Informe OBSAL #14/Parte II

Observatório da Conjuntura na América Latina e no Caribe

Após meses de tentativas de golpes eleitorais, Pedro Castillo assume o poder no Peru.

 

Nesta publicação, apresentamos a segunda parte do relatório #14 do Observatório da Conjuntura na América Latina e no Caribe (OBSAL). Nela, estão presentes as análises dos países da região do caribe insular e da região andina. Se falamos de uma agudização profunda das tensões sociais em nossa primeira parte da publicação, a região caribenha é uma clara expressão disso. Haiti e Cuba são os destaques da região nos meses de julho e agosto.

No Haiti, o assassinato de Jovenel Moïse explica o aprofundamento da violência que se vive no país e expõe as intenções intervencionistas. Em Cuba, por sua vez, a estratégia imperial voltou a açoitar o país, procurando desestabilizar e derrubar a Revolução. No dia 11 de julho houve uma série de protestos que foram estimulados pelas redes sociais e apoiados pela mídia internacional.

Os destaques da análise sobre a região andina ficam para dois países: Peru e Bolívia. Depois de meses incertos, a região andina encontra algumas certezas, que significam pequenas vitórias, mas sinalizando enormes desafios pela frente. É o caso da posse de presidente Pedro Castillo, no Peru, após tentativas de golpes eleitorais, que o impediriam de assumir o poder. Na Bolívia, avançam as investigações para encontrar os responsáveis pelo golpe contra Evo Morales em 2019. Com Añez na prisão, as denúncias avançaram em direção a cumplicidades internacionais, como os casos do ex-presidente argentino Mauricio Macri, do equatoriano Lenin Moreno e o papel desempenhado por Luis Almagro em legitimar o golpe da OEA. Semana que vem publicaremos a terceira e última parte do relatório bimestral do Obsal.

 

Ondas intervencionistas no Caribe insular

O Mar do Caribe está agitado nos últimos dois meses, com ondas de ingerência que vêm e vão. O fechamento de nosso relatório anterior foi marcado pela notícia do assassinato do ex-presidente do Haiti, Jovenel Moïse, na madrugada de 7 de julho. Sua esposa foi ferida e levada para Miami. Das 28 pessoas que participaram do ataque, 26 são ex-soldados colombianos e dois haitiano-estadunidenses. No início, alegaram que estavam ali para prender Moïse, não para assassiná-lo. Naquele dia, 17 agressores foram presos (11 deles anteriormente se refugiaram na Embaixada de Taiwan, perto da casa presidencial), enquanto três foram mortos e oito conseguiram fugir.

O grupo de pessoas entrou na residência presidencial vestindo coletes da Agência Antidrogas dos Estados Unidos (DEA, sigla em inglês), aos gritos, afirmando serem funcionários dessa agência. Os seguranças não resistiram e seus dois chefes estão na prisão por se recusarem a testemunhar.

Autoridades dos Estados Unidos e Colômbia ofereceram colaboração para a investigação e também para “levar a paz às ruas”. A OEA e a ONU condenaram o ataque e se dispuseram a ajudar. Iván Duque foi um pouco mais longe e entrou em contato com Luis Almagro para avaliar possibilidades de intervenção por meio de alguma “missão”. Entretanto, as forças progressistas e populares estavam alertas e manifestaram o seu repúdio a qualquer tipo de intervenção sob a forma de “missão humanitária”.

As pessoas envolvidas no assassinato faziam parte de um complô internacional que inclui cidadãos e instituições de cinco países: Colômbia, Venezuela (o setor da direita associado a Juan Guaidó tem ligações com os mercenários), Estados Unidos, República Dominicana (onde se reuniram vários deles semanas antes do fato) e Taiwan. Além disso, há suspeitas sobre setores da burguesia haitiana opositora a Moïse e sobre alguns de seus próprios funcionários.

Existem poucas certezas. Uma delas é que as empresas que contrataram os mercenários são a CTU Security – empresa de segurança privada estadunidense com sede em Miami e presente na Colômbia – e a Worldwide Capital – também estadunidense, com sede no sul do estado da Flórida – e que colocaram quase 900 mil dólares na operação. A investigação diz que a ideia não era matá-lo, mas capturá-lo no aeroporto de Porto Príncipe em uma viagem que faria em 20 de junho, que acabou sendo suspensa.

