A sucessão de resultados eleitorais vitoriosos revelava que o voto e as correntes de opinião vigentes nas parcelas majoritárias das populações latino-americanas continuavam a pender para a esquerda.

 

Este texto faz parte do Concurso de Ensaios Tricontinental | Nada será como antes. Saiba como participar.

 

Por Matheus Soares Ferreira

 

“(…) as reivindicações operárias de caráter sindicalista e socialista definem o lado proletário dos direitos civis e políticos, incorporados pela força da luta de classes à legalidade burguesa e ao funcionamento do sistema político representativo.” (FERNANDES, 1981, pág. 5.)

 

1. Contexto histórico da ofensiva conservadora na América Latina

A título preliminar, vale questionar: a que estão a se referir, nos círculos de esquerda e, mais amplamente, nas esferas do debate político nacional, quando dizem da existência de uma ofensiva conservadora na América Latina? A nosso ver, a resposta a essa questão exige do analista rigor teórico e amplitude histórica, como pressupostos do debate, sem o que não será possível avaliar com acerto o momento atravessado pelos países da região.

Por ofensiva conservadora designamos a reação das forças imperialistas1 – mais especificamente, dos Estados Unidos, como a superpotência entre os Estados capitalistas hegemônicos-, desencadeada contra as nações latino-americanas e o ciclo de governos nacionalistas que emergiu na região na primeira década do século XXI. Esse movimento de reação é iniciado, de forma sistemática e mediante a adoção de um novo modus operandis, a partir do ano de 2008, quando eclode a crise da economia capitalista mundial.

Conjuntamente, um segundo fator a ser considerado, dentre as determinações derivadas da grande política que levaram a que se formasse essa ofensiva, consiste na emergência de um novo polo de poder mundial, materializado na ascensão da China, como potência econômica, e na restauração da Rússia, como Estado nacional. Depois de quase duas décadas da existência de um mundo unipolar, após a desintegração da União Soviética, volta-se a estabelecer um quadro internacional caracterizado pelo reequilíbrio relativo das forças. Não obstante esse equilíbrio de forças não possua o mesmo conteúdo daquele que vigorou ao longo da maior parte do século XX, caracterizado pelo conflito entre a civilização socialista, de um lado, e a civilização capitalista, de outro, ainda assim se trata de um equilíbrio com um conteúdo de enorme envergadura para a luta das nações e dos povos explorados, em função dos riscos que apresenta ao funcionamento do sistema imperialista mundial.

O analista Pepe Escobar, em uma de suas recentes análises internacionais oferecidas à TV 247, chegou a considerar que a ‘regra de ouro’ para qualquer investigação séria da geopolítica mundial – e consequentemente para a análise da evolução da luta de classes e dos embates entre nações hegemônicas e as nações dependentes-, não pode prescindir de levar em conta o conflito central estabelecido entre a China e os Estados Unidos.

No mesmo compasso, em entrevista ao supracitado órgão de imprensa, o analista Breno Altman, observando a disputa entre ambos os países, chamou atenção para o fato de que, em função das metas de desenvolvimento estabelecidas pelo governo chinês para as próximas décadas2, o núcleo político estatal dos EUA (designado de “Deep State”) tende a realizar inflexões em sua linha estratégica de enfrentamento à China, no sentido de antecipar as batalhas decisivas antes que aquele país alcance um grau ainda maior de evolução.

Voltando os olhos para os últimos vinte ou trinta anos, veremos que a América Latina, após a etapa de superação das ditaduras militares, experimentou um período de atípica estabilidade do sistema político representativo. Esse período caracterizou-se pelo fato de que a luta eleitoral, pelo controle do governo central, estava aberta e podia transcorrer com relativa normalidade, ao menos em parte considerável de seus países.Fora sobre essas bases que pôde emergir o que chamamos de ciclo de governos nacionalistas, também denominados amiúde de governos progressistas.

O primeiro, dessa série de governos que iriam se constituir no continente, fora o de Hugo Rafael Chávez Frias, iniciado em 1999, na Venezuela. O segundo fora o de Néstor Kirchner, que teve início em 2003, na Argentina. O terceiro fora o de Lula, que também teve início no ano de 2003, no Brasil. O quarto fora o governo da Frente Ampla, de Tabaré Vázquaz, iniciado no ano de 2005. O quinto fora o governo de Evo Morales, iniciado em 2006, na Bolívia. O sexto fora o governo de Rafael Correa, que teve início em 2007, no Equador. O oitavo fora o governo de Daniel Ortega, iniciado em 2007, na Nicarágua. E por último, o governo de Fernando Lugo, iniciado em 2008, no Paraguai.

Também seria possível citar, como exemplo, o governo de López Obrador, no México, ressaltando-se, entretanto, o fato de que sua eleição em 2018 ocorrera já em um momento profundamente distinto daquele vivido pelo continente no começo do século. A maioria desses governos chegou a ser reeleita, estabelecendo a continuidade do ciclo, seja através da recondução dessas mesmas lideranças, seja através da eleição de novos representantes. Com efeito, a sucessão de resultados eleitorais vitoriosos revelava que o voto e as correntes de opinião vigentes nas parcelas majoritárias das populações latino-americanas continuavam a pender para a esquerda.

