O pleito municipal de 2020 foi marcado por candidaturas evangélicas em 24 das 26 capitais.

 

Por Márcia Silva*

É inegável que os trabalhadores mais empobrecidos de nosso país buscam na religião refúgio e acolhimento em momentos de crise. As políticas de solidariedade realizadas em maior número ao longo da pandemia deixou evidente a presença da religiosidade nas periferias do nosso país e o papel que esta ocupa.

Desde a década de 1990, quem tem dado respostas cotidianas para essas trabalhadoras e trabalhadores são as igrejas evangélicas que crescem principalmente nas periferias do Brasil. As igrejas neopentecostais nascem do solo urbano e passam a ocupar papel de destaque. Neste âmbito, as categorias de espaço-tempo são indispensáveis – o processo de territorialização das igrejas evangélicas no Brasil ocorre entrelaçado a transição de um país majoritariamente rural para um país urbano, processo que se inicia na década de 1930 e se consolida em meados de 1970; essa transição foi marcada pelo avanço da pobreza e da exclusão social, dentre outras questões.

As igrejas evangélicas se expandem e se fazem presentes em segmentos essenciais para a manutenção da vida e bem-estar do povo – criam centros culturais promovendo atividades para crianças e jovens; acolhem a comunidade juntamente com seus problemas pessoais, e, por meio de ações, promovem a organização da vida cotidiana e material da população. Estas se fazem presente onde as políticas públicas não chegam. O que percebemos por meio da atuação nos territórios, relatos e estudos acerca da temática é que a comunidade religiosa oferece uma rede de apoio e de atividades que ampliam as relações sociais e a circulação de homens e mulheres na esfera pública.

Frente a essas questões, a proposta do texto é caminhar em uma estrada que vem sendo trilhada por diversos pesquisadores/as, militantes e grupos de estudos – os evangélicos neopentecostais e a política. Assim, buscamos lançar olhas acerca dos evangélicos nas Eleições Municipais de 2020, com o objetivo de compreender os avanços desses grupos no cenário político brasileiro, que ganhou maior força nas eleições de 2018[2].

 

As correntes evangélicas e suas ondas

Frente a discussão proposta é necessário um resgate histórico sobre o avanço das igrejas evangélicas no Brasil, bem como seus fundamentos histórico-institucionais e essa guinada no cenário político. As correntes evangélicas no Brasil são caracterizadas por Mariano (1999) em três ondas: a “primeira onda” ocorreu em meados de 1910, com a instalação das igrejas Congregação Cristã no Brasil, fundada por italianos e a Assembleia de Deus, fundada por suecos. Em 1950 temos o que será chamada de “segunda onda”. Neste período surge a Igreja Internacional do Evangelho Quadrangular, a Igreja Pentecostal Deus é Amor e a Casa da Bênção, para citar algumas.

Para Borges (2017), não houve ruptura teológica entre a primeira e a segunda onda pentecostais. O que difere ambas são os meios de comunicação utilizados, haja vista que, a “primeira onda” guarda modos mais tradicionais de disseminação de sua palavra, diferente da segunda. Ponto importante deste período é que o fundador da Igreja Deus é Amor, David Miranda, foi o pioneiro do mercado gospel brasileiro, a empreender esforços na criação de gravadoras e editora pentecostais.

Em 1980, a “terceira onda” demarca um corte histórico-institucional com a linha pentecostal e apresenta caráter inovador. O neopentecostalismo tem a sua gênese na segunda metade dos anos de 1970 e expande e se fortalece nas décadas seguintes. A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) (RJ, 1977), a Igreja Internacional da Graça de Deus (RJ, 1980) e a Igreja Cristo Vive (RJ, 1986) são as principais instituições religiosas surgidas nesse período.

O processo de modernização na década de 1970 foi marcado pelo avanço da indústria cultural, a inserção de novas tecnologias de comunicação e informação. Tais avanços possibilitaram a esta corrente um novo modo de se relacionar, produzir, comunicar e difundir o seu discurso teológico. Ou seja, o neopentecostalismo se adaptou de maneira singular às condições colocadas pelo capitalismo – expansão do poder de compra da classe trabalhadora e a ressignificação das relações espaço-tempo.

