Com homenagem a Marielle, Cartola e a todo o povo brasileiro, Mangueira fez história neste carnaval / Foto: AFP

Com o enredo “História de ninar gente grande”, a Estação Primeira de Mangueira levou para os desfiles das Escolas de Samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro a força do povo de um país que celebra a luta e samba na cara dos inimigos da democracia.

Pela Sapucaí já passaram desfiles épicos, como em 1988 o “Kizomba” da Unidos de Vila Isabel; “Os ratos e os Urubus” da Beija-Flor, em 1989; e a Paraíso do Tuiuti de 2018, com o enredo “Está Extinta a Escravidão?”. Desfiles de escolas de samba que, em seu momento, tiveram repercussão e se transformaram em fato político por incidir na conjuntura do país.

Este ano, a Mangueira cantou as páginas ausentes da história do Brasil, desfilando os lutadores e as lutadoras do povo que não estão nos livros da classe dominante. A escola fez história, propiciando um reencontro do povo brasileiro com uma das manifestações culturais mais importantes do país, que é o desfile das Escolas de Samba do Grupo Especial. Evento este tão assediado nos últimos anos por agentes do mercado, atacado por governos e desvirtuado pelo monopólio da Rede Globo de Televisão.

Essa relação esteve tão cindida a ponto de se configurar uma suposta oposição entre se divertir no carnaval de rua (nos blocos) e os desfiles das escolas de samba. Mas, chega a Mangueira, abrindo alas para os heróis de barracões e convidando o povo brasileiro a ocupar de cabeça erguida, novamente, essa importante avenida que é a Sapucaí.

Neste mês de fevereiro, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social lança, nos marcos da Assembleia Internacional dos Povos, o seu 13° dossiê: “O Novo Intelectual”. Publicação esta que reivindica a perspectiva da “Batalha de Ideias”, ou seja, de um pensamento crítico gestado a partir dos processos de luta da classe trabalhadora pelos intelectuais do povo, que identificam as contradições de classe, interpretam e produzem uma compreensão radical do mundo contra as ideias dominantes.

Não poderíamos deixar de saudar a batalha de ideias travada pela Mangueira neste carnaval e o papel do carnavalesco Leandro Vieira e dos sambistas da ala de compositores Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Mama, Marcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino, como intelectuais orgânicos da classe trabalhadora.

O carnavalesco tem o papel de planejar e orientar a execução de desfiles de escola de samba. Com Leandro, conhecemos um carnavalesco que é acima de tudo um educador. Não apenas realiza um excelente trabalho que exige beleza, vínculo com a comunidade e o samba como razão de viver, como semeia cultura e desperta as aspirações mais profundas de um povo se realizar enquanto tal.

Cariris, Tamoios, o quilombo dos Palmares, a revolta do Malês, os caboclos de Julho, Dandara, Luisa Mahin, Teresa de Benguela, Carolina Maria de Jesus, Jamelão, Leci Brandão, Marias, Mahins, Marielles saíram das místicas da esquerda popular e brilharam na avenida. Brotaram do íntimo, no avesso da história, e revelaram o país que temos a potencialidade de ser. O país que nos foi e nos é negado: só “na luta é que a gente se encontra”.

Já os sambistas, dispondo de letra e melodia, e com uma das mais reconhecidas baterias de escolas de samba, traduziram em canção a história da perspetiva da luta popular.

O samba, uma linguagem universal, liberou o grito contido na garganta do povo. Um hino do povo brasileiro, buscando entrar na história da construção nacional. De um povo que não pode votar no candidato com maior intenção de votos na eleição presidencial. De um povo angustiado com a morte de uma criança de sete anos decorrente de meningite meningocócica num hospital de um bairro operário em Santo André.

Cantar o samba-enredo da Mangueira é fazer política e reconhecer o novo intelectual necessário para fazer transformações profundas no país: o que faz samba pensando o Brasil e incidindo na conjuntura política.

“Quem foi de aço nos anos de chumbo” é um dos versos mais bonitos e corajosos para render homenagem a quem lutou por democracia durante a ditadura. Além disso, assume maior relevância no momento em que o revanchismo militar está no governo.

Na comissão de frente, um “presente” nas mãos de uma garotinha e, no fechamento do desfile, bandeiras empunhadas com as imagens de Cartola a Marielle podem ser considerados sutis presentes para a militância da esquerda brasileira, que, de tão golpeada, pode se erguer e retomar a iniciativa política, com um voto de confiança na cultura popular e na festa do povo.

Quando índios, negros e pobres se apropriam de suas bandeiras e disputam a narrativa de sua história, estamos diante da possibilidade de sonhar o futuro.

A Estação Primeira de Mangueira tirou a poeira dos porões, das universidades, dos movimentos populares e nos convida ao pensamento crítico, como aquele que serve para fazer transformação e colocar o povo em movimento, no compasso do samba e nas marchas nas ruas.

“É um recado político para o país todo, que tem que entender que isso aqui é importante. É um recado político também para o presidente mostrar que o carnaval é isso aqui. O Carnaval é a festa do povo. O Carnaval é cultura popular. O Carnaval não é o que ele acha que é. O Carnaval é isso. E ele deveria mostrar para o mundo o carnaval da Mangueira. O carnaval da luta, o carnaval do povo, o carnaval da cultura popular” (Leandro Vieira).