras, Cuba, Guadalupe, Dominica estão em ou perto de um pico no final de agosto -, enquanto na América do Sul de modo geral, a evolução dos casos oscila entre números estáveis ​​ou decrescentes: por exemplo, ainda se observa uma curva descendente na Argentina, Chile, Paraguai, Brasil, Peru, Colômbia e Equador. Nesse cenário, a previsível expansão da nova variante e a possível nova onda de infecções nessa região se colocam como uma ameaça e um desafio para os povos e governos do sul.

Certamente, os perigos e efeitos dessa nova onda dependem em grande parte dos avanços na vacinação. Nesse sentido, ao final de agosto (30/8) 39,4% da população mundial havia recebido uma dose e 28,6% as duas doses. Mas esse cálculo global é enganoso; enquanto na África apenas 2,73% gozavam da vacinação plena, o mesmo percentual subiu para 57,55% no caso da União Européia e 51,69% para os Estados Unidos. A matriz colonial que expressa essa desigualdade foi exacerbada nestes meses com a decisão de muitos destes países de avançarem com a aplicação de uma terceira dose diante do avanço da nova variente, que mereceu a declaração do diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, que destacou que “não podemos aceitar que países que já consumiram a maior parte do suprimento mundial de vacinas use-as ainda mais, enquanto as pessoas mais vulneráveis ​​do globo permanecem desprotegidas” (tradução própria) e anunciou o lançamento de uma campanha de igualdade de acesso às vacinas. Como pano de fundo desses acontecimentos está o retumbante fracasso do chamado “mecanismo Covax” que no final de julho prometia a distribuição de 1 bilhão de vacinas no mundo e só assegurou 120 milhões, bem como o criminoso bloqueio empresarial e de países ricos na OMC em relação à quebra de patentes que examinamos em relatórios anteriores. Nesse contexto, o governo Biden implementou sua iniciativa de doação de vacinas em julho e agosto – no que foi considerado parte da disputa geopolítica pela vacinação – em que América Latina e Caribe foram as regiões mais beneficiadas.

A situação da vacinação na região também aponta para profundas desigualdades. Assim, no final de agosto (dados de 30/08), na América do Sul, 54% da população estava vacinada (29,97% com duas doses) e no México, 44% (24% com duas doses); enquanto na América Central a realidade era muito diferente (por exemplo, Guatemala com 18% vacinados ou Honduras com 28%).

Finalmente, quase um ano e meio após o início da pandemia em Nuestra América, o panorama catastrófico no plano social não deixa dúvidas. Agravado pelas políticas neoliberais, por exemplo no caso do Brasil, foi apontado, com base em dados da Rede Penssan, que 116,8 milhões carecem de acesso pleno e permanente a alimentos, assim como 20,5% da população se encontra em insegurança alimentar moderada ou grave e 9% em insegurança alimentar grave.

Soma-se a isso os efeitos cada vez mais evidentes de uma crise socioambiental alimentada pelo extrativismo e pela crise climática. Além dos recentes e dantescos incêndios na Grécia e das tempestades e enchentes na Europa e nos Estados Unidos, em Nuestra América destaca-se a histórica baixa do rio Paraná – o segundo maior da América do Sul, que passa por Brasil, Paraguai e Argentina – e as secas em vastas regiões do subcontinente; os incêndios que voltam para castigar a Amazônia. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em junho, a Amazônia brasileira registrou o pior número de incêndios desde 2007, até 2,6% superior ao triste recorde de 2020, com incêndios se espalhando pelo Pantanal e Cerrado em agosto e até outras regiões do Paraguai, Bolívia e Argentina; chuvas torrenciais e inundações na Colômbia e na Venezuela; e os repetidos furacões e tempestades no Caribe.

