Observatório da Questão Agrária

São Paulo, 04 de abril de 2020
Nº 001/20

 

Síntese: A principal pauta que movimentou o mês de março foram os efeitos que o novo coronavírus, causador da COVID-19, tem sobre os sistemas de saúde de todos os países e os reflexos no aprofundamento da crise do capitalismo, com potencial de desarticulação das cadeias produtivas em nível global.

Ademais, as medidas que estão sendo implementas na maioria dos países traz consigo o questionamento das políticas de austeridade amplamente preconizadas nas últimas décadas, como um corolário do padrão de acumulação de capital sob o neoliberalismo. A nova pandemia que se agrava na atualidade deve orientar a reflexão crítica sobre as formas de ocupação do espaço, padrões de consumo e o próprio modelo de produção e exploração do meio ambiente.

No Brasil o desmonte das políticas públicas relacionadas à segurança alimentar colocam em risco o acesso à alimentação saudável para a maioria dos trabalhadores, em especial às camadas mais empobrecidas da população. No entanto, apesar da crise que se agrava, o governo federal segue levando a cabo um conjunto de políticas com potencial de aprofundar a crise econômica, social e ambiental pela qual passamos.

I “CORONACRISE”

1. Com a nova pandemia mundial que vem assolando o planeta, torna-se fundamental avaliar a ação humana no meio ambiente, a forma de ocupação dos espaços e o padrão de consumo desenfreado. O pesquisador Allan Carlos Pscheidt, em entrevista ao Brasil de Fato, expõe os efeitos do avanço humano sobre o meio ambiente que pode levar a ampliação de novos casos de pandemias como o COVID-19.

2. Como aponta Silvia Ribeiro, “a verdadeira fábrica sistemática de novos vírus e bactérias que são transmitidos a humanos é a criação de animais em regime industrial, principalmente aves, porcos e vacas. Mais de 70% dos antibióticos em escala global são utilizados para engorda ou prevenção de infecções em animais não doentes, o que produziu um grave problema de resistência aos antibióticos, também para humanos”.

3. Neste contexto, acirra-se as contradições internas do capitalismo, como apontado por David Harvey, cujo “capital modifica as condições ambientais de sua própria reprodução, mas o faz em um contexto de consequências não intencionais (como as mudanças climáticas) e no contexto de forças evolutivas autônomas e independentes que estão remodelando perpetuamente as condições ambientais. Deste ponto de vista, não existe um desastre verdadeiramente natural”.

4. Diferente da crise de 2008, esta nova pandemia se origina no mercado real e se espalha pelos mercados financeiros. A particularidade do momento atual é a possibilidade de questionar as fragilidades de uma ordem capitalista globalizada a partir do coronavírus. “A interdependência imposta pelas cadeias globais de valor, em prol de uma maior especialização e eficiência, oculta uma imensa vulnerabilidade para empresas e nações. Supply chains estão se rompendo pelo impacto da pandemia na Ásia e Europa, viagens internacionais estão sendo limitadas com o fechamento de fronteiras e medidas protecionistas estão sendo tomadas principalmente em relação a produtos e equipamentos médicos, com a proibição de exportação de máscaras e respiradores. A guerra do Petróleo protagonizada por Arábia Saudita e Rússia também é um exemplo dessa interdependência, que afeta diretamente as cadeias produtivas”, analisa artigo do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da UNICAMP.

5. Diante deste cenário, a FAO aponta para o risco de tensões no sistema alimentar mundial devido a pandemia. Os impactos podem ocorrer nos sistemas de logística, oferta de força de trabalho e queda da demanda a partir de abril ou maio. A queda pode ser maior na cadeia das carnes, aponta a agência da ONU, com possíveis efeitos em três frentes: a oferta devido a quebra no sistema logístico; as especulações de que o novo coronavírus teria se originado de animais para humanos; e a recessão deve reduzir a demanda por carnes levando a baixa nos preços.

6. A preocupação com crise provocada pelo novo coronavírus é a possibilidade dela afetar as cadeias globais de suprimentos e medicamento. Diversos países adotam medidas de restrição das exportações de produtos alimentícios básicos e medicamentos para combater a COVID-19. Segundo a OCDE, as restrições no comércio podem provocar rupturas nas cadeias de abastecimento de alimentos.