O trabalho com as empresas foi coordenado pelo médico e pastor haitiano residente nos Estados Unidos Christian Emmanuel Sanon, a quem foi prometido assumir a presidência do país após o assassinato. A investigação sobre os outros mentores é incipiente.

Até o momento, 40 pessoas estão presas no caso, incluindo militares colombianos aposentados, policiais e civis haitianos, alguns deles com nacionalidade estadunidense. Além disso, pelo menos sete policiais foram afastados e estão sendo investigados. Seis dos suspeitos estão foragidos.

No sábado, 7 de agosto, a justiça haitiana não havia iniciado a investigação porque nenhum promotor queria assumir o caso. Vários dos juízes designados para a investigação pediram afastamento após receber ameaças de morte ou por falta de proteção, no contexto do homicídio ainda não esclarecido de um ex-promotor nos primeiros dias de agosto. Finalmente, o juiz Gary Orélien foi nomeado em 23 de agosto e espera-se que o caso siga em frente.

Por sua vez, a vice-presidente e chanceler da Colômbia, Marta Lucía Ramírez, pediu que fosse garantida a presunção de inocência aos colombianos detidos no Haiti, seus direitos humanos e afirmou que lhes será dada assistência jurídica, já que alguns “foram enganados”.

No nível institucional, a confusão continua. Dois dias antes do assassinato, Moïse havia nomeado Ariel Henry como primeiro-ministro (o quinto em seu mandato) para substituir Claude Joseph (nomeado em 14 de abril devido à crise de segurança no país), mas ele não chegou a assumir o cargo formalmente. Moïse também isentou ex-funcionários de responsabilidades para que pudessem ser candidatos nas próximas eleições, marcadas para 26 de setembro, junto com o referendo que ele estava promovendo.

Diante dos acontecimentos, Claude Joseph autoproclamou-se primeiro-ministro, com o apoio dos Estados Unidos, da ONU e do core group (França, Espanha, Canadá, Brasil, UE e OEA), declarou estado de sítio e solicitou o envio de tropas dos EUA e da ONU. Também se comprometeu a realizar eleições antes do final do ano. Enquanto isso, Ariel Henry expressou sua intenção de assumir o cargo. Dois dias após o assassinato, o Senado haitiano nomeou Joseph Lambert, chefe da Casa, como presidente provisório, por meio de uma resolução assinada por 8 dos 10 senadores ativos. No entanto, sua posse foi adiada no dia seguinte.

Nos dias que se seguiram, três dos detidos implicaram Claude Joseph no assassinato, contra o qual o governante anunciou que deixaria o cargo para Henry e retornaria ao Ministério das Relações Exteriores, seu cargo anterior. Ariel Henry foi Ministro do Interior; sua posse, treze dias após a morte de Moïse, foi finalmente endossada pela ONU e pelo core group.

No plano das mobilizações e das forças populares, o assassinato do presidente foi seguido pela tranquilidade da população e por um processo de debate entre as forças progressistas sobre como chegar a um consenso sobre a vida institucional e as eleições. As decisões de organizações internacionais sem consultar a população tendem a atentar contra esses processos. No entanto, o povo haitiano tem consciência da sanha dos países que vêm intervindo na política haitiana há anos.

Vários políticos  do setor progressista da oposição expressaram dúvidas quanto à nomeação de Henry, por ter sido instalado por um governo ilegítimo, e exigiram um acordo político para definir um governo provisório de consenso entre as diferentes forças.

Quinze dias após o assassinato, o funeral foi realizado em Cap Haitien, capital do Departamento do Norte, com a presença de delegações estrangeiras. A presença do diretor da Polícia Nacional, Léon Charles, gerou confrontos, com queima de pneus, tiroteios e uso de gás lacrimogêneo. Ele é rechaçado por não ter conseguido proteger o presidente.

Em 28 de julho, 106 anos após a ocupação dos Estados Unidos, uma manifestação foi realizada para expressar rejeição à interferência estrangeira e exigir justiça para 15 pessoas mortas em junho nas mãos da polícia haitiana. O protesto terminou em frente à embaixada dos EUA. Dias antes, o líder do grupo de gangues do G9, Barbecue, havia convocado uma manifestação em homenagem a Moïse. Poucos dias antes do assassinato, o próprio Barbecue anunciou que faria parte da oposição e liderou um protesto exigindo sua renúncia.

