Pesquisa sobre os Evangélicos e a Política

A participação das mulheres nas igrejas oferece um protagonismo, embora com um duplo vínculo de liberdade-opressão, que possibilita outras visões e rupturas diversas. Foto: Matheus Alves

 

Por Delana Corazza e Angelica Tostes

 

É impossível desconsiderarmos a experiência das mulheres que buscam refúgio na religião para alcançarem a justiça de gênero na América Latina, como aponta a teóloga Nancy Cardoso. As mulheres encontram na fé a sustentação de mundo para suportar as adversidades da vida. Pode parecer contraditório quando pensamos nas camadas de opressão que a religião cristã fez e faz nos corpos das mulheres por séculos, entretanto, as mulheres têm um Deus “misturado ao cotidiano mais simples” (GEBARA, 2017, p. 157) da vida. E dessa forma, pensamos o dia a dia como Agnes Heller, que dizia que “a vida cotidiana não está fora da história, mas no centro do acontecer histórico: é a verdadeira essência da substância social” (HELLER, 1989, p. 20).

E quando pensamos no papel da igreja, é necessário se ater ao fato que a pertença eclesiástica é escorregadia, sem muita rigidez e com negociações que outrora não eram explícitas. Quando as mulheres buscam na igreja esse refúgio, a palavra “igreja” pode ser um conjunto de igrejinhas em sua rua, bairro, assentamento. Eliza¹ , de 28 anos, moradora do assentamento de Santa Helena (Goiás), membra da Assembleia de Deus e atuante no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) há 7 meses, pontua que em seu território existem “as igrejas lá, a igreja católica, a Assembleia também. Lá não tem isso, ou é evangélica ou é católica, não tem nomes de igrejas.” Mariana, do assentamento do Pontal do Paranapanema (São Paulo), também dialoga com a percepção de Eliza: “Sou da Assembleia de Deus Madureira, mas eu vou em outras igrejas, às vezes, eu vou. Não tenho esse negócio de placa de igreja, mas eu participo da Assembleia de Deus. […] É assim, você, na realidade, não pode se apegar à placa da igreja, porque é da Assembleia, da Quadrangular, ou é disso ou é daquilo.”

Essa pertença escorregadia não diz respeito à crença em si, mas às instituições que, ao que parece, se diluem nos produtos oferecidos: louvores, orações, ministrações da palavra, etc. A igreja auxilia em uma nova organização de vida e familiar, que se torna uma pauta central na disputa de narrativas no campo popular, trazendo para o jogo a discussão sobre as falácias da “ideologia de gênero” carregadas de machismo e  LGBTQIA+fobia. Além disso, a participação das mulheres nas igrejas oferece um protagonismo, embora com um duplo vínculo de liberdade-opressão, que possibilita outras visões e rupturas diversas. Nessa segunda parte do nosso estudo, buscaremos abordar as dimensões de gênero, raça, classe e sexualidade e como essas costuras dialogam com a dimensão de uma fé evangélica e suas contradições, limites e potencialidades. (Clique aqui para conferir o primeiro artigo da série).

 

Se você tem um problema, quando você vai para a igreja parece que o problema fica pequeno”; sobreviver é a revolução diária

Viver na miséria e na pobreza e sobreviver é fazer a revolução diária, é vencer a cada dia a batalha contra as forças da morte”
Ivone Gebara

 

Mães de família, cuidadoras, cozinheiras, líderes de célula, missionárias, equipe de louvor e dança, militantes… mulheres múltiplas que carregam em si as camadas de dor, responsabilidades, silenciamentos, mas que se reinventam e criam a vida, o pão, o teto.  Reorganizam a si mesmas e seus cotidianos.

É nessa reorganização da vida cotidiana, tantas vezes desordenada, que as mulheres encontram refúgio para reinventarem a própria vida. A pesquisadora Maria das Dores Campos Machado interpreta a adesão das mulheres das classes populares às igrejas evangélicas por uma aproximação do perfil social dos pastores e lideranças dessas Igrejas. Muitas vezes diferente da figura do padre, o pastor/pastora é alguém que já vivia na comunidade e que, conhecendo a realidade daquele território, consegue trazer em suas falas aquilo que se quer ouvir: respostas concretas às dificuldades familiares, financeiras e possibilidades de transformação dessa vida cotidiana a curto prazo. Os testemunhos nos cultos trazem sempre rupturas com uma vida anterior carregada de sofrimentos. Enquanto os homens procuram a igreja muito mais pela ameaça de sua identidade “masculina”, como quando estão desempregados, as mulheres procuram a igreja como forma de restabelecer (ou encontrar) o que consideram a saúde familiar, dado que se sentem responsáveis por curar o sofrimento no âmbito doméstico.

