Se a correlação de forças na sociedade muda, muda também dentro das FFAA. A correlação de forças interna à Instituição só mudará de fora para dentro. Foto: Reprodução

 

Por Ana Penido

 

O mundo passa por um gradual processo de transição da hegemonia estadunidense para a chinesa, em aliança com a Rússia. Com isso, acirram-se as disputas geopolíticas em todos os cantos do globo. Particularmente na América Latina, o imperialismo estadunidense intensifica seu controle sobre sua tradicional “reserva de domínio”, se necessário fazendo uso da força e de golpes de Estado.

Por outro lado, parte das elites econômicas brasileiras já têm a China como principal parceira comercial. Entretanto, militares brasileiros seguem considerando os EUA como sua maior referência. Em algum momento, ocorrerá um desencontro em relação à leitura de mundo dessas duas elites. No caso militar, o ambiente interno foi historicamente o palco de atuação das forças, característica que se consolidou no pós segunda guerra, conformando uma espécie de divisão internacional do trabalho na área de defesa. Enquanto cabe às forças armadas dos EUA a segurança do continente nas grandes disputas geopolíticas, a tarefa das forças armadas de países de periferia segue sendo o controle da ordem interna travestida de “combate ao narcotráfico” e atividades auxiliares da grande potência, como as Missões de Paz.

Em suma, os próximos anos tendem a definir quem dominará o século. Por isso, em termos de geopolítica global, não virá um tempo de estabilidade e respeito à soberania brasileira, ou de qualquer país do continente, por parte dos EUA, com ou sem Lula presidente.

 

Brasil desde o golpe

O país vive uma crise econômica, política, social, ética-moral, ambiental, sanitária, de direção na burguesia… e militar. Foi essa confluência de crises que criou as condições para a reorganização e relativa massificação do Partido Militar. Nesse sentido, a crise militar não pode ser resolvida de forma desconectada das demais. Os militares ativistas alimentam a crise, e suas declarações são fonte de instabilidade. Dessa maneira, os militares hoje são parte do problema. Não virá das suas fileiras a solução.

Bolsonaro é espelho dessa confluência de crises, e provoca o caos como método. Enquanto isso, o Legislativo tem tido êxito em aprovar reformas antipopulares, e segue funcionando a fisiologia Centrão – Executivo.

O Partido Militar não foi a força principal do golpe contra Dilma Rousseff, mas foi o fiel da balança que manteve Michel Temer até o fim, recebendo em troca a recriação do Gabinete de Segurança Institucional (entregue ao general Sérgio Etchegoyen), a intervenção federal no Rio de Janeiro, o Ministério da Defesa e mantendo a pressão sobre outras instituições (tuítes de Vilas Boas e o Supremo), entre outras questões.

Contribuíram para a reorganização do Partido Militar a Minustah no Haiti (aumentando seus contatos internacionais), as operações de Garantia da Lei e da Ordem (oferecendo uma autoimagem de solucionador de problemas nacionais), o emprego das forças armadas nos megaeventos esportivos (proporcionando contatos com elites econômicas – particularmente empresários da construção civil – e com a imprensa), e a Comissão Nacional da Verdade (garantindo coesão discursiva em torno de um inimigo comum, a esquerda).

 

Militarização do Estado e da sociedade

Diante da instabilidade global e regional, a adoção de medidas neoliberais tem sido combinada com o autoritarismo em diferentes partes do mundo. Em alguns casos, como o brasileiro, com proposições próximas do fascismo. Importa acentuar que o fascismo precisa de instrumentos de força para se sustentar, existindo apenas em sociedades militarizadas.