No sábado, 14 de agosto, um terremoto de magnitude 7,2 sacudiu o sudoeste do Haiti, deixando mais de 2 mil mortos, 10 mil feridos e danos materiais ainda não contabilizados. Tudo isso foi agravado alguns dias depois pela tormenta Grace.

O desastre, considerado o segundo maior terremoto dos últimos 25 anos em Nuestra América, provocou a solidariedade de outros países do continente que enviaram ajuda humanitária. A ONU também enviou recursos e, como não poderia deixar de ser, os Estados Unidos enviaram tropas, que permanecerão no país por vários meses.

Quanto às eleições gerais, antes do terremoto, Henry havia anunciado que se dariam em 7 de novembro. Mas esse cenário foi mais uma vez modificado devido à situação humanitária e nas últimas semanas ele afirmou que as organizará “o mais rápido possível”.

Como se tudo isso não bastasse para a região em questão, no domingo, 11 de julho, Cuba despertou com uma série de protestos em vários locais, iniciados em San Antonio de los Baños, a 26 quilômetros de Havana. Convocados pelas redes sociais com o apoio de influenciadores e a hashtag #SOSCuba, os protestos receberam atenção inusitada da mídia, o que permitiu sua ampliação.

O gatilho foi o descontentamento com os “apagões”, que ocorreram devido ao aumento do uso de energia elétrica nos postos de saúde para atender os casos de Covid. As ações judiciais também foram por falta de alimentos e remédios.  O pico de casos até aquele momento foi de 51 mortes em um dia e 1.659 no total. A isso se somou um pedido de um “corredor humanitário” internacional, com claras intenções intervencionistas. Essa situação revelou as limitações geradas pelo bloqueio, contra o qual 184 países votaram em junho.

Naquele dia, o presidente Díaz Canel falou sobre os acontecimentos e foi à cidade de San Antonio de los Baños para dialogar com os setores mobilizados. Ele explicou que foi montada uma campanha midiática a partir de legítimas preocupações geradas pelo endurecimento do bloqueio, pela escassez devido à menor entrada de divisas e remessas e pelas complicações geradas pelas novas tensões da Covid. Destacou os apagões e limitações à entrada de combustível que sofre o país, denunciou uma operação desestabilizadora financiada pelos Estados Unidos e pediu ao povo cubano que se manifestasse nas ruas em defesa da Revolução.

À medida que o protesto e suas reações se espalharam por outras cidades, surgiram manifestações em defesa do governo. A estratégia para construir a campanha de rede logo foi revelada, como o uso de imagens falsas, bots e contas de Twitter recém-criadas para disparar milhares de mensagens em curtos períodos de tempo. Essa campanha de desinformação chegou a tal ponto que a Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, espalhou uma imagem que não correspondia à realidade.

No dia seguinte aos protestos, o governo dos Estados Unidos se pronunciou a favor, enquanto os presidentes do México e da Argentina pediam o levantamento do bloqueio. Lula da Silva, Nicolás Maduro, Pedro Castillo, China e a Comunidade do Caribe (Caricom) juntaram-se a esta reivindicação.

Foi notório o grau de violência de alguns grupos de manifestantes – saquearam lojas, atacaram viaturas – assim como a resposta da polícia, com prisões (em alguns casos, de membros do Partido Comunista) e apagão digital. Em meio a centenas de notícias falsas, o governo cubano reconheceu a presença de um morto entre os manifestantes e alguns feridos, e informou que estava investigando os fatos.

Depois de vários dias e com as águas um pouco mais calmas, o governo anunciou medidas para mitigar os efeitos da falta de alimentos e medicamentos: liberação de taxas alfandegárias e do limite para a entrada de remédios, alimentos e produtos de higiene para pessoas que chegam ao país,  mudanças no sistema salarial no setor estatal e acesso à carteira de abastecimento.

A intervenção discursiva dos Estados Unidos no conflito se aprofundou dias depois, quando Joe Biden disse que Cuba era um “estado falido” e o comunismo “um sistema universalmente falido”. Também criticou a capacidade de resposta do sistema de saúde cubano diante da pandemia. As respostas foram rápidas e os cientistas cubanos enviaram uma carta condenando suas declarações.