 

Conheci uma irmã no meio dessa dificuldade dessa minha vida vivendo sozinha com essas duas crianças, aí eu conheci uma irmã, uma mulher evangélica e comecei a conversar bastante com ela, ela me levou na igreja, fui para a igreja com ela e ali eu me converti e estou até hoje na igreja evangélica e foi o que me ajudou bastante. Eu vivia sozinha com duas crianças, ali eu fui bem acolhida; porque onde eu tava eu não fui bem acolhida, em outros lugares eu não tinha sido bem acolhida e ali os irmãos abriram os braços e me acolheram, a gente sentiu o amor, […] E foi ali que eu consegui me levantar e perceber que eu posso seguir sozinha com duas crianças. (Cristina, MST-SP)

 

É na Igreja que muitas mulheres encontram a inserção em redes de apoio, ampliando suas relações sociais para além da família. Eliane, mulher negra, dirigente do MST no Sul da Bahia, conta que se converteu ainda jovem, com 15 ou 16 anos. O motivo de sua inserção se deu pela ausência de outros espaços para viver a sociabilidade além do círculo familiar:

 

Eu morava em uma comunidade muito pequena, não tinha lazer, a gente não tinha para onde ir viajar, então o que tinha era a igreja, tinha as festas dos jovens, vinham jovens de outras igrejas para as festas.

 

Em meio às ausências, aos “vazios” e às tantas dificuldades psicossociais, é muitas vezes na relação tão próxima com a igreja, seus membros/as, pastores/as que as mulheres, outrora sem espaço social, se encontram e conseguem superar as adversidades. Cristina, de 55 anos, que vive no interior de São Paulo, partilhou sua experiência

 

A minha pastora ajudou também no casamento (da filha) com alimentos, ela fez a macarronada, porque a gente fez um almoço no casamento da minha filha, foi muito bonito. Eu pude comprar o vestido para ela, a gente comprou também o terno para o rapaz, essa minha pastora me acolheu muito, me ajudou bastante nesse casamento. Foi onde eu encontrei o amor que eu não tinha, entendeu? Ali eles me acolheram, eles me deram o amor (Cristina, MST-SP).

 

Essas redes, que auxiliam na sobrevivência do cotidiano, possibilitam ampliar a atuação dessas mulheres para além do espaço doméstico. Com as ambiguidades que as igrejas evangélicas trazem quando se pensa a mulher evangélica no Brasil, elas proporcionam um resgate na autoestima, dando oportunidade de participação efetiva nas tarefas da igreja, como coordenar espaços de estudos e formações, ter voz através de uma oração ou palavra profética, pregar o evangelho ou participar do grupo de louvor, se engajar em missões para além de seu território e até na militância política, fazendo campanha para candidatos da igreja. A experiência de Eliza, moradora de Santa Helena, em Goiás, pode ser um exemplo.

 

Minha mãe é cantora, eu e a minha irmã também, nós somos dupla. Nós começamos a cantar quando eu tinha três anos e minha irmã quatro. Nós já saímos por esse mundo afora cantando bastante, não em outros Estados, mas por aqui tudo. Estado de Goiás todinho já fomos cantar, em outras igrejas. Onde chamava a gente para ir, e ainda chama, a gente vai. (Eliza, MST-GO)

 

Uma outra experiência desse protagonismo feminino nas igrejas evangélicas pode ser observada pela fala da companheira Cleide, também de Goiás:

 

Minha tarefa dentro da igreja como diaconisa me leva a vários aspectos (…) a tarefa proposta pela igreja como diaconisa é essa parte social, visitar as pessoas carentes ou não carentes, seja em qual parte da sociedade ela estiver, se ela está precisando de uma ajuda, seja financeira, seja doença, alguém da família precisa de oração, precisa de alimento, seja de congregação, de estar ensinando a própria palavra de Deus, ensinando a bíblia, pregando.

