Cerca de 120 organizações de mais de 70 países se reuniram em Joanesburgo, entre os dias 14 a 18 de outubro, na Conferência Dilemas da Humanidade. Crédito da imagem: Luis de Jesús

 

Intervenção de João Pedro Stedile, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), na Conferência Dilemas da Humanidade, realizada entre os dias 14 a 18 de outubro de 2023 em Joanesburgoa, na África do Sul.

 

Por João Pedro Stedile*

Companheiras e companheiros.

Estamos todos muito felizes de nos encontrarmos aqui na África do Sul, nesse momento histórico que articula diferentes experiências da classe trabalhadora em todos os continentes do mundo.

Quero em primeiro lugar agradecer a hospitalidade dos nossos companheiros da África do Sul em nome da delegação do Brasil, e vou sugerir que todos os delegados brasileiros se levantem para que demos uma salva de palma ao povo sul-africano.

Aproveito para me somar às homenagens que a companheira Priscila, da Marcha Mundial das Mulheres (MMM), trouxe aqui, sobre a nossa companheira Nalu Faria, falecida semana passada e que estaria aqui conosco. Foi uma grande lutadora da classe trabalhadora feminista e que nos ajudou a construir a Alba na América Latina, a Marcha Mundial das Mulheres e a nossa articulação da Assembleia Internacional dos Povos (AIP). Nos deixou um legado de internacionalismo e de militância.

Vamos agora trocar ideias, experiências e compartilhar reflexões a partir do nosso território brasileiro e da América Latina, nos quais vivemos.

Eu acho que aprenderemos muito ao longo destes cinco dias, e cada uma das intervenções se complementarão.

Nos impressiona a unidade que temos manifestado já neste pouco tempo e a unidade que estamos construindo ao redor da AIP. Eu acho que ela tem um sentido maior, porque todos nós que estamos aqui temos um só compromisso: lutar pela libertação da classe trabalhadora e derrotar o capitalismo

Ontem e ao longo dos nossos eventos preparatórios, refletimos que estamos vivendo uma crise estrutural, um momento histórico muito complexo. De um lado temos a crise do sistema capitalista, que só aumenta os problemas da humanidade, seja da crise ambiental, da crise social e da crise humanitária, e que se manifesta de diversas formas e todos os dias, em que o capital só oferece a barbárie e mais problemas para o povo.

Por outro lado, também estamos vivendo um tempo de crise das organizações da classe trabalhadora. Uma crise que poderíamos dizer de projeto. E também estamos vivendo uma crise resultante do descenso do movimento de massa em todo mundo. Há luta social, há rebeldia. Porém, não se constitui num movimento articulado, massivo e permanente de ofensiva da classe trabalhadora.

É verdade que há luta social em todos os nossos países. O companheiro do PTB da Bélgica nos trouxe muitos exemplos ilustrativos. Porém, em nível internacional, nós não estamos vivendo um período de ascenso do movimento de massas em ofensiva contra o sistema capitalista. As lutas sociais ainda estão no patamar de defensiva: defender os direitos, defender-se das perdas e derrotas que o capital nos impõe a cada dia.

Um grande Historiador marxista, Eric Hobsbawm, nos ensinou que a luta de classes, em nível histórico, não funciona com uma escadinha, que a gente vai lutando, vai lutando, vai lutando e vai conquistando. Ao contrário, como disse o Peter, do PTB, no capitalismo, é perdas e ganhos. Ou, como disse, Eric Hobsbawm, poderíamos desenhar a luta de classes em ondas. Há momentos de ascenso do movimento de massas em todo mundo, como foi no pós-guerra. Há momentos de disputa de projetos com a burguesia. E há momentos de descenso do movimento.

E nós estamos vivendo, desde a década de 1990, um grande descenso do movimento de massas a nível internacional. E é nesse contexto que nós precisamos fazer uma avaliação e uma reflexão sobre como enfrentar a bendita pergunta de Vladimir Ulianov Lenin: “O que fazer”?

Porque, pegando a metáfora do futebol, precisamos derrotar o time da burguesia. Mas o time da burguesia não perde sozinho. Não basta, como dizia o Daniel Jadue (do Chile) ontem, criticarmos a burguesia e os erros do Capital. Precisamos fazer um debate sobre as nossas dificuldades e como devemos arrumar o nosso time.

