A guerra econômica contra o planeta cria as condições para o caos | Carta semanal
Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Na segunda-feira, 27 de janeiro, o fotógrafo sul-africano Santu Mofokeng se foi. Sua câmera foi uma presença familiar na luta contra o apartheid. Depois de anos fotografando violência policial e resistência popular, ele se cansou de fazer “imagens que mostravam melancolia, monotonia, angústia, luta e opressão”, escreveu em 1993. Foi então que Santu virou a câmera para a vida dos negros da classe trabalhadora. “Talvez eu estivesse procurando algo que se recuse a ser fotografado”, disse. “Estava apenas perseguindo sombras, talvez”, completou. Quem procura o futuro persegue sombras.
Quando o futuro é sombrio, sentimos vontade de fechar os olhos.
Em meados de janeiro, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) divulgou seu principal relatório, Situação Econômica Mundial e Perspectivas – 2020. O tema principal do documento é que as taxas de crescimento global este ano serão inexpressivas e que os Estados mais poderosos dependerão mais uma vez da redução das taxas de juros para fornecer liquidez aos mercados. Há uma visão fundamentalista entre os principais economistas e banqueiros de que a entrada de capital nos mercados levará a investimentos que podem aumentar as taxas de crescimento. Como mostra a Unctad, isso é uma ilusão, uma vez que a liquidez pode ir para os mercados financeiros e não para investimentos no setor produtivo, de serviços ou para financiamento das necessidades humanas. “Políticas monetárias sobrecarregadas”, observa o relatório, “provaram ser insuficientes para estimular o investimento, que em muitos países está sendo retido menos pelos custos de financiamento que pela incerteza e falta de confiança nos negócios”.
Uma enorme quantidade de dívida global foi “canalizada para ativos financeiros, em vez de aumentar a capacidade produtiva – ilustrando uma desconexão preocupante entre o setor financeiro e a atividade econômica real”. Mesmo quando o capital entra no setor manufatureiro, não aumenta necessariamente o emprego; o fenômeno do “crescimento sem emprego” tem sido frequentemente o seu resultado. O capital está fluindo para títulos soberanos de rendimento negativo, o que mostra que o mercado de capitais é pessimista em relação ao crescimento econômico futuro. É um sinal de profundo estresse no sistema atual, como apontamos em nosso dossiê de janeiro n. 24, O mundo oscila entre crises e protestos.
Dada a falta de crescimento, a solução dos bancos centrais se tornou a redução das taxas de juros. O Federal Reserve Bank dos EUA – uma espécie de banco de última instância – reduziu as taxas mais uma vez, que fica entre 1,5% e 1,75%, o que dá ao Federal Reserve muito pouco espaço para reduzir ainda mais as taxas se houver outra crise financeira ou mesmo uma desaceleração mais profunda. “A dependência excessiva da política monetária”, escrevem os economistas da Unctad, “não é apenas insuficiente para reativar o crescimento; também implica custos significativos, incluindo o aumento dos riscos de estabilidade financeira”. As baixas taxas de juros permitem que os mercados financeiros tomem empréstimos em uma situação em que os riscos estão abaixo do preço; como resultado, um comportamento mais imprudente é evidente nos mercados, os ativos são supervalorizados e a dívida global provavelmente irá disparar.
Desde o surgimento da ortodoxia neoliberal, os governos foram estimulados a usar apenas a política monetária – como a manipulação das taxas de juros – como um meio de intervir na economia. A política fiscal – como usar o orçamento para arrecadar fundos para gastos públicos – tem sido vista como uma maneira ineficiente de ação; em vez disso, são incentivados a reduzir impostos e gastos. Se o capital privado não está fazendo os investimentos necessários na sociedade, os governos precisam arrecadar fundos para usar em investimentos públicos substanciais. Em outras palavras, como a Unctad coloca, isso implicaria “alinhar políticas para descarbonizar energia, agricultura e transporte; empreendendo investimentos direcionados em infraestrutura para ampliar o acesso à energia limpa e renovável, água limpa e conexões de transporte; e apoiar a igualdade de oportunidades no acesso a educação de alta qualidade, assistência médica e emprego formal”.
Nada disso chamou a atenção dos tomadores de decisão cansados que compareceram ao Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça. Eles conversaram sobre a mudança climática como se fosse uma questão nova, e como se pudesse ser vista isoladamente das ondas da instabilidade financeira e dos desertos do investimento de capital que ameaçam a vida de bilhões de pessoas. A cada ano, para os participantes de Davos, a Oxfam divulga seu impressionante relatório sobre desigualdade global. O deste ano mostra que os 2.153 bilionários do mundo têm mais riqueza do que os 4,6 bilhões de pessoas que representam 60% da população do planeta. Existem alguns números neste relatório que são tão absurdos que precisam ser lidos mais de uma vez:
- Os 22 homens mais ricos do mundo têm mais riqueza do que todas as mulheres da África.
- O 1% mais rico do mundo tem mais que o dobro da riqueza que 6,9 bilhões de pessoas.
- Se você economizasse 10 mil dólares por dia todos os dias desde que as pirâmides foram construídas no Egito antigo, cerca de cinco mil anos atrás, hoje você teria apenas um quinto da fortuna dos 5 bilionários mais ricos.
- Mulheres e meninas empregam 12,5 bilhões de horas de trabalho não remunerado todos os dias, contribuindo com pelo menos 10,8 trilhões de dólares por ano para a economia global – mais de três vezes o tamanho da indústria global de tecnologia.
