Pesquisa dos Neopentecostais na Política

A entrada dos evangélicos na política, além de lhe conferir um status oficial de autoridade, reduz as tensões no comando do mundo pentecostal.


Por André Cardoso e Fábio Miranda


“Alguns autores afirmam que a religião é um mecanismo de alienação dos homens, que serve para justificar a exploração de uma classe sobre a outra. Essa afirmação, sem dúvida, tem um valor histórico, na medida em que, em diferentes épocas históricas, a religião serviu de suporte teórico à dominação política […]. Entretanto, os sandinistas afirmamos que nossa experiência demonstra que quando os cristãos, apoiando-se em sua fé, são capazes de responder às necessidades do povo e da história, suas mesmas crenças os levam à militância revolucionária. Nossa experiência demonstra que se pode ser crente e, ao mesmo tempo, revolucionário consequente e que não há contradição insolúvel entre ambas as coisas” (Sobre a religião, comunicado oficial da direção da FSLN)

“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Esse slogan repetido continuamente pelo presidente da República brasileira sintetiza uma das razões pelo grande interesse e preocupação dos diversos setores da sociedade em entender o crescimento e influência das igrejas pentecostais na sociedade brasileira. As perguntas são variadas, vão da necessidade de conhecer mais detalhadamente suas transformações até indagações superficiais, como se tivéssemos sido pegos de surpresa por um tsunami não anunciado. Como a igreja pentecostal cresceu tão rápido? Como conseguiu ter uma bancada forte dessa forma? Como conseguiu se enraizar de tal forma nas favelas e bairros? O que raios é pentecostal?

O objetivo desse texto é iniciar o debate com alguns elementos e pistas dos caminhos necessários para entender esse fenômeno. Embora sejam trazidos elementos sobre seu desenvolvimento, características e tendências, tarefa que tem sido buscada por muitos especialistas no tema, a maior pretensão deste trabalho é auxiliar nos desafios que as forças políticas de esquerda e progressistas devem se atentar.

A contribuição nesse entendimento são ainda preliminares e traçam algumas chaves de explicação para esse crescimento. A primeira chave de explicação é a partir de seu desenvolvimento institucional na política que possibilitou o seu protagonismo na sociedade. A segunda é a partir da dinâmica do capitalismo, suas transformações estruturais que inevitavelmente exigem uma superestrutura adequada. A terceira chave de interpretação, dialogando com a anterior, seria na esfera da dinâmica da luta de classes, da ideologia e da cultura. Por fim, a quarta e última chave seria o papel dessas igrejas no atendimento às necessidades físicas e simbólicas da população.

A origem do pentecostalismo no Brasil

Para entender o pentecostalismo é importante descrever as suas raízes históricas e o desenvolvimento do protestantismo no Brasil. O protestantismo pode ser dividido em “protestantes tradicionais” e pentecostais. Os protestantes tradicionais se estabeleceram primeiro (século XIV, principalmente XIX) e os pentecostais no século XX.

Embora o primeiro culto protestante realizado no Brasil tenha ocorrido em 1557, na cidade do Rio de Janeiro, somente com a invasão holandesa a religião de fato começou a se enraizar no território1. Nesse período o protestantismo se tornou a religião oficial nas capitanias dominadas. No entanto, com a expulsão dos holandeses em 1654, houve grande ataque à liberdade religiosa e o protestantismo ficou adormecido até o século XIX.

A nova onda protestante surgiu no contexto da vinda da família real, da proclamação da independência e da vinda dos migrantes europeus – em 1822 foi inaugurado o primeiro edifício erguido para o culto protestante no Brasil, pertencente a igreja anglicana; e alemães luteranos fundaram sua primeira igreja em 18242. O ano de 1855 simboliza o início do “protestantismo de missão” no Brasil, com a chegada de missionários estadunidenses e ingleses. A partir de então, várias denominações protestantes se estabelecem. Além do forte anticatolicismo, as principais características das igrejas protestantes históricas são: ética individualista, conservadora, filosofia liberal, defesa da democracia e ascetismo (moral que desvaloriza os aspectos corpóreos e sensíveis do homem para que se alcance a virtude).

É importante observar que os traços dessas igrejas protestantes tradicionais tem relação muito forte com sua origem nos missionários norte-americanos, bem diferente da construção protestante das origens europeias. Em relato, um pastor presbiteriano afirmou que a igreja Presbiteriana Argentina é muito mais “liberal” nos costumes e tradições, se aproximando inclusive da católica na liturgia. Segundo ele, isso foi devido ao fato dos representantes dessa igreja terem vindo diretamente da Escócia e não dos EUA.

O mesmo raciocínio pode ser atribuído as igrejas Anglicanas e Luteranas no Brasil. Embora muito fechadas nas comunidades imigrantes no seu início, elas tem esse mesmo recorte “liberal” e litúrgico. Não à toa, elas estão entre as protestantes tradicionais que aceitam entre o próprio clero pastores e bispos LGBT’s, além de terem as lideranças mais progressistas.

Já o pentecostalismo tem sua origem no início do século XX3. O pentecostalismo clássico abarca as igrejas pioneiras desta vertente: Assembleia de Deus (1911) e Congregação Cristã (1910). Suas principais características são: anticatolicismo, sectarismo, ascetismo e glossolalia (fenômeno caracterizado pelo comportamento de certos indivíduos que começam, espontaneamente, a falar línguas desconhecidas, tidas como frutos de dom divino).

A segunda vertente do pentecostalismo não tem terminologia consensual e começou em meados do século XX. Em 1953 houve a fundação da Igreja do Evangelho Quadrangular (SP), seguida da Brasil Para Cristo (1955, SP), Deus é Amor (1962, SP) e Casa da Bênção (1964, MG). Essa vertente se caracterizou pela ênfase na cura, no uso do rádio e nas pregações itinerantes em tendas de lona.