Nesse contexto, no início de agosto, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) divulgou um novo relatório (o sexto) que descreve um panorama desolador e alarmante. Não só indica a presença de “mudanças no clima da Terra em todas as regiões e no sistema climático em seu conjunto” que “não têm precedentes em milhares e centenas de milhares de anos”, mas também alerta que alguns desses “não se poderá reverter por vários séculos ou milênios”, bem como um aviso que, “a menos que as emissões de gases de efeito estufa sejam reduzidas imediatamente, rapidamente e em grande escala, limitar o aquecimento a cerca de 1,5ºC ou mesmo a 2ºC, será uma meta inatingível”. Nesse sentido, o relatório é contundente:

com o aquecimento global de 1,5°C se produzirá um aumento nas ondas de calor, as estações quentes irão se estender e as frias irão encurtar; ao passo que com um aquecimento global de 2°C, eventos de calor extremo atingiriam com mais frequência limites de tolerância críticos para a agricultura e a saúde.

Em sua diversidade, esses dados indicam a magnitude catastrófica que atualmente atinge a crise civilizacional, própria da implantação do capitalismo neoliberal, e os desafios urgentes que ela impõe aos povos.

 

OEA, Celac e a disputa pelo sentido da integração

O debate está aberto. Nos últimos meses, acentuou-se o descrédito da OEA como espaço de resolução de conflitos no continente. A organização, em queda livre após o golpe na Bolívia, sofre atualmente as consequências das políticas promovidas febrilmente por seu Secretário-Geral Luis Almagro, complicado politicamente em várias frentes, com vários pedidos de renúncia, ação em Haia e até investigado pelo Congresso dos EUA.

Entre as muitas expressões desta crise pode-se registrar o que aconteceu na sessão de 25 de agosto do Conselho Permanente da OEA, quando o governo boliviano denunciou em sessão especial a “grosseira ingerência nos assuntos internos da Bolívia” por parte do secretário-geral Luis Almagro. O chanceler Rogelio Mayta advertiu que as ações de Almagro “não são apenas ingerência, mas também desinstitucionalização da OEA, porque a Secretaria-Geral deve ser uma instância capaz de gestionar encontros”.

O México também aproveitou a reunião para criticar o funcionamento da OEA e, em particular, a atuação de seu secretário-geral. Já em junho, o chanceler Marcelo Ebrard havia descrito Almagro como “um dos piores presidentes da OEA na história”. Agora foi a representante junto à OEA, Luz Elena Baños, que considerou que o secretário-geral “continua promovendo uma agenda pessoal, fora dos interesses dos Estados membros, violando as normas e princípios da organização”. Baños acrescentou que Almagro “não só não tem podido ser o facilitador e promotor do diálogo, mas tem promovido ações que violam o direito internacional”, entre as quais destacou especialmente a inclusão em seu seio do falso governo da Venezuela, representado no ex-deputado Juan Guaidó. A diplomata mexicana caracterizou a gestão da organização como “um desdobramento atípico para conseguir a aceitação de um representante de um poder de um Estado que atualmente nem mesmo está em exercício, mas que participa – sem amparo legal – como Estado membro da OEA”. E acrescentou: “Claro, tudo isso em nome da democracia”.

O governo argentino também questionou Almagro. Além de explicar as denúncias movidas contra o ex-presidente Macri e outros ex-funcionários de seu governo por contrabando de armas para apoiar a ditadura chefiada por Jeanine Añez, o representante da OEA, Carlos Raimundi, destacou “a estreita relação entre o anterior governo argentino, o governo de facto da Bolívia e o Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos”; e deles com as vertentes mais extremas da direita continental. Nesse espaço político, surgem também muitos sinais de preocupação com a OEA, mas na direção oposta: pedem que os Estados Unidos tenham um papel ativo em sua defesa. Além do pitoresco dos personagens e de seus argumentos – interessantes porque dão conta da estratégia de legitimação ideológica -, a questão subjacente é que a reunião de agosto da OEA, assim como a reunião de chanceleres da Celac no final de julho, são cenários que revelam as diferentes tensões e posições de força entre os projetos de integração que cruzam o continente.

A Celac, agora com o impulso principal do governo de Andrés Manuel López Obrador, entra para esculpir novamente na disputa. Isso acontece a partir de eventos que ocorreram ao longo de um período de tempo relativamente longo, que inclui mudanças de governos em países-chave e processos intensos de mobilização, a maioria dos quais colocaram em crise entre 2018-2019 algumas posições conquistadas por aliados dos EUA. As mudanças na correlação de forças – ainda que por ora moderadas e instáveis – abre espaço para a revitalização da Celac como espaço de integração dos 33 países da América Latina e do Caribe, como apontamos em artigo publicado na ARG Medios no início de agosto.