Neste período, os evangélicos consolidaram uma territorialidade mais fluida, mais pulverizada e menos centralizada. Construíram igrejas nos rincões, ocupando cômodos comerciais dos centros das cidades, reformando teatros e cinemas, espalharam-se nas periferias e nas centralidades a fim de atenderem a demandas contemporâneas, conforme afirma Oliveira (2012).

Um outro elemento dessa “terceira onda” pentecostal é a lógica cliente-fiel (instituições religiosas burocráticas), a guerra contra o diabo, a teologia da prosperidade e a teologia do domínio[3]. A Teologia da Prosperidade sustenta-se de modo redundante, sob o argumento de que se Deus pode curar e curar a alma, ele também pode conceder a prosperidade.

A teologia da prosperidade se expande no Brasil a partir da década de 1970. Um dos principais expoentes dessa teologia foi o bispo Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), em 1977. O ponto central é a comercialização da fé; sustenta-se a narrativa de que a pobreza e a doença são maldições que acometem a vida de homens e mulheres que não se preocupam em acumular riqueza na terra. Tal ideologia é disseminada com intensidade avassaladora na mídia e diversos meios de comunicação.

A Teologia da Prosperidade fragmenta e individualiza a classe trabalhadora – se você não nasceu com o ‘bilhete premiado’, você deve se esforçar dia após dia para conseguir. Convém ao capital materializar todas as questões objetivas e subjetivas da vida de homens e mulheres, pelo equivalente de todas as mercadorias: o dinheiro. Oculta-se as questões estruturais do neoliberalismo e do capitalismo, principalmente no âmbito da desigualdade e da exploração. Sustenta-se a ideia de ‘falsa esperança’ e reafirma o fetiche de mercadoria, onde a fé e a esperança passam a ser mediadas por um conjunto de mercadorias sistematicamente fetichizadas.

Do ponto de vista político, a terceira onda é caracterizada por uma burocratização associada diretamente às questões de hierarquia, estando descoladas das questões coletivas, públicas e de um debate para o bem comum. Pérez Guadalupe, cientista político e sociólogo peruano, defende a tese de que no Brasil convivemos com evangélicos políticos e não políticos evangélicos. Ou seja, eles na verdade não são políticos, são religiosos. O que eles buscam é se aproveitar da política para chegar ao poder e, dessa maneira, seguir com seus objetivos religiosos.

Não são políticos no sentido estrito da palavra, fazendo política para buscar o bem comum de seu país, tanto que não têm nenhuma proposta de outro tema que não seja a agenda moral. A principal proposta deles é moralizar a política. Tal análise é problemática e será destrinchada ao longo do texto.

A comunidade evangélica é repleta de contradições e figuras políticas populares, como: Flordelis, Everaldo, Crivella, Damares Alves, André Mendonça e Milton Ribeiro, que se vinculam ao segmento conservador, estando no rol do fundamentalismo, extremismo e reacionarismo político. Esse grupo citado não tem ideias em economia, em política pública ou proposta para a melhoria de vida da população. Atuam no debate de temas que geram polêmicas no universo cristão, como a legalização do aborto, a descriminalização das drogas, a união homoafetiva, dentre outros. Os seus projetos versam sobre a proibição de adoção por homossexuais, o ensino do criacionismo, a punição à “heterofobia”, o dia do “orgulho heterossexual” e o entendimento do aborto como crime hediondo.

O que notamos são grupos religiosos que incidem em um projeto ideológico em diversos campos, como cultura, educação, economia e política – e qualquer coisa que vá na contramão ou questione tal posição deste projeto é tida como estratégia do diabo para o seu enfraquecimento. Como dizer que os evangélicos não são políticos ao considerarmos a sua massificação, a capacidade de aglutinação e convencimento?

Seguindo tal reflexão, Souza et. al. (2019) coloca que, algumas igrejas costumam demonizar organizações e indivíduos tipificados por elas como adversários nos campos religioso, econômico, midiático e político, sendo que quando alguns de seus representantes parlamentares são fortemente acusados de corrupção, estes acabam também por sofrer diabolização seguida de descarte institucional.

