Informe OBSAL #15/Parte I

Observatório da Conjuntura na América Latina e no Caribe

 

O boletim #15 do Observatório da Conjuntura na América Latina e no Caribe (Obsal) analisa os principais acontecimentos na região nos meses de setembro e outubro de 2021, marcados por uma notável redução dos casos de Covid-19, em decorrência do avanço da vacinação. Alguns países, no entanto, experimentam novos aumentos de casos, como Uruguai, Chile e Bolívia, e no Caribe insular vários se encontram afetados por picos, em decorrência das novas variantes e dos baixos níveis de vacinação. A exceção nessa região é Cuba, que se tornou o país da América Latina e do Caribe com o maior percentual da população vacinada, além de possuir suas próprias vacinas.

Nesta primeira de três partes do relatório #15 da OBSAL, analisamos que a relativa melhoria dos indicadores da pandemia tornou os seus efeitos sociais mais visíveis em termos do aprofundamento dramático da desigualdade e, consequentemente, da pobreza e da indigência. A Oxfam alertou que as mortes por fome já superam as causadas pela Covid-19.

Outro episódio deste período foi a divulgação dos Pandora Papers, que afetou vários poderosos no continente, incluindo os nomes de três presidentes em exercício (Lasso, Piñera e Abinader) e 11 ex-presidentes, além de funcionários de segunda linha e um grande número de empresários, geralmente invisíveis.

Além destes pontos, examinamos ainda a rica agenda de cúpulas, mobilizações e disputas em nível regional e os desdobramentos da crise socioambiental em Nuestra América, em paralelo a relaização da VI Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) no México.

 

Resumo

Os meses de setembro e outubro na América Latina e Caribe foram marcados por uma notável redução dos casos de Covid-19, em decorrência do avanço da vacinação. Alguns países, no entanto, experimentam novos aumentos de casos, como Uruguai, Chile e Bolívia, e no Caribe insular vários se encontram afetados por picos, em decorrência das novas variantes e dos baixos níveis de vacinação. A exceção nessa região é Cuba, que se tornou o país da América Latina e do Caribe com o maior percentual da população vacinada, além de possuir suas próprias vacinas.

Essa melhora geral no contexto da pandemia resultou em uma maior visibilidade dos problemas sociais e econômicos, o que também se expressou no aumento das mobilizações. Nesse sentido, a Oxfam alertou que as mortes por fome já superam as causadas pela Covid-19.

Um fato que afetou vários poderosos no continente foi a divulgação dos Pandora Papers, nos quais aparecem os nomes de três presidentes em exercício (Lasso, Piñera e Abinader) e 11 ex-presidentes, além de funcionários de segunda linha e um grande número de empresários, geralmente invisíveis. Destaca-se o lugar da Argentina em número de beneficiários de empresas offshore – é o terceiro país, depois apenas de Rússia e Inglaterra -, acompanhada de Brasil e Venezuela na lista. A América Latina  perde mais de 40 bilhões de dólares em impostos devido a esse tipo de estrutura offshore e 27% do patrimônio financeiro da região é desviado para esse tipo de empresa.

Em termos de integração, foi realizada a sexta Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), que se reuniu novamente após quatro anos. Apesar de algumas divergências, foi possível emitir uma posição comum contra o bloqueio a Cuba. Além disso, acordou-se em avançar numa leitura unitária em relação à Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a COP 26, que começou em 31 de outubro, e começou a construir um plano de autossuficiência em saúde. As políticas coloniais no continente também foram rejeitadas.

Em termos de mobilizações em nível continental, destacaram-se as do bicentenário de alguns países mesoamericanos, em 15 de setembro; a Marcha Global pelo Clima, no dia 24; o Dia Internacional pelo Direito ao Aborto, no dia 28 (com os consequentes avanços regulatórios no Chile, México e Colômbia) e os realizados por volta de 12 de outubro.

Se percorrermos os acontecimentos políticos mais relevantes, veremos que a crise de governança predominou nos Andes, afetando principalmente o Peru, onde a maioria dos ministros mais importantes que assumiram desde a presidência de Castillo já renunciaram. Agora está se aproximando uma ruptura entre as figuras de Vladimir Cerrón, dirigente do Perú Libre, e do próprio presidente. Nesse quadro, a direita segue na ofensiva, buscando desestabilizar o novo governo. Por sua vez, Castillo anunciou a Segunda Reforma Agrária.

