Pesquisa sobre os Evangélicos e a Política

Bolsonaro indicou para a vaga do STF André Mendonça, seu candidato “terrivelmente evangélico”. Foto: Anderson Riedel/PR

 

N° 7/2021

 

Depois de tanto tempo prometendo, Bolsonaro indicou para a vaga do STF alguém “terrivelmente evangélico”. Agora só falta a aprovação do Senado para que o pastor presbiteriano André Mendonça assuma o cargo. André Mendonça é uma chave importante para a direita cristã, que segue avançando em seu projeto de poder, principalmente nas pautas morais. No entanto, nem tudo está perdido: militantes e organizações progressistas evangélicas têm atuado contra a indicação, em resistência a esse projeto de poder fundamentalista e a Bolsonaro. Vamos às notícias:

 

Bolsonaro, os fundamentalismos e as eleições de 2022

Dentre as narrativas do fundamentalismo religioso, a criação de uma verdade absoluta e a “demonização” daqueles que não fazem parte dessa verdade seguem se atualizando de acordo com a conjuntura e as necessidades. Enquanto isso, os partidos de esquerda continuam em busca pelo voto evangélico, dado que esse setor foi importante para a eleição de Bolsonaro, como se sabe, fruto de uma estratégia muito bem orquestrada, mas também por um certo distanciamento da esquerda das disputas no campo religioso. Não há espaços vazios, nem na política, nem na religião. Essa tentativa de aproximação da esquerda já encontra reações do campo conservador. O fantasma do comunismo, que a direita tanto teme, tem sido a narrativa dos pastores, colocando os crentes ligados a partidos de esquerda como cúmplices de uma “filosofia maligna”, segundo as palavras ditas pelo Pastor Elinaldo Renovato, presidente da Assembleia de Deus em Parnamirim, Rio Grande do Norte. Pastor Elias Cardoso, da Assembleia de Deus do Brasil, segue a mesma narrativa, expulsando evangélicos ligados a siglas progressistas (PT, PSOL, PC do B).

Bolsonaro, que está cada vez mais afundado em seu próprio buraco, continua apostando no seu público mais fiel (que, na verdade, como veremos, nem é tão fiel assim). A colunista Thaís Oyama, do Uol, traz que, do tripé de sustentação do presidente – “agro, evangélicos e antimáscaras” -, o setor “evangélico” é o mais sensível, o mais suscetível a se desvincular do “mito”. A realidade econômica da população mais empobrecida, que compõe boa parte dos evangélicos, é muito mais determinante na escolha do chefe de Estado.

Analistas caracterizam o setor como decisivo na corrida eleitoral e apontam para o papel fundamental dos pastores evangélicos na decisão do voto. O discurso bolsonarista, aliado à direita cristã, percorreu um caminho centrado na pauta moral, principalmente ligado à defesa da família e dos “bons costumes”. No entanto, essa narrativa não tem sido suficiente para garantir a fidelidade dos crentes a Bolsonaro, lembrando que, como já dito em outros momentos, trata-se de um grupo heterogêneo . De olho nos evangélicos,  pesquisadores dão algumas pistas do que pode acontecer nas eleições presidenciais, dado que candidatos da oposição já estão criando estratégias para diálogo com o campo religioso. Para Vinicius do Valle “quem é evangélico sabe quem é próximo das Igrejas e quem não é. Uma tentativa de ser mais próximo do que não é pode gerar alguma desconfiança (…) o que é mal visto é quando o candidato tenta pregar como religioso, não se apresenta como amigo, mas como pregador”.

Ainda que boa parte da base evangélica não se sinta absolutamente confortável com as pautas identitárias puxadas pelo campo progressista, o teólogo e pesquisador Ronilso Pacheco aponta que as posturas agressivas ultrapassaram o limite do suportável para os fiéis: “Para muitos evangélicos, mesmo conservadores, houve uma radicalização do Bolsonaro em relação à sua postura diante da pandemia, sua agressividade, sua defesa quase que irretocável com relação à violência, seu apreço pela ditadura”. Ou seja, há um limite.