 

Pelito municipal de 2020

Em 2015, o site da Câmara dos Deputados veiculava 199 nomes de deputados e quatro de senadores que constituem a Frente Parlamentar Evangélica, tendo a última legislatura sido publicada nos Diários da Câmara dos Deputados no dia 9 de novembro de 2015. Atualmente, o site da Câmara dos Deputados veicula 195 nomes de deputados e oito senadores que constituem a Frente Parlamentar Evangélica, tendo a última legislatura sido publicada nos Diários da Câmara dos Deputados no dia 17 de abril de 2019. Membros dos mais diversos partidos, de ideologias bastantes diversas, uniram-se em defesa dos princípios evangélicos.

Cabe ressaltar que esse grupo é formado majoritariamente pelos calvinistas – que se orienta pelo legado do francês João Calvino. A teologia de Calvino está presente em diversas denominações, em várias igrejas batistas e pentecostais no Brasil. Avançar na análise desse grupo é nos distanciar do objetivo pretendido no texto. Assim, nos restringimos neste primeiro momento a olharmos somente para os grupos neopentecostais.

É evidente que os avanços nos neopentecostais na política não ocorreram da noite para o dia. Eles se sustentaram em temas ligados à moral religiosa e a segurança pública, elementos que foram utilizados em 2018 e potencializaram a eleição do atual presidente Jair Messias Bolsonaro. Segundo o Grupo de Estudo sobre Religião e Esfera Pública, vinculado ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), os pastores e líderes religiosos nas periferias conseguem ter um contato amplo com os fiéis. Mas, quem são esses fiéis?

Por meio dos dados divulgados pelo Datafolha (2019), a base social do universo evangélico é composta em grande maioria por mulheres negras com média salarial de dois salários-mínimos. Três elementos são importantes nessa análise: gênero, raça e classe. Para Machado (2020), a presença desses elementos ocorrem por uma série de fatores objetivos e subjetivos, como os altos índices de violência contra jovens negros e mulheres, somado a debilidade do Estado em se fazer presente na periferia das grandes cidades; os/as pastores/as apresentam um perfil social muito próximo dos/as fiéis, falam sobre temas presentes no cotidiano das comunidades, como, por exemplo, família, casamento, violência, uso de drogas, desemprego, doenças etc.; os cultos são marcados por uma forte emoção e participação dos/as fiéis, o que acaba gerando pertencimento, acolhimento e reconhecimento.

Os pastores/as geram visibilidade e referência nos territórios. Eles sabem o nome dos/as fiéis, seus problemas pessoais, o endereço residencial, a ocupação, estabelecem um vínculo direto com o eleitorado, geram uma relação de confiança, se apresentam enquanto representantes da comunidade.

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não divulga estatísticas sobre a religião dos candidatos, mas com base nos dados fornecidos pelo Núcleo de Estudos sobre a Democracia Brasileira (NUDEB) da UFRJ e outras pesquisas, tivemos em 2020 o aumento de 34% no total de candidaturas dos representantes deste segmento religioso nas eleições municipais de 2020, em comparação ao ano de 2016. Esse aumento representa uma difusão ideológica por todo o país e reflete a arena política dos últimos períodos. Ou seja, cada vez mais evangélicos passam a ser eleitos e cada vez mais o discurso religioso ganha volume na política nacional.

O pleito municipal de 2020 foi marcado por candidaturas evangélicas em 24 das 26 capitais, como Florianópolis, Belo Horizonte, Palmas, São Luís, São Paulo e Vitória. O Republicanos, partido ligado à IURD, lançou candidatos em 14 capitais. No total, foram 47 candidaturas mapeadas que se declaram evangélicas ou que recebem apoio (NUDEB, 2020).

Os candidatos evangélicos se espalharam por 28 partidos. O partido com maior entrada de candidaturas explicitamente religiosas foi o Republicanos, com 863 candidatos, que também lidera entre os claramente evangélicos, 394. Essa fatia de cristãos cresceu 48% dentro do partido desde as últimas eleições. Em segundo estava o PSC, que perdeu 10% de quadros abertamente evangélicos de 2016 até 2020.