Poucos dias depois da reunião da OEA, no plenário do MORENA (Movimento pela Regeneração Nacional, partido liderado por AMLO) realizado em 28 de agosto, o chanceler Ebrard voltou a se referir ao tema: “Alguém tem que mandar um ofício a ele, ou algo assim, a Almagro, mas a OEA não pode continuar a ser um instrumento de intervenção”, ironizou Ebrard; e adiantou que na Cúpula da Celac de 18 de setembro – na qual está prevista a passagem da presidência pro tempore do México para a Argentina – levantaria o debate. “Qual é a proposta do México? Adeus à OEA no seu sentido intervencionista, ingerencista e hegemonista e que venha outra organização que seja construída de acordo com os Estados Unidos para o século 21”.

Outra expressão da situação é a perda por gotejamento sofrida pelo Grupo de Lima. Esse espaço de afinidade política, de grande destaque entre 2017 e 2020, perdeu Santa Lúcia nas últimas semanas, Argentina em março e um pouco antes, aliás, Bolívia e México. Embora não tenha sido oficialmente anunciado, no início de agosto La Jornada registrou declarações do então chanceler Héctor Béjar sobre a saída do Peru do grupo, mudança que parece compatível com um governo de Peru Libre.

O Grupo Lima foi uma estratégia desenvolvida a partir de 2017 pelo governo Donald Trump por meio de Elliot Abrams e Mauricio Claver-Carone – agora presidente do BID -, voltada em particular para a Venezuela. Esta iniciativa foi derrotada há muito tempo, situação que atualmente está em processo de reconhecimento, como o mostra o próprio diálogo que está ocorrendo entre o chavismo e o setor mais extremo da oposição no México. Uma das condições básicas para o diálogo é a suspensão das sanções estadunidenses. Esse pedido chega até a setores do Congresso dos EUA: em agosto, dezenove parlamentares democratas enviaram uma carta pública ao secretário de Estado, Antony Blinken, na qual indicavam que “a atual política de pressão máxima contra a Venezuela foi um fracasso total”. Ele então descreve as várias táticas usadas pelos EUA para intervir em outro país:

A administração Trump tentou tirar Maduro do poder impondo sanções de longo alcance, encorajando um levante militar doméstico, a ameaça de uma intervenção armada dos Estados Unidos e o rompimento total das relações (…). Apesar dessas e outras medidas agressivas, Maduro continua mais forte do que nunca.

Dessa forma, dezenove membros do Poder Legislativo dos Estados Unidos reconhecem abertamente que seu governo emprega políticas de interferência que violam o direito internacional. Neste momento, não se debate a legitimidade das medidas, mas sim o seu funcionamento, no quadro de várias reorganizações.

O desgaste dos governos de direita na região e a eventual possibilidade de substituição pela esquerda – como aconteceu na Argentina, Bolívia e Peru nos últimos dois anos e pode acontecer no Chile, Colômbia e Brasil nos próximos doze meses – é uma questão que a diplomacia americana está observando de perto. O governo Biden representa uma continuidade nas aspirações estratégicas das elites estadunidenses, isto é: a defesa de sua hegemonia global hoje em declínio, pela qual continua e aprofunda seu confronto com China e Rússia, embora se proponha a utilizar caminhos e táticas diferentes daqueles usados ​​por Trump na administração anterior. Nesse quadro, redefine as formas de garantir o controle de seu “quintal”, onde nem tudo é hostil: na verdade, as más notícias se alternam com as boas – como em sua época foi o triunfo de Lacalle Pou no Uruguai contra a Frente Ampla ou o de Guillermo Lasso, no Equador, contra o candidato da Revolução Cidadã – e também surgem situações com muitas nuances, nas quais o Departamento de Estado tem interesses específicos.