 

Interessante também pensar no papel dos cultos. Diferente das igrejas católicas e protestantes históricas, com cultos mais formais, as igrejas pentecostais incorporaram elementos catárticos da religiosidade popular brasileira. Seus cultos são momentos repletos de músicas, danças e pregações de alta carga emotiva. É, muitas vezes, o espaço de lazer e de fruição estética, em bairros onde não há teatro, cinema e com pouca oferta cultural (FERNANDES, 2010). Eliza nos fala sobre essa sensação:

 

Mas a igreja é a única coisa que traz alegria ao meu coração. É uma alegria que a gente sente, sabe quando você bebe, mas fica alegre? Então, mas quando você bebe você fica com aquela felicidade de momento, agora quando você está na igreja a felicidade é sempre. (Eliza, MST-Goiás)

 

Para além dos aspectos psicossociais, como construir novos laços e se transformarem em protagonistas de diversas ações, fundamentais para a inserção e permanência dessas mulheres nas igrejas, a pesquisadora Patrícia Birman destaca o papel das mulheres como mediadoras entre a esfera doméstica e a Igreja. O papel de conversão das mulheres em relação à sua família, como possibilidade de restabelecer a harmonia dentro do lar, não é um papel secundário – uma família crente, em muitos territórios periféricos, é vista como uma família respeitável, trabalhadora, confiável.

 

Meu companheiro é evangélico, a família toda. E meus dois filhos. A gente, na época, tava meio afastado da igreja, tipo assim: um pé no mundo, um pé na igreja. Não sei se você me entende… Aí, assim, eu conheci ele, ele também tava afastado da igreja. Já tinha sido obreiro da Universal (Igreja Universal do Reino de Deus), aí por coisas da vida que acontece a gente acaba esfriando, porque ele tava afastado também. A gente se conheceu, começou a namorar, só que em mim, eu sabia que tava errado porque tava lá, era um bar, tava bebendo – olha só esse tipo de evangélica. Mas naquele momento que eu tava ali bebendo com ele, eu senti que aquele não era o lugar que eu deveria estar. Aí a partir dali, eu fui pra casa, passou um certo tempo, aí eu falei assim: ó, a gente só vai continuar namorando se você voltar para as coisas da igreja, se você voltar para as coisas da igreja comigo, ser evangélico comigo. Ele respondeu para mim: eu volto, porque eu também já estava, mas estou afastado. Aí de lá pra cá, a gente se casou e vive juntos super bem e seguindo.” (Vera, MST-AL)

 

Não são raros os depoimentos que trazem a conversão como reorganizadora de uma vida familiar “desordenada”, segundo a concepção crente, superando problemas de saúde e financeiros, como alcoolismo e desemprego. Essa reorganização concebida através da rigidez da vida religiosa, suas regras e construções da identidade crente, possibilita mudanças em diversos sentidos na vida cotidiana.

 

Eu queria uma paz para mim, uma paz interior, porque antes eu era muito agitada. Assim, eu me sentia sufocada, porque eu era terrível antes de ser evangélica, meu estopim era aqui. Depois que eu me tornei evangélica, aprendi a me controlar, a ter mais paciência, mais calma, porque eu penso muito mais agora. Antes parecia que meu tico e teco não funcionavam direito. (Luana, MST-SP)

 

Tornar “saudável” uma família “desordenada” é estrategicamente necessário para as igrejas evangélicas – que apostam, em sua maioria, no perfil da família heterossexual como o ideal a ser preservado. Para grande parte dos evangélicos, a família é uma instituição divina que se realiza por meio do casamento entre homens e mulheres e a igreja é a continuidade dessa família. Nesse sentido, dentro desse pensamento há um diagnóstico que essa família heterossexual está ameaçada e doente, necessitando de mudanças. Sendo assim, essas igrejas passam a ter um papel importante contra a violência doméstica e algumas vezes contra a extenuante jornada de trabalho das mulheres, por meio de grupos de discussão e atendimentos jurídicos e psicológicos. É importante salientar que essas pautas não irão questionar as relações hierárquicas entre homens e mulheres, fundantes dessas violências e sobrecargas; o objetivo é salvar a mulher – leia-se: colocá-la em uma situação mais “igualitária” dentro de casa, dado que a divisão de tarefas domésticas libera a mulher crente para ser mais ativa dentro da igreja –  a partir de preceitos quase sempre conservadores, reconhecendo, do ponto de vista estratégico, seu papel necessário na igreja e da estrutura familiar. Para a teóloga Nancy Cardoso:

 

O que as igrejas deveriam discutir é o lugar das famílias na dinâmica de reprodução da desigualdade, da exploração, da submissão, vitais para a manutenção do capitalismo. Mas o que interessa é manter o padrão! Não alterar as hierarquias de poder. As igrejas no Brasil são expressão desse patriarcalismo que se auto-reproduz com teologias e pastorais de exclusão, alienação e minoridade política das maiorias de mulheres cristãs. Neste sentido, não podem aceitar que nenhuma das peças do engenho patriarcal seja movida: nem nas questões reprodutivas, nem nas questões de propriedade, nem nas questões eróticas, nem na masculinidade etc. (2008)

 

A fala de Nancy vai ao encontro à da companheira Eliane, que acredita que há ainda um caminho longo até que a Igreja seja espaço para além do necessário acolhimento, mas também de reflexão e de libertação, principalmente para as mulheres:

 

Hoje é impossível discutir raça, discutir gênero, quem sabe daqui há dez anos, através dessa entrevista, dessa pesquisa que você está fazendo… o movimento (MST) luta por igualdade para que possamos debater, discutir, refletir, mas as igrejas evangélicas estão lá no cantinho, não tem essa visão ainda do Movimento.

 

Fátima, de Goiás, aponta os limites para o aprofundamento e o debate sobre a questão de gênero, ainda que tenham espaços específicos de escuta para as mulheres:

 

A igreja escuta, mas… não quer fazer discussão… Assim: ‘vamos discutir essa pauta aqui’. Não. Ela acha que já fez a reunião no núcleo (de mulheres) e não tem que discutir dentro da igreja. Então tende a ter essa dificuldade.

 

Observamos, portanto, que quando falamos que as mulheres seguem ocupando espaços fundamentais nas igrejas e, por vezes, indispensáveis, sem discutir as raízes da desigualdade entre gêneros, passamos da linha tênue que separa o  protagonismo de fato  de um protagonismo formal, “cosmético”, pois ao mesmo tempo que oferece à mulher um livre exercício, muitas vezes reforça o papel do cuidado que é invisibilizado em diversas instâncias. No mês de março de 2021, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social publicou o dossiê n°38, Desatando a crise; trabalhos de cuidados em tempos de coronavírus, abordando o “‘trabalho invisível’ de nossas sociedades, em referência a todas essas atividades que, embora fundamentais na produção e reprodução da vida, nem sempre são reconhecidas ou remuneradas”. Ana Raquel Rosa do Couto, integrante do Movimento Negro Evangélico do Rio de Janeiro, pensa como são essas processos dentro das igrejas:

 

Como mulheres, somos invisibilizadas nos lugares de “esposa do pastor”, “tia da cantina” ou “zeladora da igreja”, ministérios ligados à arte e ao cuidado das crianças, ministério de dança, backing vocal dos grupos de louvor… Enfim, espaços que tendem a conferir pouco protagonismo e, com frequência, são considerados em segundo plano, ou apenas com caráter de complementaridade. Tais posições dentro dos ministérios só refletem como somos vistas.” (2021, p. 120-121)

 

A fala dialoga com o pensamento e crítica da teóloga feminista Ivone Gebara, que acredita que “a desigualdade no exercício do poder e a injusta divisão social do trabalho continuam como uma visível expressão da desigualdade antropológica e da desigualdade de direitos nas instituições da religião” (GEBARA, 2017, p. 183). Ana Raquel vai além e pensa a partir da relação das mulheres negras que sofrem as consequências do racismo estrutural presente em todos os campos da sociedade. “Nós, mulheres pretas, correspondemos à maioria das frequentadoras da igreja evangélica. Somos tão necessárias, por gerir a vida em toda sociedade” (COUTO, 2021, p. 121). São esses corpos e vozes que vão construindo resistências.

Esses corpos imersos em mundos contraditórios, entre aquilo que se sente e aquilo que se submete, estão em disputa. Não podemos aqui, ainda que consideremos a importância da igreja na vida cotidiana dessas mulheres, desconsiderar como elas e seus corpos acabaram sendo acorrentados pelos fundamentalismos religiosos. A contradição na vida concreta das mulheres – igreja como proteção e também controle dos corpos – será um nó fundamental a ser desatado, dado que em diversos momentos entrarão em choque.