Esses números apresentados podem ser maiores por algumas razões: nem todos os religiosos usam termos ligados à fé em seu nome de urna, dentre os que usam, nem todos são específicos. Neste cenário a presença de lideranças políticas evangélicas é crescente, conta com respaldo social e está ligada ao bolsonarismo. Os partidos políticos recrutaram líderes religiosos e militares para disputar as prefeituras, seguindo a estrutura explorada por Bolsonaro.

As igrejas evangélicas e a política apresentam uma relação de simbiose que se consolidou nas eleições de 2018. Ao emplacar candidatos na disputa eleitoral, as igrejas neopentecostais fazem uso de todos os artifícios possíveis – a exemplo, a Universal do Reino de Deus (IURD) utilizou de boca de urna, campanha nos cultos e mobilização de voluntários para emplacar candidatos nestas eleições.

Segundo reportagem da Agência Pública, o material distribuído em frente ao Templo de Salomão, na grande São Paulo, orientava para um voto casado com o vereador André Santos e o então candidato a prefeito Celso Russomano, ambos do Republicanos. Russomano contou com o apoio do presidente Jair Bolsonaro, o que não contribuiu em muito, considerando que o candidato não avançou para o segundo turno, diferente de André Santos, eleito com 41.584 votos.

No Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, bispo licenciado da IURD, foi derrotado pelo seu antecessor Eduardo Paes (DEM). Não trata de comemorar a eleição de Eduardo Paes, mas olhar para a derrota de Crivella e compreender as alterações que ela provoca no projeto político dos evangélicos neopentecostais e no bolsonarismo. Haja vista que o apoio do presidente não foi determinante na escolha dos prefeitos em duas das maiores capitais do Brasil. Isso não coloca o projeto da esquerda em disputa, mas sinaliza uma disputa entre a direita tradicional e a direita conservadora.

Ao olharmos para as capitais que tiveram candidaturas evangélicas ou apoio de partidos evangélicos, o pleito eleitoral de 2020 se encerrou do seguinte modo: na capital do Amazonas, o candidato evangélico David Almeida (Avante) foi eleito prefeito. Em Cuiabá, o candidato evangélico Abílio Júnior (Podemos) se elegeu. Devoto do bolsonarismo, Abílio assumiu uma campanha genuinamente bolsonarista, inclusive replicou discursos do presidente.

Marquinhos Trad (PSD), que é evangélico e primo do ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta – e apoiou Bolsonaro nas eleições de 2018 – foi eleito em Campo Grande. A capital goiana tradicionalmente é administrada por evangélicos. O cenário não se alterou, já que o candidato eleito foi Maguito Vilela (MDB). Em Vitória, o Delegado Lorenzo Pazolini (Republicanos) foi eleito. Na capital catarinense, Gean Loureiro (DEM), quem tem como vice Topázio Silveira Neto (Republicanos), foi reeleito. A chapa de Loureiro contou com o apoio da Igreja Universal e tem bom relacionamento com Bolsonaro.

É inegável o crescimento das candidaturas evangélicas e do protagonismo dos Republicanos, partido ligado à IURD, que lançou candidatura de prefeito ou vice em 14 capitais. No total, foram 38 candidaturas mapeadas que se declaram evangélicas ou que recebem apoio do partido. Das cinco cidades em que o Republicanos disputou o segundo turno nas eleições, o partido elegeu três prefeitos e quatro vice-prefeitos. Quando consideramos o número de prefeitos eleitos por partidos no Brasil na última eleição (2016), o PSC saltou de 87 para 116 e o Republicanos de 103 para 211, em 2020, estando entre os partidos que mais cresceram nos últimos períodos.

Aramis Silva, antropólogo e pesquisador da Cebrap, rebate as afirmações feitas pelo cientista político Pérez Guadalupe em 2018. Para o antropólogo, esses agentes, muitas vezes vistos como fanáticos e mal compreendidos, são jogadores de peso na disputa por um novo projeto político, ideológico e econômico para o Brasil. Não devemos em hipótese nenhuma subestimar as organizações políticas evangélicas; o caminho que vem sendo traçado nos coloca frente a um ambiente de disputa.