A recente viagem do assessor de Segurança da Casa Branca, Jake Sullivan, ao Brasil e à Argentina, continuidade, por sua vez, de outras visitas importantes em 2021, é uma expressão da tentativa do governo dos Estados Unidos de estreitar laços com dois países com um importante peso específico.

No caso do Brasil, a relação não parece estar em seu melhor momento. A viagem de Sullivan mostrou mais tensões que afinidades. A relação entre o governo de Biden e de Bolsonaro foi marcada pela distância desde seu início, em decorrência do apoio explícito do presidente do Brasil à reeleição de Trump. A visita de Sullivan não dissipou o atrito. Além disso, a proposta dos Estados Unidos de impedir a adoção da tecnologia 5G desenvolvida pela empresa chinesa Huawei foi acompanhada da oferta de integração do Brasil à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), aliança militar entre América do Norte e Europa. Esta última implicaria um claro avanço na militarização e, consequentemente, uma ameaça à paz na América do Sul. Vale lembrar a existência do conflito entre um país do continente e um país da Otan pelas Ilhas Malvinas e outros arquipélagos do Atlântico Sul, disputa que – pelo menos até agora – a posição oficial de todos os países latino-americanos é que este território pertence de direito à Argentina. A Grã-Bretanha, porém, continua com a ocupação das ilhas, que hoje abrigam a maior base da Otan no Atlântico, com capacidade para lançar armas nucleares em direção ao continente.

Ao contrário de Brasília, a visita do principal assessor de segurança da Casa Branca a Buenos Aires – segundo algumas análises – deixou imagens de boa harmonia, ainda maiores que o esperado pelo governo Alberto Fernández. Para a Argentina, é fundamental ter o apoio dos Estados Unidos nas negociações que abriu com o FMI, devido à grande dívida externa deixada pelo governo Macri. Para o governo estadunidense, a competição tecnológica e militar com a China está sempre no centro da cena e se materializou no lobby devido ao desenvolvimento do 5G e à “preocupação” com a pesca no Atlântico Sul. Como já apontamos em relatórios anteriores, este último é a nova desculpa para uma maior militarização do Atlântico Sul, agora inclusive tentando se conectar com um discurso “ambientalista”, que é usado de forma instrumental: contra adversários políticos, sim, contra aliados da Otan – como o Reino Unido e o Reino da Espanha – não.

Às visitas à América do Sul devemos agregar a atenção dispensada à Mesoamérica, em particular a relação com o México e com o chamado Triângulo Norte da América Central, formado por Honduras, El Salvador e Guatemala. Nesses casos, além de questões estritamente militares e de segurança, um debate central é a política de migração. Desenvolvemos ambos os tópicos em uma seção específica.

Os intercâmbios entre os Estados Unidos e a América Latina e o Caribe se dão no primeiro ano do governo Biden – atravessado, lembremo-nos, por uma forte cisão política no próprio país – e também em um momento crítico para a estratégia militar dos Estados Unidos, com a indiscutível derrota no Afeganistão. Tudo isso acontece vinte anos após a queda das Torres Gêmeas em Nova York e o início da Operação “Liberdade Duradoura”. Duas décadas de ocupação militar e a “guerra contra o terror” que deixam um cenário de extrema violência social e onde os EUA não conseguiram cumprir nenhum dos objetivos propostos. É, nas palavras de Angela Merkel, “o maior desastre para a Otan desde o seu início”. Suas consequências são incertas. Isso não é um fracasso exclusivo de Biden, é claro, mas os estilhaços do momento o fazem pagar a maior parte do custo político, ao mesmo tempo em que expõe desajeitadamente uma crise de longa duração. A retirada – em andamento até o momento desta redação, mas no mínimo caótica – deixa cartões postais que lembram o Vietnã.

Embora seja um símbolo de seu declínio e talvez a médio prazo haja consequências nesse sentido, pelo menos por enquanto o impacto do fracasso no Afeganistão não resultará necessariamente em menos intervenção militar dos EUA no mundo. É um processo em ascensão: segundo estudo citado pela Misión Verdad, de 1989 até hoje, os Estados Unidos duplicou o número de países em que tem presença militar: de 40 para 81. No continente, além disso, deve-se considerar a sempre ameaçadora “cooperação militar” por meio da qual o Pentágono – por meio do Comando Sul – controla estrategicamente a maioria das forças armadas nacionais. Para isso, além de exercícios conjuntos, seminários de intercâmbio e eventos acadêmicos, um dispositivo fundamental de treinamento e recrutamento é a sempre atual Escola das Américas, rebatizada em 2001 como Instituto do Hemisfério Ocidental para Cooperação em Segurança  (Whinsec, sigla em inglês).