Por sua vez, o próprio prefeito de Miami, Francis Suárez, deixou evidente sua participação na estratégia desestabilizadora ao se manifestou a favor de os Estados Unidos “cogitarem” ataques aéreos contra Cuba. No dia 23 de julho, uma flotilha partiu de Miami rumo à costa de Havana, com o objetivo de enviar uma “mensagem” de “solidariedade”. As embarcações traziam impressas a hashtag #SOSCuba e agitavam bandeiras cubanas e estadunidenses. Com dispositivos de satélite transmitindo de alto mar e com cobertura da grande mídia, lançaram fogos de artifício perto da costa de Havana e voltaram para Miami.

Nesse mesmo dia, mais de 400 personalidades sociais, políticos, intelectuais, cientistas e artistas de todo o mundo publicaram uma carta intitulada “Let Cuba Live” (Deixe Cuba Viver), na qual pediam a Biden que anulasse as 243 medidas coercitivas implementadas por Trump contra a ilha. Foi publicada no New York Times. Por parte dos governos, também houve apoio material. Rússia, México e Bolívia enviaram alimentos, combustível e suprimentos médicos.

Vale a pena resgatar algumas vozes de analistas e militantes revolucionários. Em nota de 23 de julho, Alcides Carranza, membro do Centro Memorial Martin Luther King de Cuba e da ALBA Movimientos, caracterizou o povo cubano como “um povo revolucionário, que não aceita a intervenção, condena o bloqueio e a violência de toda parte. Mas não está de acordo com os males que nos afligem e exige mudanças para melhorar nosso socialismo”. Afirmou também que o confronto policial com quem vandalizou foi maior que em outras épocas e que o povo cubano não está acostumado a essa forma de enfrentar os conflitos. Também dizia:

O modelo cubano criou canais para processar esses descontentamentos. Mas a grande maioria está presa em uma má gestão institucional, burocracia e uma fraca capacidade de resposta governamental e política para mudar as coisas. E assim, ou você silencia suas preocupações, ou não se encontra a devida receptividade, ou você vai acumulando até que algo te faz explodir. (…) Também existe muito medo de represálias ou de que elas te impeçam de pensar ou reivindicar a partir de uma perspectiva diferente. Não ajuda que a diversidade (mesmo aquela comprometida com o socialismo) possa fazer contribuições ou ser uma contrapartida necessária ao que existe.

Por sua vez, Claudio Katz destacou o efeito que as sanções dos Estados Unidos têm sobre o fornecimento de energia: “a aplicação do Capítulo III da Lei Helms-Burton afetou gravemente o fornecimento de combustível”. E analisou o que Cuba significa para o continente:

A presença de muitas pessoas irritadas é inquestionável. Mas seu grau de representatividade é incerto. Os descontentes se confluem com forças de direita que seguem um roteiro traçado em Miami. Essa combinação de diferentes temas já foi verificada no movimento San Isidro em novembro passado. (…) A direita está muito ciente de como os acontecimentos na ilha fizeram desequilibrar a balança da região no passado. O triunfo de 1959 inspirou a grande onda de projetos socialistas e a permanência da revolução ajudou a conter o neoliberalismo subsequente. Cuba apoiou as grandes rebeliões e ensaios progressistas das últimas décadas e continua sendo um grande obstáculo aos atuais ensaios neoconservadores. A retaguarda cubana opera como uma reserva de projetos populares da região. (…) A permanência de Cuba funciona como apoio chave para a luta dos povos latino-americanos. Esse apoio também tem via dupla e afeta o futuro da ilha. Uma grande derrota para o imperialismo criaria a etapa necessária para resgatar Cuba de seu isolamento. Esse contexto permitiria a implementação de uma política continental de medidas contra o bloqueio.

Por último, recuperamos algumas palavras publicadas pela revista cubana La Tizza:

Aqueles que saíram para protestar eram povo. Muitos pertencem à parcela da população que mais sofreu com os efeitos da crise e que foi mais prejudicada pelo aumento da desigualdade com o avanço das reformas de mercado que dilaceram e segmentam nossa sociedade. Essas múltiplas desigualdades produziram uma desconexão entre aqueles que gritavam “Pátria e Vida” nas ruas e o projeto revolucionário. E essa desconexão se transformou em ressentimento e até ódio. Esse setor foi ativado pela agenda política da contrarrevolução. Houve espontaneidade, mas também uma operação política e de inteligência realizada por atores que entendem perfeitamente a agenda em jogo.