Bolsonaro implementa a militarização da sociedade e do Estado. Militarizar não significa apenas preencher cargos no Estado com militares. O maior problema é a transmissão de um ethos, doutrina e interesses militares, pensados na lógica da guerra, como a ideia de amigo e inimigo, para o restante do Estado. Militares são treinados em 3Ds (não duvidar, não divergir, não discutir), antagônicos com a convivência democrática. O maior exemplo atual é o Projeto de Lei Antiterrorista, que identifica movimentos populares e povos indígenas em luta como inimigos da nação (com a linguagem camuflada de forças oponentes, ou desestabilizadores da ordem), buscando destruir os canais de diálogo da população como sindicatos, associações, etc. Outra medida igualmente relevante e cuja implementação segue avançando são as escolas cívico-militares.

A militarização da sociedade encontra terreno fértil na sociabilidade desenvolvida nos últimos anos, como a lógica de guerra que impera em jogos eletrônicos, moda, aplicativos de relacionamento, entre outros; estimulando o machismo, a homofobia e o racismo. Bolsonaro tem em sua base segmentos armados e motivados para a tomada do Estado, estimulando a militarização da sociedade através da liberação de compras de armamentos.

Militares não veem as milícias, ou medidas para a liberação de armamentos, como concorrentes potenciais pelo monopólio da força do Estado. Verão como força auxiliar? Qual o saldo da intervenção militar no Rio de Janeiro em termos de doutrina para as forças armadas? Qual o nível de infiltração das milícias nas forças armadas? Essas perguntas são importantes para a compreensão do momento atual e seguem sem respostas.

Há pelo menos três níveis de segmentos que detêm o poder da força no Estado. O primeiro, que subordina os demais, é orgânico e programático, hegemônico no Executivo. É o Partido Militar, composto apenas por militares provenientes das forças armadas. O segundo segmento é o Partido Fardado, composto por membros das diversas forças de segurança (como policiais, bombeiros…), cuja atuação em sustentação ao projeto político geral ocorre principalmente no Legislativo. Por fim, existe o Partido da Ordem, mais disperso, composto por funcionários de empresas de segurança privada e por praticantes dos CACs (Clubes de Caçadores, Atiradores e Colecionadores). Hoje, recrutando nesses três níveis, Bolsonaro tem força suficiente para desestabilizar violentamente a conjuntura.

Entretanto, instrumentos de força não são suficientes (ou necessários) para o aprofundamento do golpe em curso desde 2016. É essencial, e hoje ainda não existe de maneira unificada rumo à uma ruptura institucional completa: apoio internacional, da mídia, do judiciário e das elites econômicas.

 

A simbiose entre o Partido Militar e Bolsonaro

Bolsonaro é produto do Partido Militar há décadas, e não seu produtor. Diante das crises, ambos se aproveitaram da janela representada pela política nacional. O Partido Militar usufrui do corporativismo militar e mantém a Instituição militar capturada. A Instituição militar sempre gozou de alta aprovação na opinião pública, e isso é um fator de orgulho para qualquer militar. No triângulo Instituição, Bolsonaro e Partido, os bônus de imagem institucional ficam para o presidente, os bônus de recursos e cargos oriundos da ocupação no Executivo ficam para o Partido Militar, e o ônus do mau governo fica para a Instituição. Embora a Instituição siga contando com parte considerável de respeito da opinião pública, a queda de popularidade vem sendo constatada nas últimas pesquisas divulgadas na imprensa, atrelada ao crescimento da reprovação ao governo.

Não é um governo de militares, pois estes não vão para o governo enquanto pessoas físicas, como “CPFs”, compondo um todo orgânico. Tampouco é um governo militar, pois a Instituição, com seu “CNPJ”, não escolhe diretamente seus representantes conforme a hierarquia e disciplina, ou dita inteiramente a política geral do governo. Ocorre um híbrido, um governo militarizado, cujo partido hegemônico nos cargos e no programa é o Partido Militar.

Diferente das interpretações que apontam para alas em disputa, entendemos que não há tensões ideológicas entre militares e neopentecostais, pois ambos se consideram representantes da família tradicional brasileira. Também não existem tensões com as propostas privatizantes na economia. Diferente do que pensa a esquerda, ser patriota não implica ser nacionalista economicamente. Militares não têm problemas com o Estado mínimo, desde que este não seja adotado na área da coerção. Mesmo moralmente, as tensões com o Centrão têm sido contornadas pragmaticamente.

