Foto: Eliana Aponte – EBC

 

Por Cristiane Ganaka*

As devastadoras enchentes que deixaram 83% dos municípios do Rio Grande do Sul em situação de calamidade no início do mês de maio expõem a crescente intensidade dos eventos climáticos extremos e a necessidade de um debate franco sobre a transição energética. Aproveitamos o trágico episódio e o Dia Mundial do Meio Ambiente, celebrado neste 5 de junho, para debater este tema que está na pauta do dia, mas que nem sempre é tratado com a seriedade e profundidade que merece.

Mas afinal, o que é essa tal transição energética que tanto ouvimos falar?  É comum que muitas pessoas confundam “matriz energética” com “matriz elétrica”, mas esses conceitos são distintos. Enquanto a matriz energética engloba todas as fontes de energia usadas para diversos fins, como transporte, preparação de alimentos e geração de eletricidade, a matriz elétrica se refere especificamente às fontes utilizadas para produzir energia elétrica. Ou seja, a matriz elétrica faz parte da matriz energética.

A transição energética nada mais é do que a alteração da principal fonte de energia de uma sociedade por outra, no nosso caso por uma fonte renovável e mais sustentável. Teoricamente simples, mas na prática guarda uma série de contradições. Não há dúvidas que algo precisa ser feito, mas o principal debate é como isso será feito.

Vale destacar que a necessidade energética é ontológica do ser humano e que a matriz energética já passou por algumas transições ao longo da história. O domínio/geração e consumo de energia tem relação com a complexificação da produção e reprodução social.

 

Em um mundo sob mudanças climáticas, a transição energética se torna cada vez mais urgente. Já é sabido que os atuais níveis de emissão de Gases do Efeito Estufa (GEE) são uma ameaça para continuação da existência humana. Além disso, estudos recentes, divulgados pelo Observatório do Clima, demonstram que as condições climáticas adversas estão agravando problemas globais, como fome, desenvolvimento reduzido e ameaça à paz.

A atual matriz energética baseada na queima de combustíveis fósseis, como o petróleo e o carvão, é a principal causadora das altas emissões de GEE em nível global e que tem levado a catástrofes climáticas cada vez mais cotidianas, como as ondas de calor ou as enchentes que assistimos. Além disso, as fontes dessa matriz não são renováveis, ou seja, mais cedo ou mais tarde esses recursos irão acabar. Mas há distinções significativas entre as causas das emissões de GEE no mundo e no Brasil.

Mundialmente, cerca de ¾ das emissões vem do sistema elétrico (Gráfico 1), enquanto no Brasil, graças às hidrelétricas, o sistema elétrico é majoritariamente de fontes mais sustentáveis (62%). No caso brasileiro, o agronegócio é o maior responsável pelas emissões de GEE, devido ao desmatamento para o avanço da fronteira agrícola e do modelo agropecuário baseado na monocultura de commodities e na criação extensiva de gado.

O relatório Plano para a Transformação Ecológicado, do Ministério da Fazenda, aponta que este setor representa 29% das emissões de GEE no país. O problema se agrava ainda mais quando analisamos o nível de emissão de GEE relacionado ao desmatamento, na casa dos 38%. Ao considerarmos que a agropecuária responde por cerca de 96% da área desmatada no Brasil, segundo o Relatório Anual do Desmatamento 2022, podemos afirmar que o agronegócio é responsável por aproximadamente 65% das emissões de GEE no Brasil, contra 23% da geração de Energia (Gráfico 1). Em suma,  não podemos replicar planos de transição como a da Europa, já que nossa causa é distinta.

 

Gráfico 1

Emissões de GEE por setor, em % –  Mundo (2016) e Brasil (2020) 

A produção de animais, especialmente ruminantes, contribui de forma significativa para as emissões de GEE, já que o sistema digestivo dos ruminantes produz e libera metano e outros GEE, como aponta um estudo de 2023 do Centro de Estudos do Agronegócio da Fundação Getulio Vargas (FGV). O manejo dos dejetos animais também gera metano e óxido nitroso durante a decomposição. Outras fontes de emissão indiretas incluem a volatilização de amônia e óxidos de nitrogênio, bem como perdas de nitrogênio por lixiviação e escoamento no manejo de esterco e solos. O metano é o segundo gás mais relevante para o aquecimento global, após o dióxido de carbono. Devemos considerar as emissões geradas pela atividade pecuária não associando-as aos animais individualmente, mas sim entendendo o sistema como um conjunto. No Brasil, 93% do rebanho nacional é manejado em pastagens, segundo dados da Anualpec de 2022, a chamada criação extensiva, levando o setor agropecuário brasileiro a ser responsável por 76,1% das emissões de metano. Além da pecuária, o setor agrícola também contribui para as emissões de GEE, representando cerca de 8% das emissões totais no Brasil, segundo dados do Sistema de Estimativa de Emissão de Gases de Efeito Estufa (SEEG) de 2020. Isso se deve principalmente à aplicação de agrotóxicos nitrogenados, decomposição de resíduos agrícolas e dejetos animais, cultivo de arroz e aplicação de calcário.

