Observatório do Capitalismo Contemporâneo – Financeirização na Educação

O Novo Ensino Médio aprofunda a desigualdade entre escolas públicas e privadas, com implicações sobre as oportunidades de acesso ao ensino superior. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.

 

Agosto de 2021

 

Apartheid das crianças e jovens com deficiência, reforma do ensino médio com disseminação do empreendedorismo, desmonte do Enem e das políticas de acesso à universidade. Esses são alguns dos eixos que sustentam o projeto educacional do governo Bolsonaro. Vamos ver.

 

O labirinto da exclusão

Há muitas coisas ruins ocorrendo na educação brasileira. Mas se há algo que simboliza o espírito do bolsonarismo é a exclusão de pessoas com deficiência do convívio coletivo em sociedade. O decreto governamental que estabelece a Política Nacional de Educação para Alunos com Deficiência entrou em vigor em outubro do ano passado, mas foi suspenso pelo ministro do STF Dias Toffoli em dezembro. O texto previa a criação de escolas específicas para atender pessoas com deficiências. Agora, o Tribunal está ouvindo a opinião de especialistas e organizações sobre o tema para tomar uma decisão a respeito de sua constitucionalidade.

Em nota oficial, o MEC afirmou que o decreto busca “ampliar a inclusão”. Mas a explicação do ministro Milton Ribeiro sugere o contrário. Segundo ele, os alunos com deficiência “atrapalham” os demais, o que justificaria seu afastamento do convívio geral. A fala absurda gerou repúdio de vários setores. Segundo o secretário-adjunto de Políticas Sociais e Direitos Humanos da CUT, Ismael Cesar, essa é “uma política que reafirma todo o tipo de preconceito e é antidemocrática”. Em resposta à fala do ministro, o Senado aprovou um projeto que dá prioridade para estudantes com deficiência na hora da matrícula escolar.

Dias depois, em reunião reservada na Câmara dos Deputados que discutia a modificação da proposta do governo, Milton Ribeiro pediu desculpas por seu comentário. Parece haver um consenso entre os deputados de que o processo de inclusão deve se dar dentro da sala de aula, através do convívio com as outras crianças, e que os centros especializados cumprem um papel complementar, mas não substituem a escola.

Mas o problema está longe de ser resolvido. Se é verdade que o modelo de inclusão deva se dar sem segregação, como prevê a Constituição e a LDB, também é verdade que para viabilizá-la são necessários muito mais recursos para as escolas e profissionais adequadamente formados para o trabalho. Afinal, há um verdadeiro abismo quando o assunto é acesso à educação. Dados do IBGE para o ano de 2019 mostram que havia cerca de 17 milhões de pessoas com deficiência no Brasil, o que correspondia a 8,4% da população. Desses 17 milhões, 67% não haviam completado o ensino fundamental. Ou seja, para os portadores de deficiência, o acesso à educação ainda é uma exceção.

 

A pedagogia MEI

Enquanto as escolas públicas retomam o ensino em sala de aula, tendo que preocupar-se com praticamente tudo, do contato com as famílias e estudantes à organização do espaço escolar, as instituições privadas concentram-se nas discussões acerca do Novo Ensino Médio. Proposto em 2016 no bojo da Base Nacional Comum Curricular e com aplicação prevista para 2022, o Novo Ensino Médio prevê, segundo o governo, o aumento do tempo mínimo do estudante na escola (de 800 para 1.000 horas) e um conjunto de “itinerários formativos, com foco nas áreas de conhecimento e na formação técnica e profissional”.

No papel tudo parece muito bonito. Em tese, seria uma espécie de ensino técnico profissionalizante acessível a todos. A cartilha do Sindicato das Escolas Privadas do Rio de Janeiro (Sinepe/RJ) afirma haver “um cenário de modernidade que se descortina”, e vê a possibilidade de um “ensino diversificado, liberto de amarras que congelam o currículo e tolhem a liberdade das escolas e dos estudantes”.

No entanto, na prática a teoria é outra. Com base nas experiências dos estados que já estão implementando o novo modelo, especialmente São Paulo, especialistas apontam que o Novo Ensino Médio aprofunda a desigualdade entre escolas públicas e privadas, com implicações sobre as oportunidades de acesso ao ensino superior. Por outro lado, a proposta também não tem a carga horária necessária para oferecer um ensino técnico qualificado, capaz de garantir uma vaga no mercado de trabalho.

