Observatório da Questão Agrária

 

nº. 03/2021

 

Resumo: Este é o Boletim mensal do Observatório da Questão Agrária do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Trazemos um resumo dos principais temas da movimentação do agronegócio no Brasil e neste número destacamos três eixos centrais. No primeiro, apresentamos as contradições entre, de um lado, a propaganda do agronegócio em torno das crescentes safras dos últimos anos e, de outro, o aumento da fome no país, do desmatamento e do volume dos agrotóxicos em circulação. Para isso, trazemos os dados de insegurança alimentar divulgados recentemente que apontam um crescimento da fome no Brasil, o aumento nos alertas de desmatamento dos últimos anos e a liberação de novos agrotóxicos pelo governo Bolsonaro. Destacamos, em seguida, que a pandemia tem provocado um aumento do interesse dos grandes fazendeiros em digitalizar suas operações, tornando o Brasil um atrativo para que empresas de tecnologia para a agronegócio da América Latina utilizem o país como plataforma de expansão de suas atividades. Por fim, apontamos alguns movimentos de concentração e centralização do capital no segmento de insumos agrícola.

 

As propagandeadas “supersafras” do agronegócio e suas contradições

Ano após ano, o agronegócio brasileiro tem propagandeado os registros de “supersafras” tanto do ponto de vista da quantidade produzida bem como do valor da produção. No ano de 2020, primeiro ano da pandemia, o Produto Interno Bruto (PIB) da agropecuária chegou próximo a R$ 2 trilhões, o que representou participação de 26,6% em relação ao PIB nacional, que chegou a R$ 7,45 trilhões. No entanto, é importante destacar que a economia nacional teve uma queda de 4,1% em relação ao ano de 2019, com reduções no valor adicionado da indústria (-3,5%), serviços (-4,5%) e crescimento na agropecuária (2%), refletindo o aprofundamento da especialização agroexportadora e o processo de desindustrialização do país.

Nas projeções para a atual safra, segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), o Valor Bruto da Produção (VBP) da agropecuária (“da porteira para dentro”) deverá atingir R$ 1 trilhão, o que significará um aumento de 12% em relação ao período anterior. A Confederação Nacional da Agropecuária (CNA) também prevê crescimento, ajustando a previsão para um VBP da agropecuária de R$ 1,173 trilhão.

A soja deverá continuar a ser a principal commoditie do agronegócio brasileiro, podendo chegar a um VBP de R$ 335,1 bilhões, o que representa um salto de mais de 30% em relação ao período anterior.

Como podemos notar na imagem abaixo, as lavouras têm apresentado tendência de crescimento nos últimos anos, o que deve se confirmar no próximo período.

Fonte: Jornal Valor Econômico

 

As crescentes safras de grãos que têm contribuído para os resultados acima elencados, com destaque para o aumento dos preços das principais mercadorias produzidas no país, são aparentes no aumento de 33,5% para a soja, de 28,8% do milho, de 6,2% do caroço de algodão e de 5,4% do trigo, conforme informado pela CNA.

Analisando ainda a safra de grãos no país, a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) ajustou suas projeções em março, prevendo também crescimento na safra de grão, com o indicativo de 272,3 milhões de toneladas, o que significará, em se confirmando a projeção, um crescimento de 6% frente a safra 2019/2020, que ficou em 256,9 milhões de toneladas.

Chama a atenção nas estimativas da CONAB a diferença da produção de soja (135,1 milhões de toneladas) e milho (108,1 milhões de toneladas) em relação as demais commodities listadas. No entanto, a projeção para os alimentos tradicionais da mesa do povo brasileiro não tem a mesma dinâmica, como o caso do arroz, em que a companhia projeta redução de 1,9% (11 milhões de toneladas frente a produção de 11,2 milhões de toneladas no período 2019/2020). Para o o feijão se projeta um pequeno aumento de 1,6% (3,3 milhões de toneladas, contando as três safras da cultura).

Abaixo reproduzimos as projeções da CONAB para a safra 2020/2021 de grãos.

Fonte: Jornal Valor Econômico.

 

No entanto, no rastro das chamadas “supersafras” que o agronegócio reverencia, o capitalismo dependente brasileiro, como uma estrutura de produção desvinculada das necessidades do povo, vai arrastando milhares para a pobreza e à fome nas áreas urbanas ou rurais, fato que foi agravado durante o primeiro ano da pandemia e deve se arrastar, agora com o país como epicentro de novas variantes do coronavírus.