O Brasil aspira liderar a transição energética e a partir disso se reposicionar geopoliticamente. É fato que o país tem um grande potencial para conduzir esse processo: além de 48% das fontes de energia serem renováveis – participação três vezes maior que a média mundial de 15% -, há ainda um grande potencial de recursos hídrico, solar, eólico e de biocombustíveis disponíveis. Cabe ressaltar que a produção de energia em grande escala a partir de recursos renováveis não quer dizer que tenham impacto zero, basta lembrar das comunidades que são deslocadas para formação de barragens.

Na busca de fazer a transição energética, tanto o Poder Executivo quanto o Legislativo estão elaborando iniciativas, como o Plano de Trabalho Conjunto para a Aceleração da Transição Energética, do Ministério de Minas e Energia (MME) e da Agência Internacional de Energia (IEA); o Projeto de Lei (PL) que institui o Programa de Aceleração da Transição Energética (Paten); e o Plano para a Transformação Ecológica, iniciativa do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima e do Ministério da Fazenda.

O Plano de Trabalho Conjunto para a Aceleração da Transição Energética tem o propósito de impulsionar e expandir a matriz energética do Brasil por meio de investimentos em fontes renováveis, como biocombustíveis; o Programa de Aceleração da Transição Energética incentiva financiamentos de projetos sustentáveis; já o Plano para a Transformação Ecológica parece ser a iniciativa mais abrangente que articula eixos (Finanças Sustentáveis, Adensamento Tecnológico, Bioeconomia, Transição Energética, Economia Circular e Nova Estrutura Verde) e instrumentos (Financeiros, Fiscais, Regulatórios, Administrativos e Operacionais, Monitoramento e Fiscalização), a fim de atingir justiça social, sustentabilidade ambiental e ganhos de produtividade como geração de emprego.

Até agora todas as iniciativas privilegiam a óptica de mercado com um grande número de incentivos financeiros: emissão de títulos, disponibilidade de linhas de créditos e criação de fundos. E a história do capitalismo mostra que o mercado busca o lucro de forma contínua e acelerada, muitas vezes até que ocorra um colapso que paralise o sistema.

Ainda sobre as ausências, os incentivos a investimentos em meios de transportes coletivos ou para além dos rodoviários são tímidos ou quase inexistentes, o que diminuiria as emissões geradas pelo predomínio da logística via malha viária e pelo transporte individual. O que temos de mais significativo são ações para eletrificação da frota dos ônibus, renovação de frota de caminhões e metas de emissões para veículos leves. Porém, faz falta ações mais diretas em relação às maiores causas de emissão de GEE.

É fundamental alterar o modelo de produção agrícola baseado na monocultura de commodities e pecuária extensiva voltada à exportação. A escolha por ser uma economia agroexportadora nos coloca em uma posição de dependência na divisão social do trabalho, além de ser nosso maior problema quando falamos em emissão de GEE. Também é preciso repensar a mobilidade como um todo. Dado que somos um país urbano, torna-se cada vez mais evidente o papel crucial das cidades nesse processo, seja pela questão do transporte ou pela habitação, já que as ondas de calor, cada vez mais frequentes, elevam a demanda por energia elétrica. Além disso, prospectando o futuro,  em uma economia digitalizada, como iremos suprir uma demanda de energia cada vez maior se pretendemos ter nosso Data Centers como prospectada na Nova Indústria Brasil, sabendo que essas infraestruturas demandam uma grande capacidade de refrigeração?

A transição energética tem que ser mais ampla, para além do setor elétrico, de novos combustíveis e da captura de carbono. A transição energética é uma mudança de paradigma que abarca não apenas a oferta de energia, mas pressupõe alterar o sistema produtivo e de consumo. Os recursos são limitados e deveriam ser alocados para o bem coletivo e não apenas para uma parcela.

A transição energética é parte da questão ambiental que hoje se apresenta como uma problemática. A alta emissão de GEE não é apenas resultado da preponderância do uso de combustíveis fósseis na nossa atual matriz energética, mas sim da forma predominante de organizar a vida. Portanto, não será uma resposta pontual que resolverá um problema complexo. A transição energética é uma condição necessária para seguir em frente, mas a lógica capitalista e seus padrões de produção e consumo impedem o progresso.

 

*Cristiane Ganaka é economista e pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Artigo originalmente publicado no Jornal GGN.