O governo boliviano, um ano após a posse, também está sob ameaça dos conspiradores golpistas de direita, expressa na greve e mobilização nacional de 11 de outubro, cuja narrativa foi contraposta à do “Wiphalazo” até o momento.

No Equador, as mobilizações têm sido contra a alta do preço dos combustíveis e o chamado “pacote” econômico, por meio do qual o presidente Lasso pretende iniciar a implementação de medidas de ajuste de acordo com as exigências do FMI. Além disso, há uma onda de violência, que inclui vários assassinatos e agrava o que vinha ocorrendo nas prisões. Diante disso, o presidente decretou estado de exceção por 60 dias.

Já na Colômbia foi aprovada a reforma tributária que provocou a grande greve e as mobilizações de abril, maio e junho deste ano. A medida beneficia as instituições financeiras e aumenta o nível de impostos no setor de pequenas e médias empresas.

Por fim, na Venezuela se aproximam as eleições municipais, que receberão missões de observação da União Européia e da ONU, enquanto a mesa de diálogo com a oposição, que vinha ocorrendo no México, foi suspensa devido à extradição ilegal do diplomata Alex Saab do Cabo Verde para os Estados Unidos.

No Brasil, as denúncias contra  Bolsonaro e o grupo empresarial Prevent Senior ganharam relevância na comissão parlamentar que investiga as políticas contra a Covid-19. A CPI indiciou o presidente por nove crimes. Além disso, a situação socioeconômica vem se agravando e se manifestando no cotidiano. Nesse cenário de gravidade socioeconômica, Bolsonaro encerra o Programa Bolsa Família e prepara outro programa para substituí-lo.

Argentina e Chile são marcados por cenários de campanha eleitoral. No primeiro, o dado que saltou foi a derrota, nas primárias para as legislativas, da Frente de Todos, atualmente no governo. Esse é um indicador do descontentamento com a crise socioeconômica que atravessa o país, como outros do continente, e que é agravada pela grande dívida com o FMI, contraída pelo governo de Mauricio Macri.

Por sua vez, no Chile, no final de outubro, o candidato presidencial com os melhores números nas pesquisas é José Antonio Kast, de extrema-direita, seguido por Gabriel Boric e depois (de longe) Yasna Provoste. Além disso, o país vive um surto de casos de Covid-19, a Constituinte continua em sessões e houve avanços legislativos em relação à descriminalização do aborto. Em ambos os lados da Cordilheira, o conflito com as comunidades Mapuche se agravou.

O Paraguai também foi marcado por um contexto eleitoral, no caso municipal, em que o oficialista Partido Colorado – ANR triunfou na maioria das cidades. Mas também houve mobilizações no país. A primeira, contra a chamada “lei contra invasões”, e a segunda em defesa da soberania da hidrelétrica de Itaipu.

Da mesma forma, no Uruguai, o agravamento da situação econômica teve sua correlação com as lutas sociais, com uma greve geral acompanhada de uma massiva mobilização realizada no dia 15 de setembro pela PIT-CNT, a central sindical unitária, e pelo movimento cooperativo, o movimento estudantil e organizações sociais. Além disso, diversos setores do campo social também se aglutinam contra a Lei de Urgente Consideração, frente ao futuro referendo.

No que diz respeito ao Caribe insular, o foco está na crise dos migrantes haitianos e também na crise interna daquele país, que inclui uma greve contra o  aumento da violência e uma nova suspensão das eleições.

As Bahamas também se inserem no panorama eleitoral do continente, com uma mudança de governantes que, a princípio, não parece significar uma mudança drástica no tipo de política; enquanto Barbados finalmente votou para se tornar uma República, deixando assim de ser uma monarquia constitucional. Em Antígua e Barbuda, há uma polêmica sobre a intenção do governo de instalar Zonas Econômicas Especiais, onde poderiam estar localizadas empresas com benefícios fiscais. Em Porto Rico, destaca-se a série de protestos em relação à privatização do sistema elétrico e à dívida externa. As três alternativas para resolver a situação territorial da ilha estão, por enquanto, travadas no Congresso dos Estados Unidos.

