Algumas análises apontam que o poder religioso foi superestimado nas eleições, mas o debate é mais complexo.

 

N° 06/20

 

Bolsonaro e a teologia do domínio

O pastor Valdinei Ferreira, da Catedral Evangélica de São Paulo – Igreja Presbiteriana Independente -, esboçou reflexões sobre a teocracia à brasileira em artigo publicado na Folha de São Paulo. Segundo o pastor, a união de Bolsonaro com os evangélicos é a mais estável desde sua eleição; lemas como “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” ressoa muito bem aos ouvidos evangélicos, que estão acostumados com o versículo: “Feliz a nação cujo Deus é o Senhor” (Salmos 33.12). A teologia do domínio – que segundo Magali Cunha busca a reconstrução da teocracia, oferecendo uma cosmovisão cristã para a obtenção e manutenção do poder de evangélicos/as em esferas públicas – está sendo cada vez mais enraizada no Brasil. Para o pastor Valdinei, “a cultura evangélica herdou dos protestantes históricos o sentimento típico das minorias religiosas: ‘somos poucos, mas melhores’; e, das práticas pentecostais e neopentecostais, o espírito triunfalista: ‘somos menores, mas podemos conquistar o poder e, então, chegaremos à condição de maioria’. Valdinei relembra o papel dos profetas do Antigo Testamento, que denunciavam o descaso de governos que não se preocupavam com as minorias e empobrecidos.

Enquanto a mídia conservadora gospel publica sobre o batismo da filha de Bolsonaro, de 10 anos, em uma igreja Batista, o presidente se reencontra com o pastor Silas Malafaia, após algumas discordâncias quanto a escolha de Kássio Nunes para o Supremo Tribunal Federal (STF).

As alianças entre religiosos e o governo tem se mostrado como tentáculos de um polvo, e partidos ligados a igrejas neopentecostais têm mirado o Executivo, após terem se estabelecido no Legislativo. No dia 12 de novembro, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro discutiu sobre o projeto de lei do deputado Capitão Paulo Teixeira (PSL), que regulamenta parcerias entre instituições religiosas e o Estado para realizar atividades sociais-educativas, de lazer e cultura, entre outros de caráter temporário ou permanente. A PL 2.915/20 aprovada no dia 17/11 depende apenas do governador em exercício Cláudio Castro, que decidirá se irá sancioná-lo.

O fundamentalismo religioso tem como marca a falta de empatia ao outro e a exclusão do diferente. A matéria do Intercept traz Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, dizendo que o diabo “tem o direito de tirar a vida” de “quem vive no adultério e no pecado”. Para Gilberto Nascimento, autor da matéria, essa fala se refere à tragédia ao ex-bispo da Universal, Alfredo Paulo, que perdeu a esposa assassinada pelo próprio filho. Alfredo liderou a Universal em Portugal entre 2002 e 2009 e foi afastado do cargo por traição. Ainda sobre a IURD, foi divulgada uma carta – nunca respondida – que o bispo Felner Batalha teria enviado a Edir Macedo avisando sobre as crises na igreja angolana.

 

Eleições e religião

Muitas análises têm sido feitas sobre o papel da religião nas eleições de 2020. Algumas apontam que o poder religioso foi superestimado, já que o “voto evangélico” não teria tido poder decisivo e nem seguido as indicações de pastores. Entretanto, não podemos ser precipitados e dizer que a religião não tem um papel importante nas eleições, mas sim, que as fissuras têm sido expostas e algumas delas um pouco mais aprofundadas. Como por exemplo, o fato da Câmara Municipal de São Paulo ter perdido três cadeiras “evangélicas” em relação as eleições anteriores, ficando com 11 vereadores. Entretanto, como Lívia Reis pontua, é necessário prestar atenção em um novo perfil de candidatos, como “o aumento significativo de candidatos e candidatas que se identificam como cristãos, sem assumir vínculo com uma instituição religiosa específica.”. Com identidades religiosas mais difusas, mas sem deixar de lado os “valores cristãos” e a “retórica da perda”, como observa Christina Vitual. “Esses atores políticos reivindicam a recuperação da ordem, da previsibilidade, da segurança e da unidade que existiam no Brasil e, em tese, foram destruídas por governos anteriores”, destaca Vitual.