Com efeito, esse conjunto de governos, a que se soma Cuba, passaram a representar a possibilidade, mais ou menos concreta, de emergir na região um processo pelo qual as nações latino-americanas pudessem ser lideradas a um enfrentamento em face do estado de dependência em que se encontravam. Para que essa alternativa pudesse se converter em realidade material, ou seja, para que ela pudesse efetivamente desdobrar-se numa ampliação do grau de autonomia dos países da região, em termos econômicos, políticos, culturais, tecnológicos, científicos e militares e etc., seria preciso, obrigatoriamente, vencer os obstáculos estruturais e as pressões impostas pelos países capitalistas hegemônicos e pelas grandes corporações multinacionais.

O entrechoque com a fase imperialista da dominação externa3, portanto, constitui-se numa batalha da qual as nações latino-americanas não podiam e não podem escapar, em seu percurso histórico para deslocar e, no limite, suprimir o estado de dependência crônica em se encontram. A inevitabilidade desse conflito é uma regra que se tem mostrado presente mesmo diante das mais tímidas e limitadas propostas de autonomização. O que nos revela que o imperialismo atua por antecipação, neutralizando a formação e o desenvolvimento de potenciais autonomizadores, que possam estar presentes em quaisquer modelos econômicos, mesmo naqueles originalmente concebidos e manejados para se acomodarem e conviverem com o quadro da dependência.

Não obstante as muitas diferenças existentes entre os governos do ciclo nacionalista que nascia (desde seu polo mais avançado, situado na Venezuela, ao seu polo mais atrasado, situado quiçá no Brasil, na Argentina ou no Uruguai), consideradas em termos da natureza e do grau das mudanças a que se propunham, bem como em termos da via necessária para sua implementação, o fato que era comum a todos esses governos é que possuíam uma política econômica orientada pelo desenvolvimento nacional. Essa política econômica continha estruturas e dinamismos autonomizadores ou, ao menos, potencialmente autonomizadores, que não raramente entravam em choque com a orientação econômica neoliberal. Desse modo, as contradições que se abriam entre as nações dependentes, de um lado, e as nações imperialistas e seus aliados, de outro, nessa etapa da luta pela libertação da América Latina, tiveram de assumir as formas e os conteúdos que o ciclo nacionalista fora capaz de conduzir e impor, materializando-se, centralmente, na modificação do modelo econômico neoliberal e no deslocamento da penetração da política externa estadunidense.

Em cada um desses países, o processo de transformação da economia e da sociedade colocado em marcha estabelecia, de forma contraditória, a conciliação, a competição e o conflito, ora entre a classe trabalhadora e a burguesia interna, de um lado, e as classes burguesas externas, de outro, ora entre a classe trabalhadora e as classes burguesas unificadas em suas frações. O que determinava as articulações e os conflitos entre as classes sociais e as frações de classe era a forma com que seus respectivos interesses se chocavam ou se compunham, em torno das disputas abertas entre a soberania nacional e o desenvolvimento econômico autônomo, de um lado, e a dominação imperialista externa e o modelo econômico neoliberal, do outro.

Frequentemente, essas disputas se materializavam nos processos de nacionalização de empresas e recursos naturais, industrialização e substituição de importações, desenvolvimento científico e tecnológico autônomos, fortalecimento de mercados internos e da integração econômica regional, reconfiguração da dívida pública, democratização dos meios de comunicação, processos constituintes de reforma do Estado, realinhamento geopolítico e cooperação econômica e técnico-cientifica dos países latino-americanos entre si, e destes com a Eurásia, especialmente com a Rússia e a China, e etc.

 

2. O movimento das classes dominantes e seus impactos sobre o regime político

Com efeito, diante do quadro apresentado acima, o imperialismo em seu conjunto, sob a liderança destacada dos Estudos Unidos com sua histórica ingerência sobre o continente – visto por ele como sua zona de influência prioritária e sua reserva estratégica de recursos-, desencadeou uma organizada e sistêmica reação, tendo em linha de conta dois objetivos centrais: 1) o realinhamento geopolítico dessa região em torno da política externa norte-americana, em particular, e do sistema imperialista mundial, em geral ; 2) e o aprofundamento da apropriação do excedente econômico produzido pelos países latino-americanos.

A reação desencadeada pelos Estados Unidos – aqui entendido como a superpotência entre os Estados capitalistas hegemônicos-, conjuntamente com as grandes empresas multinacionais norte-americanas, com os organismos multilaterais orientados por Washington e seguida por todas as classes e setores sociais desse país que tinham interesses na conservação da dominação externa sobre o continente, pôde encontrar também fortes aliados no interior das formações societárias latino-americanas. As classes dominantes desses países periféricos, assim entendidas a burguesia interna e suas variadas frações, os setores intermediário e alto das classes médias e os setores da burocracia estatal situados em posições chaves, foram atraídas em seu conjunto para uma nova orientação estratégica formulada para o continente.

O agrupamento dos distintos setores das classes dominantes internas em torno dessa orientação vinda de fora não ocorreu de forma espontânea ou sem sobressaltos e deslocamentos, mas, pelo contrário, se aprestou como o resultado de duros conflitos travados no interior mesmo da burguesia, envolvendo suas frações externas e internas, de um lado, e suas frações financeiras e produtivas, de outro. Destarte, das disputas pela liderança do bloco burguês sobreviria a alternativa para a crise que teria de ser seguida pelo conjunto dessa classe. Ao final, prevaleceu os interesses da burguesia externa e do capital financeiro, em composição com aquelas frações da burguesia interna que funcionavam como suas sócias minoritárias.