Bolsonaro não faz promessas, mas entregas concretas para segmentos militares, notadamente das altas patentes, a exemplo da reforma na carreira. A disputa das narrativas quanto a um maior ou menor alinhamento entre Instituição e presidente é relevante, mas a análise dos acontecimentos (ex: publicações no Diário Oficial da União) deve ser feita de maneira separada da análise das narrativas. Os dois termômetros são importantes. No primeiro caso, a Instituição teve relativo sucesso em se diferenciar do presidente, de maneira a ser identificada com ele aos olhos da população, mas não responsabilizada por seus fracassos integralmente, como na condução da pandemia. Bolsonaro aprofunda essa confusão com suas reiteradas declarações de “meu Exército”, o que gera algumas insatisfações dentro das fileiras. Quanto ao segundo termômetro, desde o início do governo, o Partido Militar seguiu ampliando sua presença e obtendo conquistas para as suas bases políticas. Não há indícios de um desembarque concreto dos generais do governo.

Diferente de outros momentos históricos, quando ocorriam disputas políticas entre os militares, depois da década de 1930 começa a ser praticada a política dos militares. Após o golpe de 1964 e as reformas castelistas, chega à prevalência a política dos militares, definida por generais. Apesar de parecer que a política castelista fez morrer o Partido Militar, o que na verdade se conquistou ao longo da hibernação foi um Partido Militar altamente controlado por seus membros mais graduados (os generais).

 

Os grupos políticos no espelho côncavo

Se a correlação de forças na sociedade muda, muda também dentro das forças. Entretanto, em virtude do isolamento institucional, ocorre uma situação de espelho côncavo, em que a leitura interna não reflete a realidade como ela é, mas sua imagem deformada, com raios acentuados pelos filtros ideológicos institucionais. A correlação de forças interna à Instituição só mudará de fora para dentro, portanto, precisa ocorrer primeiro na sociedade. Numa instituição corporativa e orientada pela hierarquia e disciplina, dificilmente vozes divergentes surgirão.

Nem todo militar é bolsonarista, embora a maioria seja antiesquerda. Assim como o campo progressista vê militares como um bloco, assim eles veem Lula, Dilma, Boulos, Freixo, ONGs, feministas, ambientalistas, militantes LGBTs, negros… Todos são considerados parte de um mesmo bloco, que por  antagonismo o Partido Militar considera inimigos, portanto passíveis de eliminação. O Partido Militar não é um partido parlamentar tradicional, mas um partido ‘guerreiro’, para quem a democracia é um meio, não um fim. Por isso, não adianta procurar dentro do bloco o interlocutor favorito, acreditando que eles “preferem o Lula” por causa das relações de equidistância mantidas anteriormente. O cálculo do Partido Militar é pragmático: quem detém maior poder decisório.

Nem todo militar do Partido Militar aderiu ao bolsonarismo pelo mesmo motivo. Existem pelo menos quatro grupos, com seus pares na sociedade: a) turma herdeira do porão da ditadura, b) turma da “boquinha”, c) turma “maria vai com as outras”, que acompanha a maioria, naquele momento pró- Bolsonaro, d) turma do “vale tudo para derrotar o PT”. Parte desse último grupo saiu do governo, e permanece participando no Partido Militar criticamente, como o general Santos Cruz. Portanto, não há que se tratar nenhum segmento como um bloco monolítico, embora ele seja bastante coeso.

Medir a correlação de forças interna de instituições insuladas é bastante difícil. O caso da não punição do general Pazuello ofereceu uma amostra da correlação de forças no Alto Comando do Exército, com maioria favorável ao Partido Militar e a Bolsonaro. Entretanto, Bolsonaro também testa o grau de adesão das instituições a ele. Hoje parte do Partido Militar busca uma terceira via para as eleições de 2022.