Entretanto, as artimanhas das igrejas seguem firmes e fortes. Um exemplo disso é a experiência que a Agência Pública traz das estratégias da Igreja Universal do Reino de Deus em São Paulo. “Havia aproximadamente dez obreiros entregando santinhos nos portões do templo no dia da votação”. Além de terem ouvido por mais de um mês “relatos sobre campanhas dentro de igrejas e templos, que são ilegais (Lei 9.504/97), além de outras práticas irregulares envolvendo lideranças religiosas nas eleições deste ano. (…) E indicam que lideranças de grandes igrejas evangélicas, a exemplo da Universal, estariam usando o discurso religioso para influenciar o voto de milhares de fiéis e eleger aliados.” Outro ponto de destaque é o aumento expressivo do partido Republicanos, antigo PRB, que tem “suas principais lideranças, como o presidente do partido, Marcos Pereira, e o prefeito Marcelo Crivella, são bispos da Universal.” (…) “O racha no PSL dispersou os candidatos bolsonaristas. Sem poder contar com o Aliança pelo Brasil, que ainda não saiu do papel, eles acabaram se espalhando por outras legendas da direita. Entre elas, o Republicanos”.

Embora a religião não seja um tema novo nas eleições, a matéria Moral, Religião e Voto, da revista Piauí, aponta que esse tema vem ganhando novos contornos, com as identidades cristãs se baseando mais “em torno de pautas morais conservadoras do que propriamente a referências mais diretas à Bíblia ou a símbolos religiosos numa tentativa de mobilizar mais pessoas. Fala-se de religião sem necessariamente precisar falar diretamente sobre religião.” Outro elemento importante que a matéria traz é que “nessas campanhas, vimos mais Damares e menos Bolsonaro”, não apenas como um aparecimento de apoio, mas com pautas relacionadas a gênero e família. Um monitoramento das eleições em oito capitais, realizado pelo Instituto de Estudos da Religião (Iser), revelou que candidatos conservadores utilizaram a “ideologia de gênero” para acusar adversários. As estratégias do pânico moral e divulgação de informações e notícias falsas continuaram fortemente nessas eleições. A pesquisa se utilizou do termo “cruzada” contra a ideologia de gênero e, de fato, não é metafórico. “A ideia de que estamos em uma guerra esteve muito presente nos discursos dos candidatos engajados nessa cruzada, onde o outro é visto como inimigo a ser destruído sem qualquer possibilidade de diálogo.”

Seguindo esse caminho, a Agência Pública buscou compreender o fenômeno das “novas Damares” que estão surgindo pelo Brasil. Mulheres conservadoras, com discursos sobre “proteção das crianças, a defesa da família heteronormativa e as pautas antiaborto” e que buscaram o apoio da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos (MDH) para obter votos evangélicos. Muitas das novas candidaturas também têm títulos religiosos e militares, conforme apontou o observatório das eleições divulgado pelo UOL. Segundo a antropóloga Jacqueline Teixeira, “Damares é uma articuladora do voto feminino evangélico”. Entretanto, dos 9 candidatos que Damares Alves apoiou, apenas a vereadora de Belo Horizonte (MG) Flávia Borja (Avante) conseguiu se eleger.

No processo das eleições, diversos candidatos foram ao encontro de evangélicos para apresentar propostas e receber apoio, como foi o caso de Guilherme Boulos e Bruno Covas. Este último recebeu apoio de Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial do Poder de Deus, por manter igrejas abertas em São Paulo. Os candidatos de esquerda enfrentaram inúmeras perseguições por parte de mídias fundamentalistas cristãs (evangélicas e católicas). Silas Malafaia realizou campanhas e vídeos nas plataformas das redes sociais disseminando notícias falsas e dizendo que cristãos não votam em partidos de esquerda. “Não tem moleza, é pau, é ideológico”. Guilherme Boulos foi uma dessas vítimas de Silas Malafaia. “Líder da rede de igrejas Vitória em Cristo, Malafaia assumiu uma verdadeira cruzada contra a eleição de Boulos em São Paulo em 2020, da mesma maneira como investiu contra Freixo no Rio em 2016.”