7. Neste sentido, alguns países já começam a reduzir as exportações de alimentos. Neste cenário, a OMC, OMS e FAO defendem medidas para garantir os fluxos comerciais de alimentos no mercado mundial. Ademais, as restrições à entrada de pessoas em diversos países, principalmente na Europa, já provoca dificuldades para garantir as colheitas, na medida em que estes países são dependentes de força de trabalho estrangeira para este serviço, como a Grã-Bretanha, França e Alemanha, por exemplo.

8. No Brasil, apesar da Ministra da Agricultura Tereza Cristina afastar problemas na produção de alimentos no país, a preocupação é com a rede logística de distribuição de insumos e alimentos.

9. O desmonte das políticas públicas relacionadas à segurança alimentar, que começaram a ser desarticuladas desde o governo de Michel Temer somada ao aprofundamento da crise do coronavírus, a destruição dos mecanismos de garantia de preços mínimos e de estoques públicos de alimentos, podem levar à crise de abastecimento de alimentos no país.

10. Diante dos riscos de desabastecimento e os desmontes das políticas públicas relacionadas a segurança alimentar, fóruns, redes, articulações, movimentos e organizações da sociedade civil relacionadas à pauta apresentaram um conjunto de propostas de combate à fome a serem implementadas, em caráter urgente e emergencial, pelos governos nas esferas federal, estadual e municipal. A plataforma apresenta um conjunto de propostas para o fortalecimento das políticas públicas neste momento de crise e para garantir a proteção e o direito das trabalhadoras e trabalhadores à alimentação.

11. Segundo a FGV-Agro, a crise deve se abater também nas projeções de crescimento do setor agroindustrial, ao reduzir a perspectiva de crescimento do setor no país. A perspectiva agora é um crescimento de 0,7% ante uma previsão de 1,4% para 2020. Os setores de alimentos e bebidas devem crescer 1,1% ante previsão anterior de 2,1%, e o setor não-alimentício 0,4% ante 0,8% anteriormente previsto para 2020.

12. Enquanto isso, organizações que compõe a Coalização Brasil Clima, Florestas e Agricultura lançam carta aberta ao presidente do Senado, David Aucolumbre, solicitando que projetos que tenham potencial de prejudicar o meio ambiente, como a MP 910/2019, não sejam pautadas no Congresso Nacional enquanto as sessões permaneçam fechadas por conta da pandemia do Covid-19.

II. AGRONEGÓCIO SEGUE AVANÇANDO SOBRE OS BENS DA NATUREZA E OS DIREITOS DOS TRABALHADORES

13. O mês de março manteve a tendência do atual governo brasileiro de liberação acelerada de novos agrotóxicos, com a aprovação de 16 novos produtos.

14. Era de se esperar que o volume de agrotóxicos consumidos no país crescesse, segundo dados inéditos do SINDIVEG (que anteriormente divulgava apenas os dados das vendas das empresas). O consumo de agrotóxicos no país cresceu 6,6% em 2019 em relação ao ano anterior, representando o consumo de 975,1 mil toneladas. Os dados são obtidos por meio do Produto Comercial por Área Tratada (PAT), que é a multiplicação da área plantada, números de aplicações e número de produtos. A área tratada com agrotóxicos em 2019, segundo o SINDIVEG, foi de 1,4 bi de hectares, aumento de 8% em relação a 2018.

15. A privatização dos bens da natureza podem chegar a níveis inimagináveis. A empresa Ô Amazon Air Water decidiu engarrafar água dos rios voadores da Amazônia para vender como uma das águas potáveis mais caras do mundo, cerca de R$ 323,00 a garrafa.

16. Conforme cálculos do Valor Econômico, a partir de dados do Banco Central, revelou-se que aumentou a diferença de gênero nas contratações de crédito rural. Na última safra, dos R$ 130,7 bilhões, apenas 15% foram contratados por mulheres. O levantamento traz uma correlação com aumento da concentração fundiária, identificado no último senso agropecuário, onde as mulheres controlam áreas em média menores. A última pesquisa aponta que as mulheres controlam 19% de todas as propriedades e 9% da área.

17. Em meio a pandemia, o governo bate recorde na década de indeferimento de aposentadoria para trabalhadores rurais, chegando a 260 mil negativas. Mudanças nas regras para concessão de aposentadorias rurais levaria ao aumento recorde das negativas de aposentadoria à população do campo.