 

Não há espaços na igreja evangélica para discutir a classe, a raça e o gênero – fica parecendo que tudo é normal, que tudo é comum, que não há necessidade de discutir. Sobre gênero, discutir a questão LGTB é algo que não se cogita. Outra questão que me chama muita atenção, faço meu trabalho de formiguinha. Por exemplo, na minha condição de dirigente do círculo de oração, são as mulheres que vão, eu busco de alguma forma fazer o debate, ainda muito superficial, mas criar alguns momentos. Chá com mulheres – a gente discute a nossa condição, mas ainda é uma condição espiritual, eu vou aí, sutilmente, discutindo sobre a violência, física e psicológica. Aí falam para a irmã orar, aí eu falo que Jesus não quer que soframos, não quer nos ver viver uma vida submissa – qual o limite da submissão? Jesus quer que você passe por uma violência? São esses diálogos que tentamos fazer, mas classe, gênero e raça, está longe. Se a pergunta é: discute-se classe, raça e gênero nas igrejas evangélicas? Eu respondo: não. (Eliane, MST-BA)

 

As tantas narrativas bíblicas lidas muitas vezes de forma descontextualizada, anistóricas e interpretadas como convém, submetem esses corpos ao heteropatriarcalismo, assim como alimentam discursos contra uma bandeira política fundamental para o campo progressista: a luta pela igualdade de gênero.

Ivone Gebara nos traz a reflexão de como corpos apaziguados pela proteção – dado que a igreja, como abordamos, muitas vezes é o único lugar que as mulheres conseguiram respirar em meio ao sufoco de uma vida marcada por violências – acabam por serem obrigados a se tornarem  obedientes às leis rígidas e exigentes submetidas a uma ordem patriarcal:

 

As religiões, nascidas dos corpos contextualizados os ajudam a viver, mas ao mesmo tempo, controlam suas vidas. A obediência às leis que estabelecem passa a ser a forma de controle dos comportamentos. Para manter a ordem estabelecida por um lado, as religiões apaziguam os pequenos medos, mas quase ao mesmo tempo, criam medos maiores. O medo do castigo divino é usado como forma de controle (GEBARA, p. 51, 2019).

 

O  pastor, que também se encontra na disputa entre os fundamentalismos religiosos e a necessidade concreta do povo, é para muitas dessas mulheres figura fundamental que acalma, tranquiliza, mas também utiliza seu poder de controle e, muitas vezes, é a última palavra em suas decisões:

 

Minha irmã me chamou (sobre o Encontro das Mulheres), ‘olha, teu nome está na lista, você não quer ir?’ Eu disse, ‘eu quero’, e ela disse: ‘pois nós vamos’. Mas quando a gente sai assim, a gente conversa com o pastor, aí ele diz: vai, se for a vontade de Deus, vai. Porque a gente tem que orar primeiro para pedir a permissão de Deus, aí o Pastor só diz: ‘só não faz isso, isso, isso’. (Lourdes, MA-MST)

 

No entanto, esse poder e essa palavra final não ocorrem sem resistências. As mulheres cultivam uma espiritualidade que é enraizada no corpo, e questionam decisões e falas, embora ainda que silenciadas. Denise, da Assembleia de Deus do Brasil, acampada há 22 anos no sul de Minas Gerais, no Quilombo Campo Grande, traz a seguinte voz:

Uma coisa que gera contradição dentro da igreja, principalmente quando é colocado pelos homens, a gente chama a discussão, se reúne, discute, fala o que não gosta.  E o que for maioria aí, fica. Lógico que o pastor quer ter uma hierarquia maior, mas a gente fala: a gente não tá satisfeita, não tá confortável com isso. E a gente vê o que dá pra fazer. Então, sempre a gente tá nesse pé.

Quando perguntamos diretamente sobre as contradições das tantas identidades dessas mulheres, as respostas demonstram as negociações internas e que elas não são necessariamente uma ou outra coisa, mas a composição dialética entre essas e as diversas outras identidades:

 

Submissão. Ser submissa. Desde criança, eu sempre fui muito assim, eu acho, assim, que os direitos são iguais, né? Para ambas as pessoas. Só que graças a Deus, hoje em dia mudou muito, porque quando eu era criança, mais nova, lá em casa era só eu e minha irmã que arrumava a casa. Eu tenho irmãos Edgar, Erivan e Eugênio. Mas agora meu pai já vem ajudar a esposa, ser companheiro. Mas ainda tem aquele que a palavra dele é a última, se ele falar não é não, ainda tem. Mas mudou muita coisa, graças a Deus. Então, meu defeito um pouco é essa coisa de submissão, porque eu não sou muito. (Eliza, MST-GO)