Nós precisamos melhorar a forma do time da classe trabalhadora jogar para poder derrotar o time da burguesia, como fez a seleção de Marrocos no último campeonato, que parecia mais fraca, mas soube superar os poderosos times da Europa.

E por isso me atrevo aqui a trazer algumas reflexões e contribuições gerais.

Claro que parto do meu lugar de luta de classes, que é o movimento camponês e o Brasil. Ainda que nas últimas duas décadas temos atuado muito na luta política geral para enfrentar os fascistas, derrotar o Bolsonaro, tirar o Lula da cadeia e ganhar as eleições. Foi essa nossa prioridade nos últimos 10 anos.

Então, quero compartilhar com vocês, na forma de autocrítica e a partir do Brasil – e acredito da América Latina -, algumas reflexões para melhorarmos o time da classe trabalhadora. Não como receita, mas a partir do aprendizado das lições históricas da luta de classes, que a rigor está enfrentando o capitalismo desde a Comuna de Paris em 1871.

Quais são as reflexões que eu queria compartilhar com vocês. Primeiro, a prioridade absoluta das nossas organizações tem que ser todo o tempo, todo dia, toda a vida, organizar as massas para que elas lutem contra a exploração.

Marx nos ensinou em todos os seus escritos de que, a luta de classes, e dentro dela, a luta das massas, é o motor da história.

E para organizarmos a luta de massas é preciso previamente termos um trabalho de base de organização da classe trabalhadora nos seus espaços de trabalho, nos seus espaços de moradia, nos seus espaços de escola e assim por diante. A esquerda desaprendeu a fazer trabalho de base. Nos iludimos apenas com o proselitismo do discurso, como nos advertiu ontem o Daniel a partir da experiência do Chile.

Discurso não organiza a base social. Pode ser útil para luta ideológica, mas sem a luta de massas não haverá derrota do capital. Aí está o desafio de porquê elegemos governos progressistas e depois nos decepcionamos. É por culpa dos governantes? Não. É porque os nossos governos progressistas estão chegando ao governo e não há uma contrapartida de organização de massas que ao mesmo tempo os pressionem nas ruas pelas mudanças estruturais. Na luta de classes contra o capitalismo, sem luta de massa não há governo progressista que se sustenta. Sem a mobilização de massas, eles acabam reféns de uma correlação de forças adversas, que impende qualquer mudança significativa, porque a burguesia segue com o poder econômico, com o poder midiático e controlando o Poder Judiciário e o Parlamento.

Essa é a realidade e por isso que nós, na América Latina, estamos nessa conjuntura. A cada 10 anos elegemos governos progressistas, depois somos derrotados, e depois voltamos a eleger governos progressista, e o capitalismo segue acumulando e criando mais problemas para o nosso povo.

Segundo tema: nós temos que ter a coragem de experimentar novas formas de luta e novos instrumentos de organização para a luta.

Nós sabemos que, em todos os continentes, as mulheres e os jovens são as principais parcelas da classe trabalhadora. E quais são os instrumentos que nós estamos organizando com as mulheres trabalhadoras? Quais são as formas de organização e de luta que temos com as mulheres e com os jovens? A esquerda está em dívida. Nós não sabemos mais organizar classe trabalhadora feminina e nem a juventude. Me alegra que o companheiro belga tenha ido à Inglaterra motivar as enfermeiras, que são uma parcela importante da classe trabalhadora feminina, ao apoiar suas greves por direitos. O mesmo aconteceu no Brasil. É preciso pensar sobre isso. Sem as mulheres e a juventude não haverá a luta de massas e não haverá mudanças estruturais.

Nós, homens velhos e branquelos, só sabemos contar histórias do passado. Nós somos do departamento da nostalgia. Agora, nós precisamos criar o departamento da ousadia. E a ousadia? Está com as mulheres e os jovens!

Terceira reflexão: elevar o nível de consciência de classe das massas. Qual é a autocrítica que devemos fazer? É porque a esquerda só sabe dar discurso teórico e fazer proselitismo.