Com efeito, como resultado desse realinhamento entre “os de cima”, as burguesias internas passaram a aderir crescentemente à ofensiva imperialista deflagrada contra os governos do ciclo nacionalista, desempenhando, a partir desse momento, um papel decisivo na evolução dos acontecimentos internos. Elas se converteram, verdadeiramente, na força política fundamental da campanha golpista, tendo dirigido, a partir de dentro, o movimento que se formou para consumar o golpe de estado nos variados países da região.

Não obstante a orientação mais geral responsável pela criação desse processo esteja ligada a fatores políticos exógenos, faz-se necessário analisar com clareza o lado interno da ofensiva imperialista, ou seja, quais classes e setores da sociedade latino-americana contribuíram para que essa ofensiva pudesse se concretizar. A nosso ver, a conversão da burguesia interna em uma força política ativa, unificada em prol da consumação dos golpes de estado, fora sem dúvida o fator dinâmico em operação na sociedade que fez com que o golpismo se tornasse a alternativa majoritária entre o conjunto das classes dominantes e, em seguida, nas parcelas mais atrasadas da população.

Os golpes de estado que tiveram lugar em Honduras (2009), Paraguai (2012), Brasil (2016) e Bolívia (2019), fazem parte, todos eles, de uma movimentação política mais ampla, e, portanto, não podem ser entendidos, simplesmente, como fenômenos produzidos pelas conjunturas políticas nacionais de cada um desses países em separado. Eles expressam, ademais, a etapa final de uma longa campanha pela qual as classes dominantes procuram restabelecer para si o controle integral do poder político de Estado nesses países. Esse movimento das forças imperialistas e seus sócios internos encontra-se, atualmente, em plena atividade, operando com grande eficácia em toda a região, mediante o estabelecimento de uma luta por etapas, que vai desde: 1) a derrota dos governos nacionalistas; 2) a restauração do governo central; 3) e a consolidação do poder político burguês.

Com efeito, os golpes de estado, entendidos em sentido estrito como o momento temporal em que as classes dominantes usurpam o governo central, são apenas a cristalização de uma das etapas da ofensiva imperialista continental, cujo raio de ação ainda envolve ações e etapas precedentes e posteriores a eles. Seguindo essa linha de interpretação, os casos citados acima não são os únicos capazes de revelar a nova atuação das forças imperialistas sobre o quadro político das nações latino-americanas.

Se olharmos com atenção para outras conjunturas políticas, como é o caso do Equador, após a eleição de Lenín Moreno, poderemos observar que também naquele país a ofensiva imperialista fora capaz de cumprir a sua função de derrotar o governo nacionalista iniciado por Rafael Correa e seu partido, “o Alianza País”, e devolver o poder político de estado para as classes dominantes equatorianas, tudo isso, obviamente, sob os auspícios da dominação imperialista externa. Os objetivos da ofensiva imperialista, nesse caso, puderam se realizar através de uma campanha que envolveu a cooptação de agentes políticos, de um lado, e a perseguição jurídico-policial4 aos opositores, de outro.

Um segundo caso a ser observado mais detidamente é o da Argentina, especificamente no que diz respeito aos acontecimentos que tiveram lugar nas vésperas da eleição presidencial de 2019. As classes dominantes daquele país, em associação com os setores da burocracia judiciária e da grande imprensa, colocaram em marcha uma campanha para proscrever da vida política nacional a ex-presidente, Cristina Fernández Kirchner, buscando, com isso, impedir que o governo central daquele país pudesse novamente voltar às mãos das correntes nacionalistas, sob a direção de uma liderança de esquerda com apelo popular. Em face desse cenário, o peronismo cedeu às pressões e substituiu a cabeça da chapa presidencial por Alberto Fernández. Apesar da vitória peronista nas eleições, não se pode proceder como alguns analistas, a trocar o exame dos fatos pela euforia da vitória, pois o que ali também se observou fora mais um episódio de interferência dos agentes externos associados às classes dominantes locais.

Um terceiro caso que merece atenção é o venezuelano, especialmente pela amplitude e profundidade que adquiriu a campanha imperialista desencadeada contra esse país. A burguesia interna articulada ao conjunto das classes possuidoras e às frações das classes médias, constituem um bloco social que fora parcialmente deslocado do poder estado e dos privilégios sociais e econômicos anteriormente vigentes na estrutura societária venezuelana. A partir de uma aliança de classe celada com a burguesia internacional e seus agentes políticos, com a participação destacada dos Estados Unidos, colocou-se em marcha já nos anos iniciais do Governo de Hugo Chávez uma campanha para reconquistar o poder político de estado. Essa campanha que perdura até os dias atuais configura-se, a bem da verdade, n’algo que os analistas tem chamado de guerra híbrida ou guerra de espectro total, envolvendo atividades de desestabilização, sabotagem, espionagem, sanções e bloqueios econômicos, campanha midiática, pressão de organismos multilaterais, ameaça de agressão militar externa, formação de grupos paramilitares internos e etc. Eis, dentre todas as experiencias surgidas com o ciclo dos governos nacionalistas, aquela que sofreu as maiores pressões do sistema de poder imperialista e, ao mesmo tempo, aquela que apresentou a maior capacidade de defesa.