Por fim, o que se denomina “neopentecostalismo” surgiu em meados dos anos 1970, crescendo bastante nas décadas seguintes. Entre as igrejas desta vertente estão: Universal do Reino de Deus (1977, RJ), Internacional da Graça de Deus (1980, RJ), Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra (1976, GO), Renascer em Cristo (1986, SP) e Igreja Mundial do Poder de Deus (1998, SP). Suas principais características são: pregação da Teologia da Prosperidade (crença de que “ser próspero financeiramente” é uma graça de Deus para os que tem fé e que o cristão deve ser próspero, saudável, feliz e vitorioso em seus empreendimentos terrenos); valorização do pragmatismo, utilização de gestão empresarial na condução dos templos; uso intensivo dos meios de comunicação e redes sociais; intensa guerra espiritual contra o Diabo (personificado, inclusive, nas outras religiões como as de matriz africana e espiritas); rejeição aos usos e costumes das igrejas pentecostais clássicas. Diferentemente das clássicas, os fiéis destas vertentes podem usar roupas da moda e cosméticos; frequentar praias e cinemas; praticar esportes; assistir televisão e vídeos; e ouvir músicas variadas. Algumas destas práticas, devido ao seu sucesso em arrebatar fieis para as igrejas, foram incorporadas as vertentes pentecostais anteriores, com pontual exceção da igreja “Deus é amor” em relação ao asceticismo. O ano de estabelecimento das igrejas protestantes no Brasil e suas principais características estão descritas na Tabela 1.

Tabela 1. Igrejas protestantes no Brasil e suas principais características

 

ANO

IGREJA

Vertente

Características principais

1822

Episcopal Anglicana

Protestante histórica

Anticatolicismo; ética individualista; conservadora; filosofia liberal; defesa da democracia; e ascetismo.

1824

Luterana (IECL)

Protestante histórica

1855

Congregacional

Protestante histórica

1859

Presbiteriana

Protestante histórica

1867

Metodista

Protestante histórica

1881

Batista

Protestante histórica

1900

Luterana (IELB)

Protestante histórica

1910

Congregação Cristã

Pentecostal clássico

Anticatolicismo; sectarismo; ascetismo; e glossolalia

1911

Assembleia de Deus

Pentecostal clássico

1946

Avivamento Bíblico

Pentecostal (2ª vertente)

Ênfase na cura; uso do rádio; e pregações itinerantes em tendas de lona.

1953

Evangelho Quadrangular

Pentecostal (2ª vertente)

1955

Brasil para Cristo

Pentecostal (2ª vertente)

1962

Deus é amor

Pentecostal (2ª vertente)

1964

Casa da Benção

Pentecostal (2ª vertente)

1976

Sara Nossa Terra

Neopentecostal

Teologia da Prosperidade; pragmatismo, gestão empresarial; uso intensivo dos meios de comunicação e redes sociais; guerra espiritual contra o Diabo; rejeição aos usos e costumes das igrejas pentecostais clássicas, sendo mais liberal.

1977

Universal do Reino de Deus

Neopentecostal

1980

Internacional da Graça de Deus

Neopentecostal

1986

Renascer em Cristo

Neopentecostal

1998

Mundial do Poder de Deus

Neopentecostal

 

Dados nacionais e regionais

Para analisar a primeira chave comecemos pelo mais evidente, que são os dados do crescimento evangélico na sociedade e na política brasileira.

De acordo com o Professor José Eustáquio Alves (ENCE/IBGE), o Brasil apresenta um processo de transição religiosa com quatro tendências: (1) o declínio absoluto e relativo das filiações católicas; (2) o aumento acelerado das filiações evangélicas (com diversificação das denominações e aumento dos evangélicos não institucionalizados); (3) o crescimento do percentual das religiões não cristãs; e (4) o aumento absoluto dos “sem religião”4. Para o professor, esse não é um processo recente, mas vem se acelerando nas últimas décadas.

Em 1990, de acordo com o censo oficial do governo (IBGE) as igrejas evangélicas contavam com 9% da população. Já em 2000 foram para 15,4%. E em 2010 eram 22,2% da população. Dos que se declararam evangélicos, 60,0% eram de origem pentecostal, 18,5%, evangélicos de missão (protestantes históricos) e 21,8% evangélicos não determinados. As projeções para o censo de 2020 apontam uma participação de 30% da população considerada evangélica e para 2030 as projeções chegam a quase 40%, ano em que a igreja católica possivelmente perderia a sua maioria, ficando esta última em 38%5.

Em 20106, dos 42,2 milhões de evangélicos, aproximadamente 7,7 milhões eram das igrejas protestantes históricas (4,1% da população brasileira), 25,4 milhões das igrejas pentecostais (13,5% da população) e 9,2 milhões de evangélicos de vertente não identificada (4,9% da população). As mulheres representam 55,6% dos fieis protestantes, percentual ligeiramente maior do que a média de mulheres da população geral (51,7%). Pesquisa do Instituto DataFolha indicam um número de 58,8 milhões de evangélicos no Brasil em 20167.

O cenário latino-americano não está muito diferente do brasileiro, embora a porcentagem de católicos seja maior na região como um todo. Segundo estudo do Instituto PewResearch Center: “Religião na América Latina: mudança generalizada em uma região historicamente católica”8, a América Latina tem 69% de católicos (425 milhões de pessoas), contra 19% de evangélicos (117 milhões). Do total de evangélicos, 65% são pentecostais, e 40% dos católicos dizem ser carismáticos – uma corrente que incorpora crenças e práticas associadas ao pentecostalismo em seu cotidiano. Neste trabalho, boa parte das considerações sobre os pentecostais evangélicos também pode ser aplicada aos carismáticos católicos.

Tabela 2. Denominações evangélicas e número de fieis

 

