Observatório do Capitalismo Contemporâneo | Financeirização na Educação

 

Novembro / Dezembro de 2020

 

 

Resumo

A crise pela qual passa a educação brasileira não tem precedentes históricos. A pandemia da Covid-19 agravou problemas estruturais que já existiam, a exemplo do racismo. Apesar do agravamento da pandemia, os governos continuam insistindo em reabrir as escolas. Enquanto isso, os recursos são cada vez mais escassos. O que se vê são sucessivos cortes no orçamento deste ano e perspectivas de redução do orçamento do ano que vem. A regulamentação do Fundeb está atrasada e o público beneficiado pelo Fies é o menor dos últimos onze anos. Já a preparação do Enem, que foi adiado para janeiro, continua atrasada e envolve sérios riscos à saúde dos participantes. Enquanto isto, o governo aposta em implementar as escolas cívico-militares e as instituições bancárias jogam suas fichas na educação financeira. Para o capital, a crise produz novas oportunidades. Neste caso, o que se vê é o emprego de velhos e novos métodos, como o aumento de mensalidades, a concentração da propriedade em poucos grupos, a aposta na área de saúde e o investimento em grandes plataformas digitais de ensino.

 

Pedagogia da negligência

O último mês foi marcado pelo agravamento da pandemia no Brasil. Especialistas alertam que o aumento de casos e mortes aliado ao afrouxamento das medidas de distanciamento social podem fazer com que a segunda onda seja ainda pior do que a primeira. Apesar disso, de modo negligente e até criminoso, a iniciativa privada e agentes do Estado insistem em continuar o processo de reabertura das escolas.

Contrariando qualquer dose de bom-senso, tanto Bolsonaro quanto o ministro da Educação Milton Ribeiro reiteraram a orientação de retorno imediato das atividades presenciais. Como forma de pressão, o Ministério da Educação (MEC) anunciou que pretende alterar os critérios do Conselho Nacional da Educação e desautorizar a continuidade das aulas remotas em 2021. A última decisão absurda foi a portaria que definia o retorno das aulas nas instituições federais para janeiro de 2021. Depois de diversas críticas contra a medida, o MEC resolveu adiar a abertura para início de março.

Mas os atos de negligência não vêm apenas do governo federal. Em São Paulo, o sindicato das escolas particulares entrou na justiça para garantir a volta às aulas do ensino infantil e médio. No Distrito Federal, o Ministério Público pede a retomada das atividades nas escolas públicas em todos os níveis de ensino. Em Niterói (RJ), a Justiça deu liminar favorável ao retorno das aulas do ensino infantil e fundamental em escolas públicas e privadas. Outras pressões vêm de prefeitos e governadores, que agora mudam os critérios das “bandeiras” para não fechar novamente os estabelecimentos comerciais e de ensino. Este é o caso do do Rio Grande do Sul, onde o governo passou a autorizar as aulas presenciais em municípios com bandeira vermelha. E como se não fosse suficiente, uma rede de pediatras lançou recentemente uma carta de apoio à reabertura das escolas, argumentando que as atividades são seguras para crianças e adolescentes. A afirmação evidentemente contraria a realidade.

 

A onda

Desde a reabertura, pelo menos 50 pessoas já foram infectadas no ambiente escolar no estado de São Paulo; na capital paulista há também registro de casos de contaminação de estudantes e funcionários em escolas particulares. Ao menos três escolas tiveram que fechar as portas temporariamente para evitar que a doença se espalhasse. Com a chegada do final de ano, as festas de formatura também têm preocupado as direções. Em Pernambuco, 57 escolas já registraram casos de Covid-19. Já no Rio de Janeiro, com a intensificação da pandemia, o governo estadual decidiu suspender temporariamente as aulas presenciais na rede pública. Ou seja, todos os dados evidenciam que não existe a suposta segurança para manter as aulas presenciais.

Neste contexto, a volta às aulas segue ocorrendo desordenadamente e sem critérios pedagógicos coerentes. Como ressalta a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, além dos altos índices de contaminação, a verdade é que as salas de aula continuam vazias porque estudantes e familiares preferem não correr o risco de se contaminar.