A adesão do conjunto das classes dominantes latino-americanas ao golpe de estado, como alternativa para a derrota dos governos nacionalistas e restauração do poder político de estado, constitui o elemento diferencial do novo período. Esse elemento sinaliza a alteração do estado de ânimo dessas classes e sua visão de que a correlação de forças passou a alterar-se positivamente a seu favor. Como consequência da inflexão em sua linha estratégica, que fez com que essas classes passassem a aderir à posição da ofensiva imperialista, teve lugar uma correspondente mudança em seu comportamento de classe, quer dizer, na forma como elas conduzem a competição e o conflito em face das classes trabalhadoras e suas organizações políticas e sindicais.

Com efeito, as classes dominantes locais fizeram uma opção histórica nesse novo contexto. Elas romperam com o pacto que havia sido estabelecido – por força da luta e das pressões das massas populares travadas contra as ditaduras militares das décadas de 1960 e 1970-, e que vigorava como o árbitro da luta política desde o período da “redemocratização” até a presente década. Esse pacto, entre o bloco das forças conservadoras, de um lado, e o bloco das forças populares, de outro, constituiu ele próprio a base e o cimento sobre os quais pôde se erguer o regime político e a ordem constitucional dos países latino-americanos, no período posterior à década de 1980, dando origem, no Brasil, àquilo a que muitos analistas nomearam de a “Nova República”.5

A mudança no comportamento de classe significa que esses agentes já não aceitam como antes a existência e o funcionamento de um regime político democrático ou semidemocrático, não aceitam que a disputa pelo governo central seja processada por intermédio de um sistema político representativo e, ao fim e ao cabo, sequer aceitam que a ordem política burguesa possa conviver com a existência de direitos políticos para as classes trabalhadoras ou com a presença de organizações sindicais e políticas que possam lhes representar.

Esse comportamento reacionário das classes dominantes, não obstante o fato de ter sido neutralizado parcialmente por vinte ou trinta anos, aparece como algo endógeno na evolução política da América Latina e está ligado, mesmo, à formação societária e econômica que se constituíram na região, sob as diversas fases da dominação externa, passando do colonialismo, ao neocolonialismo, até à dependência em sentido restrito ou específico. Sobre esse comportamento de classe e suas implicações para o regime político brasileiro, Florestan Fernandes escrevera o seguinte:

A sociedade brasileira vive um momento histórico dramático a esse respeito. De 1937 a 1964 foi preciso que as classes dominantes recorressem duas vezes ao golpe de Estado e à ditadura para superar sua incapacidade de avançar até uma Carta Constitucional efetivamente coladas às exigências históricas que o grau de desenvolvimento capitalista impunha às relações de classes antagônicas. Em termos aproximados, tiveram de burlar a sociedade e usurpar a Nação na metade de quase seis décadas que compreendem a história do país de 1930 até hoje! Esse é um dado fundamental, que atesta não só que a ‘Constituição não está acima das classes’. Ele demonstra que nós vivemos numa sociedade burguesa em que a burguesia não aprendeu, no seu todo, a conviver com a ‘normalidade constitucional’. Se esta não existe, a democracia é uma ficção ou uma mistificação grosseira e qualquer modalidade de regime republicano se corrompe em um fechar de olhos, convertendo-se em tirania indisfarçável, em despotismo dos de cima.” (FERNANDES, 1986, p. 18)

Com efeito, a conclusão a que somos conduzidos pela observação da forma como tem evoluído recentemente os acontecimentos políticos em vários países da região, pela remontagem dos fatos que marcam a história latino-americana, bem como pelo suporte fornecido pela teoria marxista e pela sociologia crítica, é de que nossas classes dominantes estão outra vez engajadas na preparação e na consolidação de uma ruptura com o regime de classes, a ser operada em nível continental, e com a envergadura histórica dos episódios citados acima.

Adota-se, para tanto, a política do cerco e aniquilamento das organizações sindicais e políticas da esquerda, a fim de que os trabalhadores e as massas populares vejam interrompido seu processo de desenvolvimento como classe, para impedir, pois, a sua participação na vida econômica, social e política de seus países, tal qual vinha ocorrendo nos anos dos governos do ciclo nacionalista. Para circunscrever, ainda mais, a competição pelo poder político de Estado – aliás, daquela parcela constituída pelo governo central – aos conflitos entre frações e partidos burgueses, as classes dominantes tem de destruir os organismos da classe trabalhadora. Em termos ilustrativos, o que se passa pela cabeça da direita ou, ao menos, de parte dela, é arrancar o mal pela raiz, aceirando uma queimada para realizar pelo fogo a limpeza do terreno.

 

3. Os riscos e desafios do novo cenário

Os golpes de Estado observados na América Latina do século XXI possuem um formato altamente variável. Não obstante haja uma linha de continuidade com o golpismo da segunda metade do século passado, no sentido de que se repetem a participação das classes sociais, as alianças com o imperialismo e as motivações envolvidas, as formas que assumem os novos golpes de Estado podem sofrer modificações das mais variadas. A razão disso consiste em que as forças que empregam esse recurso frequentemente têm a necessidade de ocultar a natureza e a finalidade da atividade realizada, a fim de que a visibilidade do golpe6 seja a menos perceptível possível para o conjunto da sociedade nacional, já que será ela quem sofrerá os efeitos negativos dessa opção histórica. Com isso, as classes dominantes procuram reduzir as possibilidades de que uma reação popular seja desencadeada, e possa criar, por conseguinte, o risco da perda do controle da situação política.