Os ainda defensores de Bolsonaro, como o deputado federal e membro da Assembleia de Deus  Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), entendem que o atual presidente deve avançar enquanto é tempo em políticas voltadas para a base. O deputado afirma: “evangélico não é gado”.

Para o apoiador de Bolsonaro e idealizador da Marcha Mundial para Jesus, vivemos da “república do ódio”. O líder da Igreja Renascer Estevam Fernandes, que já votou em Lula, acredita que pautas como aborto e família, ainda que não garantam a fidelidade, são barreiras para que a base evangélica não vote no candidato petista, mesmo que essas pautas não sejam centrais nas campanhas do campo progressista: “Se você pega uma pauta específica e coloca como foco, não invalida tudo aquilo que a esquerda pensa.”

O pastor Ariovaldo Ramos, um dos fundadores da Frente Evangélica pelo Estado de Direito, publicou uma reflexão sobre um novo ramo da igreja evangélica: o bolsonarista, que não é uma nova divisão, dado seu poder “democrático” de acolher todo campo evangélico: “O agravante é que o movimento bolsonarista pode conter históricos, pentecostais e neopentecostais… o que os une é a insensibilidade diante do genocídio, da propalação da violência, a ausência de qualquer prurido ético, e a convivência tranquila com o crime e a corrupção”, afirma o pastor.

 

Evangélicos e relações internacionais: do golpe na Bolívia  à IURD

No final de 2019, Evo Morales, então presidente da Bolívia sofreu um grave golpe, tendo se exilado na Argentina. O governo brasileiro está sendo investigado pelo governo boliviano como um dos países (além de Chile e Argentina), que participou da operação. O então chanceler de Jair Bolsonaro em 2019, Ernesto Araújo, se reuniu com Luis Fernando Camacho, protagonista da invasão do Palácio do Governo, para tratar sobre a Bolívia em maio do mesmo ano. Em todo processo, Ernesto Araújo se pronunciou dizendo que não houve golpe. A reportagem da revista Fórum aponta que, na época, áudios falam de apoio do governo brasileiro e de igrejas evangélicas ao golpe.

Em nossas outras edições, falamos da insatisfação da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) em relação à falta de ações do governo frente às graves acusações contra a IURD em Angola. Nesse mês o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, esteve no país na XIII Conferência de Chefes de Estado e de Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em Luanda. Uma das pautas para a Conferência foi, claro, o caso IURD, que tem se tornado um nó difícil de desatar nas relações diplomáticas entre os dois países envolvidos, ou seja, o caso ultrapassa e muito o campo espiritual, é um conflito político. Apesar de a viagem se tratar de um compromisso oficial, o excesso de gastos deve ser investigado, pois o vice-presidente levou com ele 17 servidores federais ligados de alguma forma ao bispo Edir Macedo, líder da IURD. Os custos da viagem já ultrapassam R$ 340 mil. Apesar do enorme investimento, o plano não deu certo: o presidente angolano João Lourenço não quis tratar do assunto e as autoridades locais sequer conversaram com o vice-presidente brasileiro e sua comitiva. As acusações contra a IURD são graves, indo de lavagem de dinheiro a racismo. Vale ler a entrevista de Tatiana Merlino com o bispo angolano Felner Batalha, que afirma não compactuar com as tantas violações da Igreja no país: “Nós, como instituição religiosa, não podemos compactuar com esse tipo de atos de violação de direitos humanos e crimes financeiros. Queremos que a igreja, aqui em Angola, fique livre desse tipo de práticas”.

Outro esforço na direção de acenar mais concretamente à IURD tem sido feito pelo atual governo brasileiro. Há dois meses Jair Bolsonaro indicou o bispo Marcelo Crivella, sobrinho de Edir Macedo, para embaixador na África do Sul. Como resposta, um ensurdecedor silêncio por parte do país africano. Dado que um país nunca rejeita oficialmente uma indicação, a máxima “quem cala consente” aqui significa o contrário, ou seja: quem cala não consente!