Grupos evangélicos

2010

2016

Total

%

Homens

Mulheres

Evangélicas

42.275.440

100

18.782.831

23.492.609

60.233.000

Protestantes Históricas

7.686.872

18,2

3.409.082

4.277.745

Igreja Batista

3.723.853

8,8

1.605.823

2.118.029

6.574.590

Igreja Adventista

1.561.071

3,7

704.376

856.695

1.793.070

Igreja Luterana

999.498

2,4

482.382

517.116

Igreja Presbiteriana

921.209

2,2

405.424

515.785

1.195.380

Igreja Metodista

340.938

0,8

149.047

191.891

Igreja Congregacional

109.591

0,3

48.243

61.348

Outras

30.666

0,1

13.786

16.880

Pentecostais

25.370.484

60,0

11.273.195

14.097.289

45.342.000

Igreja Assembleia de Deus

12.314.410

29,1

5.586.520

6.727.891

20.321.000

Outras

5.267.029

12,5

2.310.653

2.956.377

Igreja Congregação Cristã do Brasil

2.289.634

5,4

1.060.218

1.229.416

Igreja Universal do Reino de Deus

1.873.243

4,4

756.203

1.117.040

Igreja Evangelho Quadrangular

1.808.389

4,3

774.696

1.033.693

Igreja Internacional da Graça de Deus

1.195.380*

Igreja Deus é amor

845.383

2,0

365.250

480.133

Igreja Maranata

356.021

0,8

156.185

199.835

Igreja Mundial do Poder de Deus

315.000*

Igreja o Brasil para Cristo

196.665

0,5

85.768

110.897

Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra

180.130

0,4

77.990

102.141

Igreja Casa da Benção

125.550

0,3

52.274

73.276

Igreja Nova Vida

90.568

0,2

37.026

53.542

Evangélica Renovada

23.461

0,1

10.412

13.049

Evangélica Não Determinada

9.218.129

21,8

4.100.564

5.117.575

 

* Tanto a Igreja Internacional da Graça de Deus, quanto a Igreja Mundial do Poder de Deus, embora já existentes, não são citadas no Censo de 2010, provavelmente constando no grupo “Outras”.

Evolução institucional na política

Na política institucional, os evangélicos hoje (2019) têm 94 parlamentares no Congresso, sendo 85 na Câmara dos Deputados e 9 no Senado9. Além disso, com a chegada de Bolsonaro, o grupo evangélico ganhou mais espaço e projeção, sendo colocados em cargos estratégicos no governo federal, como aponta a pesquisadora Magali Cunha:

“A pastora pentecostal Damares Alves ganhou a direção do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. O Ministério da Casa Civil foi ocupado pelo luterano Onyx Lorenzoni e o Ministério do Turismo é conduzido pelo pentecostal Marcelo Álvaro Antônio. O ministro da Advocacia Geral da União é o pastor presbiteriano André Luiz Mendonça e o recém-nomeado ministro-chefe da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, é um batista. São cinco evangélicos no primeiro escalão do governo federal, fora o número significativo de alocados no segundo escalão. No Congresso Nacional, dois evangélicos ocupam funções estratégicas: a deputada federal batista Joyce Hasselmann (PSL-SP) é a líder do governo e o deputado Pastor Marco Feliciano (Podemos-SP) é um dos vice-líderes e “porta-voz informal” do presidente. Soma-se a visibilidade que evangélicos alcançaram no Judiciário, especialmente com o messianismo criado em torno da Operação Lava Jato, alimentado pelas figuras do procurador batista Deltan Dallagnol e do juiz federal do Rio de Janeiro, o pentecostal Marcelo Bretas.” 10

Como se deu essa evolução dos evangélicos na política brasileira e as causas a partir dessa chave de interpretação?

Inicialmente, é importante salientar que a participação evangélica na esfera política e social era muito baixa até o processo da constituinte em 1986. Primeiro por sua baixa inserção na sociedade, sendo a igreja católica a principal religião brasileira, tendo pouca capilaridade e possibilidades de uma maior inserção em outras esferas da sociedade. E segundo, mesmo depois dos processos de Renovação Espiritual e início do pentecostalismo (fins de 1960 e 70), que possibilitou uma maior inserção nas camadas populares, era reforçada por essas novas igrejas a separação entre religião e política, colocando essa última como um elemento mundano que não cabia aos crentes, que deveriam se limitar ao cuidado do espírito e da comunidade a eles ligados11.

Segundo Paul Freston12 é a partir das eleições de 1986 que esse quadro se inverte quando as igrejas pentecostais entram na política e, de um quadro insignificante de participação, passam a predominar a frente das igrejas históricas. Em 1987, dos 27 congressistas pentecostais, 21 eram candidatos oficiais, sendo 12 da Assembleia de Deus (AD), 4 da Universal, 2 da Quadrangular, 3 de outras pentecostais, mas que contaram com o apoio da AD.

As causas para essa entrada na política, ainda segundo Freston, dizem respeito a necessidade de defesa de suas fronteiras, em especial ao “clero” pentecostal, que diferente das igrejas históricas não possuía a tradição que reforça o seu sacerdócio. Sendo uma igreja nova, popular e fortemente comunitária, a entrada na política além de lhe conferir um status oficial de autoridade, reduz as tensões no comando do mundo pentecostal, conferindo títulos a uma nova hierarquia, bem como dando acesso a recursos financeiros que possibilitam sua estruturação.

Outro fator determinante dessa entrada na política e sua consolidação é a facilidade ao acesso à mídia. “A mídia e a política se reforçam mutuamente na estruturação do meio evangélico” (Freston, p. 63). E por fim a conjuntura social favorável para essa inserção:

“Com a redemocratização, a legislatura recuperou seu poder e os partidos procuraram diversificar suas clientelas. […] o eleitorado rural (onde a AD tem forte presença) agora estava mais livre para votar em candidatos da igreja e não nos candidatos escolhidos pelos caciques políticos locais. O contexto econômico é o da ‘década perdida’ dos anos 80, a qual dificultava a ascensão social muitas vezes produzida pelos efeitos (trabalho, honestidade, frugalidade) da conversão. No contexto da nova liberdade democrática, as dificuldades econômicas poderiam tornar alguns pentecostais mais sensíveis às correntes políticas que se proclamam defensoras dos pobres como grupo. A política corporativa pentecostal poderia servir, então, para impedir uma politização indesejável.”(Freston, p. 68)

Entre idas e vindas, a consolidação da bancada evangélica se dá nos anos 2000, tendo entre os principais fatores os seguintes pontos, observados pela Magali Cunha e transcritos abaixo, que colocam os evangélicos como protagonistas no processo político brasileiro hoje:

1. Uma aproximação maior dos políticos evangélicos com o governo federal a partir do governo Lula, em 2002, dadas as alianças com partidos a que os religiosos estavam predominantemente ligados.

2. Duas igrejas evangélicas concretizam, no período, projetos de ocupação da política institucional do País: as Assembleias de Deus e a Igreja Universal do Reino de Deus. Ambas passaram a ocupar, depois de 2003, espaços plenos de poder em partidos (respectivamente o PSC e o PRB) e maior quantidade de deputados e senadores no Congresso.