No último período tem-se observado que a campanha golpista no continente tem assumido modelos que variam do golpe de Estado clássico ao golpe de Estado de novo tipo, existindo entre um e outro, ademais, um enorme gradiente de ineditismo e de combinações possíveis. De certo que a materialização de um ou outro modelo não é uma questão que está relacionada apenas à forma e às preocupações de visibilidade, mas também é uma questão que decorre, em primeiro lugar, de determinações mais profundas relativas à correlação de força entre as classes e frações de classe em conflito.

Chamamos de golpe de Estado clássico aquelas operações que, ao longo da história latino-americana, tem se caracterizado pela presença da participação militar, como o fator predominante entre todos os demais, no momento do assalto ao poder político e sua transferência para as classes dominantes. Por outro lado, a classificação de golpe de Estado de novo tipo se aplica àquelas operações que, almejando o mesmo objetivo, contam com o protagonismo do parlamento, dos meios de comunicação de massas, da mobilização de setores médios e etc. Outras nomenclaturas também tem sido correntemente empregadas para classificar essas últimas operações, tais como golpes híbridos, golpes institucionais ou golpes parlamentares.

Ademais, outra manifestação do golpismo que merece ser analisada com mais atenção é aquela que se processa mais precisamente através da realização de processos eleitorais7. Nesse sentido, já não é mais possível deixar de reconhecer que, em diversos países da América Latina, as disputas eleitorais têm ocorrido sob condições atípicas ou, em termos mais precisos, em condições que fogem à normalidade do funcionamento do sistema político representativo e à ordem legal. Elas têm sido marcadas pela forte pressão exercida pela campanha golpista, caracterizando-se, consequentemente, pela presença de manobras de toda ordem, empregadas contra os partidos de esquerda, que vão desde a interdição das candidaturas de lideranças de massas, imposição de exílio, difamação midiática, difusão de “fake news”, mobilização dos setores médios, perseguição jurídico- policial, ameaças feitas pelo aparelho militar e etc.

A campanha golpista nesses países tem sido deflagrada, normalmente, por iniciativa da direita tradicional, quer dizer, pelas organizações e partidos que tradicionalmente representam os interesses da burguesia na vida institucional. Para que essas campanhas tenham êxito e possam resultar na restauração do controle do poder de estado – não parcialmente, mas em sua integralidade-, as classes dominantes têm optado, a depender das particularidades de cada conjuntura, ou pela disputa eleitoral atípica (isto é, segundo as características do golpismo acima apresentadas) ou pelo golpe de Estado propriamente dito. Diante das condições descritas, o que é possível perceber com nitidez é que nas eleições em que a direita não tem saído vitoriosa, sucede-se como resposta a escalada do movimento ao golpe de Estado8. Já nas eleições em que os resultados foram favoráveis, o movimento golpista, ao contrário de ter sido contido, tendeu a evoluir por dentro da máquina estatal, procurando consolidar em definitivo o poder político nas mãos das classes dominantes9.

Uma vez iniciada a campanha golpista, as forças políticas de direita buscam, de um lado, ampliar seu arco de alianças e mobilizar os setores da sociedade identificados com a visão de mundo conservadora (antipopular, antinacionalista, antidemocrática e etc.), e de outro lado, procuram paralisar a capacidade de iniciativa das forças de esquerda, neutralizar os setores populares identificados com a visão de mundo progressista, e, a partir disso, criar uma movimentação na sociedade capaz de convencer e arrastar as camadas mais atrasadas da população, que oscilam entre uma e outra visão de mundo. O desenvolvimento dessa situação, em sentido favorável aos interesses das classes dominantes, tende a criar um cenário propício ao aparecimento e evolução da extrema direita, como força viva e atuante na conjuntura política. Nessa altura dos acontecimentos, do entrechoque entre as classes, é que se produz a crise de regime político, cuja evolução pode ter como desfecho a desintegração desse mesmo regime, caso as ações da direita fascista não encontrem um contra peso à altura, significando, finalmente, que o lado ou o conteúdo proletário do regime político passa a correr o risco de ser suprimido.

Num cenário como esse, o fascismo10 tende a se tornar a força política mais ativa do polo conservador da luta de classes, sobressaindo em termos de iniciativa e capacidade de ação por sobre os setores tradicionais da direita. Isso ocorre, justamente, pelo fato de que essa facção política nasceu para suprimir a democracia operária e é ela, sem dúvidas, quem melhor desempenhou essa função ao longo da história. Por essa via, as classes dominantes passam a controlar parcelas crescentes do regime político através de uma atuação de classe que não se restringe a ações que se desenvolvem no interior da ordem legal. Os acontecimentos recentes têm demonstrado o emprego de uma tática dupla, que combina ações dentro da ordem e fora da ordem, deflagradas e desenvolvidas para controlar e, em seguida, restringir e fechar o regime político.

O que quer dizer que, para expurgar o conteúdo proletário do regime político ( isto é, as organizações sindicais, os partidos políticos, o direito dos trabalhadores de concorrerem em eleições democráticas e etc.), as forças da direita empreendem uma campanha, cuja etapa inicial transcorre abertamente e mais ou menos dentro da ordem legal, e vão em seguida acumulando forças, deslocando a opinião pública, acuando as forças populares, preparando, enfim, o cenário para o momento em que o assalto ao poder terá de ocorrer por intermédio da ruptura do regime político.