Ainda na África do Sul, mas um problema foi evidenciado a partir de um vídeo que circula entre pastores no país. No vídeo, o bispo brasileiro Marcelo Pires diz para manipular fiéis para que deem seus bens à Igreja. Na gravação, segundo reportagem, ele diz: “Não é difícil para você manipular a oferta para a igreja. Você faz uma campanha, você pega um versículo, pega algo muito atraente aos olhos, e faz as pessoas acreditarem que é bom, presente ou profundo. E eles darão suas casas, seus carros. Não por causa da fé deles, mas porque você falou”. Após o vídeo, pastores sul-africanos querem repetir as ações dos angolanos frente à IURD, denunciando os abusos e manipulações.

Enquanto isso, no Brasil, a rede televisiva de Edir Macedo segue crescendo e pelo 14o mês consecutivo fica na vice-liderança da audiência, atrás somente da Rede Globo.

 

Teologia do domínio e os ministros evangélicos

Nas figuras de Milton Ribeiro e André Mendonça, setores da igreja reformada calvinista, como a Igreja Presbiteriana do Brasil, têm ocupado papel fundamental no atual governo, no executivo e no judiciário. Importante compreender esse fenômeno, dado que muitas narrativas aparentemente mais contidas do fundamentalismo religioso seguem sendo disseminadas por representantes das Igrejas Históricas do Protestantismo, travestidas de uma certa neutralidade. Faz parte da teologia do domínio, que visa a inserção das pautas cristãs nas diversas áreas da sociedade, como nas políticas públicas.

Essa inserção no mundo público vai além das cadeiras do Congresso, e tem se ampliado em espaços de cultura, educação, arte e família, entre tantos outros. A Associação de Juristas Evangélicos (Anajure) tem oferecido bolsas para um programa de estudos para jovens formados em direito com a proposta de “promover a sistematização, atualização e aprofundamento das discussões sobre as interlocuções entre o Direito e a Cosmovisão Cristã; equipar jovens líderes a aplicar a Palavra de Deus em cada esfera de suas vidas; promover o intercâmbio de experiências entre estudantes de Direito; possibilitar orientação espiritual e capelania aos participantes; e possibilitar troca de conhecimento e experiências entre os estudantes e os professores”.

A primeira-dama Michelle Bolsonaro se encontrou com o pastor sul-coreano Ock Soo Park, com o encaminhamento de uma parceria formal entre as organizações evangélicas do país. O pastor prometeu esforçar-se para a realização de projetos para os jovens do Brasil. Michelle Bolsonaro vai organizar um encontro com o pastor Park e o ministro da Educação, Milton Ribeiro, e a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves

Milton Ribeiro, pastor presbiteriano e atual ministro da Educação, tem defendido o retorno imediato às aulas presenciais. Ele inclusive chegou a propor, em um projeto de lei, que a educação se torne um serviço essencial. Ninguém em sã consciência duvida o quanto a escola tem um papel fundamental na vida das crianças e dos adolescentes. Para além do conhecimento, é espaço de sociabilidade, acolhimento e, muitas vezes, abrigo e alimentação. No entanto, é necessário salientar o quanto as escolas públicas estão sucateadas e muito por conta das péssimas gestões do Ministério da Educação nos últimos anos. Basta nos atentarmos que: “até o dia 15 de junho o recurso de R$ 1,2 bilhão para investimento em infraestrutura estava parado. Nada foi investido”.  A escola é essencial, mas é necessário investimento público na educação e na ciência para um retorno seguro das nossas crianças e adolescentes. Enquanto as escolas seguem fechadas, sucateadas, em um horizonte de retorno duvidoso, o ministro tem dado a opção de homeschooling como política pública. Para Ribeiro, o ensino domiciliar seria mais uma ferramenta, uma opção para as famílias. É importante lembrar que essa pauta foi defendida há anos pela direita cristã estadunidense que, temerosa dos avanços das lutas pelos direitos civis que chegavam nas escolas, enxergaram no ensino domiciliar uma forma de blindar pautas progressistas às crianças de famílias mais conservadoras.