 

Racismo escolar

O dia da consciência negra é um importante marco na luta contra o racismo na sociedade brasileira. Além da violência explícita, como o brutal assassinato de João Alberto Silveira Freitas no Carrefour, outros processos menos chocantes, incluindo o acesso desigual à educação, contribuem para esta condição. Estudo do Ipea mostra que a políticas de cotas têm resultados positivos para diminuir o abismo entre brancos e negros no acesso ao ensino superior. Apesar disso, os negros ainda são minoria nas universidades.

Nas instituições privadas, o contraste é ainda mais grave. Levantamento da Folha aponta que em São Paulo apenas cerca de 10% dos estudantes de escolas particulares são negros. Mas o racismo não fica restrito à questão do acesso. São comuns no ambiente escolar, especialmente em instituições privadas, situações de aberta discriminação, como relatam e denunciam famílias de estudantes.

Em entrevista à Agência Brasil, o historiador Marcus Vinicius de Freitas Rosa ressalta a importância de políticas de permanência para que os estudantes negros consigam chegar a obter um diploma universitário. As desigualdades começam cedo, desde o ensino fundamental. O desempenho de crianças brancas e pretas nos anos iniciais revela uma grave desigualdade no processo de aprendizagem. Ao chegar ao quinto ano, crianças autodeclaradas pretas têm em média um desempenho muito abaixo das autodeclaradas brancas em português e matemática, o que equivale a uma defasagem de 2 anos de ensino.

Do ponto de vista pedagógico, 18 anos após sua aprovação no Congresso, continua vigente o desafio de implementar a lei 10.639, que prevê o ensino de história da África e da cultura afro-brasileira. Isto passa também pelo esforço de reconstruir a biografia e a imagem de herois negros, muitas vezes “branqueados” pelos contemporâneos, a exemplo de Machado de Assis e, mais recentemente, de Carlos Marighella que, na visão do presidente da Fundação Palmares, “era branco”.

 

Mãos de tesoura

Além de ser acusado de homofobia, o atual ministro da Educação peca por descaso e incompetência. Afinal, mesmo com dinheiro em caixa, até agosto o MEC tinha usado apenas 6% dos R$ 3,8 bilhões previstos para suas despesas discricionárias, que são recursos livres para uso do ministério. Uma das áreas afetadas foi o Programa Educação Conectada, voltado para fomentar a rede de internet nas escolas, que não havia recebido nenhum recurso até aquela data. Na outra ponta, o Banco Mundial liberou uma parcela de US$ 10 milhões destinados à implantação do novo ensino médio, especialmente para as escolas de tempo integral. O recurso faz parte de um acordo firmado entre o governo brasileiro e o Banco Mundial em 2018, mas é um valor ínfimo perto das necessidades da educação brasileira.

Para além da incompetência, o principal inimigo da educação pública é a lógica neoliberal materializada na absurda cláusula do teto de gastos. Tentando minimizar os cortes para o ano que vem, diversas entidades ligadas ao ensino superior público foram ao Congresso pressionar o presidente Rodrigo Maia para que coloque em votação a PEC 24/2019, que exclui do teto de gastos os recursos destinados às universidades públicas e institutos federais. Afinal, a proposta orçamentária do governo para 2021 prevê que as despesas discricionárias da educação devem reduzir 17%, além de um corte de 18% no orçamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Vale lembrar ainda que foram retirados cerca de R$ 1,4 bilhão do orçamento da educação deste ano, destinados à realização de obras que até agora não saíram do papel. A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) denuncia também o uso de uma portaria interministerial para reduzir, além do mínimo previsto no Fundeb, os recursos destinados à educação.

Enquanto isso, somente 16% dos professores consideram que a internet das escolas onde trabalham tem a velocidade adequada. E devem esperar mais um pouco, pois o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações aprovado pelo Senado tem um prazo de até 2024 para instalar banda larga em todas as escolas.