No dia 5 de agosto, no 27º aniversário do “Maleconazo”, centenas de jovens marcharam em Havana em nome da paz para apoiar a Revolução e denunciar o bloqueio.

Os protestos do #11J e a forma como foram chamados, assim como a divulgação de notícias falsas, reacenderam o debate sobre as comunicações. Por fim, foi anunciado que o governo atualizará seu marco jurídico a esse respeito, para garantir a modernização das redes, aproveitamento da infraestrutura, maior acesso e regulação dos incidentes de cibersegurança (que inclui cyberbullying, pedofilia e notícias falsas).

Apesar das limitações que o bloqueio impõe à massificação das vacinas cubanas – falta de insumos para seu armazenamento, distribuição e aplicação – em Cuba, 43% da população já foi vacinada com uma dose e 27% já está com o esquema completo de doses.

Além disso, foi autorizado o uso emergencial das vacinas Soberana 02 e Plus, cuja eficácia é de 91,2%. Estas se somam à Abdala – que estava em uso até agora – e já existem três vacinas cubanas aprovadas contra o Covid. Ao mesmo tempo, o estudo Soberana Pediatria continua avançando, para que possa ser aplicado em crianças e adolescentes.

E o movimento das ondas não termina aqui. O Caribe nas últimas semanas nos levou a nadar nas águas de várias das Antilhas. Vamos por partes.

Santa Lúcia é um país membro da Alba-TCP desde 2012. No entanto, também fazia parte do Grupo de Lima até algumas semanas atrás. Em 26 de julho houve eleições gerais lá. O Partido Trabalhista obteve 13 das 17 cadeiras renovadas e 50,14% dos votos e seu líder, Philip Pierre, assumiu como primeiro-ministro. O chanceler disse que sua primeira ação seria deixar o Grupo de Lima (que descreveu como uma “quadrilha de vândalos moralmente falida”) e restabelecer relações com a Venezuela, com base na posição da Caricom de não interferir nos assuntos internos de outro Estado. Ele também acrescentou que “este grupo impôs privações aos meninos, meninas, homens e mulheres da Venezuela”.

Por outro lado, em 5 de agosto, o Primeiro Ministro de São Vicente e Granadinas, Ralph Gonsalves, foi atingido na cabeça com uma pedra como parte de um protesto contra as mudanças na lei de atenção médica, que incluíam a vacinação obrigatória de funcionários públicos. A agressora foi presa e Gonsalves se recuperou, mas o ocorrido neste país se relaciona a protestos antivacina em todo o Caribe.

No contexto de um pico de casos de Covid-19 devido à entrada da variante delta, muitas das ilhas têm sido palco de protestos antivacina. Em 7 de agosto, houve uma manifestação em Barbados sobre a possibilidade de tornar a vacina obrigatória para alguns trabalhadores da linha de frente. No dia seguinte, houve uma marcha em Antígua e Barbuda contra a vacinação obrigatória, as restrições de movimento e o uso obrigatório de máscaras. Também no dia 8 houve mobilizações antivacina na ilha francesa de Guadalupe. Neste caso, também responderam à aprovação do passaporte de saúde pelo governo de Emmanuel Macron. Nos dias 13 e 14 houve protestos em Saint Martin, no lado holandês, pela rejeição da vacinação obrigatória, e do lado francês, contra o passaporte de saúde. Saltando para o continente, em 11 de agosto houve um protesto na Guiana em apoio aos trabalhadores de saúde que não puderam entrar em seu trabalho porque não foram vacinados.

A região do Caribe teve mais de 1,29 milhão de casos de Covid e mais de 16 mil mortes, com 15 milhões de vacinados (11 milhões com esquema completo), em uma população total de 45,7 milhões em 31 países. Os países que estão experimentando os maiores picos de casos são Bahamas, Curaçao, Martinica, Guadalupe e Trinidad e Tobago.

Finalmente, Barbados anunciou que deixará de ser uma monarquia constitucional para se tornar uma República. A futura presidenta é a atual governadora Dame Sandra Mason. Ela assumirá seu cargo em 30 de novembro, quando se completarem 55 anos de independência e incorporação à Mancomunidade das Nações. Houve duas tentativas anteriores de criar uma República de Barbados, na década de 1970 e em 1996.