Enquanto a escola segue sendo defendida, no discurso, como serviço essencial, na prática, o MEC entrega menos da metade dos chips com internet prometidos para o ensino superior e técnico para 2020. Sabe-se o quanto é fundamental subsídios desse tipo para que os alunos tenham condições de acessar o estudo remoto e realizar pesquisas em suas casas. A falta de internet prejudica fundamentalmente os alunos de baixa renda, principalmente negros e pardos. Um estudo da Unicef apontou que a dificuldade de acesso à internet ou baixa qualidade de conexão é uma barreira para 42% dos alunos pretos e pardos, enquanto 23% dos estudantes brancos relatam o mesmo. Apesar dos dados, o governo federal foi à Justiça para barrar a Lei da Conectividade, que garantiria acesso à internet a cerca de 18 milhões de estudantes e 1,5 milhão de professores das escolas públicas. A justificativa do ministro é que “há outras prioridades”. Ele afirma que há escolas sem sinal de internet, sem esgotos e que é necessário primeiro dar condições mínimas de infraestrutura para essas escolas. Por que então não foram gastos os R$1,2 bilhões destinados à educação? Sobre os cortes orçamentários para a pasta, Milton Ribeiro afirma que é reflexo da crise sanitária que vivemos.

Enquanto isso, as universidades federais seguem no sufoco, algumas em constante ameaça de fechar as portas. Uma verba de mais de R$4 bilhões destinada às instituições federais está congelada, aguardando novas e improváveis arrecadações para serem liberadas. A estratégia do Ministério é o morde e assopra: “soltar esse dinheiro a conta-gotas quando a queixa reverbera sob os holofotes nacionais. Ocorreu em 12 de maio com a Universidade Federal do Rio de Janeiro, a maior do país, que lançou em um artigo a informação de que estava à míngua e sob risco de não abrir no segundo semestre. Um dia depois, o MEC enviou 152 milhões de reais à universidade, que renovou o fôlego até outubro”. No entanto, obviamente, o problema se mantém.

Este ano, tivemos o menor número de inscritos para o Exame Nacional do Ensino Médio desde sua reformulação em 2009. O exame, que é porta de entrada para as grandes universidades do país, teve diversos pedidos de isenção de taxas negados. O ministro não se aprofundou muito e declarou “Depois da prova, a gente vai poder falar sobre esses números. Não adianta nada muitos inscritos e poucos presentes”.

Nesse assustador cenário, a única certeza que temos é que, se depender do atual ministro, o fundamental debate sobre gênero na escola não vai acontecer. Ao menos não pelos livros didáticos oficiais, já que Milton Ribeiro, na cerimônia de lançamento do cronograma para a implantação do novo Ensino Médio do país, declarou: “Não vou permitir que em livros didáticos a gente possa levar questões de gênero para crianças de 6 anos de idade, tudo tem o seu tempo certo, não podemos violentar a inocência das crianças”.

O limite do debate sobre gênero não é privilégio do Ministério da Educação, infelizmente. A pastora batista e ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, tem utilizado a “má ciência” para o avanço das pautas conservadoras no que se refere ao aborto. Damares e Bolsonaro estão empenhados em criar o Dia Nacional do Nascituro e de Conscientização sobre os Riscos do Aborto.

O aborto tem sido uma das principais bandeiras da atual direita cristã, e uma pauta difícil do campo progressista com a base evangélica. Sabendo disso, o tema tem sido um artifício constante da ministra, que tem divulgado evidências que, segundo especialistas em saúde, devem ser questionadas. Segundo a matéria: “para estes especialistas, os dados sobre os riscos do aborto que o governo pretende divulgar, caso o projeto de lei seja aprovado e a data instituída, foram retirados de estudos que apresentam uma série de falhas e não têm rigor científico”. O aborto legal é um procedimento seguro e há evidências disso em estudos nos países onde é permitido. O Governo Federal do Brasil segue desinformando a população, torturando dados e as mulheres seguem morrendo, fruto da falta de políticas públicas baseadas na ciência.