 

Sem fundos

Um dos grandes desafios da educação pública é a implementação do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). Aprovado em agosto deste ano devido à mobilização da sociedade civil, o novo Fundo aguarda regulamentação no Congresso. A expectativa é que isso seja feito ainda este ano. Caso não seja votado no Congresso, o novo Fundeb deve ser regulamentado por um decreto presidencial até 31 de dezembro de 2020 e poderá ser completamente descaracterizado.O Fundeb é um importante mecanismo de financiamento e de combate às desigualdades na educação.

Porém, a sua regulamentação é objeto de disputa sobre a possibilidade de uso dos recursos pela iniciativa privada, que pode ser institucionalizada por meio de dois mecanismos: repasse de recursos para entidades filantrópicas, comunitárias e confessionais conveniadas – quando na falta de vagas em instituições públicas na educação infantil, especial e na educação do campo – e por meio de repasse para entidades credenciadas no sistema S, no caso do ensino técnico.

Já no ensino superior, um importante mecanismo de financiamento do ensino privado sofreu uma profunda crise este ano. Trata-se do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies). O quadro de crise econômica aliado a mudanças nas regras de acesso ao Fundo em 2015, que não garantem mais o financiamento integral dos cursos, gerou uma enorme redução do número de beneficiados em 2020. Além da impossibilidade de contrair novas dívidas, a pesquisa TIC Covid-19 aponta que uma das principais causas da evasão de jovens do ambiente escolar é a procura por emprego. No terceiro trimestre deste ano, a taxa de desemprego entre os jovens chegou a mais de 30%. Tudo isso ajuda a explicar porque a adesão ao Fies foi tão baixa. Foram 47 mil contratos assinados este ano, um número muito menor do que as 100 mil vagas anunciadas originalmente pelo governo. É o menor número de estudantes financiados pelo Fies dos últimos 11 anos. O governo estendeu o prazo de inscrição deste semestre tentando minimizar esta redução.

 

Enem

O Enem de 2020 foi adiado para o ano que vem e deve ocorrer nos dias 17 e 24 de janeiro de 2021. Porém, muitas coisas ainda seguem indefinidas. Com mais de 5 milhões de inscritos e faltando menos de dois meses para a prova, somente agora o Inep estabeleceu um conjunto de regras e protocolos para evitar grandes aglomerações. As medidas incluem a lotação de 50% das salas de aula, salas reservadas para indivíduos do grupo de risco da Covid-19 e a possibilidade de pessoas contaminadas com doenças infecto-contagiosas solicitarem a realização da prova em outra data.

Apesar deste cenário, a verdade é que frente ao agravamento da pandemia no Brasil, os riscos à saúde que um evento desta magnitude implicam são incontornáveis. Por isso, o presidente do Inep, Camilo Mussi, não descarta a possibilidade de um novo adiamento do Enem “se acontecer uma segunda onda da Covid-19”. Como se ela já não estivesse acontecendo.

Será a primeira vez que o Enem terá uma modalidade digital. Neste caso, o atraso é ainda maior, pois o Inep ainda não fechou contrato para a realização da prova. Este atraso traz riscos quanto à segurança do sistema. Uma das preocupações é a possibilidade de ataques de hackers ou algum tipo de vazamento de dados. O risco é real, tendo em vista os ataques contra sistemas de várias instituições de Estado nos últimos meses.

Para completar as incertezas e dificuldades, o MEC ainda fez uma lambança no calendário do ano que vem. Pelos prazos apresentados pelo governo, as inscrições no Fies e no Prouni devem ocorrer em janeiro, portanto antes do resultado do Enem, que só deve sair em março, de forma que os estudantes que fizeram o Enem não poderão usar as notas para acessar estas políticas de inclusão. A União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) manifestou sua contrariedade ao calendário e solicitou com urgência uma reunião com o MEC.

 

Vanguarda do atraso

Duas notícias mostram o espírito dos tempos que paira sobre a educação brasileira. Em primeiro lugar, o STF autorizou a remarcação da data de concursos públicos por motivos religiosos. A discussão envolve a participação dos adventistas nas etapas das seleções, cuja crença estabelece que o dia de sábado deve ser guardado, ou seja, não deve ser dedicado a atividades como trabalho, entre outras.