Para não parecer que estamos a refletir meramente no plano abstrato, vejamos o caso recente da Bolívia. Naquele país, a extrema direita logrou um desenvolvimento acelerado, num período de tempo demasiado curto – de semanas, a bem da verdade-, atingindo um ponto de radicalidade política e de dinamismo social que fez com que ela pudesse se colocar na crista do movimento golpista que levou à deposição de Evo Morales. Se estivermos atentos aos acontecimentos, não será difícil concluir que os linchamentos públicos, os assassinatos às dezenas, os sequestros e desaparecimentos às centenas, as ameaças de morte, os incêndios às casas de lideranças políticas, sedes de sindicato e órgãos de imprensa, que se passaram naquele país, nada mais são do que a manifestação do fascismo latino-americano em seu estado germinal. Se a nossa atenção for ainda mais cuidadosa, pela nossa cabeça não se poderá deixar de passar os prognósticos mais negativos acerca da evolução da luta de classes no continente, se não como uma tendência consolidada, ao menos como uma possibilidade colocada sobre a mesa.

Esse conjunto de acontecimentos, mais do que sugerir, estão a obrigar que a esquerda passe a levar à sério a questão da ofensiva imperialista. O cenário político e o comportamento das classes dominantes já não são o mesmo de vinte ou trinta anos atrás, o que exige uma alteração da leitura e do comportamento que vinha sendo hegemônico no conjunto das organizações da classe trabalhadora latino-americana. Abriu-se um cenário de bifurcação para a esquerda do continente após a consumação dos sucessivos golpes de Estado e a instauração de governos liderados pela extrema direita.

No atual cenário, a luta de classes tem se deslocado para as ruas, para o enfrentamento à quente entre as forças populares e as forças conservadoras, abrindo-se um quadro que os analistas têm caracterizado pela polarização da política. Nessas circunstâncias, manter uma linha de atuação caracterizada pela política de contenção ou apaziguamento, concentrada predominantemente no terreno institucional, pode levar à paralisia da militância e à neutralização dos setores populares, abrindo flancos perigosos para a extrema direita converter-se no polo dinâmico da luta de classes.

Não se pode, evidentemente, atribuir unilateralmente os golpes de Estado efetivados nos países latino americanos às deficiências dos governos ou lideranças nacionalistas que encabeçavam tal ou qual processo. Sem embargo, seria uma omissão inaceitável se não apontássemos sequer os erros da linha estratégica levada a cabo, relativamente às medidas adotadas para se conquistar, controlar e ampliar o poder político, de um lado, e preparar a classe trabalhadora para as diferentes formas e graus de enfrentamento a serem travados com as classes dominantes, de outro. Não é possível evitar golpes de estado com concessões políticas, com uma linha de atuação baseada no apaziguamento. Concessões, recuos, conciliações e etc. fazem parte da luta de classes, mas devem ser empregados sem deixar-se de lado a política mais geral de antagonismo entre as classes, que irá se impor, mais cedo que tarde, em função do novo estágio em que adentra a região. E a lição mais importante a ser tomada é a de que não se faz concessão que possa colocar em risco o controle do poder político. Em termos ilustrativos, há um provérbio britânico que diz: “Se tu entregas a honra, esperando receber a paz, acabarás no final sem ganhar nada, senão a guerra e a desonra”

Diante da ofensiva imperialista, a política que tem predominado em parcelas significativas da esquerda tem sido a de acomodar-se à situação criada pelos golpes de Estado, no sentindo de que, mesmo diante da ruptura ou da acentuada deterioração do regime político, essas forças buscam canalizar suas ações e iniciativas para o terreno institucional, para o terreno em que os conflitos de classe ou a crise tendem a ser equacionados segundo as imposições das classes que controlam o aparato estatal. A todo momento a esquerda tem dado sinais de que não pretende levar os embates de classe para o terreno em que a luta se desenvolve abertamente contra as classes dominantes, pela presença ativa das massas populares no jogo político.

No contexto atual, não há nenhuma demonstração de que as classes dominantes internas e externas estejam dispostas à realização de um novo acordo com as classes populares, que pudesse criar as garantias e condições adequadas para a atuação da esquerda no terreno institucional. A política de aceitação e acomodação ao estado de coisas criado pelos golpes de Estado, levada adiante por parte da esquerda, tem a intenção de chegar a um acordo com as forças da direita, esperando que, com os gestos conciliadores e as iniciativas apenas circunscritas ao terreno institucional, possam dissuadir as classes dominantes de prosseguir em sua escalada rumo ao fechamento do regime.

Sem embargo, o que parecem não reconhecer é justamente o fato de que aquilo que hoje resta de legalidade e de espaço institucional não é suficiente para manter o conteúdo político e democrática de que as classes populares necessitam para atuar com alguma liberdade em prol de seus interesses econômicos e políticos. Essa insuficiência é ainda mais clara quando sua atuação tem por objetivo a disputa do governo central. Sem que o conteúdo proletário seja novamente inserido ao regime político, por força da luta de classes, a atuação da esquerda, com enfoque principal no terreno institucional, ainda que esteja honestamente orientada pelos interesses das classes populares, jamais poderá resultar na contenção do fechamento do regime político pelas classes dominantes e, menos ainda, na reversão do status quo criado pela ofensiva imperialista.