O discurso, na educação, pode ser uma forma de fazer a luta ideológica de classes, mas nós temos que recuperar outros métodos de fazer a educação de classe para as massas. E nós estamos convencidos, pelas lições da história, que a melhor maneira de fazer agitação e propaganda é pela cultura e pela arte, através da música, da poesia, da pintura, do teatro. Quando vocês regressarem aos seus países, vocês vão se lembrar mais das místicas realizadas nesses dias do que o que eu estou falando aqui agora. Porque a arte e a cultura chegam no coração. E a luta de classes é feita com coração; a reação das massas é pelo sentimento contra a injustiça. Não é a lógica racional que move as massas; na luta por seus direitos e contra as injustiças as massas reagem pelo coração. Senão os professores universitários seriam os revolucionários do mundo, e as vezes são os piores, porque só se preocupam com sua carreira e com seu bem-estar.

A formação política da militância. É uma vergonha o que está acontecendo hoje. No passado – aqui estamos os nostálgicos – todos os partidos, sindicatos tinham escola de quadros. Qualquer organização da classe tinha escola de quadros. E, hoje, quantas escolas de formação e militantes nós temos?

Estamos aqui com esforço de criar escolas regionais para motivar que elas sejam criadas nos países. Mas não é só nos países, é nas cidades; cada cidade, cada categoria de trabalhadores tem que ter uma escola de militantes. O militante é o esqueleto que sustenta o organismo da massa. Sem militantes não haverá mudança. Porque é eles que são os condutores também da ideologia. Aí sim precisa estudo para formar militantes. Aprendemos tudo com a história. Depende de estudo, do conhecimento científico, do conhecimento da História, dos clássicos e da prática social da luta de classe. Só estudo de forma pedante não forma. E só prática social forma apenas ativistas. E nós precisamos ter escolas que junte os dois: o estudo e a pratica social; a práxis.

Quinta reflexão. Diante desse quadro de crise do capitalismo e das organizações, o centro da luta de classes hoje, ainda que tenhamos que fazer as lutas corporativas por salário e por direitos, o centro da luta de classes é a luta ideológica.

A luta ideológica contra o imperialismo e contra o colonialismo. Olhem agora o massacre que os palestinos estão sofrendo. Qual é o centro da luta? É a solidariedade, é a disputa do discurso na sociedade para explicar para o povo que os palestinos estão sofrendo um massacre injusto e cruel do governo de apartheid de Israel. Mesmo sem razão, os sionistas usam a mídia burguesa de todo mundo para dizer que Israel tem direito sobre os territórios ocupados. Faz 50 anos que o governo de Israel usurpou os territórios dos Palestinos e nunca cumpriu as determinações das Nações Unidas.

O centro da luta de classes então é ideológico. E as nossas organizações têm que colocar energia nas formas de fazer luta ideológica na sociedade para conquistar a maioria, utilizando todos os meios de comunicação de massa possíveis, e de forma criativa. Desde as redes, jornais, rádios, TVs e a arte.

O que nos ensinava Antônio Gramsci? O Gramsci sempre dizia que o papel de nossas organizações é disputar a sociedade para que ela pense como a classe trabalhadora e deixe de pensar como burguesia. Para Marx, a classe burguesa é dominante não só porque ela tem o capital. Ela é dominante porque ela domina a cabeça dos pobres, a cabeça da classe trabalhadora. Então, nós temos que colocar nossas energias nos meios de comunicação, nas redes, nos jornais, na TV, nas artes para disputar o nosso projeto de sociedade na maioria da sociedade.

E, por último, também como autocrítica e que faz parte das lições da história para melhorar nosso time, é a Pedagogia do Exemplo. Nós, que nos consideramos dirigentes e que estamos aqui, devemos dar exemplo para militância no dia a dia. Não adianta pregar o socialismo se nós não somos solidários no dia a dia. Não adianta pregar o socialismo, se nós não formos os primeiros na fila do trabalho e o último na fila da comida. Nós formamos gente com o nosso exemplo. E se o nosso exemplo for negativo, nós fazemos um desserviço para classe trabalhadora. Mas se o nosso exemplo de vida for digno com a nossa ideologia, nós estaremos, pela Pedagogia do Exemplo, formando outros quadros.

Porque difundimos tanto a imagem do Che, do Fidel, do Steve Biko e de tantos lutadores? Porque eles viveram exatamente como pensavam. E é isso que foi o exemplo, não é? Então que a vida deles, e sua prática, fique como exemplo também para nós, dirigentes e militantes.

Muito obrigado.

* João Pedro Stedile é membro da Direção Nacional do MST.