Destaca-se também a situação em Cuba nas próximas semanas. Enquanto o governo – já mais calmo em relação à pandemia – estava focado na recuperação e no ordenamento da economia, foi anunciada uma nova marcha de oposição que acontecerá no dia 15 de novembro e que a mídia internacional vem cobrindo há um mês antes do evento.

Na Mesoamérica, sobressaem a crise migratória e o bicentenário da independência dos países. O primeiro com dois focos: a fronteira do México com os Estados Unidos (com um novo acordo firmado entre os dois governos, cujos detalhes serão conhecidos em dezembro) e a do Panamá com a Colômbia. Quanto ao bicentenário, destacaram-se as mobilizações que denunciam a dependência que os países ainda têm em relação às potências oligárquicas locais e ao Norte global.

No México, o aborto foi descriminalizado e o Estado está realizando uma iniciativa para controlar 54% do sistema elétrico. Em El Salvador, foi aprovada a reeleição presidencial, o que permite a Bukele concorrer e continuar seu mandato, enquanto em setembro e outubro ocorreram várias mobilizações que expressaram resistência às suas ambições de poder e às suas políticas.

Na Guatemala, onde organizações indígenas e populares também se mobilizaram em 15 de setembro, a população maia Q’eqchi’ está atualmente resistindo à extração de minério  por uma empresa de capital russo.

Honduras vive um processo de luta contra as ZEDE e a campanha para as eleições presidenciais de 28 de novembro. O dado a ser destacado  é que foi anunciada uma aliança entre Xiomara Castro (Libre) e Salvador Nasralla (Partido Salvador de Honduras, aliança do UNOH, que declinou sua candidatura), à qual aderiu o Partido Inovação Unidade. Desta forma, Castro fortalece sua candidatura, em um cenário em que a aliança de setores progressistas pode recuperar o governo do qual foram expulsos com o golpe de 2009.

A Nicarágua também tem eleições presidenciais este mês (em 7 de novembro), no contexto de uma situação social e de saúde complicada devido a processos judiciais a líderes da oposição. As urnas anunciam uma provável vitória e reeleição de Ortega-Murillo.

Também no Panamá houve mobilizações; nesse caso, contra a reforma eleitoral e a corrupção. O Congresso aprovou a Lei 544 para reformar o código eleitoral, acusado de reduzir a transparência. No entanto, foi parcialmente contestado pelo presidente e devolvido ao Poder Legislativo.

O continente ameaça derrotar uma pandemia que parece nunca ter sido superada. E, nesse quadro, as crises econômicas e sociais – produto das desigualdades anteriores, mas agravadas pela paralisia da crise sanitária – se manifestam desde o Cabo de los Hornos até o Rio Bravo. Em alguns casos, os cenários eleitorais mostram-se promissores para canalizar as demandas populares. Mas sempre será necessário continuar fortalecendo a luta, a resistência e a articulação dos povos para que qualquer mudança seja possível.

 

Depois da pandemia: desigualdade global e internacionalismo popular

Vacinas e a onda que não veio (ainda?)

Com pelo menos 46.118.000 infecções e 1.523.000 mortes no final de outubro, a América Latina e o Caribe continuam a ser a região globalmente mais afetada pela Covid-19 (concentrando 33% da mortalidade mundial e apenas  8,4% da população). Nesse cenário, porém, os anúncios da chegada de uma nova onda vinculada à expansão da cepa delta não ocorreu na maioria dos países. Assim, o panorama regional atual é em geral  muito mais positivo do que o que foi delineado em nosso último relatório.  Desde o último pico em meados de setembro, o número de infectados e mortos tem diminuído e atingiram, no final de outubro, os mesmos de maio de 2020. Essa tendência, mesmo com níveis muito baixos, parece estar se revertendo nas últimas semanas para alguns países (Chile e Bolívia, entre outros). Mesmo alguns na região do Caribe (como Barbados) estão em um novo pico da pandemia.

