As farmacêuticas afirmam que sua capacidade de produção prevista para esse ano poderia alcançar 12,5 bilhões de doses. Foto: rangizzz / stock.adobe.com

 

Por André Cardoso*

 

A defesa da vacina contra a Covid-19 na maior crise sanitária vivida nos últimos tempos é quase uma unanimidade em toda sociedade, exceto para pequenos grupos negacionistas, como Bolsonaro e sua turma.

A importância da luta pela criação, produção e aplicação gratuita de vacinas massivamente que levam a erradicação de diversas doenças e a cura está na ordem do dia, seja pela relevância do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro na luta pela saúde pública e gratuita, ou mesmo nas amenidades da vida, como nos diversos filmes e livros de ficção, onde a salvação para um vírus que assola a humanidade em um futuro distópico é a descoberta da vacina, levando o planeta novamente a “normalidade”.

Mas, produzida a vacina contra a Covid-19, qual o real quadro para atendimento de toda a população mundial? Qual tem sido o papel dos países ricos ou pobres para garantir a vacinação, indistintamente, de toda a população mundial, o que chamamos de uma vacina popular? A ideia aqui é iniciar o debate, longe de ter todas as respostas, pois são muitos os desafios e vão exigir muitos desdobramentos.

 

Capacidade da produção global da vacina

Até março de 2021, existem 11 imunizantes em utilização no planeta, além de 261 vacinas em desenvolvimento e 79 em testes em humanos. A cada semana novas vacinas avançam no seu desenvolvimento e aprovação.

Segundo um estudo da Economist Intelligence Unit sobre as vacinas contra a Covid-19 no mundo, as nove principais empresas e seus imunizantes, em ordem de classificação, são:

  1. Pfizer (EUA) em parceria com a BioNTech (Alemanha);
  2. AstraZeneca (Anglo-sueca) em parceria com a Universidade de Oxford (Reino Unido);
  3. Moderna (EUA);
  4. Sputnik V (Russa), da empresa Gamaleya Centre;
  5. Vacina da SinoPharma (China),
  6. Coronavac do laboratório Sinovac Biotech (China),
  7. CanSino (China),
  8. Janssen, do grupo Johnson & Johnson – J&J (EUA);
  9. Covaxin, da Bharat Biotech (Índia).

As grandes corporações farmacêuticas afirmam que sua capacidade de produção prevista para esse ano poderia alcançar 12,5 bilhões de doses (valor subestimado como veremos a seguir). Só as nove principais acima mencionadas planejavam uma produção total entre 2020 e 2021 de 9,1 bilhões de doses.

Com uma população mundial hoje em mais de 7,8 bilhões de pessoas, caso a vacina fosse aplicada em duas etapas, a necessidade de doses para a imunização de toda população seria próxima a 16 bilhões, sem descontar as aplicações já realizadas até o momento. Embora com uma escassez de doses para imunização completa (segundo a previsão das corporações), para que se atinja a imunidade de rebanho, seria necessário que 70% da população fosse vacinada, segundo a OMS, ou seja, em torno de 5,5 bilhões de pessoas, sendo aproximadamente 11 bilhões de doses.

Se fosse um filme de ficção, que ignora a existência de qualquer conflito de classes sociais e países, teríamos a possibilidade de chegar nessa marca ainda em 2021.

 

O Imperialismo das vacinas

Mas em um sistema em que o lucro está acima das vidas, as saídas apresentadas pelos países capitalistas do Norte tendem a intensificar a crise, usando seu poder econômico para concentrar as vacinas em seus territórios, proibir a exportação das vacinas para outros países e defender a propriedade intelectual das grandes corporações farmacêuticas, ampliando as desigualdades contra os países do Sul Global.

Das 12,5 bilhões de doses planejadas para produção nesse ano, já haviam sido encomendadas pelos países ricos mais de 5,4 bilhões, mostrando a imensa desigualdade de sua distribuição global, como mostra estudo de janeiro da Economist Intelligence Unit.

As compras prévias feitas pelo Canadá podem vacinar cinco vezes mais toda sua população; as do Reino Unido têm a capacidade de vacinar três vezes o número de habitantes no país; e as compras dos EUA e da média da Europa podem vacinar duas vezes toda a população desses países, isso levando em consideração que cada imunização é feita em duas doses.

As três principais vacinas, Pfizer e Moderna dos EUA e AstraZeneca do Reino Unido, tiveram o lançamento de sua produção em larga escala nos países ricos. Além da compra prévia massiva por eles, a maioria dos países da Europa, com destaque para Itália, França e Alemanha, tem apoiado a proibição da exportação das vacinas produzidas em seus territórios para os países pobres e sem condições de produção nacional.

Nos EUA, a partir da Lei de Produção de Defesa – que permite que o presidente obrigue as empresas instaladas em seu país a priorizar a fabricação para a segurança nacional -, garantiu-se a produção de 100 milhões das vacinas da J&J com transferência de tecnologia para os laboratórios da Merck (EUA), podendo exportar caso o país não tenha mais necessidade delas. Contudo, os EUA têm hoje 30 milhões de vacinas da AstraZeneca estocadas no país, sem serem utilizadas, podendo estragar, visto que a vacina ainda não teve autorização para o uso em seu território.

Em Israel, ao invés de vacinar os quase 5 milhões de palestinos sitiados em seu próprio território, o país fez acordo de exportar o “excedente” das vacinas para outros países em troca de votos e embaixadas da ONU, segundo a Oxfam.