 

O presbiteriano André Mendonça e o STF

O ministro Marco Aurélio Mello se aposentou no dia 12 de julho, deixando aberta a tão disputada vaga do STF. Ele recebeu uma homenagem em sessão solene por conta da aposentadoria depois de 31 anos de atividades na Corte e deixou seu apoio ao pastor presbiteriano André Mendonça, dizendo: “E a presença, hoje, com palavras muito amáveis, do doutor André Mendonça, que tem a minha torcida para substituir-me no Supremo”. Bolsonaro voltou a falar da sua promessa de indicação de alguém “terrivelmente evangélico”: “Fiz um compromisso há quatro anos com os evangélicos do Brasil. Nós indicaremos um evangélico para que o Senado aceite o seu nome e encaminhe para o Supremo Tribunal Federal um irmão nosso em Cristo”. No entanto, o pastor tem  enfrentado resistência no Senado. Essa resistência obrigou Bolsonaro, imerso em uma crise política, a refazer seus cálculos para a indicação. A estratégia inicial era que a indicação oficial fosse em agosto, para que Mendonça tivesse tempo de convencer o Senado. O pastor seguiu em campanha, se apresentando como alguém justo, humilde e que não deixa o poder subir à cabeça. No dia 13, no entanto, a indicação foi oficializada por Bolsonaro, gerando mais debates. Para parte da direita, André Mendonça é um “petista”, dada a associação direta com o ministro Dias Toffoli, do STF, de quem já foi assessor.

Lideranças evangélicas ligadas a Bolsonaro tem, digamos, usado chantagem para convencer o Senado. A proposta é clara: caso o Senado não aprove a indicação, as lideranças anunciam uma possível retirada de apoio e campanha contrária aos parlamentares em 2022. O Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR) reuniu 38 entidades e 50 juristas que se organizaram e enviaram uma carta ao Senado também defendendo a indicação: “parabenizamos o Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, por formalizar a sua escolha para indicação do próximo Ministro do Supremo Tribunal Federal, na pessoa do Dr. André Mendonça”.

Mas nem tudo está perdido… grupos, militantes e teólogos evangélicos têm se pronunciado contra a indicação. Vinícius Lima, jovem integrante da Frente de Evangélicos pelos Estado de Direito, em reportagem ao Brasil de Fato, afirma: “não vejo Jesus refletido nessa indicação” e acrescenta: “Os evangélicos que hoje compõem o governo Bolsonaro só adoram o dinheiro, a corrupção e o poder. Mas não conseguem servir o pobre, o oprimido, sinalizar as injustiças e combater a pobreza. É isso que Jesus faria se voltasse hoje”. Também entidades antifascismo composta por juízes, promotores, defensores e policiais  se organizaram e entregaram uma carta ao Senado contra Mendonça, dado seu “perfil teocrático, incompatível com o cargo que almeja!”. Entre as justificativas, eles lembram que na polêmica sobre a abertura das igrejas no auge da pandemia o então ministro da Justiça utilizou da Bíblia e não da Constituição para fazer sua defesa. A carta também recordou dos tantos abusos de poder de Mendonça contra os opositores de Bolsonaro. Um trecho diz: “A aprovação do candidato representará a aceitação pelo Parlamento dos excessos cometidos pelo Executivo no decorrer do processo.”

Mas, afinal, quem é André Mendonça? O pastor presbiteriano, atual advogado-geral da União, segue a linha de discurso dos evangélicos nas pautas morais e do conservadorismo em pontos como armamento e maioridade penal. Se coloca contra a legalização do aborto, defendeu a liberdade de questionar o “homossexualismo” (sic), mesmo com leis contra a homofobia, é contra a legalização do cultivo da cannabis para fins medicinais e industriais no país. Após a morte de um homem negro agredido no Carrefour, Mendonça não quis falar em racismo, deixando a questão em aberto. É a favor da política de armas defendida por Bolsonaro, chamou de  “manifestação democrática” os atos de apoiadores do presidente  pedindo intervenção do STF e fechamento do Congresso Nacional, dentre outros exemplos do tipo.