3. Em 2013, a nomeação do deputado Marco Feliciano para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara culminou no revigoramento de campanhas por legislação pautada pela moralidade sexual religiosa, sob o rótulo “Defesa da Família Tradicional”, contra movimentos feministas e LGBTI, em aliança com a Bancada Católica.

4. As mídias passam a dar visibilidade e a alimentar as ênfases temáticas e as dinâmicas em torno das pautas sobre a moralidade sexual religiosa, com destaque na “guerra” entre políticos evangélicos e militantes de movimentos feministas e LGBTI. Estes temas ganham destaque em campanhas eleitorais e em discursos de lideranças das igrejas.

5. A eleição do deputado federal evangélico Eduardo Cunha à presidência da Câmara dos Deputados, em 2015, representou um poder sem precedentes à Bancada Evangélica e facilitou tanto a defesa das pautas descritas acima quanto a abertura à concessão de privilégios a igrejas no espaço público.

6. A Bancada Evangélica amplifica o poder político por meio de alianças com parlamentares e frentes conservadoras para a revisão de temas sociais como a redução da maioridade penal e o fim do Estatuto do Desarmamento.

7. O presidente recém-eleito foi o primeiro candidato com um discurso identificado como cristão, marcadamente evangélico. Neste contexto, a bancada evangélica se fortalece ainda mais como interlocutora do novo governo.

O crescimento institucional se deu a partir de um projeto definido de avanço nos espaços públicos e a apropriação e institucionalização de temas com recorte conservador.

Dinâmica do capitalismo – estrutura e superestrutura

Outra chave de interpretação desse fenômeno pode ser observada a partir da dinâmica de desenvolvimento do capitalismo. Podendo parecer demasiado mecânico nesse primeiro momento, se faz necessário analisar as transformações das expressões religiosas e o contexto econômico e político do capitalismo. Cada período histórico contou com uma representação religiosa que lhe conferisse respaldo na sociedade, que desse uma explicação mais adequada às transformações em curso.

A reforma protestante13, em síntese, teve uma importância determinante nos processos revolucionários do início do capitalismo, sendo um importante elemento ideológico para a legitimação e fortalecimento da nascente burguesia, a classe revolucionária do período14. Como reforça Robinson Cavalcanti

“Para o bem ou para o mal, há de se reconhecer, porém, que a expansão ou não- expansão do protestantismo nos diversos países europeus no século XVI, deveu-se menos à ação evangelizadora do que à correlação de forças políticas e militares. E que, inegavelmente, há uma correlação enorme entre as diversas esferas da vida social (no caso da religião e da política, muito mais ainda àquela época), e que as ideias e os fatos se dão concretamente em determinado momento histórico. Por este prisma, a Reforma foi a faceta religiosa de todo um processo sócio-econômico-político-cultural que resultou na superação da Idade Média e no emergir da modernidade [grifo nosso]” (Cavalcanti, p. 123)

Isso não significa que a religião dominante anteriormente, a católica, deixou de existir, mas ela perdeu espaço e poder no bloco dominante, sendo atrelada a um momento histórico derrotado.

Se o protestantismo se configurou revolucionário para um determinado período histórico, agora sendo a burguesia a classe dominante do novo sistema, precisa ser a conservação do mesmo em suas diversas formas cíclicas de acumulação do capital.

No Brasil, embora o protestantismo implantado pelas igrejas históricas em meados do século XIX tenham construído certas alianças entre liberais, maçons e republicanos contra a igreja Católica, não lograram seu desenvolvimento nesse primeiro período, pois, como Freston analisou “para a elite secularizada, o protestantismo era apenas aliado tático na batalha contra o poder político católico. Os liberais queriam a imigração protestante, mas não a protestantização da própria classe dirigente”.

É a partir da ditadura civil-militar de 64, ditadura essa necessária para o novo padrão de acumulação do grande capital internacional analisado por Ianni15, que o protestantismo histórico se vincula ao desenvolvimento do capitalismo dependente desse período. O bispo Robinson Cavalcanti retrata essas transformações com a seguinte passagem:

“Se o [regime militar] pudesse ser comparado a uma composição ferroviária que é forçada a seguir por um desvio (em 1968), poderíamos dizer que a Igreja Romana, na maioria de sua liderança, resolve descer na primeira estação após a entrada do desvio. Eles vinham ocupando os vagões da primeira classe… Quando eles descem, o chefe do trem convida os evangélicos a se mudarem para os vagões da primeira classe… Estes o fazem…, agradecidos pela deferência… Os evangélicos vão se tornando, a partir da década dos 70 (juntamente com os maçons e kardecistas), em sustentáculo civis do regime… O regime procura investir ao máximo nos protestantes: visitas de cortesia, empregos, convênios, nomeações para cargos importantes, convites para pastores cursar a ESG…” (Freston, p. 25)

Com a crise do modelo de acumulação capitalista iniciada no fim da década de 70 inicia um forte processo de reestruturação produtiva no fim de 80 e início de 90, com a instauração do neoliberalismo, forte flexibilização das leis trabalhistas, privatizações e retirada de outros direitos que fossem compatíveis com esse novo modelo de acumulação, estimulando o livre mercado e a busca por saídas individuais da crise, individualizando os problemas sociais. Nesse contexto, a Teologia da Prosperidade, estrutura teórico-ideológico das igrejas pentecostais, ganha corpo e respalda o neoliberalismo nascente.

A forma de organização dos pentecostais, com uma estrutura mais flexível, rápida formação de pastores, descentralização e autonomia, como as igrejas constituídas em células, combina perfeitamente com as formas vividas na reestruturação produtiva implantada. O neoliberalismo encontra na Teologia da Prosperidade sua representação religiosa mais aceitável. Em pesquisa recente da Fundação Perseu Abramo nas periferias de São Paulo, que observou o avanço do neopentecostalismo nessas regiões, identificou intensa presença dos valores do “faça você mesmo”, do individualismo, da competitividade e da eficiência16.

Com a deflagração da crise capitalista de 2008/2009 observamos grandes transformações no mundo com a busca incessante em reiniciar o processo de acumulação de capital em novos marcos de exploração. A intensificação da exploração dos recursos naturais e o aumento da flexibilização do trabalho não tem sido suficiente para isso. Diante desse quadro de esgotamento da acumulação capitalista, de desgaste da hegemonia dos EUA no globo e do fracasso do neoliberalismo para a saída da crise, uma onda neoconservadora se coloca em movimento, além da ofensiva do imperialismo sobre o Sul Global para manter o seu controle.