É o que aponta o Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, elaborado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). A pesquisa contou com a participação de 2180 domicílios, sendo 1662 em áreas urbanas e 518 em áreas rurais. O resultado aponta que da população brasileira de 211,7 milhões de pessoas, 116,8 milhões conviveram com algum grau de insegurança alimentar. Destes último, 43,4 milhões não contavam com alimentos em quantidade suficiente e 19 milhões se encontravam em situação de fome.

Na zona rural, 12% dos domicílios (3.674.409) se encontravam em situação de insegurança alimentar grave, ou seja, quando há convivência com a fome. É importante destacar que a insegurança alimentar distribuída por situação de trabalho aponta que a agricultura familiar é a segunda categoria de trabalho em que mais foi diagnosticada situação de insegurança alimentar grave com 14,3% dos domicílios, atrás apenas dos trabalhadores informais com 15,7% dos domicílios em situação de insegurança alimentar grave.

Uma das razões apontadas pelos pesquisadores para esta situação é a relação entre a insegurança alimentar e a disponibilidade de água para a produção de alimentos e criação de animais. Assim, a insegurança alimentar chega a 44,2% dos domicílios quando não há disponibilidade de água para a produção de alimentos e 42% quando a disponibilidade de água é insuficiente para o criação de animais.

A propaganda positiva das safras do agronegócio omite que atrás dos números anunciados como positivos está não só o rastro da fome, mas também o da destruição dos bens da natureza. Como vem acontecendo nos últimos anos, os alertas de desmatamento monitorados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontam queo ano de 2020 foi o segundo pior ano de desmatamento na Amazônia Legal desde de 2015, com 8.426 km² de áreas com alertas de desmatamento, ficando atrás apenas do ano de 2019 com 9.178 km², segundo apontamentos do sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter/Inpe).

Os danos que acompanham o reverenciado agronegócio também se referem ao crescimento da liberação de novas substâncias para agrotóxicos: no ano de 2020 foram aprovadas 493 novos agrotóxicos. Destes, 25 foram considerados como moderada ou extremamente tóxicos para a saúde humana, enquanto 251 foram considerados como muito ou altamente perigosos para o meio ambiente.Ou seja, mais da metade das substâncias liberadas no último ano são potencialmente perigosas para a saúde humana ou meio ambiente. Nos últimos 5 anos foram aprovados 2.097 novos agrotóxicos, período em que é iniciada uma tendência de aceleração na aprovação de novas substâncias para indústria de agrotóxicos e que corresponde com a entrada de Michel Temer na Presidência da República após o golpe que destitui a Presidente Dilma Rousseff em 2016.

Portanto, é necessário destacar que por trás da propaganda apologética do agronegócio e suas safras se esconde a face destrutiva da dependência brasileira que reforça o papel de exportador de commodities agrícolas, enquanto se aprofunda a fome no Brasil, com 116,8 milhões de pessoas que conviveram com algum grau de insegurança alimentar durante a pandemia em 2020 e, destes, 43,4 milhões não contavam com alimentos em quantidade suficiente e 19 milhões se encontravam em situação de fome. Além disso, há o rastro de destruição ambiental com desmatamentos e das toneladas de venenos despejados nas lavouras contaminando os bens da natureza e os seres humanos.

Agricultura digital cresce no Brasil

O Brasil foi o país em que mais cresceu o interesse por ferramentas digitais para a agricultura, a frente inclusive dos EUA e da Europa. É o que aponta o estudo “A cabeça do agricultor brasileiro na era digital”, da consultoria Mckinsey.

Segundo esse estudo, 50% dos produtores pesquisados preferem canais online para todas as compras efetuadas na propriedade, assim como para a venda de parte da produção. Esse interesse se apresenta maior entre produtores mais jovens (35 à 45 anos), correspondendo a 53%. Do ponto de vista do tamanho da propriedade o maior interesse fica com os grandes fazendeiros com propriedades acima de 2,5 mil hectares, somando 73% de produtores interessados nos ambientes digitais para a comercialização.