Em segundo lugar, o MEC insiste em regulamentar o ensino domiciliar no Brasil, demanda que tem sido pautada por grupos religiosos. A tentativa de reservar uma vaga no Conselho Nacional de Educação (CNE) para um representante desta pauta não foi aprovada, mas o governo tem aliados em outras instituições. No Distrito Federal, por exemplo, o ensino domiciliar foi aprovado recentemente na Câmara.

A “menina dos olhos” do governo, porém, são as escolas cívico-militares. A meta é criar pelo menos 216 instituições deste tipo no Brasil até 2023. O MEC segue investindo na capacitação dos coordenadores regionais do projeto. Outra iniciativa é uma parceria entre o governo brasileiro e o colombiano para o ensino de língua espanhola nestas instituições. O MEC começou a fazer visitas às escolas já implementadas, incluindo Natal (RN) e Manaus (AM).

A outra pauta que avança é a educação financeira, uma espécie de aparelho ideológico controlado pelas grandes instituições do mercado financeiro. No Brasil, o projeto é liderado pelo presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, em parceria com a Federação Brasileira de Bancos (Febraban). No final de novembro ocorreu a 7ª semana de educação financeira, cujo tema foi “Resiliência financeira: como atravessar a crise?”. Agora, a meta do governo é elaborar uma plataforma de educação financeira que deve ser lançada em outubro de 2021.

 

Velho e novos métodos

O setor educacional privado está se adaptando à crise atual com velhos e novos métodos. O principal problema é a redução do número de matrículas que já produz perdas no setor. Isto tem afetado grupos como o Ser Educacional e a Cogna, que acumularam prejuízos no terceiro trimestre. Já o Yduqs, teve uma redução nas suas margens de lucro em relação ao ano anterior, mas saiu-se melhor do que seus concorrentes e passou à frente da Cogna, tornando-se o maior grupo educacional privado do país.

Contraditoriamente, para o setor privado a atual crise educacional cria oportunidades futuras. A aposta é que os jovens que adiaram o sonho de entrar na universidade este ano retornarão em 2021. Assim, as instituições privadas vislumbram que haverá um aumento na procura de cursos no ensino superior em virtude da demanda reprimida que se formou esse ano. O aumento das mensalidades promete ser um dos eixos de conflito na educação brasileira no próximo ano. É o que já tem feito a Ânima, que além do aumento de matrículas, obteve um aumento do valor pago por estudante. Já o Yduqs recorre na Justiça contra uma lei que exigia a redução de 30% nas mensalidades no Rio de Janeiro e que, segundo o grupo, lhe causou prejuízos. Do lado do Judiciário, o ministro do STF Alexandre de Moraes entende que a redução de mensalidades em razão da pandemia é inconstitucional.

A crise também produz concentração. O LIT Capital, por exemplo, comprou recentemente o Colégio Palmares e a Escola Equilíbrio, duas instituições tradicionais de São Paulo. A operação mais recente, que pode mudar a geopolítica do setor educacional privado, é a compra da Laurate do Brasil pela Ânima por um valor previsto de R$ 4,4 bilhões. Depois de solucionado o litígio com seus concorrentes, a operação aguarda avaliação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). No entanto, uma ação civil pública ajuizada no Ministério Público Federal pode complicar a situação da Laurate. A denúncia envolve uma série de fraudes ocorridas entre 2019 e 2020 para garantir o credenciamento de seus cursos no MEC. O Ser Educacional também vislumbra novas aquisições nos próximos meses, dentre elas o Centro Universitário Guararapes, Faculdade Internacional da Paraíba, UniRitter e Fadergs.

Uma das inovações destes grupos para enfrentar a crise é o investimento na área de ensino em saúde. A compra da Laurate vai permitir à Ânima ampliar as vagas em cursos de medicina de 873 para 1.770. Além disso, na mesma linha de investimentos, o grupo comprou recentemente a startup MedRoom, que desenvolve tecnologia de realidade virtual e realidade aumentada, aplicada ao ensino de medicina. Outra área que deve ter uma expansão é o investimento em grandes plataformas de ensino. Esta é a aposta do Ser Educacional, que fez recentemente uma parceria com o Google para compartilhar conteúdos e oferecer certificação do Google Cloud Architect para seus alunos.