No entanto, nem tudo está perdido. Em julho de 2020 foi lançada a Bancada Evangélica Popular, que concentra os que se declaram de esquerda. O site oficial a bancada se define como:

Somos um movimento popular de evangélicas e evangélicos que desejam participar de forma direta na política. À luz da Palavra de Deus, queremos promover políticas públicas concretas que cessem com a desigualdade social e promovam justiça, paz e dignidade para todas e todos. Nosso propósito é ocupar as câmaras e assembleias com uma Bancada Evangélica Popular, que lute e defenda os direitos de nosso povo. Faremos isso indicando e apoiando nossos irmãos e irmãs que se dispõem a esta luta nas candidaturas, de forma pluripartidária. Não há nesse movimento e sua intenção, uma expressão unívoca de pensamento político e/ou teológico, haja visto que cada um de seus representantes, bem como a base de apoio e simpatizantes, partilham de uma diversidade de entendimento acerca destas questões. Mas que, nos reunimos a partir de nossa identidade e preceitos básicos teológicos e políticos que partilham do entendimento de papel como cristãos-evangélicos, agentes do Reino de Deus, para promoção da transformação social. (Bancada Evangélica Popular, 2020)

A bancada é criada por seis pastores – um presbítero e um ativista -, defende o Estado laico e combate à desigualdade social. Em um dos posts, condena o ato de pedir votos no púlpito –– referência a pastores e igrejas que utilizam o espaço religioso para fazer propaganda política, o que é proibido pela lei eleitoral. Em seu manifesto oficial, o movimento cita o crescimento da corrente no Brasil e afirma que, apesar disso, os religiosos ainda não causam “impacto no processo de ruptura com esse sistema maligno e desumano que tem aumentado esses índices de opressões e maldades contra nosso povo”.

A Igreja Universal do Bispo Edir Macedo, vinculada diretamente ao Republicanos, lançou uma ofensiva contra a bancada em seu site oficial:

Esse é um tipo de movimento que surge para tentar deturpar a Palavra de Deus. Há duas razões para justificar o fato de um cristão ser de esquerda: ou ele não entende o que é ser esquerda ou não sabe o que é ser cristão. Isso porque países que adotam políticas de esquerda vivem sob regime absolutista, que tem como um de seus objetivos cercear a liberdade dos indivíduos, inclusive, a religiosa. Outra característica de países que adotam posturas de esquerda é o comunismo. E entre as principais peculiaridades dele é a divisão dos meios de produção de forma igualitária para todos, confundindo igualdade com justiça social. Enquanto isso, o governo culpa toda uma sociedade pelo progresso ou regresso da nação – sem responsabilizar o indivíduo – mas prospera em cima dela. (IURD, 2020)

Houve também uma série de manifestações contra o chamado voto de cajado, método similar ao voto de cabresto adotado pelas igrejas evangélicas para fazer os fiéis votarem em candidatos crentes – essa estratégia geralmente ocorre na liturgia do culto. A Rede FALE organizou um manifesto contra o voto de cajado, defendendo o exercício consciente do voto e da participação popular, com a devida distinção de papéis entre Estado e Igreja.

Silas Malafaia, Edir Macedo e tantas outras figuras tinham um discurso hegemônico, sempre falando em nome de todos os evangélicos. Porém, o surgimento da Bancada Popular Evangélica, o grupo Cristão Contra o Fascismo e outras candidaturas progressistas nos mostrou que a polarização política chegou nas igrejas evangélicas do nosso país. Abre-se uma fenda para a inserção de um novo debate, contrapondo a linha ideológica conservadora presente nas igrejas e territórios onde o bolsonarismo se tornou hegemônico. De modo geral, elementos para análise nos próximos períodos não nos faltam, e quanto mais afirmamos que não conhecemos os evangélicos, melhor.

 

Considerações finais

Na tentativa de sistematizar e não esgotar a discussão aqui realizada, cabe destacar alguns pontos:

• A presença de lideranças políticas evangélicas é crescente, conta com respaldo social e está ligada ao bolsonarismo; isso é um fato. No cenário nacional, os partidos políticos PSC e Republicanos apostaram em líderes religiosos e militares para disputar as eleições municipais, seguindo a estrutura que elegeu Bolsonaro e obtiveram êxito.