Certamente, a relativa contenção da variante delta está ligada ao avanço das campanhas de vacinação, embora seu alcance continue apresentando profundas desigualdades em nível regional. Enquanto o Haiti tinha, no final de outubro, apenas 0,45% da população com uma dose e 0,31% com o esquema completo, o Chile e o Uruguai registravam, na mesma data, 86% e 79% com uma dose, e 79% e 75% com duas, respectivamente. Nesse ranking são seguidos por Argentina e Brasil (com 75% e 74,39%; 56,91% e 55,27% respectivamente); mas é Cuba que bate os recordes. Após o pico da pandemia em setembro, as infecções naquele país diminuíram com o avanço da vacinação, que hoje chega a 87,37% e 63,78%. A experiência cubana é incomparável: sob a guerra híbrida e o bloqueio imperialista, atingido pela pandemia e a crise do turismo, conseguiu desenvolver cinco vacinas contra a Covid-19, liderar o esforço regional e global de vacinação e até fornecer vacinas a outros países, como Vietnã, Nicarágua e Venezuela.

 

A outra pandemia: a da fome

A relativa melhoria dos indicadores da pandemia tornou os seus efeitos sociais mais visíveis em termos do aprofundamento dramático da desigualdade e, consequentemente, da pobreza e da indigência. Essa pandemia de fome estende mais uma vez sua sombra globalmente, impulsionada pela crise econômica, mas também por um padrão distributivo profundamente injusto, que se expressa inclusive no aumento do preço mundial dos alimentos desde 2020, cuja tendência de alta continuou nos últimos meses. Sobre isso, um relatório recente da Oxfam alertou que as mortes por fome já superaram as mortes por Covid-19; outro relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) apontou que uma em cada três pessoas no mundo passa fome. Certamente, essa pandemia não se expressa de maneira homogênea no mundo. Enquanto no início de 2021 o governo chinês anunciou que havia conseguido erradicar a pobreza extrema, a América Latina e o Caribe têm sido uma das regiões mais afetadas pela recessão econômica e pela pobreza.

Nesse contexto, foi realizada no dia 23 de setembro a Cúpula das Nações Unidas sobre Sistemas Alimentares, inicialmente prevista para 2020. Parte da Década de Ação para o Cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável promovidos pela ONU, a cúpula reuniu governos, empresas e algumas ONGs, mas boicotou a presença da Via Campesina e de dezenas de organizações de pequenos produtores, trabalhadores e povos indígenas. Essas organizações denunciaram que, por trás de um disfarce progressista, as políticas debatidas na cúpula avançam na tentativa, por parte das empresas transnacionais, de usurpar e controlar os espaços institucionais da ONU, a fim de criar seus mecanismos de governança global da alimentação. Essa ofensiva do agronegócio foi confrontada – quase um mês depois, no dia 16 de outubro – com as inúmeras ações, iniciativas e declarações que aconteceram na região e no mundo em uma nova jornada global de ação pela soberania alimentar. Em comunicado, a Via Campesina destacou que “em face da desigualdade sem precedentes, do aumento da fome e da extrema pobreza, o capitalismo e a ideologia do mercado livre continuam dominando os círculos políticos. Pior ainda, novas tentativas também estão sendo feitas para vislumbrar um futuro digital (uma agricultura sem agricultores, uma pesca sem pescadores), tudo sob o pretexto da digitalização da agricultura e de criar novos mercados para alimentos sintéticos. Apesar de todos esses desafios, o Movimento pela Soberania Alimentar, que hoje é muito maior que a Via Campesina e é composto por vários setores, tem feito avanços significativos”. O documento destaca que não há futuro para a humanidade sem soberania alimentar.

Por fim, no dia 22 de outubro, o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) recebeu o Prêmio Comemorativo Esther Busser, concedido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) por sua atuação na garantia de condições dignas de vida e trabalho à população. Em reconhecimento ao MST e seu trabalho na preparação e entrega de mais de 5 mil toneladas de alimentos aos setores populares assediados pela fome e pela Covid-19, a enorme tarefa realizada em face dessa dupla pandemia por uma ampla rede de organizações é também visível pela enorme rede de organizações sociais, da economia popular. Solidariedade comunitária, presente em toda a Nuestra América.

