A campanha “Natal Sem Fome” distribuiu mais de 5 mil toneladas de alimentos saudáveis e contou com 2 mil agentes populares de saúde envolvidos. Foto: Pablo Vergara

 

 

Por André Cardoso e Renata Porto

 

Todo fim de ano somos tomados pela necessidade de fazer um balanço do ano que passou, levados por um espírito reflexivo, avaliando os acertos e erros, bem como os desafios que são colocados para o próximo período. Contos e histórias de natal, cantatas natalinas, encontros em família são as marcas desse momento sensível de avaliação da vida. E, aproveitando esse ensejo propício, pretendemos olhar o presente duro que vivemos e apontar a esperança de um futuro que estamos construindo.

O cenário se mantém igual dos anos anteriores, imersos em uma série de crises em todo o mundo – econômica, política, sanitária, ambiental e social – acentuada pela pandemia; caminhamos para o fim do segundo ano de pandemia. Um rápido olhar para trás já nos permite constatar fatos bastante críticos para a humanidade: o aumento da fome (cerca de 2,37 bilhões de pessoas no mundo não têm acesso à alimentação adequada), da pobreza, do desemprego e um número impressionante de quase 5,5 milhões de mortes por Covid-19 no planeta.

A ganância e desprezo da classe dominante pela vida, semelhante ao personagem Scrooge do conto de Charles Dickens, se vê representada na centralização do poder das grandes corporações multinacionais e governos, controlando de forma hegemônica a ciência e tecnologia, os sistemas financeiros, o armamento, as comunicações e outros recursos estratégicos.

Diferente dos três espíritos natalinos que trazem lições para o personagem de Charles Dickens – e que transformam suas atitudes -, as ações da classe dominante produzem três grandes apartheids que marcam nosso período: o financeiro, onde as dívidas externas dos países pobres tem estreita relação com a expropriação de suas riquezas durante a longa história colonial-imperialista; o sanitário, em que os países ricos ignoram o apelo dos pobres para suspender as regras de propriedade intelectual, acumulando reservas de vacinas em seus territórios, enquanto outros países correm o risco de não verem uma dose da vacina antes de 2023; e o alimentar, sobre e inversão dos avanços na segurança alimentar e o aumento da fome no mundo.

As cenas assistidas no mundo, bem como no Brasil, são dignas de filmes apocalípticos, com o aumento de pessoas sem casas para morar e sem condições de garantir o mínimo com seus parcos ganhos em trabalhos informais e precarizados (quando os tem). Famílias revirando lixos e grandes distribuidoras e de comércio de alimentos lucrando ao vender ossos de animais.

Mas os contos e histórias de fim de ano nunca terminam com um cenário de aceitação da destruição. Seja na ficção ou na vida real, a resistência e luta por transformar a realidade são constantes, presentes em todas as formas. Se diferente de sermos visitados pelos três espíritos apenas nessa época do ano para nos mostrar o passado, o presente e o futuro, os movimentos populares, e todos aqueles que buscam mudar esse mundo, estão cotidianamente estudando a história de luta e resistência (passado), identificando como o capitalismo contemporâneo tem se organizado (presente) e desenvolvendo caminhos de superação desse sistema desde já (futuro).

Exemplos não faltam que precisam ser apresentados. Entre tantas outras ações, nos lançamos na campanha Periferia Viva, uma iniciativa que, diante da situação da pandemia, os movimentos somaram esforços para semear uma concepção de solidariedade orgânica, já presente nos valores e práticas dos mesmos, mas atualizada pelo contexto da pandemia. Por meio da Política de Solidariedade da campanha, desenvolve-se a luta em defesa da vida, da necessidade de fortalecer a organização popular nos territórios, do combate à violência, a defesa do SUS, da educação pública e da produção científica e a Batalha de Ideias em um contexto em que a fome agrava a situação nas periferias antes mesmo da chegada massiva do vírus.

Só neste ano, a Campanha Periferia Viva organizou 26 turmas de Agentes Populares de Saúde (260), quatro turmas de Agentes Populares de Alimentos (132), três turmas de Agentes Populares de Educação (50), duas turmas de Agentes Populares de Direitos (50) e a turma de Formação de Formadores (12), totalizando 492 agentes populares, doando 450 toneladas de alimentos da reforma agrária, 103.300 marmitas e 95.670 cestas básicas distribuídas ao longo do ano.

Já a campanha “Natal Sem Fome”, com o lema “Cultivando solidariedade para alimentar o povo”, mostra a luta contra a fome e a insegurança alimentar que o terceiro apartheid buscou reforçar. São mais de 5 mil toneladas de alimentos saudáveis distribuídos (equivalente a mil caminhões cheios de alimentos), 1 milhão de marmitas solidárias, 5 mil cestas, 50 mil máscaras doadas, 2 mil agentes populares de saúde envolvidos.

A ousadia de pensar o futuro dos movimentos populares é tamanha que para enfrentar os três apartheids contemporâneos, além das lutas cotidianas, construiu Um Plano para Salvar o Planeta. Em meados de 2021, 26 institutos de pesquisa compromissados com a luta dos povos se reuniram sob a iniciativa da Secretaria Executiva da ALBA-TCP, junto com o Instituto Simón Bolívar para a Paz e a Solidariedade entre os Povos e o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, para levar adiante a ambiciosa e urgente tarefa de elaboração desse plano.

Esse documento foi coletivamente elaborado por essa rede de institutos de pesquisa presente nos quatro continentes (Ásia, África, Europa e Américas), com uma perspectiva centrada nos povos e nas demandas dos movimentos e governos populares, e apresenta um conjunto sistematizado de propostas para que seja possível alterar os rumos que o sistema capitalista nos impõe.

São mais de 110 propostas, distribuídas em doze temas centrais – democracia e ordem mundial, meio ambiente, finanças, saúde, habitação, alimentação, educação, trabalho, cuidado, mulheres e diversidade, cultura e mundo digital -, compondo um conjunto de políticas voltadas para a criação de uma Nova Ordem Mundial.

Aspiramos por um mundo que reclama a construção e o fortalecimento de projetos de futuro com um horizonte comum, inclusivo, popular e democrático. Diante da crise multidimensional que o povo e o planeta enfrentam, assumimos o desafio de ser em nossas ações os três espíritos do natal ao lado do povo. Sonhamos alto, como é próprio desses momentos de festa, sonhamos com o nascimento do novo e por isso apresentamos o Plano para Salvar o Planeta, como um documento vivo, a ser debatido, questionado, aprimorado em cada organização, em cada país, em cada região do planeta, para que seja objeto em constante construção por todos os povos.

Que nesse fim de ano fortaleçamos nossas esperanças e no ano que entra continuemos construindo o futuro que salvará nosso povo e o Planeta. Esses são nossos votos para um ano novo que se aproxima.