Pesquisa sobre os Evangélicos e a Política

Especialistas alertam para o crescimento de atos de discriminação de fé no mundo pós-pandemia. Foto: EBC

 

N° 8/2021

 

O mês de agosto foi marcado por convocações gospel para os atos inconstitucionais do dia 7 de setembro. O crescimento da intolerância religiosa tem preocupado religiosos de todo país. De outro lado, os fundamentalistas têm cada vez mais se articulado com o projeto de poder, teologia da prosperidade e teologia do domínio, destilando discursos de ódio contra pautas raciais e de gênero. Mas as resistências evangélicas são sopro de esperança frente aos ataques, e saem em defesa das minorias, inclusive se articulando contra o racismo ambiental, tão presente no cotidiano das periferias.

 

Bolsonaro e o Fundamentalismo Religioso

A articulação do fundamentalismo religioso com a nova direita não é nova. A reação frente aos avanços teológicos e dos direitos humanos fez com que essas frentes se organizassem desde a década de 60, como discorreu, em seu ensaio “A criação da Nova Direita”, o jornalista Miguel de Almeida. Quando apontamos o fundamentalismo religioso não estamos apenas falando dos evangélicos, mas também de setores da Igreja católica e outras religiosidades cristãs, como os espíritas. Para o pastor batista José Barbosa Jr., é necessário, para o enfrentamento estratégico contra os retrocessos, olharmos também para os fundamentalistas católicos, que vêm se articulando politicamente antes mesmos dos evangélicos, e agora se demonstram até mesmo anti-papais.

Neste mês vimos pastores evangélicos chamando seus fiéis para atos inconstitucionais que ameaçam a já frágil democracia brasileira. A laicidade tem sofrido com esses ataques teocráticos fundamentalistas, que colocam em risco a tolerância religiosa e a liberdade e direitos das minorias marginalizadas. Em tempos como esses, é necessário retomar a separação de Estado e Igreja, que justamente a Reforma Protestante veio a inspirar. Como lembra Celso Lafer em artigo, a Bíblia não é a Constituição!

Silas Malafaia, Claudio Duarte, Renê Terranova, Magno Malta, Edson Rebustini, Samuel Câmara, Marco Feliciano, César Augusto,  Estevam Hernandes são apenas alguns nomes de pastores que convocaram por vídeos, mensagens, WhatsApp evangélicos para os atos em todo o país, que ocorreu no dia 7 de setembro. Christina Vital, do Instituto de Estudos da Religião (Iser) aponta, em matéria ao Universa do UOL: “O que a gente vê no vídeo são pastores de grandes denominações, que estão falando sobre liberdade e democracia, mas se a gente olhar bem, são empresários que foram favorecidos por pontuais encaminhamentos que Bolsonaro deu em termos de abonos tributários e no Congresso”.

Segundo relatório de pesquisa “Caminhos da desinformação: evangélicos, fake news e WhatsApp no Brasil”, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, “o uso intenso do Whatsapp para a prática religiosa fortalece redes de desinformação no segmento evangélico”. A desinformação aliada ao conservadorismo segundo as pesquisas da  plataforma Religião e Poder, parceria do Iser (Instituto de Estudos da Religião) com a empresa de mídia Gênero e Número, faz com que evangélicos votem em peso em causas defendidas por Bolsonaro. Pesquisa PoderData, realizada entre  2 a 4 de agosto de 2021, mostra que 50% dos evangélicos avaliam o trabalho de Jair Bolsonaro positivamente. Magali Cunha, pesquisadora do Iser, diz: “Como a religião tem um lugar importante na cultura brasileira, ela nunca esteve fora desta relação com a política. Afinal, o catolicismo chegou por aqui com os colonizadores e até hoje exerce uma influência nos espaços de poder”.

Poder esse que continua sufocando vidas com o vírus pandêmico e a gestão de morte de Bolsonaro. Pastores aliados ao governo estão envolvidos nas investigações da CPI da Covid-19, como o reverendo Amilton Gomes de Paula, que depôs neste mês. O reverendo “chegou à comissão após ser apontado por representantes da Davati Medical Supply como um ‘intermediador’ entre o governo federal e a empresa, que ofertava vacinas”. É importante frisar que Amilton diz que não conhecia ninguém no Ministério da Saúde, e mesmo assim foi atendido apenas quatro horas depois de enviar um e-mail com oferta de vacinas da Davati.