 

Pandora Papers: a riqueza da especulação

No início de outubro, começaram a ser lançados os chamados Pandora Papers, um conjunto de 11,9 milhões de documentos sobre empresas offshore e paraísos fiscais divulgados pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos e que é considerado o maior vazamento de segredos financeiros da história, ainda maior que os chamados Panamá Papers, de abril de 2016. Essa documentação, de 14 escritórios de advocacia que administram operações em paraísos fiscais, permite identificar os mecanismos utilizados para a ocultação de riquezas, evasão fiscal e lavagem de dinheiro por milhares de pessoas que estão entre as mais ricas e poderosas do mundo. Entre eles, 35 líderes mundiais, mais de 330 funcionários públicos de cerca de 90 países, 130 bilionários que aparecem nos rankings da Forbes, artistas, atletas e uma longa lista de evasores que operam nas sombras. Nessa lista, a elite latino-americana também se destaca. Entre os beneficiários finais dessas empresas offshore, as de nacionalidade argentina ocupam o terceiro lugar – com 2.521 pessoas, depois da Rússia e da Inglaterra – e o quinto se contarmos as empresas.

No ranking da América Latina, o Brasil aparece com 1897 beneficiários, a Venezuela com 1212; Guatemala, 658; Colômbia, 588; Uruguai, 485; México, 434; Panamá, 430; Chile, 325; República Dominicana, 265; Honduras, 261; Peru, 260; Costa Rica, 161; Equador, 141; Nicarágua, 75; Bolívia, 39; Haiti, 25; Paraguai, 19, Cuba, 15. Os documentos mostram 14 líderes mundiais em atividade e outros 21 que já deixaram o poder. Uma das regiões que ocupam lugar de destaque nesta área é mais uma vez a América Latina, com três presidentes em exercício (Guillermo Lasso do Equador, Sebastián Piñera do Chile e Luis Abinader da República Dominicana) e 11 ex-presidentes. Comparecem também o ministro da Economia do Brasil (Paulo Guedes) e o presidente do Banco Central (Roberto Campos Neto), entre outros integrantes de governos; artistas como Shakira e atletas como Ángel Di María e Javier Mascherano. Da mesma forma, se destacam os empresários e ricos da região, entre os quais figuram, entre outros, os mais ricos do México (o magnata mineiro Germán Larrea Mota Velasco; a herdeira do grupo cervejeiro Modelo, María Asunción Aramburu Zabala e Olegario Vázquez Aldir, que controla hotéis, seguradoras e mídia), e nove das dez famílias mais ricas da Argentina, de acordo com a Forbes.

A divulgação desses documentos teve consequências políticas – particularmente no Equador e no Chile, conforme analisado neste relatório – e também acrescentou outras evidências do comportamento dos ricos e da elite política latino-americana, totalmente alheias e opostas aos interesses de sua população. Nesse sentido – de acordo com relatório do Tax Justice Project, órgão especializado em sonegação de impostos – a região perde mais de 40 bilhões de dólares em impostos a cada ano com a utilização dessas estruturas offshore. A OCDE estima que 27% da riqueza financeira da região é desviada para esse tipo de empresa, o que significaria cerca de 22 bilhões de dólares em impostos perdidos a cada ano.

 

A crise socioambiental: a mudança climática em direção à COP 26

Examinamos em relatórios anteriores os desdobramentos da crise socioambiental em Nuestra América, fruto do processo de neoliberalização capitalista e, em particular, a profundidade da crise climática e suas ameaças. Em relação a isso, a Conferência das Nações Unidas das Partes 26 (COP 26), iniciada em 31 de outubro, em Glasgow (Escócia), e sua agenda de compromissos nacionais relativos aos Acordos de Paris, têm motivado nestes meses diversas iniciativas e disputas.

Em 8 de setembro, aconteceu virtualmente o Diálogo de Alto Nível sobre a ação climática nas Américas – também denominado Cúpula Latino-Americana sobre Mudanças Climáticas, continuidade regional da Cúpula de Líderes sobre Mudanças Climáticas promovida em abril pelo presidente Biden e o governo estadunidense. Inaugurado pelo presidente argentino Alberto Fernandez e convocado também pelos governos do Chile, Argentina, Colômbia, Costa Rica, Panamá e República Dominicana, contou com a participação de especialistas, organismos multilaterais de crédito, ONGs e representantes de 21 governos da região, bem como com a presença de John Kerry, representante do governo dos Estados Unidos nesta questão.

Da mesma forma, em 18 de setembro, como analisaremos mais adiante, aconteceu a sexta Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), que voltou a reunir chefes de Estado da região quase quatro anos após a V Cúpula de 2017. Dentre os acordos surgidos nessa cúpula, reforçou-se a perspectiva de avançar em um posicionamento comum desses países frente à COP 26, na direção em que os países da ALBA-TCP vinham avançando com o II Fórum Internacional “Reencontro com Mãe Terra ”, realizado em Caracas no final de agosto.