Não está no escopo desse texto, mas é o mesmo que ocorre com as polícias militares, muito diversas em cada estado. Organizar um levante simultâneo exigiria uma unidade organizativa bastante difícil.

 

Há divisões?

As tendências já apontadas não significam uma adesão automática de todos os membros do Partido Militar, ou da Instituição Militar, a uma tentativa de ruptura armada. Uma coisa é ser bolsonarista, outra muito diferente é pegar em armas para dar um golpe junto com Bolsonaro.

Em geral, diante de uma eminência de perda da coesão interna, militares recuam. As forças armadas podem sofrer divisões de tipo horizontal (praças x oficiais), vertical (conflitos entre as três Forças – Marinha, Exército e Aeronáutica), e divisões ideológicas. Também existem outros pontos de tensão operacionais, mas que não ameaçam a coesão geral.

Conclui-se que há no Brasil, hoje, coesão ideológica e vertical, e pequenas tensões no nível horizontal.

 

Tendências para o comportamento militar em 2022

O Partido Militar não deixará a política voluntariamente, e manterá seu ativismo, em primeiro lugar em torno dos seus próprios candidatos. Eles só deixarão a política se forem retirados dela.

Antes de mais nada, se o impeachment for pautado, é porque as forças armadas (Instituição) concordaram. O Legislativo não abriu enfrentamento com os militares nem mesmo diante das evidências de crimes absurdos colhidos ao longo da CPI da Covid-19. Ao contrário, parece recuar diante de qualquer ‘pronunciamento’ vindo dos meios fardados.

Enquanto muitos duvidam da realização de eleições em 2022, o Partido Militar organiza suas candidaturas no país inteiro. Parte dele busca por uma terceira via que, ainda hoje, não viabilizou o seu espaço político. Num cenário Lula x Bolsonaro, não se aliarão à esquerda. Caso a esquerda tenha vitória acachapante, negociarão o que conquistaram desde Temer: GSI, recursos, melhoramentos na carreira, e manterão em atividade seu “deep state tupiniquim” montado ao longo de todo o governo Bolsonaro.

A Instituição militar não tomará a iniciativa de uma quartelada. Hoje ela está bem posicionada para emitir avaliações quanto à lisura das eleições. Em caso de intensa desestabilização social provocada por segmentos armados antes ou depois das eleições, podem atuar simplesmente não fazendo nada, e posteriormente se apresentando como os novos viabilizadores da estabilidade.

 

O que fazer?

Diante de tantas denúncias, é bom acrescentar alguns anúncios. O primeiro deles é que forças armadas não pode mais ser uma pauta de ex-torturados políticos, assim como segurança pública não é uma pauta de jovens negros de periferia urbana. Por décadas, elas ficaram relegadas ao “cantinho dos direitos humanos”. Defesa e segurança são pautas de poder.

Se o campo progressista pretende mudar a inserção internacional periférica brasileira, precisa de uma estratégia de defesa. A política militar deve ser subordinada a essa estratégia, que precisa contar com forte componente civil. Um projeto de país deve trabalhar de forma combinada questões sociais e questões nacionais. A retomada dos símbolos pátrios, como a bandeira brasileira, precisa fazer parte desse processo.

Há diferentes explicações sobre os motivos de Lula, quando presidente, tenha adotado uma coexistência pacífica com as forças armadas: falta de vontade política, carência de formulação estratégica, falta de especialistas civis na área, etc. Entendemos que ocorreu um cálculo principalmente político: uma instituição com alta aprovação popular x baixa presença de força social organizada propondo mudanças ao redor da pauta militar.

Candidatos e eleitos do campo progressista para mandatos no Executivo e no Legislativo não precisam pedir “a benção” da Instituição militar para exercer o que a soberania popular lhes outorgou. O diálogo é importante, mas deve ter como interlocutor todo o povo brasileiro. O campo progressista precisa praticar educação popular em defesa, partindo de uma discussão sobre o papel do Brasil no mundo, a necessidade de uma política de defesa para a soberania nacional e, por fim, discutindo para que servem as forças armadas.