Todo esse prelúdio da conjuntura recente no parágrafo anterior diz respeito ao entendimento que a forma que a religião assume em determinado contexto tem aderência com o desenvolvimento atual do capitalismo.

Dessa forma, quais as transformações que assistiremos na igreja pentecostal? A supervalorização dos valores conservadores e tradicionalistas, seu enfrentamento pela igreja respaldando a violência e intolerância religiosa não poderia apontar para uma nova representação na dinâmica de neofascistização operada na sociedade?

A dinâmica da luta de classe, a ideologia e a cultura

É fato que a história não se dá de forma mecânica como acima analisado, a realidade e sua complexidade são determinadas por muitas particularidades, que tem sua materialidade, mas também é influenciada pela subjetividade e cultura dos povos. A dinâmica das classes sociais, sua movimentação e experiência são fundamentais nessa análise. A força política acumulada impacta nos diversos segmentos da sociedade, inclusive na religião.

Ou seja, a religião é ambivalente, podendo ser a manutenção de um poder dominante, mas também como força de contestação e ruptura, “a religião aparece na história quer como força que sustenta, quer como força que abala o mundo” (Berger, 1985)17, tendo uma autonomia relativa dos processos históricos, sendo também resultado das contradições do desenvolvimento econômico-social.

Embora em boa parte a religião assuma contornos alienantes, não se trata de sinônimo de alienação, podendo assumir, em momentos de correlação de forças favorável à transformação da sociedade, um papel de desalienação e contestação.

“Assim, vemos que a classe dominante de tal sociedade pode, por vezes, perder seu poder de manipulação da religião aos seus próprios interesses, e é nesse instante que a religião perde seu status de manutenção do mundo vigente e busca uma nova alternativa”(Xavier18)

A Reforma Protestante, que assumiu seu caráter revolucionário para a burguesia nascente, foi levada às últimas consequências pelos camponeses alemães, na Revolta dos Camponeses, que buscavam sua libertação política e econômica a partir da releitura do Evangelho (depois duramente reprimida pelos príncipes aconselhados por Lutero).

Ainda no processo de desenvolvimento do capitalismo, o primeiro avivamento da igreja protestante se dá na Inglaterra com a saída de um grupo da igreja Anglicana para formar a igreja Metodista. Esse movimento dá-se exatamente nas transformações da primeira revolução industrial, onde o trabalhador inicia sua organização sindical e envolvimento político coletivo. A igreja metodista surge exatamente como uma igreja das classes populares, fortalecendo a participação política, o que segundo Robinson Cavalcanti, fez dessa igreja um dos berços do sindicalismo britânico e do Partido Trabalhista. “Um líder do trabalhismo no século XX chegou a afirmar: ‘O meu socialismo não procede de Marx, mas do metodismo’” (p. 149).

Nessa chave de interpretação, o que observamos então da Teologia da Libertação19 na América Latina não se tratou de uma exceção da religião cristã como contestadora. Neste momento histórico, a dinâmica da luta de classes, intensificação das lutas pelas reformas de base da década de 60, crescimento da classe operária, dinâmica da economia brasileira, fortalecimento do bloco socialista no mundo e processos de libertação nacional e socialista explodindo em todos os continentes, possibilitaram uma correlação de forças favorável às forças de progressistas e de esquerda.

Mesmo antes da sistematização da Teologia da Libertação, primeiramente escrita por dois pastores presbiterianos (Rubem Alves e Richard Shall) e depois difundida e amplamente utilizada por alguns setores da igreja católica, as reinterpretações bíblicas estavam em curso. Reinterpretações observadas tanto nos movimentos populares, como nas Ligas Camponesas, como nas igrejas evangélicas, que teve seu ponto alto na IV Conferência da Confederação Evangélica do Brasil, tendo a Igreja Presbiteriana do Brasil a frente, com o tema “Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro”, ocorrido no Nordeste20.

A Teologia da Libertação é a releitura do povo em movimento da necessidade de uma religião que reforce sua posição na dinâmica da luta de classes. O mesmo pode ser analisado de setores das igrejas evangélicas nos EUA nesse mesmo período na luta contra a segregação racial oficial daquele país.

Nenhum desses períodos fez dessas experiências religiosas no campo do cristianismo, em especial dos evangélicos, se apresentar de uma única forma, como contestadora ou como mantenedora do status quo. Na verdade, manteve contínua disputa entre as forças políticas divergentes, ou como já acima mencionado, sua ambivalência “a religião não é uma força conservadora nem uma força revolucionária: ela pode ser ora uma ora outra e pode inclusive ser as duas ao mesmo tempo, conforme os grupos sociais que coexistem dentro dela” (Lesbaupin21).

A religião pentecostal, como abordado nas duas outras chaves de interpretação acima, não apenas representa o fortalecimento ideológico do neoliberalismo, como dá identificação para o sentimento empreendedor difundido na sociedade, mas também é explicada pela conjuntura extremamente desfavorável para as forças progressistas e de esquerda na disputa pela narrativa da história. Não sem contradições no seio de sua existência eclesial, dando sentido para a vivência comunitária e tendo uma variedade de grupos religiosos nessas igrejas que buscam apontar a religião pentecostal como um possível instrumento de contestação social – a constante batalha interna de ressignificar a interpretação bíblica.

O atendimento às necessidades das pessoas

Para entender o crescimento do pentecostalismo é preciso frisar que seres humanos têm necessidades materiais e imateriais e que, em certa medida, uma parte dessas necessidades está sendo atendida por estas igrejas22.

Necessidades materiais

Os protestantes acreditam que a melhor forma de um cristão ajudar aos pobres e necessitados é aproximando-os de Cristo. Por sua vez, Católicos creditam ao trabalho voluntário a melhor forma de contribuir com os pobres e necessitados. Católicos, protestantes e religiosos não afiliados geralmente compartilham a visão de que o estado deve prover aos pobres e necessitados (80%), mas somente 35% desses dizem pressionar os governos para conquistar esse intuito (ou acreditam nessa opção)23. Esse pequeno percentual pode ser explicado pelo fato de 91% dos cristãos acreditarem que todo o sucesso financeiro deva-se a influência divina, (97% entre os protestantes)24.

