Observatório Forças da Desigualdade

 

Informe OBSAL #18 | 16 de maio a 10 desetembro de 2022

Observatório da América Latina e Caribe

Baixe aqui o relatório completo: Calendário eleitoral e violência política no marco da crise global

 

RESUMO

O Relatório #18 do OBSAL apresenta a análise da conjuntura dos países da América Latina e do Caribe entre maio e início de setembro de 2022. As presentes análises são fruto do acúmulo de debates que acontecem diariamente entre os membros do Observatório e também das conversas que mantemos com intelectuais e militantes de movimentos populares próximos ao Instituto Tricontinental.

A crise civilizatória em curso se aprofundou com a pandemia, com a guerra na Ucrânia e com uma nova crise econômica global — particularidade da análise deste relatório — que se manifestou mais claramente nos últimos quatro meses.

Se, por um lado, o segundo trimestre do ano se distingue do primeiro pela manifestação de uma ligeira tendência de queda dos preços dos alimentos em nível global — um alívio mínimo após o pico registrado nos meses anteriores —, por outro lado, a crise energética se aprofundou. De acordo com o Banco Mundial, o preço internacional do petróleo teve novo pico em junho, com alta de 12% em relação a abril; e também os valores do gás aumentaram  em 11% entre abril e julho.

Diante do aumento da inflação em escala global, os países vêm adotando uma política monetária contracionista, elevando suas taxas de juros, o que produz graves problemas econômicos. Os Estados Unidos, que no primeiro trimestre do ano apresentaram queda em seu PIB, repetiram a dose no segundo trimestre, entrando oficialmente em recessão técnica. A China vem passando por uma desaceleração significativa em sua economia. Apesar de não adotar medidas de contração monetária, o país continua com sua política de Covid zero, realizando confinamentos em cidades que apresentam sinais de que pode haver um descontrole da contaminação.

O impacto inflacionário e recessivo tanto no Norte como no Sul combina-se em Nuestra América com a promoção de novos projetos de exploração de hidrocarbonetos, particularmente as chamadas energias extremas, como hidrocarbonetos não convencionais e exploração offshore. Esses projetos apenas aprofundam as causas da crise socioambiental e climática cujos efeitos estão se espalhando e se intensificando por todo o planeta.

A tendência para o comércio multilateral não ligado aos EUA ganhou novos capítulos nos últimos meses. Aqui destacamos dois exemplos: a reunião virtual dos BRICS, no dia 24 de junho, que, além de contar com a participação dos membros oficiais, contou com a presença de representantes de possíveis novos membros, como é o caso da Argentina; e a reunião da CELAC, em agosto, em Buenos Aires, na qual, entre outras coisas discutidas, foram rejeitados os bloqueios dos EUA contra Cuba e Venezuela.

Ao mesmo tempo em que há sinais de avanço na descentralização da organização econômica e política pelos países da região, a interferência externa dos EUA se fez presente nos últimos meses. Na América do Sul, podemos destacar os casos da Argentina e do Paraguai e, na América Central, o de Honduras.

Entrando nas questões mais específicas das diferentes sub-regiões e nações, o Cono Sur está atravessado por disputas sociais e políticas. Nessa conjuntura, destaca-se um intenso calendário institucional e a aparição destacada de discursos de ódio promovidos por setores da extrema direita. Neste contexto, ocorreu o episódio de tentativa de assassinato de Cristina Fernández de Kirchner.

No caso do Chile, a derrota do “Apruebo” no Plebiscito Constituinte levanta sérias questões para o futuro, em um sistema político com múltiplas contradições, que está longe de superar a crise. Em termos mais gerais, o governo de Boric confirmou o seu perfil de moderação com alguns planos de continuidade ao que era feito no governo anterior. É o caso, por exemplo, da militarização da Patagônia diante do conflito territorial entre empresários privados e comunidades mapuche. No campo econômico, apesar de não ter havido medidas radicais em favor dos setores populares, o governo promoveu o aumento do salário mínimo e um programa social denominado “Chile Apoya“, com ajuda direta às famílias, com o objetivo de mitigar o aumento do custo de vida, e apoio às pequenas e médias empresas.

Desde o acordo assinado em março deste ano entre o FMI e o governo argentino, ratificado pelas duas câmaras legislativas, consolida-se o cogoverno com esse organismo financeiro internacional, sob controle dos EUA, o que dificulta a adoção das medidas socioeconômicas necessárias para o país, potencializando as crises políticas. Nesse quadro, aumentam as mobilizações de movimentos populares contrários ao governo, assim como integrantes da própria Frente de Todos, que apontam o descumprimento do contrato eleitoral de 2019.