Já no dia 24 de setembro, aconteceu a “Marcha Global pelo Clima”. Promovidas pelas iniciativas globais Fridays for Future [Sextas pelo futuro] e Climate Strike (Greve Climática] e por outras coordenações e organizações, e que teve um papel particular da juventude. As mobilizações massivas estiveram presentes nas principais cidades europeias e também se fizeram sentir nos EUA, Oceania e outras cidades ao redor do mundo. A América Latina não foi exceção e muitas capitais da região foram o território de protestos por mudanças profundas, rápidas e globais para responder à crise climática. Em seu discurso no fórum Youth4Climate em 28 de setembro, a ativista sueca Greta Thunberg denunciou que “não existe planeta B, não existe planeta blá blá blá, economia verde blá blá, neutralidade de carbono para 2050 blá blá… Isso é tudo que ouvimos de nossos chamados líderes: palavras. Palavras que parecem boas, mas que não causaram nenhuma ação. Nossas esperanças e sonhos se afogam em suas palavras de promessas vazias”.

 

Mais três acontecimentos com reivindicações e propostas

Essa rica agenda de cúpulas, mobilizações e disputas em nível regional agregou pelo menos mais três eventos. Por um lado, em 28 de setembro, o Dia Internacional pelo Direito ao Aborto foi celebrado com atividades, declarações e mobilizações em todos os países; particularmente, nessa ocasião, no Chile, México, Venezuela, Peru e El Salvador. Assim, a maré verde mostrou sua vitalidade e a força que vem ganhando na América Latina e no Caribe, e que nos últimos meses contou com a declaração de inconstitucionalidade da Corte Suprema de Justiça do México quanto à criminalização do aborto e do reconhecimento do direito à vida desde a concepção; e com a aprovação em geral pela Câmara dos Deputados do Chile de um projeto de lei que descriminaliza o aborto nas primeiras 14 semanas de gestação. Além disso, o Tribunal Constitucional da Colômbia deve resolver um processo em novembro para eliminar a proibição do aborto, que hoje só é permitido por três motivos. No entanto, junto com esses avanços, a pandemia foi um período particularmente violento para as mulheres, assim como em El Salvador e em Honduras foi ratificada a proibição total do aborto.

Por outro lado, no dia 12 de outubro foi comemorado o Dia da Resistência Indígena. A memória do início da conquista e colonização das terras e povos de Abya Yala motivou atos e mobilizações e também uma disputa pública pela sua interpretação. Já no início do ano, o presidente mexicano López Obrador havia exigido em uma carta pública “que o Estado espanhol admitisse sua responsabilidade histórica por esses crimes e oferecesse as devidas desculpas políticas ou reparações”. Essa carta suscitou a resposta da direita espanhola. No mesmo sentido, também a direita latino-americana – com seus vínculos com a VOX e com o Partido Popular – repetiu mais uma vez o questionamento de uma “ideologia indígena” entendida como expressão contemporânea do atraso e do comunismo, como disse em outubro a presidente da Comunidade de Madrid.

Desta vez, a carta foi do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro; em que assinalava “inaceitável que no século XXI uma nação que se orgulha de ser civilizada adore o pior do seu passado: roubo, saque, racismo e crimes de ódio” e exigia que “a Europa reconheça que a sua modernidade e a sua vertiginosa indústria, o crescimento comercial e financeiro, ou seja, a ascensão do capitalismo ocidental, teve seus alicerces no crime contra a humanidade contra os povos indoamericanos e africanos, e na desapropriação material de suas riquezas, iniciado em 12 de outubro de 1942”.

No âmbito desses debates, movimentos indígenas e progressistas se mobilizaram em toda a Nuestra América em defesa de seus direitos políticos, sociais e econômicos e no questionamento do ciclo renovado de expropriação e violência que continua a punir nossos povos. Assim, a “marcha das Wiphalas” ou “Wiphalazo” ocorreu na Bolívia diante das tentativas de setores de direita de desestabilizar o governo e restaurar o racismo e a exploração que motivou o golpe de 2019; as mobilizações no Chile foram castigadas por uma repressão feroz que custou a vida da advogada de direitos humanos Denisse Cortez; na Guatemala, indígenas, camponeses e ativistas se mobilizaram contra o racismo e pela dignidade indígena, negra e popular.