Mesmo afirmando que a conversão dos pobres e necessitados é a melhor forma de ajudá-los, igrejas protestantes se envolvem muito mais do que as católicas em trabalhos voluntários e se colocam junto aos fieis na busca por empregos, comida e roupas. Por essa e outras razões, frequentar uma igreja protestante, sobretudo, pentecostal, pode melhorar sua vida economicamente.

Tendo como referencial teórico a Teologia da Prosperidade, várias igrejas, principalmente as pentecostais, desenvolveram complexas estratégias de negócio, com grandes estruturas empresariais, planos de carreira e lançamento de cartões de crédito. Muitas montam grupos e realizam reuniões com os objetivos de ensinar sobre planejamento financeiro e estimular os fieis a abrirem seus próprios negócios para sanar suas finanças. Embora exista profissionalização e mercantilização em outras religiões, essas são mais evidentes nas igrejas pentecostais e neopentecostais, principalmente pela elevada exposição midiática (várias igrejas são detentoras de meios de comunicação em massa, inclusive pela internet) e do próprio crescimento dos evangélicos no Brasil. A Igreja Universal do Reino de Deus realiza semanalmente as “reuniões da prosperidade” nos templos, com conteúdos e depoimentos de participantes exibidos diretamente nos meios de comunicação da igreja25. Outro exemplo é a Universidade da Família, entidade educacional voltada a todas as denominações evangélicas e que oferece cursos de planejamento financeiro:

“Quem participa das aulas de estudos financeiros bíblicos tem contato com mandamentos que não diferem muito do que é transmitido nos tradicionais cursos de educação financeira: organizar o orçamento doméstico, traçar uma estratégia para sair das dívidas e estabelecer metas financeiras. A diferença é que as explicações são apoiadas em trechos da Bíblia26”

O estudo financeiro realizado na Universidade da Família segue a metodologia Crown, criada nos anos 1970 nos Estados Unidos, que reuniu 2.350 versículos (subdivisões da Bíblia) que tratam de finanças e administração. Planejamento financeiro abençoado por Deus.

A realização financeira é levada tão a sério que pastores tem ficado bastante ricos no Brasil. Segundo a revistar Forbes, Edir Macedo é o mais rico, com uma fortuna avaliada em R$ 3,98 bilhões (Tabela 3.). Este fato parece não preocupar muito os fieis, tendo em vista que a teologia da prosperidade respaldo o enriquecimento dos “homens de Deus”.

Tabela 3. Lista dos pastores mais ricos do Brasil

 

Pastor

Fortuna

(milhões de R$)

Igreja

Edir Macedo

3.980,50

Igreja Universal do Reino de Deus

Valdemiro Santiago

1.843,60

Igreja Mundial do Poder de Deus

Silas Malafaia

628,50

Assembleia de Deus

R. R. Soares

523,75

Igreja Internacional da Graça de Deus

Estevam e Sônia Hernandes

272,35

Igreja Renascer

 

Outro fator a ser considerado (embora menos abordado na literatura) são mudanças de hábitos mais comuns aos adeptos das igrejas protestantes que podem impactar positivamente o orçamento familiar. A redução do consumo de álcool e do fumo, por exemplo, é apontada como mais importante para protestantes do que para católicos27.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, o uso abusivo de álcool potencializa os custos em hospitais e outros dispositivos do sistema de saúde, sistema judiciário, previdenciário, perda de produtividade do trabalho, absenteísmo, desemprego, entre outros28. Com tantos prejuízos, um fiel que deixa de consumir álcool terá potencialmente menos problemas na vida e incrementará o seu orçamento com o dinheiro que não foi gasto em bebidas, gerando melhorias financeiras e no convívio familiar.

Cruzando informações de renda e consumo de álcool, Valéria Furtado Ikeda concluiu que as famílias mais pobres da Cidade de São Paulo são as mais prejudicadas por este hábito, comprometendo cerca de 33% do orçamento familiar em lares com renda mensal de até R$ 25029.

Outro fator que precisa ser mais estudado são as redes de ajuda mútua estabelecidas na comunidade evangélica, em que oportunidades de empregos são direcionados para os “irmãos” da igreja e pequenos negócios são retroalimentados pela comunidade (eu compro pão na padaria do “irmão” e ele compra “roupas” na minha loja).

No aspecto macro, o mercado religioso também tem aumentado, com produtos e serviços específicos para esse público30. Estima-se que somente os evangélicos movimentam cerca de R$ 21,5 bilhões por ano, gerando 2 milhões de empregos31. Em uma recente feira, a Expo Cristã, havia a oferta de consórcio evangélico (de obtenção de carros e imóveis), curso de “coach cristão” e de planos bancários especiais para esse segmento32.

Necessidades imateriais

Em consonância com mudanças comportamentais como a redução do uso de álcool, que melhoram o convívio familiar (vide tópico anterior), o atendimento as necessidades de socialização e reconhecimento são fatores importantes no segmento religioso.

Segundo Elias Evangelista Gomes33,

Desde crianças ou desde a conversão, os evangélicos são “chamados” a desenvolverem o papel de ovelhas, de viver sob a condução de um pastor ou líder. Além disso, são “chamados” a viver juntos com as outras ovelhas, com as demais pessoas que compartilham a mesma fé ou símbolos próximos. Seguir, acompanhar, compartilhar, obedecer são ofícios demandados às pessoas cristãs que se dispõem a uma relação de fé com o Sagrado, mediada pela relação entre pastor e ovelha.

No processo atual de diluição das relações comunitárias (individualismo) e da impregnação do medo da violência, muitas famílias têm na comunidade da igreja a qual pertencem a necessidade de socialização atendida. Assim são formadas sólidas amizades e relações de confiança, vínculos afetivos que solidificam ainda mais a permanência dos fieis naquela determinada denominação religiosa. Alguns estudos têm demonstrado que um número significante de fieis tem preferido igrejas menores e mais próximas a sua residência para viver mais fortemente estes laços, por isso a existência de tantas pequenas denominações34.