• Os Republicanos têm se consolidado como um partido que não se vincula diretamente à igreja, não usa linguagem religiosa explícita. No entanto, seus principais dirigentes estão ligados à IURD; assim devemos estar atentos a movimentação política desse grupo.

• As igrejas evangélicas não estão aquém da polarização política, o eleitorado evangélico está insatisfeito com seus representantes políticos. Prova disso é o surgimento da bancada evangélica popular e o lançamento de candidaturas evangélicas progressistas. Tais alterações possibilitam a abertura para debates como laicidade do Estado e a transformação da cultura política brasileira.

• Os candidatos evangélicos de direita e centro-direita se colocam como fiéis ao discurso da moral religiosa e a segurança pública. Contudo, o apoio de Jair Bolsonaro não foi determinante na escolha dos prefeitos pelo eleitorado. As polêmicas em torno do governo Bolsonaro acertaram a sua credibilidade, mas não o suficiente para desgastar o governo.

• O MDB continua com o maior número de prefeituras, assim como nas eleições passadas. O DEM foi a sigla que mais cresceu em números absolutos na comparação com quatro anos atrás. O PT ocupou somente 183 prefeituras.

• Neste ano, os eleitores evangélicos representam quase um terço do universo eleitoral e deve aumentar nos próximos períodos. É necessário nos colocarmos ainda mais na batalha por corações, mentes e ideias, bem como em dar respostas concretas para homens e mulheres – nos cabe avançar na compreensão das subjetividades do nosso povo. E uma coisa é fato, várias dessas mazelas que perpassam a nossa sociedade já estavam presentes antes do avanço do neopentecostalismo.

• Devemos estar atentos e não nos apoiarmos na pós-verdade, o que está colocado é uma disputa entre a direita tradicional e a direita conservadora; o nosso projeto não está em disputa. A nossa tarefa para os próximos períodos é a construção de força popular e organização social e sabemos que, sem os evangélicos, não avançaremos.

 

* Márcia Silva é professora, mestre em Geografia e doutoranda no Departamento de Geografia da UNB, com ênfase na Produção do Espaço Urbano, Rural e Regional, militante do Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD) e da Consulta Popular. Com a pandemia, tem se dedicado à Campanha de Solidariedade no Distrito Federal e em reflexões acerca da importância da espiritualidade no cotidiano das periferias, tais inquietações resultaram na construção coletiva e organização do GT de Espiritualidade em parceria com militantes, religiosos e o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

[1] A escolha do título se apoia nos estudos de Bessa (2006), a qual reflete sobre a demonização do feminino no neopentecostalismo. Em contrapartida, Aragão Filho (2011), salienta que as mulheres atuam como agregadoras de novos seguidores, além do fato de que igrejas que incluem as mulheres em seus processos ganharam simpatia do público feminino. As atuações femininas nos espaços ainda dependem das decisões masculinas, a imagem da mulher se atrela ao cuidado e a família, o que sustenta ideologias do patriarcado. Um outro ponto é que os espaços institucionais são majoritariamente masculinos, prova disso é que somente oito mulheres foram eleitas prefeitas nas 96 maiores cidades do Brasil.

[2] Cabe ressaltar três questões: (i) O objetivo aqui não é trazer um caso específico, mas sim um voo panorâmico sobre a temática em nosso país; (ii) Sabemos que homens e mulheres pertencentes ao mesmo segmento religioso cristão, possuem perspectiva de fé relacionadas a visões e práticas distintas; (iii) Esse texto é desdobramento de reflexões coletivas desenvolvidas Grupo de Trabalho – Espiritualidade e Solidariedade (Distrito Federal) criado ao longo da campanha Periferia Viva.

[3] Paravidini e Gonçalves (2009) entendem que o neopentecostalismo por meio de uma vertente oriunda da Psicologia/Psicanálise, alimenta a tese que a felicidade do fiel está relacionada a uma “aliança societária” que ele deve ter com Deus, pautada em condição de assujeitamento ou servidão voluntária ao outro.