 

Andes: resistência, diálogo e defesa da democracia

Novamente a região andina convulsionou o panorama continental. Após um longo caminho de dúvidas e tentativas de golpe eleitoral, Pedro Castillo finalmente tomou posse em 28 de julho como presidente do Peru, conseguindo uma vitória fundamental para as classes populares. É apenas o primeiro passo de uma luta em defesa da democracia, diante do desejo golpista que caracteriza a cena política peruana.

A posse do presidente não é um fato anedótico neste caso, como poderia ser em outros países da região, pois, como desenvolvemos em nosso relatório anterior, Fujimori e toda a direita local tentaram até o último minuto contestar a vitória do Peru Livre e ignorar os resultados eleitorais. No entanto, tem sabor amargo, já que desde o dia da posse os grandes conglomerados de mídia não economizaram nas acusações e nas operações contra o governo. Não foram poucas as capas de jornais que marcaram o início do “comunismo” com a chegada de Castillo à presidência, o que vaticinava uma ofensiva implacável contra o governo que tinha ainda poucas horas de início.

Destacam-se duas nomeações importantes em relação ao gabinete ministerial proposto e inicialmente empossado. Uma delas foi a nomeação de Anahí Durand, de Nuevo Peru, uma das principais referentes feministas do progressismo peruano, que ocupará o cargo de Ministra da Mulher e Populações Vulneráveis. Ela atua em temas sobre os quais Pedro Castillo foi mais questionado na campanha, devido a algumas declarações conservadoras.

A outra nomeação foi para o cargo de chanceler: o sociólogo Héctor Béjar, muito próximo dos movimentos sociais e com uma longa trajetória internacional, e quem desde o primeiro momento traçou o rumo para a política externa peruana neste novo mandato, com a decisão deixar o Grupo de Lima e aderir à integração latino-americana. No entanto, antes de Béjar completar sequer um mês de mandato, o chefe do Estado-Maior, Guido Bellido, pediu sua renúncia, por conta de declarações de Béjar feitas muito antes de sua posse sobre o papel de liderança da Marinha de Guerra do Peru no desenvolvimento do terrorismo no país. A esse respeito, Béjar afirmou que suas declarações se baseiam em fatos já amplamente comprovados e reconhecidos pela própria Marinha em documentos públicos.

Movimentos sociais e setores ligados ao governo Castillo – anterior ao voto de confiança do gabinete ministerial, outorgado pelo Congresso – alertaram para um possível golpe em andamento, com o pedido de renúncia do então chanceler como primeiro passo. A renúncia de Béjar, as mais de 19 moções de rechaço à posse de sete ministros e as disputas ocorridas entre os dias 26 e 27 de agosto – datas para a concessão do voto de confiança – complicaram ainda mais o cenário.

Apesar de ter obtido o voto de confiança do Congresso – um mecanismo muito particular do Peru em relação aos demais países da região que torna necessária a aprovação do gabinete ministerial pelo parlamento – a força política do governo parece escassa e sua fragilidade se aprofunda pelas divergências – que se tornaram públicas – entre o líder do partido no governo, Vladimir Cerrón, e algumas decisões do presidente Castillo. Entre essas decisões estão o pedido do chefe de gabinete  a Iber Maraví, Ministro do Trabalho, para apresentar sua renúncia e a nomeação de Óscar Martúa como novo chanceler. Martúa é diplomata com experiência em governos anteriores e com posições distantes das de Peru Libre em assuntos internacionais. Seu anúncio sobre o fortalecimento do lugar do Peru na Aliança do Pacífico é significativo. Pela maioria das análises, mais mudanças de gabinete aconteceriam nas próximas semanas.

As dificuldades que se projetam são diversas, e a elas se soma a coordenação da direita local, que através da modificação do Tribunal Constitucional busca impedir o desenvolvimento de uma futura Assembleia Constituinte e outros projetos fundamentais do programa de Castillo. A isso se somam o amplo poder econômico e midiático que possuem os principais setores da oposição, com os quais buscam adiantar o fim do governo recém-inaugurado. Nesse quadro, o papel das organizações e movimentos sociais é fundamental, para defender, mais do que o governo do Peru Libre, o resultado de eleições democraticamente conquistadas.

Essa defesa da democracia se apresenta como uma tarefa urgente em um panorama continental com exemplos claros de estratégias intervencionistas, como aconteceu na Bolívia em 2019 com o golpe de Estado. Como mencionamos no relatório anterior, desde o retorno do governo do MAS em 2020, inúmeras investigações têm sido desenvolvidas para determinar responsabilidades e participações não só de setores da direita local, mas também regional e global no golpe de novembro de 2019 .