Quer dizer, se, como defende o governo paulista, o Novo Ensino Médio deveria vir para resolver o problema da geração nem-nem, ele acaba sendo um ensino nem-nem: nem prepara para entrar na universidade, nem capacita para o mercado de trabalho. Sustentando-se numa lógica liberal e no ideário do empreendedorismo, essas mudanças criam novas oportunidades para o setor privado parasitar as escolas públicas, por meio de diversas formas de contratação e licitação de serviços.

As organizações sindicais no Rio Grande do Sul e no Espírito Santo, apontam também que este modelo de ensino vem acompanhado da precarização do trabalho docente, tanto no setor público quanto no privado, com a redução de carga horária em diversas disciplinas, especialmente na área de ciências humanas, enxugamento do quadro de professores e achatamento dos salários.

Seguindo o mesmo espírito de “qualificação profissional”, o governo está lançando outros programas educacionais, como o Qualifica Mais – Progredir. Ele deve abranger os beneficiários do Programa Auxílio Brasil, nova fachada do antigo Bolsa Família, e busca incentivar a formalização de microempreendedores individuais (MEIs). Na prática, é uma forma bonita de o governo dizer que não haverá emprego para toda essa gente. Segundo estimativas dos ministérios, haverá um investimento de R$ 37,5 milhões em cursos de formação continuada, mas não está claro como e quando isso será feito.

Na outra ponta, porém, há corte orçamentário, o que comprova que o Novo Ensino Médio é parte da política de desmonte. O Senado discute a desobrigação dos recursos mínimos destinados à educação por parte de governadores e prefeitos, o que afetará diretamente o ensino básico. A proposta inicial previa isenção apenas para 2020, mas uma nova emenda permite a extensão da medida para o ano corrente. O principal argumento é o famigerado “impacto nas contas públicas durante a pandemia”.

A União Nacional dos Dirigentes da Educação (Undime) também tem surfado na nova onda do empreendedorismo. Um de seus programas é o “Educação Empreendedora”, que visa a “disseminação de formações online de educação empreendedora para profissionais de educação, que serão disponibilizadas gratuitamente para secretarias municipais de educação a nível nacional, gestores, diretores, profissionais de educação e alunos”. Já o Banco Central vem disseminando a tal educação financeira, que é apenas outro nome para a ideologia do empreendedorismo para os pobres. O seu novo programa, chamado Pla-Pou-Cré, (iniciais de planejamento, poupança e crédito) pretende levar a educação financeira para 100 mil escolas de ensino fundamental.

Ao que parece, a outrora Pátria Educadora assemelha-se, cada vez mais, a uma Pátria Empreendedora, ou, em outras palavras, a um país em que o indivíduo, e somente ele, é responsável pelo seu “sucesso”.

 

Programa Universidade para Poucos

Apesar de não estar formalizado em lugar nenhum, esse é o novo programa do governo federal para o ensino superior. A intenção foi expressa com todas as letras pelo ministro da educação: “a universidade deveria, na verdade, ser para poucos”. Como observa Gaudêncio Frigotto, esse anúncio mostra que, na perspectiva do governo Bolsonaro, o acesso à educação deve obedecer a um recorte de classe, em todos os níveis.

É exatamente por isso que as políticas inclusivas, como o Enem e o Fies, estão sendo sistematicamente desmontadas. Até mesmo entidades ligadas ao empresariado reconhecem esse fato. Estudo feito pela Semesp aponta que o número de inscrições de estudantes com renda familiar média de até três salários mínimos no Enem caiu cerca de 77%, e de estudantes que concluíram o ensino médio em escolas públicas ou são bolsistas integrais em escolas privadas caiu 20%. Assim, o número total de inscritos no próximo Enem, que deve ocorrer em novembro, é o menor dos últimos 16 anos: pouco mais de três milhões de estudantes. A Alguma coisa muito grave está acontecendo.

Parte desse problema deve-se ao fato de que o governo passou a cobrar a inscrição de estudantes antes isentos que, por algum motivo, faltaram ao Exame anterior, desconsiderando o contexto de pandemia. Partidos e entidades estudantis entraram com recurso no STF, e o tribunal decidiu derrubar a decisão do governo, mantendo as isenções. Mas há também problemas estruturais em jogo que ajudam a entender o tamanho da evasão. Segundo reportagem de Paula Adamo Idoeta, na BBC Brasil, os fatores determinantes para a baixa adesão ao Enem estão ligados às restrições impostas às classes mais baixas da sociedade para melhorar de vida. Muitos estudantes acabam abandonando os estudos para trabalhar, não se sentem preparados para prestar o Enem ou não vêem mais o estudo como um caminho para a ascensão social.