Finalmente, no dia 16 de outubro, foi realizada a segunda sessão virtual do IV Encontro Mundial dos Movimentos Populares, sete anos após o primeiro, em que esses movimentos reafirmaram sua “luta por terra, moradia e trabalho para todos e todas e em toda parte” e concluíram que “voltar à normalidade anterior ao coronavírus seria suicídio”, e também propuseram “um novo paradigma de desenvolvimento humano integral para superar os dilemas da humanidade”.

Nessa sessão, também foi destacada a extensa carta que o Papa Francisco leu, onde, face à magnitude da crise atual, reivindicou o seu direito de voltar a exigir que: “os grandes laboratórios liberem as patentes”, “grupos financeiros e organizações internacionais de crédito permitam aos países pobres garantir ‘as necessidades básicas de seu povo’, perdoando essas dívidas”, “as grandes corporações extrativistas – mineração, petróleo, silvicultura, imobiliária, agronegócio – parem de destruir florestas, pântanos e montanhas, parem de poluir rios e mares, parem de envenenar povos e alimentos”; “as grandes empresas de alimentos deixem de impor estruturas monopolistas de produção e distribuição que inflacionam os preços”; “os fabricantes e traficantes de armas cessem completamente a sua atividade”; “as gigantes das telecomunicações disponibilizam acesso a conteúdos educacionais e intercâmbios com professores pela internet”; “os meios de comunicação acabem com a lógica da pós-verdade, desinformação, difamação, calúnia”; “os países poderosos cessem as agressões, bloqueios, sanções unilaterais contra qualquer país”. E concluiu convidando-nos a sonhar juntos não só com “integração urbana, agricultura familiar, economia popular”, mas também com as propostas de “universalização do salário e redução da jornada de trabalho”.

 

Imperialismo e integração

Nuestra América, entre a Celac e a OEA

Como já assinalamos, finalmente, depois de quase cinco anos, no dia 18 de setembro, foi realizada no México a VI Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), primeiro órgão integrador da história que reúne os países da América Latina e Caribe sem a participação dos Estados Unidos e Canadá. Após um período de grande vigor no início da década passada, a Celac passou por um momento de paralisia, em consonância com o avanço dos setores pró-EUA em toda a região, mas principalmente na América do Sul, entre 2015 e 2019. Nessa perspectiva, a própria realização da cúpula tornou-se um importante evento político para Nuestra América.

Embora o motivo da Cúpula se refira à mudança de governos e às recentes relações de poder na região, sua organização e agenda foram o outro lado de uma OEA em crise sob a liderança de Luis Almagro e sua política ofensiva contra os governos populares, em particular com sua cumplicidade no golpe de 2019 na Bolívia. Justamente, a rejeição das medidas coercitivas unilaterais foi um dos destaques da declaração de consenso que saiu da Cúpula, além da elaboração de uma declaração especial sobre a necessidade de acabar com o bloqueio econômico, comercial e financeiro dos EUA contra Cuba. Os governos aliados aos EUA não foram fortes o suficiente para se opor a essas declarações e tentaram dois tipos de estratégias: a ausência, no caso do governo brasileiro e, no último minuto, do governo colombiano; os do Uruguai e do Paraguai questionaram os adversários dos Estados Unidos; críticas que foram respondidas por Díaz Canel e Maduro.

Outros temas importantes debatidos foram a necessidade de ações concretas para enfrentar as mudanças climáticas que já mencionamos, a rejeição das políticas coloniais no continente e a crise sanitária, por meio de um acordo em torno de um plano de autossuficiência em saúde. Certamente, com vistas ao futuro, levantou-se com mais força a questão de como serão resolvidas as questões relativas à OEA e o papel que a Celac terá a desempenhar nisso e no âmbito regional. Fazemos uma análise mais extensa desse ponto no artigo CELAC vs. OAS: integração em disputa, publicado na ARG Medios.