Nesse contexto, o Grupo Interdisciplinar de Peritos Independentes (GIEI), encarregado de investigar os fatos relacionados ao golpe, entregou ao presidente Luis Arce um relatório detalhado das graves violações de direitos humanos perpetradas pelo governo de fato de Jeanine Añez, no qual se perpetraram massacres e execuções extrajudiciais. Esses acontecimentos se agravam ainda mais a partir do conhecimento da participação que os então governos da Argentina e do Equador tiveram no golpe de Estado na Bolívia, liderados por Mauricio Macri e Lenin Moreno, respectivamente. É importante observar que este relatório do GIEI foi reconhecido como válido pelo Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

A publicação de um documento então assinado pela Força Aérea Boliviana (FAB) incrimina o ex-presidente argentino Mauricio Macri por contrabandear material repressivo para ser enviado ao governo de fato de Jeanine Añez. O documento acrescenta mais evidências às denúncias feitas anteriormente pelo Chanceler da Bolívia e confirma o recebimento de 40 mil munições que chegaram da Argentina em 13 de novembro de 2019. O judiciário argentino também está conduzindo investigações para determinar a estrutura de envio do material à Bolívia, que envolve os ministérios de Defesa e Segurança do então governo argentino.

Enquanto isso, a Secretaria-Geral da OEA continua ignorando sua responsabilidade no golpe. A esse respeito, a chancelaria emitiu uma moção de repúdio, qualificando as manifestações como ato de ingerência nos assuntos internos da instituição.

O apoio internacional aos setores golpistas, somado às inúmeras tentativas da direita local de reagrupar e dividir o partido no poder, leva os movimentos populares a fazer soar os alarmes diante de possíveis novas tentativas de golpe, como denunciaram diversos grupos sociais, entre os quais se encontram a Federação Sindical de Mineiros da Bolívia e a Confederação Feminina Bartolina Sisa, junto com várias outras organizações sociais, sindicatos e federações. Enquanto isso, o processo judicial contra o ex-candidato Carlos Mesa está sendo preparado por sua participação no golpe de 2019; e prossegue o processo contra a ex-presidente Jeanine Añez, com o pedido de um julgamento do Ministério Público sobre a denúncia apresentada pelas vítimas dos massacres cometidos entre 15 e 19 de novembro de 2019.

A boa notícia na região andina vem da abertura do diálogo no México entre o governo da República Bolivariana da Venezuela e os setores da oposição agrupados na chamada “Plataforma Unitária da Venezuela”. O desenvolvimento dessas negociações já é, por si só, um importante avanço no caminho de superação da ofensiva da oposição pró-ingerência contra o governo de Nicolás Maduro. Conforme mencionamos em relatórios anteriores, o governo bolivariano propôs em várias ocasiões a abertura desta mesa de diálogo, e sua realização é um primeiro passo.

O documento assinado no encontro descreve as partes como governo da Venezuela chefiado por Nicolás Maduro, e a Plataforma Unitária da Venezuela, como a representação de setores da oposição, fato que implica o reconhecimento pela oposição de que o único governo legítimo da Venezuela é o bolivariano, enterrando assim a retórica do “governo interino”.

Os diálogos acontecem por meio de rodadas de negociações sediadas no México, mediadas pela Federação Russa e pelos reinos da Noruega e Países Baixos. Representando o governo da República Bolivariana da Venezuela está uma delegação chefiada por Jorge Rodríguez. A oposição é liderada por Gerardo Blyde, um delegado do setor oposicionista cuja face visível é Juan Guaidó.  Também é composto por representantes de Henrique Capriles e de outros setores da oposição nucleados na chamada “Plataforma Unitária”, que apesar do nome não inclui toda a oposição venezuelana, mas uma parte – importante – da ala mais radical.

Com o encerramento da primeira rodada de conversações, foi firmado o primeiro macro objetivo, que funciona como um roteiro e busca “chegar a um acordo, por meio de negociação intensa, integral, incremental e pacífica, para estabelecer regras claras de convivência política e social com respeito absoluto à Constituição nacional”. Os itens da agenda para as próximas rodadas são: a) Direitos políticos, b) Garantias eleitorais, c) Suspensão de sanções, d) Respeito ao Estado Constitucional, e) Convivência política e social, f) Proteção da economia nacional; g) Garantias de implementação e acompanhamento dos acordos. A próxima rodada de negociações será em setembro.