A jornalista Laura Mattos chama a atenção para o fato de que teremos  uma geração de estudantes ingressando nas universidades que cursaram apenas o 1º ano do ensino médio antes da pandemia. Os efeitos desse processo são difíceis de calcular. Além da defasagem educacional no futuro, a tendência é a de que o fosso entre a origem dos novos ingressantes aumente. A presidenta do Conselho Nacional de Educação, Maria Helena Guimarães de Castro, admite que “a maior parte das vagas das universidades públicas deve ser preenchida por alunos de escolas privadas, em uma escala superior à que já era realidade antes da pandemia”.

A pandemia não criou todas essas restrições, apenas as agravou. Os receios não são sem sentido. Afinal, muitos estudantes que nos anos anteriores conseguiram acessar as políticas públicas inclusivas, como o Fies, estão agora numa encruzilhada, vendo sua dívida crescer sem conseguir pagá-la. Essa é a realidade de pelo menos 1 milhão de estudantes inadimplentes com o Fies. Em reportagem, o G1 apresenta  diversos relatos de estudantes que tiveram que abandonar a faculdade durante a pandemia. Dentre os fatores mencionados, destacam-se a necessidade de trabalhar, a dificuldade dos jovens se deslocarem para outros estados ou municípios para estudar, a perda de vínculo com a universidade,  a dificuldade de acompanhar as atividades remotas, os problemas emocionais como ansiedade e depressão, e a dificuldade em acessar programas como o Fies e o Prouni.

Além das questões sociais envolvidas, há de se reconhecer que o governo também tem feito a sua parte para desmontar as políticas de acesso. A novidade mais recente é a intenção do Inep de terceirizar o banco de questões que são utilizadas no Enem, fragilizando a segurança da prova e impondo um “filtro ideológico” sobre as questões utilizadas. Além disso, a gestão de Milton Ribeiro à frente do MEC vem desmontando a estrutura do Inep, como mostra reportagem da Piauí. Segundo a matéria, o caos ocorrido no último Enem, em janeiro de 2021, quando estudantes não puderam fazer a prova por falta de espaço nas salas, deveu-se em grande parte às negligências do ministro. Segundo ele, “o Inep não tem política própria” e “as políticas educacionais no Brasil são realizadas lá no gabinete do ministro e têm que vir em consonância com a visão educacional do senhor presidente da República”. Entende-se porque a coisa está do jeito que está.

 

“Cala a boca” já morreu?

O governo Bolsonaro não tem qualquer projeto educacional para apresentar. A sua grande aposta, o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim) não passa de um arremedo sem qualquer impacto significativo sobre a realidade nacional. Em 2020 foram 53 escolas convertidas em cívico-militares e há outras 74 em processo de implementação neste ano. A mais recente foi inaugurada no dia 23 de agosto, no município de Taubaté (SP). Ou seja, é uma gota de propaganda num oceano de precariedade, que serve principalmente para dar emprego para os militares da reserva.

Mas se não há projeto de educação, há sim um projeto de poder, e este tem natureza autoritária. Pululam exemplos país afora. A Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza (CE) determinou e instaurou processo administrativo contra um professor de geografia que elaborou uma questão que sugere que Bolsonaro foi responsável pelo grande número de mortos durante a pandemia. A denúncia foi feita pelo deputado federal André Fernandes (Republicanos).

Já em Criciúma (SC), dois episódios comprovam que, mais do que as praias, é a cultura reacionária que torna Santa Catarina parecida com Miami. Um professor foi exonerado e acusado de “viadagem” pelo próprio prefeito do município, por ter exibido em sala de aula um clipe com a temática da diversidade. No mesmo município, estudantes de uma escola particular foram flagrados realizando saudação nazista em sala de aula. O episódio, ocorrido há cerca de três meses, veio à tona somente agora.

No âmbito do governo federal, o alvo preferido são as universidades públicas. O estudo “A liberdade acadêmica está em risco” está fazendo um levantamento dos casos de violações e ameaças ao exercício da liberdade acadêmica, como atos de perseguição e censura ocorridos nas instituições de ensino superior. Na maioria dos casos há uma similaridade preocupante: o governo não intervém para melhorar a qualidade do serviço público e sim para perseguir aqueles que pensam diferente ou fazem críticas.