Com efeito, o desafio de recuperar o espaço perdido no interior do regime político exigirá da esquerda ações empreendidas a partir de baixo, em conjunto com as classes trabalhadoras e as massas despossuídas, canalizando suas energias para o deslocamento das classes dominantes, no sentido de que a visão de mundo e as posições dessa classe percam maioria no conjunto da sociedade. Nas condições atuais, criadas pela ofensiva imperialista, conduzir todas as energias da disputa política para o terreno institucional, cada vez mais restrito e controlado pelos de cima, serve apenas para legitimar a dominação burguesa, atribuindo-lhe ares de legalidade.

Apenas uma ampla mobilização da classe trabalhadora pode ser capaz de romper o cerco imposto pelas forças conservadoras. Ao entrar choque contra as tentativas de achatamento dos salários, contra o rebaixamento das condições de vida, contra a elevação dos preços de artigos consumidos pela economia popular; ao defender-se das tentativas de aniquilamento físico e moral de suas lideranças e de suas organizações sindicais e políticas, o movimento da classe trabalhadora pode assumir um caráter de massas11, o que, por sua vez, pode imprimir à luta de classes um grau de dinamicidade tal que a tendência de fechamento do regime político seja contrabalançada e, no limite, superada. Para isso, entretanto, são necessárias uma orientação estratégica e uma linha de atuação política diversa daquela marcada pela acomodação, pelo apaziguamento e pela aceitação do estado coisas criado pela ofensiva imperialista. Se, de um lado, o movimento fascista produz a tendência de fechamento do regime, de supressão do conteúdo operário da ordem política burguesa, do outro, o movimento da classe operária produz a tendência de alargamento do regime político, de introdução de direitos, garantias e liberdades políticas para que os trabalhadores possam atuar sob o regime de classes, sem ser esmagados pela repressão estatal ou pela violência fascista das classes dominantes.

Portanto, o regime político e a legalidade que interessam ao proletariado, o regime político e a legalidade que estão ao alcance do proletariado, são aqueles que ele pode arrancar das classes burguesas por suas próprias mãos. As classes dominantes na América Latina não têm qualquer apreço pelas instituições democráticas, não possuem como princípio de sua atuação política a convivência com as organizações sindicais e políticas da classe operária, não chegaram a consolidar um horizonte cultural e um padrão de dominação burguesa equivalentes ao produzido por suas congêneres na Europa e nos Estados Unidos. Para elas, tudo isso não passa de um verniz pelo qual elas se comparam às classes dominantes das modernas nações capitalistas. É com essa realidade que as classes populares se defrontam e passam a entender que o conteúdo proletário do regime político somente será aceito, se a pressão exercida pelos de baixo, em sua luta travada contra os de cima, for superior do que as pressões contrárias movidas para expurgar a classe trabalhadora da ordem política. Elas somente aceitam esse terreno, competir com o proletariado sob um regime que possua regras democráticas, quando passam a temer a ação organizada dessa classe, em um conflito sob a forma de luta de massas, que possa escapar completamente ao seu controle.

Referências

1 Acerca da conceituação de imperialismo, Florestan Fernandes oferece-nos uma síntese suficientemente precisa para identificar os componentes que o integram e os seus objetivos: “(…) estas entendidas como uma composição dos interesses da dominação externa, que hoje se chama de imperialismo, e que envolvem as grandes corporações multinacionais, os Estados capitalistas hegemônicos e sua superpotência, e todas as classes, nos referidos países, que tinham razões para defender as vantagens proporcionadas pela apropriação e o rateio do excedente econômico dos países capitalistas dependentes.” (FERNANDES, 1981, p. 19)

2 O relatório do 19° Congresso nacional do Partido Comunista da China (organização que dirige Estado da China) definiu como meta, para o ano de 2049, quando se completam cem anos da Revolução Chinesa, a conversão completa da China em um “país socialista moderno”. O que engloba alcançar os seguintes objetivos: 1) grau elevado de desenvolvimento econômico; 2) aperfeiçoamento da democracia; 3) níveis elevados de ciência e tecnologia. Nesse estágio, a China estaria em condições de competir com paridade de forças, em todos os terrenos existentes, com qualquer uma das demais nações modernas do mundo capitalista.

3 A terminologia em questão deriva das categorias teóricas com que Florestan Fernandes analisa as diversas fases da dominação externa que imperaram e imperam sobre as nações latino-americanas. Segundo o autor, a persistência dessa dominação ocorre em função da “resistência severa das classes burguesas externas em permitir [ao menos] modelos de desenvolvimento capitalista de tipo independente (isto é, que escapassem ao colonialismo, ao neocolonialismo e à dependência em sentido restrito ou específico).” (FERNANDES, 1981, p. 19)

4 Muitos analistas tem utilizado o termo “lawfare” para referir-se às operações em que os órgãos do sistema judiciário e a máquina policial são empregados para perseguir os adversários políticos. Portanto, a categoria em voga quer dizer exatamente isso: fazer guerra com a lei, aplicá-la conforme as conveniências da disputa política e os interesses da luta de classes. No contexto latino-americano, a prática tem sido empregada correntemente contra os partidos e lideranças políticas de esquerda que assumiram a direção dos governos do ciclo nacionalista.