Nesse contexto, o caminho para as eleições locais e regionais de novembro também está se desenvolvendo. Para avaliar um possível acompanhamento, uma missão da União Europeia visitou a Venezuela e ponderou sobre o envio de uma missão de observação eleitoral, fato que daria importante reconhecimento às eleições como legítimas perante a comunidade internacional. A oposição nucleada na Mesa da Unidade Democrática anunciou sua participação nas eleições do final de agosto, dado relevante considerando que vários dos setores nucleados na MUD não participaram dos dois últimos processos eleitorais.

Do outro lado da fronteira, na Colômbia, o panorama político e social continua movimentado depois da greve nacional ocorrida entre os últimos meses de abril e julho, e o neoliberalismo de guerra continua mostrando suas piores consequências. Com a conclusão de três dos quatro anos do governo de Iván Duque, inúmeros setores questionaram o desempenho de sua gestão, que deixou uma crise social e humanitária ainda mais profunda que a anterior, com 108 dirigentes sociais, 65 massacres e 24 ex-combatentes mortos somente em 2021, levando a cerca de 800 as vítimas fatais por razões políticas em seu governo.

Soma-se a isso o recente relatório da Procuradoria Geral da Nação, que denuncia o recrudescimento do deslocamento forçado no ano passado. O relatório indica que entre janeiro e junho ocorreram 102 eventos de deslocamento massivo, incluindo 44.920 pessoas mobilizadas à força para outros lugares por causa do conflito armado. No ano anterior, 51 eventos de deslocamento em massa foram registrados, afetando 13.912 pessoas. O silêncio ensurdecedor do governo Duque contrasta com as ações desenvolvidas para “proteger a integridade” dos mercenários colombianos implicados no assassinato do presidente do Haiti, Jovenel Moïse, como o envio de uma missão humanitária para verificar o seu estado de saúde e as condições de detenção. A esse respeito, recomendamos a análise realizada por Aram Aharonian sobre a conexão dos Estados Unidos e da Colômbia com os acontecimentos no Haiti.

O cenário após três anos de governo mostra, além da crise de gestão, a crise do projeto político de Uribe, que hoje na Casa de Nariño não só mantém relações tensas ou nulas com os diversos setores sociais e políticos que impulsionaram a poderosa greve nacional, mas coloca a Colômbia em um lugar ainda mais marginal na política internacional. Há fortes tensões com alguns países que denunciaram as violações de direitos humanos cometidas pelo governo contra os manifestantes, e até mesmo com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, pois o governo  desconheceu seu relatório final após a missão de observação enviada ao paísdurante a greve.

O ano de 2022 se aproxima com um calendário eleitoral que pode transformar a situação crítica do país: o uribismo chega sem candidatos claros e com um projeto político fragmentado, com tendências cada vez mais para a direita – ainda que isso pareça inacreditável. Diante disso, os diversos setores democráticos que buscam aspirar ao governo se deparam com o desafio inicial de conseguir blindar o desenvolvimento das eleições com garantias democráticas ao exercício do direito de voto, além da necessária construção da unidade que, embora soe como uma frase feita, parece ser a única saída para a longa noite uribista que atravessa o país há quase vinte anos. Diante disso, a proposta do Pacto Histórico continua a se consolidar como uma convergência que pode abrir esse caminho, e são convocadas inúmeras mobilizações de caráter nacional como a de 26 de agosto passado.

Finalmente, antes de deixar a região andina, é importante mencionar que no Equador houve mobilizações contra o governo de Guillermo Lasso, que deu continuidade e aprofundou as medidas neoliberais e regressivas em matéria de direitos que Moreno já vinha avançando. No dia 11 de agosto, a Frente Unitária dos Trabalhadores (FUT) convocou, em conjunto com outras entidades, como a União Nacional dos Educadores (UNE), uma mobilização em repúdio às mudanças na legislação trabalhista apresentadas pelo governo, além do reajuste de preços .de combustíveis, medida que em 2019 desencadeou mobilizações de massa. Nas manifestações, participou o presidente da Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), Leônidas Iza, que estava acompanhado por uma delegação da Confederação. Por sua vez, Lasso ratificou o aumento do combustível e afirmou que os protestos visam desestabilizar a democracia e seu governo.