Para o teólogo Ronilso Pacheco, a indicação é uma nova fase do ultraconservadorismo no Brasil. Ele avalia que é um momento em que a guerra cultural chega em outro patamar, dado que o STF é uma trincheira fundamental para o projeto de poder em curso. Para Pacheco, Mendonça não é só um militante conservador,  “é um calvinista ultraconservador defensor da cosmovisão cristã com as lentes pelas quais o mundo deve ser visto e assimilado. Ele vai travar esta guerra cultural com naturalidade e não como ativista; estrategicamente e não pontualmente”. Para o teólogo, diferente dos berros de Silas Malafaia, o grupo que André Mendonça representa é mais discreto, no entanto, muito mais nocivo, age não por impulso, mas com estratégias, vinculado ao ultraconservadorismo dos Estados Unidos, receita de sucesso da direita cristã.

 

Diversidade sexual e de gênero, raça e intolerância religiosa

Tem sido debatido pelo campo conservador a proposta de abstinência sexual como método de prevenção à gravidez. “Eu escolhi esperar”, programa proposto a partir do Projeto de Lei (PL 813/2019) do vereador Rinaldi Digilio (PSL/SP), é inclusive  defendido pela ministra Damares Alves. Sabe-se que, obviamente, esse tipo de proposta não funciona e que orientações sobre prevenção comprovadamente eficazes deveriam ser o caminho de uma política pública séria e comprometida de fato com a saúde das adolescentes de nosso país. A pesquisadora Simony dos Anjos traz a reflexão sobre como a sociedade enxerga o corpo das mulheres e como a Igreja reforça a visão de uma mulher submissa, principalmente no que diz respeito a sua sexualidade. Por que a sexualidade das mulheres é um tabu nas igrejas e ainda tão vinculado ao pecado? A pesquisadora responde: “A resposta diz mais sobre controle dos fiéis, do que sobre santidade. Diz mais sobre moralismo, do que sobre respeito a Deus. Diz mais sobre medo, do que respeito. (…) O nome disso é controle, e controle principalmente sobre os corpos das mulheres”.  A narrativa da submissão tem consequências nefastas para as mulheres evangélicas, que afirmam que muitas igrejas silenciam os casos de violência, dado que não são raras as vezes que o pastor orienta que, ao invés de fazerem boletins de ocorrência por conta das agressões, façam orações. Uma das mulheres que sofreram violência diz: “Para o pessoal da igreja isso era normal. Acontecia com muitas jovens. E não havia lugar para este tipo de reclamações, que pareciam irrelevantes.”

Além disso, muitas igrejas e seus pastores seguem batalhando para que a discussão sobre igualdade de gênero – passo fundamental contra as tantas violências sofridas pelas mulheres – não seja feita nas escolas. Contam com o apoio do ministro da educação e de diversas entidades religiosas. O pastor batista Jorge Linhares, do Colégio Batista Getsêmani, foi intimado pelo Ministério Público de Minas Gerais por criticar o que ele chama de “ideologia de gênero”. Jorge Linhares foi apoiado pela Frente Parlamentar Evangélica e pela Anajure. Apesar da intimação, manteve o seu discurso: “Homem é homem, mulher é mulher, menino é menino, menina é menina. Deus nunca erra.” 

O fundamentalismo religioso tem se apoiado nas pautas de gênero e sexualidade para disputar a narrativa com a base evangélica. Andrea Dipp e Mariama Correia, em matéria da Agência Pública, demonstram como a pauta antiaborto tem avançado de forma acelerada no Congresso, mesmo em um contexto de crise sanitária. Ainda, os projetos de lei sobre o tema são, em sua maioria, desfavoráveis aos direitos das mulheres. Vale conferir a matéria completa. O debate sobre gênero e sexualidade nas igrejas é urgente, não é possível abdicar dessas pautas dado que há uma estratégia ativa da direita cristã em consolidar sua visão de mundo a partir desses temas. A jornalista Andrea Dipp nos auxilia novamente sobre a questão, trazendo a reflexão – que dialoga com Ronilso Pacheco – sobre o papel de André Mendonça nesse projeto, a partir de sua visão contrária aos direitos das mulheres e da população LGBTQIA+. André Mendonça diz que um verdadeiro cristão jamais matará por sua fé, mas está disposto a morrer pela sua liberdade. A jornalista afirma: “Quem morre no Brasil hoje é a população LGBTQIA+, as mulheres, vítimas de violência doméstica e de gênero, da misoginia estrutural, da LGBTfobia, morrem em abortos inseguros criminalizados. E quem mata é o ultraconservadorismo, o fundamentalismo religioso e as ideias reacionárias”.