 

Interessante perceber a clareza e o inconformismo diante das desigualdades cotidianas. No entanto, a insubmissão é colocada como um defeito, ao mesmo tempo que faz parte daquilo que ela é. As negociações internas aparecem, se confundem, se superam, permanecem… Não é simples se deslocar quando os espaços se chocam, se (des)encontram:

 

A igreja às vezes nos enquadra, a gente tem que encontrar jeitos de ir nos desenquadrando. Por muito tempo eu não conseguia me ver em um espaço como nesse de ontem (culto ecumênico). Há uns 4 anos atrás me chamaram para coordenar um culto ecumênico e eu não consegui. A religião às vezes faz isso de dizer o que eu tô fazendo é o certo; durante muito tempo eu fiquei nessa condição. O movimento me ensinou que há possibilidade de nós sermos diferentes, mas de entender que a nossa luta é pelo mesmo objetivo. A luta e o MST me ajudaram a compreender isso. Não vou ser hipócrita de dizer que é comum isso, que é comum esse diálogo (entre distintas fés), temos ainda nossa diferença e nossa dificuldade de dialogar; ainda há esse estranhamento. (Eliane, MST-BA)

 

(Des)Encontros de si: identidades em disputa

A pesquisadora e jornalista Magali Cunha alerta para estas questões, dialogando com os fundamentalismos que se fincaram na América Latina e que ressoam principalmente nas camadas populares, a partir de um discurso muito eficiente: a proteção àquilo que é a única coisa que ainda podem ter: uma família. A moral bíblica da família heterossexual e da mulher submissa ao homem são grandes pilares dos discursos que têm ecoado não só nas igrejas, mas no Congresso e no Judiciário. Qualquer tentativa de diálogo que questione essa família ou a autonomia das mulheres se torna uma luta contra o inimigo, algo tão caro aos fundamentalistas: aniquilar o outro, transformando as divergentes interpretações em algo demoníaco que deve ser destruído para o bem daquela família “apaziguadora”. Esse pânico moral construído e “resolvido” pelos fundamentalistas vai muito além da aparente preocupação com o mundo privado do povo: “o tema da defesa da família tradicional heterossexual revela-se como a ponta do iceberg de todo um projeto econômico-político mais amplo: manter as coisas como estão, o status quo, a ordem patriarcal” (CUNHA, 2020, p.30).

As pautas morais que tanto têm se falado na disputa contra os fundamentalismos têm um alvo determinante: moldar os corpos das mulheres para que caibam naquela família “saudável” que, de certa forma, tranquiliza uma família desestruturada, mas como dissemos, à custa muitas vezes de novos sofrimentos. A igreja, então, como vimos, é um espaço em que há muita ambiguidade e contradição. Os fundamentalismos religiosos se encontram em diversos espaços, independente da classe social, buscando estabelecer as relações hierárquicas e de poder. A começar com a imagem de Deus, leituras da Bíblia e a voz no espaço de decisão familiar e eclesiástica. As igrejas evangélicas, em sua grande maioria, se fecham para discussões sociais, e algumas palavras se encontram desgastadas nesse meio, como “direitos humanos”, “feminismo” etc.

A questão de gênero é pauta fundamental nas disputas de narrativas entre o campo progressista e conservador, tornando-se uma bandeira muito forte dentro do MST, como podemos perceber nas falas de seus militantes, nas campanhas, nos materiais pedagógicos e na própria organização do Movimento. As companheiras do MST, como vimos e ainda veremos neste e nos próximos textos, estão imersas na luta e na fé, muitas vezes não imunes aos fundamentalismos e às leituras da Bíblia que as colocam em contradição com as bandeiras que o Movimento defende. Destacamos aqui a fala de uma companheira que pede auxílio ao pastor sobre seu relacionamento:

 

(…) e toquei a minha vida para frente, e aí eu me ajuntei com um rapaz, fora da igreja, eu ainda era danada, eu disse para ele: ‘e você não vai para igreja?’ Ele disse que não, aí eu perguntei: ‘Pastor o que é que eu faço?’ Ele disse que o homem que está com a gente, não é lícito da gente, porque a gente não é esposa dele ainda, só tá junto, então a gente não é submissa a ele porque a gente não está casada. O que acontece é que você pode largar pois você não é submissa a ele, você vai encontrar uma pessoa melhor…” (Conceição, MST-MA)

 

Estar em um movimento social que luta pela mulher livre, emancipada e insubmissa não garante necessariamente que a submissão seja rejeitada ou questionada pelas mulheres que estão no Movimento. As divergentes leituras Bíblicas ainda estão em disputa, como abordaremos com mais profundidade nos próximos textos.