Dadas essas disparidades, não admira que as conversas em Davos estejam áridas, quase de outro mundo. Dois economistas escrevem de Davos os sinais positivos dessa economia, abrigando-se atrás do fim das hostilidades comerciais entre Estados Unidos e China e enfatizando o aumento dos gastos dos consumidores. Nada aqui sobre desigualdade ou o fato de que esses gastos se baseiam em crédito barato e dívidas altas. Os economistas concluem seu texto com uma declaração peculiar: “Mais preocupações locais, como tumultos na América Latina e crescimento vacilante na Índia, também são preocupantes”.
Levantes na América Latina? O núcleo da agitação que vemos na América Latina aponta para uma série de operações de mudança de regime (que derrubaram o governo na Bolívia e que tentaram – e falharam – derrubar o governo na Venezuela) e repressão estatal contra manifestantes (em Chile e Equador). A violência que se vê na América Latina foi imposta pelo imperialismo e pela oligarquia local. Chamá-la de “tumultos” remete a algo anárquico; eles são, na verdade, a consequência objetiva da política de Estado ditada por Washington e pelos condomínios fechados das oligarquias latino-americana que buscam desestabilizar a região e manter o controle nas mãos dos ricos.
Há um ano, os Estados Unidos e seus aliados do Grupo Lima tentaram dar um golpe de Estado contra o governo da Venezuela. A guerra híbrida contra o povo venezuelano cresceu em torno de um regime de sanções que forçou a economia venezuelana a se contrair bruscamente e matou pelo menos 40 mil pessoas. Essa guerra contra a Venezuela criou extrema instabilidade em toda a América Latina, mas particularmente na vizinha Colômbia.
Em uma breve declaração, o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos apontou o “número impressionante” de assassinatos de líderes de movimentos sociais e políticos. Os assassinos, sugere a ONU, são “grupos de criminosos e grupos armados ligados a economias ilícitas em áreas desocupadas pelas Farc-EP”. Em outras palavras, grupos paramilitares de direita e suas quadrilhas se aproveitaram do tratado de paz assinado pela esquerda para aterrorizar o campo. No dossiê n. 23 de dezembro Paz, neoliberalismo e lutas sociais na América Latina, argumenta-se que a oligarquia colombiana não deseja avançar em direção à paz porque isso deslocaria a política colombiana em direção aos movimentos populares e à esquerda. A continuação da guerra – agora através de assassinatos e intimidações – favorece a oligarquia. Eles preferem essa violência à democracia. Em 21 de janeiro, o povo da Colômbia voltou às ruas para outra greve geral com uma lista de demandas que vão do fim às políticas econômicas neoliberais ao fechamento das unidades policiais repressivas que operam como esquadrões da morte.
João Pedro Stedile, da Direção Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), oferece uma avaliação de vinte pontos do golpe fracassado na Venezuela, que tem no coração a desorientação da oposição de direita ao processo bolivariano iniciado por Hugo Chávez nos anos 1990. O candidato preferido de Washington para a mudança do regime, Juan Guaidó, perdeu o apoio de um grupo de oposição profundamente fragmentado na Venezuela após um ano de tentativas de derrubar o governo. Guaidó – ex-presidente da Assembléia Nacional – foi substituído por Luis Parra em uma votação em 5 de janeiro. Parra, embora ainda seja um membro da oposição, foi considerado uma substituição inaceitável pelos Estados Unidos, que prontamente o sancionou e incentivou Guaidó a continuar sua rebelião pessoal. Este é o “levante” instigado pela oligarquia que está criando caos em partes da América Latina: o levante dos ricos para causar estragos na vida dos pobres e da classe trabalhadora.
Em 1964, quando a Colômbia voltou a entrar em uma série aparentemente interminável de guerras, o poeta iconoclasta Jotamario Arbeláez escreveu um poema emocionante sobre o período “pós guerra” (tradução livre):
Um dia
depois da guerra
se houver guerra
se depois da guerra houver um dia
te pegarei nos meus braços
um dia depois da guerra
se houver guerra
se depois da guerra houver um dia
se depois da guerra tiver braços
farei amor com você com amor
um dia depois da guerra
se houver guerra
se depois da guerra houver um dia
se depois da guerra houver amor
e se houver com o que fazer amor.
Jotamario Arbeláez recites Um dia depois da guerra, 2007.
Hoje há uma guerra híbrida e uma guerra econômica que cria as condições para o caos.
Há uma guerra econômica contra o planeta que não tem movimento anti-guerra.
Essa guerra econômica deforma as aspirações humanas, esvazia sonhos e quebra esperanças. Se esse 1% mais rico – que possui mais do que o dobro da riqueza dos 6,9 bilhões de pessoas do planeta – pagasse apenas 0,5% a mais em impostos, isso aumentaria o investimento suficiente para criar 117 milhões de empregos nos campos da educação e saúde, na assistência à infância e aos idosos. Em 2016, a Unesco apontou que, se o mundo cumprisse o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável em educação, os países do mundo teriam que contratar ao menos 68,8 milhões de professores na próxima década e meia – 24,4 milhões no ensino fundamental e 44,4 milhões no ensino médio. Essa demanda segue engavetada.
A que distância estamos do dia seguinte à guerra?
Cordialmente, Vijay.