No Rio de Janeiro, mesmo com o apoio de Jair Bolsonaro, Marcelo Crivella, bispo da IURD e ex-prefeito da cidade fluminense, não conseguiu se reeleger e perdeu apoio inclusive dos religiosos, mesmo tendo apostado no eleitorado evangélico e mudado de estratégia comparado a sua campanha de 2016, “quando procurou se afastar do rótulo de ‘bispo’”. Neste ano, Crivella levou para a propaganda eleitoral uma versão adaptada da canção gospel “Aleluia porque a luta continua” e intensificou os apelos religiosos nas redes sociais. Seu principal adversário, Eduardo Paes, foi ganhando espaço entre os evangélicos e recebeu apoio da Igreja Mundial do Poder de Deus. Mesmo com o atual prefeito atacando Paes, Crivella não conseguiu conquistar seu eleitorado e perdeu a prefeitura do Rio de Janeiro.

 

Hermenêuticas

Após a pregação do pastor batista Ed René Kivitz, em que ele diz que é preciso aprendermos a ler a Bíblia e atualizá-la ao nosso contexto, o mundo teológico evangélico voltou sua atenção à fala da Bíblia. Ed René Kitvitz aborda fatores essenciais para a hermenêutica do texto sagrado e traz para a discussão corpos marginalizados, como negros, comunidade LGBTI+, mulheres. Entretanto, para seguidores fundamentalistas – que tem na Bíblia a verdade literal e inspirada por Deus -, Kitvitz caiu em heresia.

Diversas foram as respostas, desde setores conservadores protestantes históricos aos neopentecostais. Um exemplo foi o encontro promovido pela Assembleia de Deus de Salvador, que realizou uma conferência intitulada “Educação Cristã”, na qual foi abordada questões hermenêuticas, como “proteger” a Bíblia, questões políticas e judiciais – focando nas sátiras do canal Porta dos Fundos – e no perdão das dívidas das igrejas.

 

Gênero e religião

Pensar o uso da “ideologia” para se referir a gênero tem uma função retórica significativa, ao separar as relações de gênero e suas estruturas da realidade, localizando-as no âmbito das crenças e ideias. A falácia da “ideologia de gênero” segue firme entre os setores fundamentalistas evangélicos e integralistas católicos, na manutenção da heteronormatividade e dos diferenciais de poder entre homem e mulher. Dias antes da votação da ADI 5668 ajuizada pelo PSOL, marcada para o dia 11 de novembro – que combate o bullying homofóbico nas escolas -, a Frente Parlamentar Evangélica se reuniu com o ministro do STF Luiz Fux para que a votação fosse adiada. A assessoria jurídica da Associação Nacional de Juristas Evangélicos também participou da reunião. Entretanto, não foi apenas a bancada evangélica que se manifestou; a Frente Parlamentar Católica do Congresso Nacional emitiu uma nota demonstrando preocupação sobre a votação.

O Colégio Franco Brasileiro, do Rio de Janeiro, adotou o uso gramatical de gênero neutro, afirmando que a “neutralização de gênero gramatical consiste em um conjunto de operações linguísticas voltadas tanto ao enfrentamento do machismo e do sexismo no discurso, quanto à inclusão de pessoas não identificadas com o sistema binário de gênero”. Entretanto, o deputado e pastor Marco Feliciano (PSC) fez críticas e ameaças em seu Twitter. “Vou propor ao MEC q suspenda essa excrescência e oficiar a PF para investigar o POSSÍVEL crime de opinião. Deixam nossas crianças em paz”. Jair Bolsonaro, aliado a bancada evangélica, também se manifestou contra o colégio e questionou: “qual o futuro da nação que age dessa maneira com a educação?”.