Esses dados nos ajudam a compreender como o Brasil se tornou o principal destino para os investimentos de empresas de tecnologia voltadas para o agronegócio (Agtech) da América Latina, servindo como plataforma de expansão. Estas empresas têm focado seus investimentos nos ramos de monitoramento de lavouras a partir de imagens de satélite e drones com o objetivo de fazer recomendações agronômicas.

Outros ramos em que estas empresas estão presente é na análise de sementes, compra e venda de commodities, insumos nanotecnológicos e inteligência artificial para o desenvolvimento de sementes e agrotóxicos.

Isto leva com que o capital busque acelerar e monitorar todos os elos das cadeias do agronegócio, desde as sementes e as lavouras até a rastreabilidade das mercadorias a serem comercializadas no comércio mundial.

Concentração do capital no ramos de insumos agrícolas e maquinário

O crescimento das safras a que nos referimos no primeiro ponto deste Boletim também impulsionou o setor de insumos agrícolas a ter grandes lucros no último ano. Como no caso da empresa Verde Agritech, fundada em Londres em 2005 e que tem como principal atividade a produção de fertilizantes de base mineral com uma fábrica no Triangulo Mineiro. A companhia teve um aumento da produção em 2020 na ordem de 103% (243,7 mil toneladas) e aumento na receita de 97% (R$ 35,2 milhões).

Outra transnacional que projeta expansão no Brasil no ramo de insumos agrícolas é a empresa Oro Agri, fundada na África do Sul e atualmente controlada pelo fundo de private equity Partners Group, de origem suíça. A empresa se dedica a produção de defensivos agrícolas de base biológica. A fábrica localizada em Arapongas, no Paraná, receberá um novo aporte de investimentos na ordem de US$ 4 milhões, com o objetivo de aumentar a capacidade de produção em quatro vezes. A empresa teve um faturamento de 100 milhões de reais na última safra apenas no Brasil. Para a safra atual projeta um crescimento de 25% no faturamento.

Há outros exemplos de investimentos das transnacionais têm nos ramos de defensivos e fertilizantes de base biológica. Este é o caso da Corteva – antigo braço de agroquímicos da DowDuPont até 2019, quando foi desmembrada -, que firmou parceria com a empresa de biotecnologia Ginkgo Bioworks, fundada por cientistas do MIT. O objetivo é a utilização das plataformas de engenharia genética e codificação do DNA da Ginkgo para o desenvolvimento de defensivos, tendo em conta o aumento da resistência de pragas aos defensivos convencionais.

A empresa Mosaic Fertilizantes, que é a subsidiária para o Brasil e o Paraguai da empresa The Mosaic Company, a maior do segmentos de fosfatados do mundo, corresponde por uma fatia de cerca de 20% do mercado de fertilizantes no Brasil. Estima-se que esse mercado no país corresponda a 38,5 milhões de toneladas de adubos no ano de 2020. A Mosaic realizou reinvestimentos nos dois países de sua atuação na ordem de US$ 185 milhões, buscando focar seus investimentos em eficiência operacional e aumento da capacidade produtiva de suas fábricas.

No segmento de máquinas agrícolas, a transnacional alemã Horsch anunciou um investimento de mais de R$ 200 milhões para a ampliação de sua fábrica em Curitiba, no Estado do Paraná.Atualmente, o Brasil corresponde a 4% das vendas globais da empresa, mas é projetado que o país se torne o principal mercado nos próximos anos em função da expansão da produção agrícola brasileira e a possibilidade de ampliar suas vendas para outros países da América do Sul. Além do Brasil, a transnacional possui fábricas na Alemanha, EUA, Rússia e China.

 

Recomendações de leituras

Para aprofundar no tema da insegurança alimentar no Brasil durante a pandemia recomendamos a leitura do “Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil“.

Para entender os impactos das novas tecnologias na força de trabalho recomendamos o artigo “O agro é tech, e os trabalhadores não são pop”.

Sobre a relação da agricultura 4.0 e os desafios da soberania alimentar recomendamos a entrevista “Agricultura 4.0: o dilema dos avanços tecnológicos no campo e a volta ao Mapa da Fome. Entrevista especial com Fabiana Scoleso”.

Para uma discussão sobre as disputas atuais sobre a tecnologia 5G no Brasil e os interesses do agronegócio recomendamos a leitura do artigo “A quem interessa a discussão do 5G no Brasil”.