Além disso, as igrejas pentecostais tem o mérito de adaptarem o seu culto, normas e funcionamento para conquistar mais adeptos (por isso também cresceram tanto), deixando de lado o sectarismo das igrejas protestantes históricas. Com isso, tem atraído parcelas significativas da juventude que não estavam efetivamente dispostas a “esquecer” totalmente o mundo pagão, mas que viam com simpatia os grupos evangélicos. Festas e músicas de diferentes estilos, mas com temática gospel, são exemplos dessa prática.

No tocante ao reconhecimento, o segmento protestante compartilha o poder ao afirmar que todo fiel é um pastor em potencial e deve exercer a função sacerdotal. Assim procura-se gerar uma imagem positiva do fiel como referencial administrativo, moral, ético e político na comunidade35.

Algumas igrejas protestantes instrumentalizaram o exercício da função sacerdotal por intermédio do processo de “pastor e ovelhas”, no qual ao entrar na igreja você se torna uma ovelha, mas ao mesmo tempo tem a missão de conquistar o seu próprio rebanho (ser pastor). Desta forma, os fieis são desafiados constantemente a aumentar o número de adeptos da sua igreja, e, ao fazer isso, conquistam mais reconhecimento como líderes36. Esta estratégia de crescimento de algumas igrejas pentecostais dialoga com as aspirações de reconhecimento e crescimento pessoal dos fieis, que não difere muito dos que não professam a fé cristã.

Conclusões iniciais e principais desafios

1. Neste trabalho verificou-se que o pentecostalismo brasileiro é uma vertente protestante que aqui chegou no início do século XX. Existem diferenças importantes entre as igrejas protestantes históricas e pentecostais, assim como existem variações dentro do próprio pentecostalismo.

2. O crescimento dos pentecostais pode ser explicado pelos seguintes fatores: a) a própria dinâmica do capitalismo, cuja transformação estrutural exige uma superestrutura adequada (no caso, uma religião funcional ao modelo). Uma observação importante é que a religião pode assumir caráter revolucionário, conservador e até contrarrevolucionário, a depender da correlação de forças na sociedade); b) o desenvolvimento dos pentecostais na política, o que possibilitou o seu protagonismo na sociedade; e c) o método de trabalho e organização dos pentecostais que atende as necessidades materiais e imateriais das pessoas, e cria, assim, legitimidade e conexão com as massas.

3. O imprescindível trabalho de base popular não pode prescindir de abarcar o atendimento às necessidades materiais e imateriais do povo, dentro de um processo de educação popular37. Contribuir na resolução de demandas concretas como emprego, paz, socialização e reconhecimento, entre outras, cria conexões fundamentais para um trabalho de base sólido.

4. Entre os desafios, o primeiro deles é que consigamos entender a dinâmica internacional das transformações em curso no capitalismo e o papel do avanço neoconservador como resultado da intensificação da crise e da correlação de forças desfavorável à classe trabalhadora. Se a representação desse processo no Brasil se concentra em um setor da religião cristã (pentecostalismo), avanços semelhantes ou piores ocorrem em outras regiões do globo, como na Índia, com o nacionalismo de direita hindu, representado pelo Partido do Povo Indiano (Partido BharatiyaJanata – BJP) que avança com uma agenda de intolerância e perseguição as demais religiões e a aplicação da agenda da ultradireita com as privatizações e a retirada de direitos.

5. É fato que seu protagonismo jogou luz para os métodos de trabalho dos pentecostais pelo seu rápido crescimento. É importante aprofundar o estudo sobre esse tema também. Não é algo novo, pois a hegemonia ideológica não se dá no vazio, mas possui uma materialidade de atendimento das necessidades dos indivíduos, seja na construção de laços comunitários, como na obtenção de emprego, comida e lazer. Contudo, é importante salientar que tanto no Brasil como na América Latina, Teologia da Libertação influenciou muitas experiências de trabalho nas bases da sociedade com resultados concretos também, desde o mesmo atendimento as necessidades básicas até a disputa de setores da sociedade, como a educação e a ciência popular (Paulo Freire e Fals Borda).

6. É importante que aprofundemos o entendimento do papel das religiões, em especial da igreja pentecostal, mas é imprescindível que tenhamos entre seus formuladores companheiras e companheiros que professam essa fé e disputam cotidianamente esses espaços. O acúmulo que possuem é fundamental para que não nos deixemos levar por problemas e temas que podem para nós parecer profundos, mas para eles é algo já bem resolvido e explicado.

7. Desse desafio, se faz importante mapear e identificar os diversos grupos protestantes e católicos progressistas e de esquerda para o fortalecimento da frente popular. Verifica-se que cristãos progressistas gastam muita energia e tempo buscando convencer a esquerda brasileira que existem setores dentro das igrejas que querem a transformação social. O tempo que poderia ser muito melhor utilizado para entender o fenômeno de crescimento do conservadorismo dentro das igrejas pentecostais e pensar em como construir força social nesse setor, fica relegado à autodefesa, necessária, entre os demais setores da esquerda.

8. Entender a sua história e desenvolvimento ajuda a não ser pego de surpresa por seu crescimento, pelos métodos empregados e pelas ações que fazem no dia a dia como elementos novos. Muito do que fazem são estruturais da organização religiosa e talvez a explosão de crescimento se deve menos a isso e mais ao contexto que vivemos.

9. É muito importante que estudos similares a esse sejam realizados nas cidades e regiões em que a militância atua. O Brasil é muito diverso em todos os aspectos. Entender as características principais, denominações predominantes, força política, método de trabalho e funcionamento destas igrejas em cada território definitivamente nos auxilia em uma correta análise de conjuntura e na realização do trabalho de base.

10. É preciso compreender melhor a relação entre alguns setores das igrejas pentecostais e a complexa rede de tráfico e milícias nos territórios que tenham implicações significativas nas relações sociais e no trabalho militante.

11. A influência das religiões cristãs (e da ideologia cristã) na ascensão da direita em outros países da América Latina deve ser mais estudado. Muitos autores se debruçado sobre este tema, observado que este elemento tem sido comum nos processos golpistas e eleitorais no continente.

12. Por último, produzir materiais ou cartilhas que expliquem o universo evangélico pode facilitar o trabalho popular, entendendo os grupos que vão encontrar. São muitas linhas, denominações, formas organizativas e teologias em que ter o entendimento mínimo para iniciar um diálogo se faz necessário.