Dessa forma, diante dessas respostas dos países do Norte, o estudo da Economist afirma que os países ricos podem ter sua população vacinada até o meio do ano de 2021, já os países que chamam de intermediários (como Brasil e México) só terão sua população vacinada no início de 2023, enquanto os países mais pobres só teriam sua população vacinada, no melhor dos mundos, em 2024. É possível que tenham países que nunca vejam a vacina, tendo como exemplo imunizantes tão comuns como de pólio e tuberculose que existem há anos, mas muitos países ainda não têm acesso a elas.

As grandes corporações farmacêuticas desses países são as grandes beneficiadas dessas medidas. Não se trata de garantir a saúde de seu povo, mas o controle e concentração da produção em benefício dos lucros das empresas, contra a possibilidade de uma vacina que atenda a todos. Proteger a todo o custo as patentes, em especial das farmacêuticas estadunidenses, impedindo que a fórmula que permite a produção da vacina seja feita por outros laboratórios espalhados pelo planeta.

De fato, o que vem ocorrendo é um racionamento artificial feito pelas grandes corporações, como as três maiores produtoras de vacina: Pfizer/BioNTech, Moderna e AstraZeneca, e os três maiores laboratórios de vacina do mundo, GlaxoSmithKline (Reino Unido), Merck (Alemanha) e Sanofi (França), que tem em seus planos de produção o atendimento de apenas um terço da população global, tendo como barreiras a seu favor a proteção das patentes e manutenção do monopólio, como denuncia a People’s Vaccine Alliance.

A capacidade de produção global de 12,5 bilhões é falsa frente a essa denúncia. Há uma imensa capacidade de produção de vacinas que se encontram paradas por decisão das empresas (protegidas pelos países desenvolvidos) contra a vida da população dos países pobres; o imperialismo no cotidiano da pandemia.

 

A luta e resistência do Sul Global

Diante disso, Índia e África do Sul apresentaram em outubro de 2020 proposta na Organização Mundial do Comércio (OMC) para a suspensão das patentes de vacinas, medicamentos e insumos para combater a Covid-19, o que permitiria a produção de imunizantes e remédios genéricos nos demais países, garantindo a vacinação global. Hoje a proposta conta com o apoio de mais de 80 países, mas bloqueado pelos EUA, União Europeia e outras nações ricas. Apenas o Brasil dos países do Sul é contrário a proposta. Os países defensores da quebra de patente denunciam também a capacidade industrial ociosa para a produção de vacinas, sendo que essa suspensão poderia alterar esse quadro.

A OMS tem afirmado que o compartilhamento da tecnologia e a renúncia à propriedade intelectual possibilitaria a vacinação mundial e o controle da doença, mas seus alertas continuam sendo ignorados. A organização busca então, a partir da aliança global Covax, construir um plano de distribuição das vacinas para os países mais pobres de forma gratuita, comprando das principais produtoras e recebendo doações dos países ricos. Porém, o monopólio e controle das multinacionais continuam sendo uma grande barreira.

Nessa disputa global entre os países do Norte e do Sul, a produção e distribuição de vacinas contra a Covid-19 pela China e Rússia são alternativas de destaque. Desde o início da corrida pelas vacinas, a China assumiu o compromisso de que seus avanços seriam um bem público, não protegido por patentes. E assim tem sido com suas principais vacinas (Vacina BBIBP, da SinoPharma; a CoronaVac, da Sinovac Biotech; e a da empresa CanSino Bio) atendendo a sua população e exportando principalmente para os países da África, Ásia e América Latina, com acordos de fornecimento e construção de capacidade produtiva nos países com transferência de tecnologia. Segundo os especialistas, as vacinas da China são as melhores por conta do armazenamento mais fácil, exigindo uma infraestrutura mais simples para isso, Hoje, o país é o maior produtor de vacinas do mundo, seguido pelos EUA e Índia.

A mesma concepção vale à vacina Sputnik V, da empresa russa Gamaleya Centre, que além do atendimento a sua população, busca exportar para os países em desenvolvimento e à Europa Oriental, entre eles Argentina, Venezuela, Bolívia e Paraguai, com transferência de tecnologia. Isso permite romper a estratégia de monopólio e controle das vacinas por parte dos países desenvolvidos.

Por isso, os jornais vêm nomeando as ações da Rússia e da China, como diplomacia da vacina, de forma pejorativa, sem denunciar de fato a estratégia excludente e assassina do Norte e ignorando o apoio à saúde dado pela China  muito antes.

O desenvolvimento das vacinas e medicamentos é fruto de longos investimentos de recursos públicos, não podendo seus ganhos serem unicamente privados. Segundo a People’s Vaccine, foram mais de US$ 100 bilhões do dinheiro público destinados ao financiamento das vacinas, garantindo uma receita prevista de US$ 30 bilhões das três maiores corporações farmacêuticas nesse ano.

Uma vacina popular, ou seja, gratuita de acesso indiscriminado a todos, só poderá ser garantida com esse enfrentamento aos interesses privados que valorizam o lucro contra a vida. A luta entre a vacina popular e o monopólio dos países ricos é mais um desdobramento da opressão sistemática dos países desenvolvidos e a resistência dos países do que chamávamos do Terceiro Mundo, o Sul Global.

*André Cardoso é economista e coordenador do escritório Brasil do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.