A teóloga e pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social Angelica Tostes relembrou os ativismos dos evangélicos LGBTQIA+ (e não só), que por vezes são excluídos e silenciados pelos movimentos de dissidentes de gênero e sexualidade não religiosos. Em resposta a um influenciador LGBTQIA+ não religioso, que ironicamente perguntou “onde estão os evangélicos progressistas?”, a teóloga respondeu que estão: “(…) na luta, produzindo conteúdos das redes sociais, pensando e escrevendo outras teologias, estando ativos e ativas nas igrejas locais nas periferias dos grandes centros urbanos, nos acolhimentos das mulheres em situação de violência, nas palavras de afirmação com nossos irmãos e irmãs LGBTQIA+. (…) Construindo a luta e o movimento sem que por vezes os companheiros e companheiras saibam sua identidade de fé, por justamente não se sentirem acolhidos em sua fé por grande parte dos militantes não religiosos que reproduzem o senso comum conectando a fé evangélica diretamente às narrativas fundamentalistas”.

Abordando o tema de gênero e religião, o longa-metragem “Medusa” de Anita Rocha da Silveira vai representar o país na Quinzena dos Realizadores, sessão paralela de Cannes. O filme  trata de um grupo de jovens que sofrem maus tratos em  igrejas evangélicas. Segundo a diretora: “Não queria fazer uma crítica geral à Igreja, mas a certos grupos que se utilizam das escrituras para propagar discursos que são machistas, homofóbicos, racistas e de ódio”. 

Para além do gênero, a questão racial também atravessa o fundamentalismo religioso, pois é impossível falar de intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana sem associar ao racismo. Nesse mês o pastor Aijalon Berto, da Grande Recife, foi denunciado por representantes de religiões de matriz africana por conta de uma postagem em que associa painéis artísticos com elementos de figuras afro-brasileiras como “referências a entidades satânicas”. Demônio e Satanás estão sempre presentes nos discursos fundamentalistas cristãos, vinculados à Teologia do Domínio, em que a cosmovisão cristã deve ser a única respeitada e o outro, o não-cristão, é o mal a ser combatido, responsável por todas as mazelas do mundo. Vale lembrar que intolerância religiosa é crime, assim como racismo.

 

Cotidianos e trabalho de base

As igrejas têm um papel fundamental na vida da classe trabalhadora, são espaços de acolhimento, lazer, cuidado, além de serem espaços possíveis para as pessoas viverem suas espiritualidades. O trabalho realizados pelas igrejas é algo que não pode ser ignorado pelo campo progressista. Compreender esse trabalho é compreender também quais as perguntas que a classe trabalhadora tem feito e que têm sido, muitas vezes, respondidas pelas igrejas evangélicas, principalmente pelas pequenas igrejas de bairro, tão presentes no cotidiano dos trabalhadores. Segundo pesquisa realizada pelo Datafolha, em 2021 mais fiéis estão frequentando templos, seja virtual ou presencial. No ano passado, o número de pessoas que estavam indo para a igreja era de 38%, neste ano o percentual subiu para 45%. As igrejas evangélicas, durante todo o período da pandemia, disponibilizaram algum tipo de atendimento aos seus fiéis. Segundo Bispo Eduardo Bravo, presidente  da União Nacional das Igrejas e Pastores Evangélicos: “Desde o início da pandemia adotamos cultos online, serviços de atendimento ao fiel, videoconferências, telefonemas a quem precisa (…). No Brasil, as instituições religiosas estão em lugares onde o Estado não chega”.  Uma forma também de atendimento e acolhimento ocorreu na última onda de frio intenso nas regiões sul e sudeste do país, em que as igrejas abriram as portas e disponibilizaram espaços para moradores de rua. Além do abrigo, a igreja oferece momento de oração, alimentação, kit de higiene, meias e roupas íntimas novas.