Referências bibliográficas

1 OLIVEIRA, R. S. Pentecostalismo e Protestantismo histórico no contexto da Missão no Brasil. Discernindo, v.1, n.1, p. 143-153, 2013.

2 REILY, D. A. História documental do protestantismo no Brasil. 3. ed. São Paulo: ASTE, 2003.

3 MARIANO, R. Expansão pentecostal no Brasil: o caso da Igreja Universal. Estudos Avançados, v. 18, n. 52, 2004.

4 Seminário “Religião e Política”: um olhar sobre o campo religioso brasileiro”. PUC-SP, 2019.

5https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Sociedade-e-Cultura/O-fenomeno-evangelico-em-numeros/52/44150

6 IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2010. Brasília: IBGE, 2010.

7 DATAFOLHA. Perfil e opinião dos evangélicos no Brasil (2016). Disponível em: <http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2016/12/28/da39a3ee5e6b4b0d3255bfef95601890afd80709.pdf>. Acesso em: 5 nov. 2019.

8PewResearch Center. Religião na América Latina: Mudança Generalizada em uma Região Historicamente Católica. Disponível em: <www.pewresearch.org>. Acesso em: 28 out. 2019.

9https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/ainda-sobre-a-escalada-de-poder-da-bancada-evangelica/

10https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/evangelicos-alcancam-protagonismo-e-visibilidade-a-que-preco/

11Isso não significa que sua participação fosse nula na política, pelo contrário, em toda a história do protestantismo no Brasil pré 1986, os evangélicos estiveram presentes de formas variadas, mas todas ligadas as igrejas históricas (presbiteriana, batista, metodista etc).

12 Evangélicos na Política brasileira: história ambígua e desafio ético. Editora Encontrão, 1994.

13 A Reforma Protestante foi um movimento religioso que se voltou contra ações e regras da Igreja Católica. O principal agente da Reforma foi o monge alemão Martinho Lutero (1483-1546), que, em 1517, publicou 95 teses que fundamentalmente criticavam a venda de indulgências (quando a Igreja “concedia” o perdão divino a qualquer pessoa que pagasse). O ato deu origem a um processo de ruptura que abalou seriamente o domínio católico na Europa Ocidental e permitiu o surgimento de ramificações do cristianismo, como o luteranismo, a primeira religião protestante (História do Protestantismo, de Jean Boisset).

14 “Quando o mundo antigo declinava, as velhas religiões foram vencidas pela religião cristã; quando, no século XVIII, as ideias cristãs cederam lugar às ideias racionalistas, a sociedade feudal travava sua batalha decisiva contra a burguesia então revolucionária. As ideias de liberdade religiosa e de liberdade de consciência não fizeram mais que proclamar o império da livre concorrência no domínio do conhecimento” Manifesto do Partido Comunista – Karl Marx

15 A ditadura do Grande Capital. Editora Expressão Popular

16http://novo.fpabramo.org.br/content/percep%C3%A7%C3%B5es-na-periferia-de-s%C3%A3o-paulo

17O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião.

18https://www.recantodasletras.com.br/artigos/626721

19 A teologia da libertação é uma doutrina que floresceu na América Latina do período pós Concílio Vaticano II (1962-1965) e da Conferência Episcopal Latina Americana realizada em Medellín-Colômbia em 1968. Em sua essência, pregava que para viver o Evangelho de Cristo, a opção preferencial pelos pobres e a defesa de seus direitos, interpretando os ensinamentos de Jesus Cristo em termos de uma libertação das injustiças impostas aos mais pobres pelas condições econômicas, políticas e sociais determinadas pelo poder dominador (

20https://www.youtube.com/watch?v=xxxshAqA7C8

21Marxismo e religião.

22Pew Research Center. Op., Cit.

23 Pew Research Center. Op., Cit.

24 DATAFOLHA. Op., Cit.

25 MUNDO CRISTÃO. Economia: Evangélicos chamam atenção da iniciativa privada. Disponível em: <https://guiame.com.br/gospel/mundo-cristao/economia-evangelicos-chamam-atencao-da-iniciativa-privada.html>. Acesso em: 18 out. 2019.

26 https://oglobo.globo.com/economia/cursos-sobre-financas-para-evangelicos-sao-nova-face-da-segmentacao-na-area-de-investimento-24058721

27Pew Research Center. Op., Cit.

28 CISA. Disponível em: < http://www.cisa.org.br/artigo/10049/relatorio-global-sobre-alcool-saude-2018.php>. Acesso em: 22 out. 2019.

29 http://agencia.fapesp.br/o-efeito-social-do-alcool/4493/

30https://www.negociosunidosemcristo.com.br/negocio-gospel/#sobre

31https://noticias.gospelmais.com.br/mercado-gospel-movimenta-r-215-bilhoes-95101.html

32https://saidapeladireita.blogfolha.uol.com.br/2019/10/21/expo-crista-mostra-como-os-evangelicos-conseguem-se-adaptar-aos-novos-tempos/

33 GOMES, E. E. A socialização no aprisco do Senhor. Cadernos CREU, v.21, n.2, p.281-304, 2010.

34 DATAFOLHA. Op., Cit.

35 GOMES, E. E. Op., Cit.

36 O modelo G12 pressupõe o crescimento das igrejas por meio de células, nas quais o fiel, ao entrar na igreja, ao mesmo tempo em que se torna um dos doze discípulos do “líder” (pastor ou fiel mais antigo na igreja), tem a missão de conquistar pelo menos mais 12 discípulos, formando células indefinidamente. (GOMES, E. E. Ensaios etnográficos sobre a socialização da juventude para a sexualidade e a fé: “vem, você vai gostar”).

37 A Educação popular é uma ferramenta político-pedagógica cujos objetivos permanentes são: a) traduzir, divulgar e recriar o conhecimento como força material para transformar a realidade; b) construir, divulgar e acompanhar a implantação da estratégia da organização popular como resposta aos desafios do cotidiano e da história; c) qualificar quadros militantes que se dispõem a transformar, pela raiz, a estrutura do sistema capitalista, no nível político, econômico, ideológico e cultural; d) elevar o nível de consciência da classe oprimida e incorporar o povo como protagonista; e) facilitar o entendimento e aplicação do conteúdo e da metodologia popular, comprometendo as pessoas com a multiplicação criativa (Trabalho de base, Ranulfo Peloso (org.).