 

Intolerância Religiosa

Ao que parece, a intolerância religiosa não está de quarentena. Todo mês há denúncias de terreiros que foram queimados ou hostilizados. Tal intolerância está ligada a um racismo religioso, que ‘demoniza’ divindade de tradições de matriz africana. Segundo o babalaô Ivanir dos Santos, da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, as vítimas estão com dificuldades de realizarem as denúncias nesse período de quarentena, uma vez que muitos não têm acesso à internet para fazer o boletim de ocorrência online. Em entrevista, o pai de santo Leo Ty Logun Ede, que teve seu terreiro atacado no dia 5 de outubro, em Jacarepaguá (zona oeste do Rio), relatou que “este pessoal da igreja estava lá na esquina. Berravam ‘casa do Satanás’” . Discursos de ódio e violência, como o “exu corona”, dito pelo pastor Valdemiro Santiago da Igreja Mundial do Poder de Deus, como justificativa as dificuldades financeiras, inflamam seguidores a promoverem esse tipo de ataque”. Em entrevista ao Valor Econômico, Frei Betto critica a intolerância religiosa e aponta caminhos para esse enfrentamento.

 

Teologia Negra

Embora o rosto midiático do movimento evangélico seja de homens brancos raivosos, o rosto evangélico, apontado pelas pesquisas, é a face de uma mulher negra, visto que 58% dos evangélicos são mulheres, entre as quais 43% se identificam como pardas e 16% como negras. Entretanto, para o ativista e membro do Movimento Negro Evangélico Jackson Augusto, “não basta ser uma igreja majoritariamente negra: precisamos de uma igreja com uma consciência negra”. Nesse sentido, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social entrevistou a pastora metodista Eliad Santos para compreender o fenômeno da teologia negra e as periferias evangélicas pelo Brasil. Para a pastora, “foi preciso enegrecer Deus, acreditar que o libertador parece conosco para que continuemos cristãos, com esperança de dias melhores, de uma outra vida sem dor, sem indiferença, de um Deus que nos ama e cuida de nós.”

O teólogo Ronilso Pacheco publicou artigos sobre o racismo estrutural que atinge a população negra brasileira, provocando injustiças e mortes como o assassinato de João Alberto Silveira Freitas nas dependências do Carrefour, em Porto Alegre (RS). No mês na Consciência Negra, Ronilso ressoa a voz de Lélia González e disse que “estava evidente para Lélia que novembro não se resume em um mês de “celebração”. Novembro seria um mês de provocação. Este país dissimula suas contradições internas, negando o racismo, ou o reconhecendo de maneira abstrata, como algo que existe, mas que ninguém nunca viu.”

 

O uso da Cristofobia

A palavra “cristofobia” entrou no vocabulário popular evangélico após a fala proferida por Bolsonano na 75ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em que apela à comunidade internacional “pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia”. Diversas plataformas conservadoras evangélicas têm se utilizado de casos específicos para propagandear a cristofobia como uma suposta realidade brasileira. O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social refletiu sobre esse fenômeno no texto “Cristofobia, projeto de poder e as resistências da luta cristã”, em que trouxemos diferentes vozes para auxiliar nessa reflexão.

 

Eleições nos EUA

A eleição de Joe Biden foi uma surpresa para certos setores que contaram com o voto dos ‘cristãos brancos’ apoiadores de Donald Trump. As igrejas evangélicas foram mobilizadas em massa para esse voto pró-Trump. Embora a vitória de Biden signifique um enfraquecimento da política bolsonarista, é necessário ter em mente que as artimanhas imperialistas continuam e que isso não significa o fim da onda de extrema-direita que perpassa o mundo. “Presidente da Associação dos Pastores Evangélicos Brasileiros nos Estados Unidos, Leidmar Celso Lopes, participou de vários eventos de campanha do republicano e confirmou que os líderes religiosos exerceram influência na comunidade para votar pelo republicano.”