Paralelamente, a perseguição legal contra Cristina Fernández de Kirchner gerou uma situação inesperada que pode impactar o cenário político. É a tentativa de assassinato contra a ex-presidenta, que ocorreu em 1º de setembro. Esse episódio é resultado de um processo geral de crescimento do assédio dos grandes meios de comunicação e das redes sociais, que inclui, além da estigmatização de figuras do campo popular, fake news e radicalização do discurso de direita.

No Brasil, os destaques foram: a relativa estabilidade nas pesquisas eleitorais para presidente da República; a implementação do chamado Pacote de bondades do governo federal; e o início da campanha eleitoral. Em relação ao projeto de destruição levado a cabo pelo governo Bolsonaro, destacaram-se ações para sufocar as instituições de defesa e órgãos de fiscalização na Amazônia. Em junho, ocorreram os chocantes assassinatos do indigenista Bruno e do jornalista Dom, revelando o atual tratamento à política ambiental no país.

 

No Paraguai, a qualificação de figuras-chave que estão no poder pelos EUA de “significativamente corruptas”, como o ex-presidente Horacio Cartés e o vice-presidente Hugo Velázquez, causou um abalo político, cujas águas parecem estar longe de se acalmar. No Uruguai, apesar de suas eleições estarem distantes, o cenário político ainda está ativo. Em um contexto de elevação do custo de vida, como em toda a região, o movimento sindical realizou uma greve no dia 15 de setembro.

Por sua vez, a região andina continua sendo caracterizada pela dinâmica permanente de uma conjuntura que vai desde triunfos e consolidações de processos de transformação até crises políticas e ameaças à democracia.

Um destaque para esta região foi a consolidação do triunfo do Pacto Histórico na Colômbia, com a saída de Iván Duque e a entrada de Gustavo Petro e Francia Márquez. O novo governo anunciou formalmente a reforma polícia e do Exército, com a intenção de reorientar a formação das Forças Armadas no que diz respeito aos direitos humanos e suas funções originais de segurança e defesa, e passar de um conceito de guerra para um de Paz. Além disso, no campo diplomático, anunciou o restabelecimento das relações com o governo da Venezuela, suspensas desde 2019.

A Venezuela, por sua vez, apesar da continuidade dos bloqueios econômicos, vem se destacando em termos de crescimento econômico e abastecimento interno. O programa Misión Agrovenezuela fez com que 80% dos alimentos da mesa do venezuelano fossem produzidos internamente. Antes do programa, 90% dos alimentos consumidos eram importados.

O Equador presenciou uma série de protestos contra a situação socioeconômica do país. O governo de Guillermo Lasso respondeu com arbitrariedade e violência, o que produziu efeito reverso, fazendo com que os protestos aumentassem. Após 18 dias de mobilizações, foi assinado o “Ato pela Paz”, em que foi acordado a redução do preço do combustível e a reforma do decreto 151 para proibir a atividade de mineração em áreas protegidas.

A instabilidade política continua no Peru. O processo contra o governo de Pedro Castillo ganhou um novo capítulo, que inclui a já conhecida ferramenta do lawfare. Por outro lado, o presidente avançou em uma série de encontros com movimentos sociais buscando consolidar o apoio dos setores que o acompanharam nas eleições e que denunciaram nos meses em que esteve no cargo a distância que o presidente colocou entre as prioridades do governo e a agenda dos movimentos. Dessa forma, os movimentos esperam promover, enfim, o projeto da Constituinte.

No caso da Bolívia, apesar das tentativas de golpe vindas da cidade de Santa Cruz, os últimos meses foram de reafirmação de um modelo econômico e social popular. Um exemplo disso foi a concessão de 150 mil títulos de propriedade rural a camponeses, indígenas e produtores agrícolas ao longo de 2022.

A região do Caribe Insular caracterizou-se pela diversidade de fenômenos, resultado das diferenças na constituição política de cada país. Do socialismo cubano, passando pelo Haiti, às ilhas que são colônias formais da Inglaterra. O destaque no Haiti continua sendo o cenário da violência. Entre janeiro e junho deste ano, foram 557 mortes violentas na região metropolitana de Porto Príncipe, em comparação a 340 casos no mesmo período de 2021. Essa situação continuou nos meses de julho e agosto. Em agosto, um ex-senador, Yvon Buissereth, que trabalhava para o Ministério do Trabalho e Assuntos Sociais, foi queimado vivo junto com seu sobrinho em uma área próxima ao bairro onde morava o ex-presidente assassinado. O aumento da violência também limita o funcionamento dos serviços de saúde, serviços de emergência e fornecimento de combustível, água potável e alimentos.

O governo da República Dominicana continua dando as costas para o Haiti, enquanto avança com a ideia de construir um muro na fronteira entre os dois países, para o qual estão sendo desapropriadas terras próximas à fronteira.