5 O processo político de muitos países latino-americanos apresentou a evolução histórica referida acima, podendo ser mais claramente identificado naqueles países que passaram pelas ditaduras militares do cone-sul, a saber: Brasil, Argentina, Chile e Uruguai.

6 Acerca de como as classes dominantes buscam ocultar suas operações golpistas, Florestan Fernandes teceu a seguinte análise sobre os eventos de 1964: “O debate terminológico não nos interessa por si mesmo. É que o uso das palavras traduz relações de dominação. Se um golpe de Estado é descrito como “revolução”, isso não acontece por acaso. Em primeiro lugar, há uma intenção: a de simular que a revolução democrática não teria sido interrompida. Portanto, os agentes do golpe de Estado estariam servindo à Nação como um todo (e não privando a Nação de uma ordem política legítima com fins estritamente egoístas e antinacionais). Em segundo lugar, há uma intimidação: uma revolução dita as suas leis, os seus limites e o que ela extingue ou não tolera (em suma, golpe de Estado criou uma ordem ilegítima que se inculcava redentora; mas, na realidade, o “império da lei” abolia o direito e implantava a “força das baionetas”: não há mais aparências de anarquia, porque a própria sociedade deixava de secretar suas energias democráticas). No conjunto, o golpe de Estado extraía a sua vitalidade e a sua autojustificação de argumentos que nada tinham a ver com “o consentimento” ou com “as necessidades” da Nação como um todo. Ele se voltava contra ela porque uma parte precisava anular e submeter a outra à sua vontade e discrição pela força bruta (ainda que mediada por certas instituições). Nessa conjuntura, confundir os espíritos quanto ao significado de determinadas palavras-chave vinha a ser fundamental. É por aí que começa a inversão das relações normais de dominação. Fica mais difícil para o dominado entender o que está acontecendo e mais fácil defender os abusos e as violações cometidas pelos donos do poder.” (FERNANDES, 1981, p. 1)

7 Esse caso nada mais é do que uma variante do golpe institucional, uma espécie do gênero golpe institucional, assim como existem outras, a exemplo do “impeachment” e etc.

8 Vejamos, nesse sentido, o caso do Brasil, após a eleição de Dilma Rousseff em 2014, e o caso da Bolívia, após a eleição de Evo Morales em 2019. O caso do Equador, após a eleição de Lenín Moreno e sua posterior cooptação pelo imperialismo, também é um exemplo válido.

9 Vejamos nesse sentido o caso do Brasil, após a eleição de Jair Bolsonaro em 2018.

10 No início do presente ano, Rui Costa Pimenta lecionou um curso sobre o fascismo na Itália. Fazendo uma referência livre à sua exposição, o método empregado para difundir o medo e a paralisia nas classes populares e suas organizações políticas e sindicais consistia, basicamente, no uso da violência física e na aberta demonstração de força. Os fascistas iam nos sindicatos e jornais e ateavam fogo, matavam lideranças em suas casas à noite, faziam linchamento público, marchas sobre os bairros proletários para intimidar e dissuadir. Tudo isso era levado a efeito por uma força repressiva, resultado da associação entre milícias e forças policiais. Chamava a atenção para o fato de que esse movimento só pôde chegar ao poder de estado, porque antes percorreu todo um caminho dentro da ordem legal, modificando-a e deteriorando- a, sem ser combatido por forças políticas proletárias que estivessem a sua altura e que pudessem empregar contra eles uma iniciativa superior à sua. A síntese dos objetivos do fascismo era, segundo Pimenta em citação à Trotsky, identificada como sendo a imposição de uma ditadura que eliminasse não apenas a democracia burguesa ( entendida como o direito ao voto, ao funcionamento do sistema político representativo, à liberdade de imprensa e etc.), mas sobretudo a democracia operária (entendida como os sindicatos, os partidos de esquerda, a imprensa operária e etc.). A nosso ver essa é a característica essencial do fascismo.

11 Para não parecer que estamos a falar em termos puramente abstratos, vejamos: 1) o caso do Chile, com os protestos populares com caráter de massa que, contestando o modelo econômico neoliberal, estão a colocar o Governo de Sebastián Piñera e sua política repressiva contra a parede; 2) o caso do Equador, com protestos igualmente massivos, contra a elevação dos preços e a política repressiva do Governo de Lenín Moreno; 3) o caso da Bolívia, em que a reação popular ganhou caráter de massas e se voltou contra a camarilha que usurpou o Estado boliviano. Em todos esses casos, a despeito das orientações políticas tomadas pelas respectivas direções, o movimento da classe trabalhadora parecia possuir volume e energia suficiente para contrabalançar ou reverter a correlação de forças criada pela ofensiva imperialista.

Bibliografia

FERNANDES, Florestan. Clássicos sobre a revolução brasileira – O que é revolução?
Disponível em: < http://files.gocufg.webnode.com/200000082-
63a06649b8/oqueerevolucao_0.pdf > Acessado em 20 de dezembro de 2019.
FERNANDES, Florestan. Que tipo de República? Ed.Brasiliense, 1986.
Relatório do 19° Congresso nacional do Partido Comunista da China. Disponível em: < http://portuguese.xinhuanet.com/2017-11/03/c_136726423.htm> ou < https://www.youtube.com/watch?v=UNb9kmaWh60 > Acessado em 20 de dezembro de 2019.