Além da intervenção das forças estatais, é importante considerar a crescente participação das forças irregulares nos assuntos geopolíticos de alto nível, conforme evidenciado pelo crescimento do paramilitarismo na região, que teve como expressões mais evidentes, embora não únicas, os acontecimentos. no Haiti e na Venezuela entre 2020 e 2021, com intervenção em ambos os casos de “mercenários” estadunidenses e colombianos. Sob a proteção da “assistência” dos Estados Unidos e de Israel, a Colômbia se tornou uma verdadeira fábrica de paramilitarismo para uso doméstico e também para exportação.

A articulação de forças militares estatais e paraestatais, atuando com autonomia, mas ao mesmo tempo com afinidade estratégica – sempre em linha com a política externa dos Estados Unidos – é uma característica estrutural da etapa, caracterizado por uma guerra híbrida: isto é, uma combinação de hard e soft power. Os casos de Cuba e Nicarágua, entre muitos outros, mostram a importância desse “soft power” nas ações de intervenção. É muito provável que isso se intensifique nessa etapa, em que os países do eixo andino, especialmente o Peru, serão os principais alvos, juntamente com os membros da Alba-TCP.

A disputa por projetos de integração (ou desintegração, segundo o caso) ocorre em múltiplas cenários e simultaneamente. Embora estruturalmente o cenário seja condicionado pelos grandes blocos de afinidade, sobrepostos a essas coordenadas estão outras relações, de modo que um mapa relativamente flexível é apresentado e às vezes não sem contradições. Exemplo disso é a recente visita ao México do presidente do Equador, Guillermo Lasso. A convite de Andrés Manuel López Obrador, o principal objetivo de Lasso, como declarou, era aproximar a proposta de um acordo de livre comércio entre as duas nações, como um primeiro passo para sua integração à Aliança do Pacífico. Já ao sul do continente, o Mercosul continua tensionado e já surgem vozes que alertam para a possibilidade de sua paralisação ou mesmo de sua desintegração.

Quanto aos movimentos na América do Sul, uma novidade foi a apresentação de Evo Morales do Decálogo de Runasur. Esse é um espaço de articulação constituído por centrais sindicais, movimentos populares e articulações continentais que pretendem construir uma América Plurinacional, enraizando-se num processo que remonta a vários séculos e que visa contribuir para a integração a partir do protagonismo popular.

No plano estritamente político, destaca-se o protagonismo do Grupo de Puebla. Este espaço se apresenta como portador de um projeto de “progressismo moderado” e tenta ocupar um lugar no cenário polarizado que atravessa o continente. Por ora, tanto a partir dos Estados, como apontamos há alguns parágrafos, quanto dos posicionamentos como grupo, têm mantido uma posição clara a favor de uma integração não subordinada à agenda dos Estados Unidos. Se olharmos para os últimos anos, não parece uma coisa pequena. A construção desse espaço, por sua vez, parece ter levado a uma mudança na relação entre as diferentes tendências e blocos que aparecem no cenário.

Tudo está em movimento, mas – em termos gerais – na conjuntura imediata aparece delineada uma nova estrutura de três terços, com um bloco de esquerda como Alba-TCP (com uma trajetória comum e politicamente consolidada, embora sob assédio em seus territórios base); outro bloco sob a órbita dos Estados Unidos (que está em reconfiguração e tenta superar suas crises) e um terceiro que nos últimos anos ganhou volume, alavancado nas forças que lideram os governos do México e da Argentina. No entanto, o panorama é muito dinâmico e depende não só das relações internacionais, mas dos acontecimentos que ocorrem em cada sub-região, em cada país, processos particulares que influenciam e são influenciados por tendências gerais.