Em Cuba, nesses quatro meses, houve mudanças relacionadas à atualização das leis derivadas da Constituição de 2019: em maio foram aprovados o novo Código Penal e a nova Lei de Execução Penal; em agosto foi implementado um novo sistema de câmbio e o mercado foi aberto ao investimento estrangeiro; e em setembro será realizado o referendo para votação do novo Código da Família. Ao mesmo tempo, os cidadãos continuam a sofrer com os apagões intermitentes, que desencadearam os protestos em julho de 2021. No início de agosto, a notícia que percorreu o continente desde a ilha foi o incêndio na zona industrial de Matanzas, a oitenta quilômetros de Havana, como resultado de um raio em um tanque de combustível, que causou explosões e se espalhou para outros três tanques.

Por sua vez, no dia 6 de agosto, a Jamaica comemorou 60 anos de independência e, como havíamos antecipado em relatórios anteriores, mais uma vez expressou seu desejo de se tornar uma República. Eles planejam fazê-lo antes das eleições gerais de 2025. Em junho, o Comitê de Descolonização das Nações Unidas (ONU) aprovou uma resolução para reconhecer que Porto Rico tem o direito à autodeterminação e independência. Resoluções como essa são aprovadas há meio século e essa é a de número 40.

A crise migratória na Mesoamérica é o problema mais urgente que esta sub-região atravessa. Em junho, no estado do Texas, Estados Unidos, os corpos de 53 migrantes foram encontrados dentro de um caminhão, mortos pelo confinamento. Mesmo assim, a migração irregular cresceu dramaticamente de 2021 a 2022.

No Panamá, a situação social crítica levou a intensos dias de luta contra as políticas do presidente Laurentino Cortizo. Dentre essas medidas de luta, destaca-se a greve geral dos professores, que durou 28 dias, sendo uma das mais importantes em décadas. As organizações sociais, sindicais, camponesas, indígenas e estudantis da Guatemala estão em permanente mobilização diante dos abusos políticos, judiciais e sociais perpetrados pelo presidente Alejando Giammattei. A resposta do governo às demandas sociais é mais repressão e violação dos direitos humanos.

Em El Salvador, o que se destacou no período foi a forma repressiva com que o governo de Nayib Bukele responde aos conflitos entre gangues, aprofundando o cenário de violência no país. Em 5 de junho, no México, foram realizadas eleições em seis dos 32 estados. O partido do governo, MORENA, e aliados prevaleceram em quatro deles. Essas eleições fortalecem o projeto de governo da AMLO. Além disso, o presidente anunciou a criação da estatal Lithium para o México.

Em Honduras, o dia 27 de julho marcou o aniversário de seis meses do governo de Xiomara Castro. A presidenta implementou importantes medidas econômicas para os setores populares. Por outro lado, as classes dominantes e os EUA começaram a pressionar e aguçar as tensões dentro do governo.

De um modo geral, o que podemos apontar, como perspectiva, é que são muitos os desafios que se impõem aos países da região. O aprofundamento da crise de civilização, com uma crise econômica, tem tudo para prejudicar as classes trabalhadoras e os mais pobres. Para que isso não aconteça, é fundamental a articulação entre governos populares e movimentos sociais. Caso contrário, esses governos permanecerão fracos sob a pressão das classes dominantes e serão privados de atender às demandas dos mais necessitados da região. Sem uma base política sólida, os governos podem ficar vulneráveis às desestabilizações, que podem vir de diversas formas: desde lawfare até tentativas de golpes de Estado.

O panorama político é atravessado por uma fratura social e uma polarização política, potencializadas por meios de comunicação tradicionais e não tradicionais, como as mídias sociais. A construção desse cenário é propícia para a ascensão ou sustentação de grupos conservadores no poder, que, muitas vezes, se apresentam como “libertários”.

É um fenômeno que cresce na medida em que há interesses ​​em articular globalmente o enfraquecimento da esquerda e o fortalecimento da direita. Destacam-se, nesta tarefa, figuras como Steve Bannon, do mundo anglo-saxão, e formações como a Fundación Libertad, do mundo “hispanista”. O principal terreno fértil para o crescimento desse tipo de fenômeno são as demandas sociais não resolvidas. É com base no descontentamento que se desenvolve o crescimento da agitação e da violência horizontal, que num quadro de individualismo e de “cada um por si” se caractrtiza muitas vezes numa chave xenófoba e reacionária. Diante desse panorama, as possibilidades de refundação dos processos em direção à justiça social estão vinculadas às organizações emergentes que constroem lógicas de igualdade, solidariedade e liberdade em meio à mesquinha barbárie cotidiana. Na organização que a sociedade se dá, todos os dias, reside a aspiração por uma vida melhor. Ali se desenvolvem as práticas que são condição de possibilidade para o surgimento e consolidação de projetos políticos de e para a maioria da população.

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