A relação entre o MST e a fé é viva, pulsante, com inúmeras mutações, nós e fissuras. É notório que a participação de um coletivo, seja em um movimento social ou na igreja, cria novas  identidades, símbolos e valores. Nas conversas com muitas companheiras e também em nossas participações nos cultos de igrejas evangélicas de diversas denominações, é muito comum ouvirmos discursos referentes aos “antes e depois” da conversão. A fala de Conceição aborda esse aspecto: “Mas quando eu aceitei Jesus, os irmãos me deram força, e eu fui liberta mesmo de cachaça, de cigarro, eu não quis mais fumar, e toquei a minha vida para frente”. O papel reestruturador da vida familiar sugere a negação de uma vida anterior permeada pela dor e sofrimento. Esquecer essa antiga vida, negá-la, são fatores fundamentais para a nova vida prometida, a vida com Jesus, onde poderão ser salvas. Essa nova vida não pressupõe uma transformação coletiva, dado que como mencionamos, a superação dos problemas não aborda os motivos que o criaram, são saídas individuais diretamente ligadas ao esforço e empenho de ser crente. A transformação possível da sociedade nos discursos e ações crentes se baseia necessariamente na conversão do outro – do indivíduo. Sendo assim, a máxima protestante “converta-se o indivíduo e a sociedade se transformará” faz com que se olhe para o passado necessariamente como negação. Rubem Alves traz essa reflexão e mostra como a religião foi se moldando às demandas da ideologia dominante, abandonando, nas palavras de Alves, o “protestantismo profético”, que visava tornar o povo mais consciente das complicações e frustrações do mundo. Entretanto, o autor assinala que “o momento emocional que vivemos, de desapontamento e cansaço, faz com que as respostas religiosas do tipo dogmático e final sejam muito mais atraentes” (ALVES, 1982, p. 78).

Os espaços de luta e formação do MST têm o enorme desafio de superar as visões dogmáticas de leitura do mundo e de culpabilização individual que permeiam o senso comum de nossa classe. A transformação de uma vida imersa em faltas e insegurança passa, necessariamente, pela compreensão de uma identidade coletiva, e construir esse sujeito coletivo parte de algo que a narrativa crente quer esquecer: o passado. Para o MST, construir o futuro é necessariamente resgatar o passado de cada indivíduo, compreendendo que fazem parte de um grupo de pessoas que, mesmo com todas as especificidades, são parte de uma história e de uma identidade comum. São trabalhadores, camponeses e, no processo de superação das desigualdades de gênero, são mulheres. Essa transformação em sujeito social-coletivo da mulher crente e militante do Movimento Sem Terra ainda não está resolvido, o que não quer dizer necessariamente que ela tenha que escolher entre ser crente ou ser militante. Pelo contrário, enxergar o companheiro de luta como irmão e o irmão de fé como companheiro é um passo fundamental para transformar seus sonhos individuais em sonhos coletivos.

 

Eu, como mulher, enquanto negra, enquanto militante do Movimento Sem Terra, eu busco através da minha fé através do ministério do qual eu faço parte – sou da assembleia de Deus Missão. Dizer aos companheiros e companheiras que a gente precisa através da nossa fé estabelecer o nosso EU dentro do espaço que nós estamos (Eliane, MST-BA).

