Debates estratégicos de Nuestra América #02
Observatório da América Latina e Caribe (OBSAL)

 

Por Marcelo Álvares de Lima Depieri, Carlos Mauricio Ferolla e José Seoane

A questão migratória é um dos problemas centrais que atravessam o continente americano e seus povos. Em particular nas últimas duas décadas, as dinâmicas migratórias tornaram-se mais complexas e intensificadas na região. Os países são transmissores, receptores e áreas de trânsito de fluxos de migrantes que são obrigados a se deslocar para territórios transfronteiriços para escapar das crises – social, econômica e/ou política – em busca de melhorar suas condições de vida. No entanto, as políticas anti-migratórias colocam essas vidas em risco, construindo a imagem dos migrantes como sujeitos “ilegais”, criminalizando-os e estigmatizando-os, transformando a crise migratória em uma crise humanitária em escala global.

Recentemente, a questão ganhou repercussão pública com o assassinato de 53 migrantes, encontrados mortos em um caminhão no Texas, Estados Unidos. Essa tragédia chamou a atenção da mídia por ter acontecido em território norte-americano, mas eventos com mortes de migrantes não são casos isolados. Todos os dias, pessoas de diferentes nacionalidades morrem como resultado das severas condições pelas quais passam para se deslocar de um país para outro. Morrem por afogamento, tentando atravessar rios profundos, ou, como no caso citado, sufocadas por causa do calor e da falta de hidratação em caminhões ou veículos ligados a grupos criminosos que fazem negócios com o contrabando de migrantes. A perda dessas vidas é resultado de uma dinâmica tanatológica do modo de produção capitalista e do endurecimento das políticas migratórias dos países que, ao mesmo tempo em que produzem milhares de refugiados nas fronteiras e cidades vizinhas, colocam em risco a vida de centenas de migrantes.

 

Neoliberalismo e migrações: a crise permanente 

À medida que o modo de produção capitalista foi avançando, se incrementaram as restrições à mobilidade humana mundialmente. Pedidos de passaportes, vistos, autorizações de trabalho, controles biométricos, muros e a militarização das fronteiras têm aumentado. Após cada crise do sistema capitalista, especialmente desde a crise manifestada na década de 1970, as condições materiais de vida das populações do Sul Global se deterioraram e a desigualdade entre os chamados países “centrais” e países “periféricos” se aprofundou. Em consequência disso, as migrações forçadas têm aumentando e os Estados, sobretudo do Norte, têm dado especial atenção ao controle dos fluxos migratórios. As políticas restritivas nesta área têm o objetivo de tornar os imigrantes uma força de trabalho precária, que atua para a redução do “custo” da mão de obra e o aumento dos lucros.

A crise do capitalismo financeiro, manifestada nos anos de 2007-2008, vem reduzindo o poder de ação dos Estados-nação na região. Os problemas econômicos se agravaram e as classes dominantes nacionais e o grande capital internacional impuseram seus projetos políticos – derrubando uma série de governos democraticamente eleitos na América Latina –e econômicos –  continuando a privatização e mercantilização de bens e serviços básicos. Quem mais sofreu com esse avanço foram  os excluídos: negros, indígenas, mulheres, camponeses, migrantes. Estes últimos chegam a novos países e têm que enfrentar o preconceito, a xenofobia e são transformados em bodes expiatórios para problemas econômicos e sociais.

Esta crise modificou as modalidades dos trânsitos migratórios Sul-Sul e Sul-Norte do continente e levou à criação de nova legislação, que ameaça a vida dos migrantes. Há mais de cinco anos, especialmente em alguns países da América do Sul, a política migratória estava orientada para uma agenda aberta, entendendo a migração como o direito das pessoas à mobilidade, com foco na perspectiva dos direitos humanos. A partir de 2015 e 2016, esse paradigma mudou e políticas restritivas foram implementadas, em sua maioria alinhadas à agenda anti-imigrante dos países do Norte Global.

 

Por que um caderno sobre migrações? 

Nos relatórios de conjuntura realizados pelo Observatório da América Latina e do Caribe (OBSAL), do Instituto Tricontinental, durante 2021 e o primeiro semestre de 2022, analisamos a crise migratória, exacerbada pelas consequências da pandemia da Covid-19. Entre as principais tendências das migrações latino-americanas e caribenhas encontramos a feminização das migrações e a maior presença de menores desacompanhados. Os maiores fluxos ocorrem nos postos fronteiriços mesoamericanos que se destinam à fronteira entre o México e os Estados Unidos e a região de Darién,  fronteira entre Panamá e Colômbia. A agenda migratória dos países da região e as tensões, imposições e conflitos decorrentes das políticas intervencionistas dos Estados Unidos foram outros dois fatores enfatizados nas análises. Além disso, observamos os processos de resistência e lutas concretas dos migrantes, que são acionados como forma de contestação da lógica de segurança vigente.

Nesse sentido, a migração é uma das formas de expressão da dependência na América Latina e no Caribe. Seu estudo ajuda a compreender a realidade concreta da região, funcionando como instrumento de transformação e libertação dos povos latino-americanos. Assim, a questão migratória é um dos debates urgentes e necessários em Nuestra América, mas também assume uma dimensão global, que atravessa todos os continentes. Por isso, realizamos este segundo caderno da coleção Debates Estratégicos de Nuestra América, entre o Instituto Tricontinental e o Observatório Internacional de Migrações e Direitos Humanos – Argos, no qual  buscamos analisar e refletir sobre a atualidade das diferentes formas das migrações, suas causas estruturais e conjunturais, os processos de organização e resistência migrante e as respostas dos Estados a essa questão.

Esta segunda edição está estruturada da seguinte forma: o primeiro texto é de Ana Gabriela Salazar, que investiga a relação entre capitalismo e migração. Nesse mesmo sentido, Laura Capote e Carlos Mauricio Ferolla, posteriormente, analisam as políticas anti-imigração dos países do Norte – particularmente da Europa e dos Estados Unidos – e como elas afetam os países do Sul Global e os povos que emigram à força. Como apontamos, uma das principais tendências dos processos migratórios contemporâneos, a feminização da migração é o tema desenvolvido no artigo de Leticia Garziglia, que também dá conta das novas abordagens nos estudos migratórios sob a perspectiva de gênero e interseccionalidade. Daymar Martes, por sua vez, analisa os principais fluxos migratórios que se dirigem ao norte e ao sul do continente americano. As migrações haitianas, colombianas e venezuelanas são colocadas sob a lupa, de forma crítica, reconhecendo suas principais causas e consequências.

O fenômeno das caravanas de migrantes, de grande repercussão política e midiática atualmente, é trabalhado por Adrienne Pine, que estabelece uma análise crítica da política imigratória estadunidense e suas consequências para os países do chamado “Triângulo do Norte” – El Salvador, Guatemala e Honduras. Ainda no texto de Pine são destacadas as formas de resistência organizada dos migrantes para enfrentar as políticas de segurança impostas pela Casa Branca. Por fim, na seção “Um botão de amostra”, Fernando Vicente Pietro entrevista Iber Mamani, que fala sobre o processo de resistência e luta das comunidades migrantes que vivem na Argentina, sob o Decreto de Necessidade e Urgência 70/17 do governo de Mauricio Macri, bem como sobre o processo de organização no âmbito do Movimento dos Trabalhadores Excluídos-MTE. Além disso, o caderno possui um mapa atualizado dos principais fluxos migratórios da América.

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Derrubando muros: Migrações, políticas e lutas migrantes na América