 

TLC Uruguai e China e o futuro do Mercosul

No início de setembro, o presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, anunciou em entrevista coletiva que seu país e a China iniciaram um processo de Acordo de Livre Comércio. “Recebemos uma resposta formal do governo chinês concordando em avançar em um acordo de livre comércio: avançar em um estudo de pré-viabilidade e depois, se houver acordo, avançar no próprio TLC”, disse o presidente. “O Uruguai passa das palavras à ação porque queremos prosperidade para nossos compatriotas”, acrescentou. O estudo de pré-viabilidade está previsto para começar antes do final do ano. Ao que tudo indica, o acordo beneficiará principalmente os exportadores, ou seja, os empresários vinculados à posse da terra e à produção agrícola. Poucos dias depois, o chanceler Fernando Bustillo destacou que poderia haver outros TLCs em andamento. O Reino Unido é um dos países com quem a possibilidade é debatida.

Embora as primeiras respostas dos governos da Argentina, Brasil e Paraguai tenham sido geralmente cautelosas, o anúncio do Uruguai tensiona um pouco mais a situação dentro do bloco. Diferentes orientações habitam o Mercosul, que nos últimos tempos começou a se chocar abertamente, como demonstram  as rusgas, em março passado, entre o presidente argentino Alberto Fernández e seu homólogo uruguaio, que considerou o Mercosul “um empecilho” para seu país”. Após o anúncio do TLC com a China, o Ministro da Produção da Argentina, Matías Kulfas, respondeu a uma pergunta jornalística da seguinte maneira: “O Uruguai pode fazer um acordo bilateral com a China fora do Mercosul ou pode continuar no Mercosul. Os regulamentos são muito claros. Os acordos são feitos em bloco, não bilateralmente. É uma decisão que o governo uruguaio tomará e estaremos observando o que ele fizer ”.

Em meio a essa situação, Brasil e Argentina concordaram com a redução de 10% da tarifa externa comum – com exceção de alguns setores como o automotivo, têxtil e calçadista -, após tentativas do Brasil de maior liberalização e preocupação com as câmaras de empresários industriais dos quatro países. Por muito tempo, quase todos os sinais mostram uma fraqueza crescente e fragmentação do bloco. A perspectiva é de incerteza. Nesse contexto, consultamos a professora e pesquisadora da Universidade da República Daiana Ferraro, que considerou que “2021 nos encontra com propostas muito conflitantes sobre como gerir o Mercosul, que não estão isoladas das respostas das políticas nacionais e da agenda de cada um de seus membros. Acrescentamos uma pandemia e uma queda em todos os indicadores econômicos e sociais e estamos diante de uma situação extremamente complexa”.

Segundo Ferraro, “parece que os objetivos de longo prazo estão sendo adiados”. “Parte da explicação é de natureza conjuntural: está na escassa harmonia que existe entre as lideranças dos países, fundamentalmente na relação entre Argentina e Brasil. Outra parte está no abandono da liderança do processo pelo Brasil. E outra parte é que há múltiplos agentes interessados ​​em manter a situação atual e se dedicam a fazer reformas mínimas que não dêem substância ao problema. Se formos às explicações mais estruturais, os interesses econômicos que sustentam alguns desses governos, como o agronegócio, têm uma orientação forte contra a integração e se dedicam ao seu principal parceiro exportador, que é a China”. A situação do bloco, para a analista, se explica a partir “de uma leitura fraca do que está acontecendo na ordem internacional e de como se posicionar. Pensar apenas na inserção internacional de cada um desses países não é aproveitar o momento em que nos encontramos. Essa é uma das visões que se deve levantar, junto com repensar os objetivos e a estratégia, mas as condições para isso ainda não estão reunidas no Mercosul”.

 

BRICS: Bolsonaro, mas conciliador. A Argentina adere?

Com horas de intervalo, o governo chinês acenou com a cabeça para outro país do Mercosul, com o convite do embaixador argentino na China, Sabino Vaca Narvaja, para o Fórum da Parceria BRICS para a Nova Revolução Industrial. Nesse contexto, realizou-se um encontro onde se debateu a possível adesão do país sul-americano ao bloco BRICS, no qual o Brasil já está presente, ao lado de Rússia, Índia, China e África do Sul.

Nos primeiros dias de setembro, também, foi realizada a reunião anual de presidentes do bloco, praticamente por causa da pandemia. Um dos dados salientes da reunião é que o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, mostrou um tom mais conciliador com relação à China, a ponto de considerar a cooperação com este país “essencial” diante da pandemia, ao contrário de sua declarações usuais, negacionistas da pandemia e de confronto com o país asiático.