 

Nas diversas negociações que as mulheres fazem dentro das suas múltiplas identidades, a vida cotidiana e a luta vão moldando suas formas de estar no mundo, não sem contradições, como trouxemos; são elementos internos e externos que seguem em diálogo e em conflito. A companheira Paula, de Minas Gerais, traz uma interessante fala para refletirmos como as mulheres evangélicas ocupam e atuam nesses espaços que têm criado as suas múltiplas formas de estarem no mundo. A Bíblia, o culto, a luta são partes dessas tantas formas, e a Igreja e o MST são fundamentais para suas escolhas e suas leituras de mundo. Vale a pena aqui transcrevemos a fala de Paula para podermos compreender como as identidades se somam e também se sobrepõe quando necessário, a partir de leituras da realidade forjadas na luta e na fé:

 

Dentro da nossa igreja a gente não discute política. Mas como assim? as mulheres que estão no assentamento têm uma atividade política orgânica, então a gente acaba discutindo, mas não na hora do culto, nas horas aleatórias, quando acaba o culto. É lógico que dentro da igreja tem aquelas pessoas que são mais conservadoras, que acreditam nas campanhas que eu chamo de falsa profecia. São falsos profetas que tão na política, que usam o nome de Deus, usam a bíblia, como armadura para poder dialogar com o povo que tá enganando. Porque nós acreditamos politicamente pelo MST, por mim própria, pelo o que eu leio da Bíblia, como eu leio a Bíblia.(…) Eu acredito que é uma hipocrisia de quem tá lá no poder, o que eles pregam não é o que tá escrito, eles pregam o que eles acham. A questão da mulher não ter voz, o desrespeito. Jamais Jesus desrespeitou uma mulher, pelo menos o que eu leio e o que eu acredito, ele não fez acepção de pessoas, nem de raça, nem de etnia. Ele simplesmente falou: medita de dia e de noite na sua lei, pra ver se você tá certo. É o que eu faço quanto à organização: eu to indo certo? Esse é meu objetivo? Porque o objetivo é a igualdade de todas as pessoas, todo mundo tenha direito, casa, carro, vida digna. E quem tá lá no poder e diz que a bíblia tá pregando a desigualdade… isso pra mim não chama nem conservadorismo, chama hipocrisia, ganância, tantas outras coisas nojentas. (…) Mas é isso, nossa sociedade é carente do saber. Porque as escolas não ensinam a verdade, ensinam a conhecer a cultura dos Estados Unidos, mas não fala da nossa cultura. Existe muitas coisas que levou a gente estar nessa política repressiva, política machista e racista. É por isso que existe o MST, para conscientizar sobre o que somos nós, o que é nosso direito.

 

O MST nunca esteve livre das possíveis contradições entre aquilo que se defende e a visão de mundo de sua base. São desafios cotidianos que a luta impõe e atravessá-los é um passo fundamental para o avanço na luta de classes e a construção de uma nova sociedade livre das tantas opressões.

O avanço do debate sobre gênero e a criação de instâncias e espaços de reflexões e ações sobre a igualdade entre homens e mulheres nasce a partir de um ambiente machista, fruto da sociedade patriarcal que vivemos e que, obviamente, o MST não esteve imune. Muitas visões tiveram e ainda têm que ser desconstruídas a partir das tantas vozes das mulheres sem terra e em luta. Essas desconstruções passaram pelas reflexões teóricas e pelos debates nos espaços de decisão, mas encontraram seus limites e contornos opressores também e, fundamentalmente, no cotidiano dos acampados e assentados. Transformar as relações de gênero na família sem terra, em suas tarefas e ações cotidianas, além de garantir a representatividade nas instâncias de decisão, foram processos longos que seguem em curso e que serão determinantes na construção de uma nova sociedade.

As possíveis leituras fundamentalistas traduzidas pela igreja aos seus fiéis impõe mais um novo desafio para o MST (se não novo, em um novo formato), de resgate e aprofundamento entre a fé e a luta. Nas entrevistas, percebemos tanto as contradições quanto as potências para esse diálogo profundo, que traremos em outro momento. Pudemos ouvir o quanto a luta pela terra está presente na vida cotidiana das mulheres crentes,  por meio do Movimento e também pela Igreja. A relação íntima de confiança dessas mulheres nesse Deus diverso faz com que, muitas vezes, a visão do Deus que pune e castiga seja substituída por uma Deus solidário e extremamente cúmplice, que compreende e apoia e que, na figura de Jesus, esteve ao lado dos pobres e das mulheres. Deus, a terra, a Bíblia e a luta são um encontro avassalador de construções e desconstruções, de opressões e libertações das identidades dessa mulher evangélica do MST. No próximo texto traremos os diálogos e a potência da luta para as mulheres de fé.

 

¹ Os nomes das entrevistadas foram trocados, com exceção de Eliane, dirigente do MST do Sul da Bahia.

Bibliografia

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