Um dos artifícios que têm sido utilizados para criar um ambiente institucional hostil é a nomeação de reitores bolsonaristas não eleitos pela comunidade acadêmica ou cassar dirigentes progressistas. Desde 2019, 25 instituições já tiveram ferida a sua autonomia universitária. O caso mais recente foi a exoneração do procurador-geral da Unifesp, Murillo Giordan Santos, por ter feito críticas ao Ministério da Educação.

Em resposta a esses ataques, o Andes Sindicato Nacional realizou em agosto a semana nacional de luta contra a intervenção nas instituições federais de ensino. Digna de nota também foi a resposta do Conselho Universitário da Ufrgs, que por 59 votos a favor e 7 contra decidiu pela destituição do reitor e do vice-reitor que haviam sido nomeados autoritariamente por Bolsonaro. Esperamos que a moda pegue.

 

Negócios híbridos

É interessante notar que, mesmo com tamanhas dificuldades, o setor público continua sendo a alternativa para a maioria da população brasileira acessar a educação formal. Prova disso é que durante a pandemia houve um movimento de migração das escolas particulares para as públicas. Uma pesquisa da consultoria Rabbit aponta que o setor privado perdeu cerca de um terço das matrículas no último um ano e meio, enquanto as matrículas em escolas públicas cresceram.

Os dados das corporações educacionais relativos ao segundo trimestre do ano, divulgados em agosto, mostram que o setor privado ainda não conseguiu se recuperar dos efeitos negativos da pandemia. Mas o desempenho das corporações é variado. Enquanto Cogna, Yduqs e Bahema continuam tendo prejuízos, Ânima, Ser Educacional, Cruzeiro do Sul e Afya tiveram desempenho positivo.

Um dos grupos que tiveram melhores resultados é o Ânima, que teve lucro positivo no segundo trimestre e ampliou sua base de estudantes. O grupo tem apostado em cursos da área de saúde, que se valorizaram no contexto atual e permitem a cobrança de mensalidades mais caras. As negociações para a compra do Centro Universitário de Brasília estão avançadas, e o curso de  a medicina conta com 750 estudantes. Além disso, comprovando que as corporações são multisetoriais e que o setor educacional vive um momento de proliferação de novas mercadorias, o grupo Ânima agora investe também no mercado imobiliário. O projeto piloto terá início em Santos, no litoral paulista. A ideia é criar moradias estudantis próprias para hospedar os estudantes que vêm de outras regiões do país para estudar na Universidade São Judas Tadeu, especialmente no curso de medicina. Seria uma espécie de serviço integral, que incluiria, além da matrícula, também a estadia na região.

Outra companhia que teve desempenho positivo foi a Afya, que é cotada na bolsa de Nova Iorque. O foco deste grupo é o ensino na área de saúde. Com a recente compra da Unigranrio, a Afya pretende consolidar sua atuação nesta área com a criação de um campus modelo de medicina na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.

Um legado da pandemia para o setor privado foi a ruptura das fronteiras entre o ensino presencial e as modalidades à distância. Ainda que as mensalidades dos cursos EaD sejam mais baratas, são elas que estão garantindo o aumento do número de estudantes, enquanto os cursos presenciais ainda sofrem com a evasão. Podemos dizer que os processos de “digitalização” do ensino vieram para ficar.

Um exemplo notório são os cursos de biomedicina, que tradicionalmente são presenciais porque dependem de uma infraestrutura considerável. O EaD em biomedicina cresceu muito durante a pandemia com a substituição de laboratórios físicos por ambientes virtuais. Na verdade, o modelo que está se tornando predominante é o híbrido, que combina atividades presenciais e remotas, síncronas e assíncronas. Segundo uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes), este é o formato preferido por 55% dos estudantes brasileiros no momento atual.

No entanto, esse movimento é contraditório pois, enquanto o setor privado aposta na massificação do mercado EaD – que depende do uso intensivo de tecnologias de informação e comunicação (TICs)- , o acesso a essas tecnologias no Brasil ainda é muito precário e desigual. E a verdade é que a atuação do governo nesse sentido é contraditória com os interesses corporativos. O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem afirmado reiteradamente que não tem dinheiro para pagar internet para estudantes e professores da rede pública. Apesar disso, cerca de R$ 220 milhões disponíveis para o Programa Educação Conectada estão parados, sem qualquer destinação. Portanto, o problema real não é a falta de recursos e sim o fato de que a educação não é prioridade para o governo Bolsonaro.