 

Disputas e contranarrativas

¿Quién dijo que todo está perdido?

 

Ainda no final de junho, um super pedido de impeachment contra Bolsonaro foi protocolado. O pedido tem 45 signatários, dentre eles partidos do campo progressista como PT, PSOL, UP, PCB, entre outros, além de movimentos sociais como o MST e a CONIC, Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil, na figura do pastor catarinense Inácio Lemke: “Minha posição como cidadão brasileiro é preocupada com o número de mortes que estão ocorrendo no país e que não estão sendo tomadas as devidas providências. A negligência continua”, afirma.

Para além do pedido de impeachment, evangélicos estiveram na rua pedindo a saída do presidente. Diversos coletivos têm se organizado e enxergado nas ruas uma possibilidade histórica de mostrarem que nem todo evangélico apoia o presidente e que também estão organizados nos processos de contranarrativas frente à direita cristã que segue no poder. Além de pedir a saída do presidente, os coletivos progressistas evangélicos têm refletido sobre as estratégias de enfrentamento aos fundamentalismos religiosos que continuam sendo forças na atual conjuntura, mas não sem resistências. “Nós nos manifestamos, tomando as ruas, porque nossa espiritualidade não é compatível com um presidente que apoia o acúmulo de riquezas beneficiando os ricos, quando os pobres morrem de fome, de violência policial e de Covid”.

Como avanço dessas reflexões, esses coletivos criaram a Coalizão Evangélica contra Bolsonaro, presente em todas as regiões do país, representada pelos grupos signatários do Manifesto Da Coalizão Evangélica Contra Bolsonaro, lançado dia 22 de julho: “em Jesus, vemos a valorização da vida (e vida em abundância). Ao curar enfermos, multiplicar pães e peixes e livrar da morte os excluídos e condenados pela sociedade, Ele deixou evidente a valorização da dignidade humana como cerne da vontade divina e alvo maior de sua vida e do seu ministério”. Grupo de evangélicos criou também a Coalizão de Evangélicos pelo Clima, uma forma de pressionar o governo federal para que aplique medidas contra os crimes ambientais. A pauta ambiental tem sido importante na narrativa crente e é um dos pontos de maior divergência entre evangélicos e o atual governo. Assim como outros coletivos, a Coalizão repudia a visão de que os evangélicos são conservadores e fundamentalistas, dado que reúnem uma grande diversidade de posicionamentos.

Segue a luta! No dia 19 de julho foi ao ar o mais novo programa Papo de Crente, organizado por evangélicos, pastores e pastoras, o primeiro programa trouxe como centro do debate a importância da vacinação, denunciando as negligências do presidente . Essa é uma iniciativa do campo popular de fazer um diálogo “papo reto”, de evangélico para evangélico nas periferias do país. Já na coluna Papo de Crente do Brasil de Fato, a jornalista e coordenadora nacional da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, Nilza Valéria Zacarias, traz um belo relato de como a Igreja pode ter um papel fundamental na reconstrução de uma família. Foi através da Igreja e da solidariedade de irmãs e irmãos que o destino “certo” do filho de Dona Lúcia fez a curva e deu novas esperanças a toda uma família. Vale a pena conhecer e compreender que a Igreja evangélica é muito mais do que um grupo de pessoas iludidas, desorientadas e inertes frente aos seus líderes, é também espaço de esperança, de fé verdadeira, de “pequenas transformações que geram grandes mudanças”.

 

Y hablo de países y de esperanzas

Hablo por la vida, hablo por la nada

Hablo de cambiar ésta, nuestra casa

De cambiarla por cambiar, nomás

¿Quién dijo que todo está perdido?

Yo vengo a ofrecer mi corazón

(Fito Paez)