Os aliados evangélicos seguem apoiando seu mito em diversas pautas, dentre elas, a defesa do voto impresso – bandeira bolsonarista rejeitada pelo Plenário da Câmara dos Deputados no dia 10 de agosto – cerca de 75% da Bancada Evangélica foi a favor. Bolsonaro tem sido estratégico em manter seu eleitorado evangélico: apenas nesse mês o presidente concedeu uma entrevista para rádio gospel, no Rio de Janeiro, de cerca de uma hora. Além de ter visitado – e aglomerado sem máscaras – em igrejas do Pará (Convenção Interestadual de Ministros e Igrejas Evangélicas Assembleias de Deus no Estado do Pará) e Goiás (1° Encontro Fraternal de Líderes Evangélicos de Goiás.). E ironizou a notícia que sua esposa, Michele Bolsonaro, estaria realizando cultos evangélicos clandestinos na Igreja Batista Atitude de Brasília, no Palácio do Planalto.

Entretanto, é importante apontar que neste momento de fragilidade governamental o setor evangélico também é crítico, como pode ser demonstrado pelas entrevistas realizadas pelo UOL com trabalhadoras domésticas da capital paulista: “Eu sei que Deus está acima de tudo, mas ele [Bolsonaro] é irresponsável, vive de live, se expõe sem necessidade [na pandemia] e não cuida das suas obrigações. Deus deu oportunidade para Bolsonaro governar o Brasil, mas ele está quebrando o país”, diz uma delas.

 

Ministros Evangélicos e STF

Muitos se escandalizam com as políticas antigênero adotadas no Afeganistão com a volta do Talibã ao poder. Entretanto, há uma cegueira proposital para os retrocessos dos direitos das mulheres no Brasil, como aborda a matéria “Cabul é aqui”, da escritora Renata Corrêa. O texto destaca que “desde 2019, um terço dos recursos destinados às mulheres no Brasil deixou de ser usado pelo Governo Bolsonaro”. Enquanto isso, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a pastora batista Damares Alves, fazendo coro junto à Bancada Evangélica, apoia e participa  dos atos a favor do voto impresso auditável, promovidos por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), em Brasília. Sua atuação parece se limitar às pautas extremamente conservadoras e a propagandear o casal Bolsonaro, enquanto seu ministério passa a ser um cabide de emprego para amigos e familiares. Como se não bastasse, Damares negou o pedido de anistia formulado pelo Partido Comunista Brasileiro, que requereria reparação da perseguição sofrida na Ditadura Militar brasileira.

Nesse cenário catastrófico, o Brasil passa a ser equiparado a países ultraconservadores e violentos, especialmente com as meninas e mulheres. A advogada Luciana Boiteaux afirma à reportagem que: “o que está ocorrendo não é um fato isolado e revela que o Brasil optou por uma posição estratégica de uma política antigênero que tem ramificações e financiamento internacional”. Apostamos que a bandeira fundamentalista contra a “ideologia de gênero” tem crescido no Brasil e em toda a América Latina e se tornou um elemento crucial para a disputa de narrativas. Olhar para esse fenômeno é crucial para avançarmos contra a direita cristã em nossos territórios.

Além de Damares, temos o pastor e, infelizmente, ministro da educação, Milton Ribeiro. Assim como sua parceira, o Ministério da Educação não tem utilizado todo o recurso para investimentos; aliás, tem cortado os gastos, com uma redução de 39,1% nos recursos reservados para a educação básica, em relação a 2020, nos primeiros meses do ano. Isso faz parte do pensamento de Ribeiro, como demonstra sua declaração em entrevista  à TV Brasil de que a “universidade deveria, na verdade, ser para poucos, nesse sentido de ser útil à sociedade”. Mais adiante ele ainda diz que a educação não deve ser inclusiva, pois, em suas palavras: “alunos com deficiência atrapalham”. A pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social Angelica Tostes aponta que Milton Ribeiro anda na contramão do legado protestante da educação, em coluna na CartaCapital. A Revista Piauí fez um dossiê acerca do apagão dos dados do MEC. Recomendamos a leitura para aprofundamento sobre o projeto de desmonte da educação.

Para além de suas visões elitizadas e capacitistas, o Ministro tem defendido e tensionado o retorno das aulas presenciais, que pode ser um tiro no pé com a alta dos casos da variante delta no país e a falta de investimento nas escolas públicas para garantir um ambiente saudável à comunidade escolar ainda na pandemia. Foi divulgada uma portaria com orientações acerca de um retorno seguro das aulas, entretanto, não há ações concretas por parte do governo federal. A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão determinou que o MEC se manifeste sobre o tribunal ideológico do Enem, e Milton alega ser alvo de “fake news”.

Falando em ministros, chegamos ao famoso ex-ministro de Bolsonaro, o pastor presbiteriano André Mendonça. A saga do ex-ministro da Justiça e ex-advogado-geral da União, o “terrivelmente evangélico”, para a ascensão ao STF continua. Mendonça necessita de 41 votos no Senado, e sai percorrendo os corredores na busca e consolidação dos votos que já acredita ter. Entretanto, é importante salientar que as polêmicas de Bolsonaro contra o STF têm atrapalhado Mendonça e suas movimentações para o cargo. “Devido aos acontecimentos, o entendimento do que ocorrerá em Brasília é o de que Augusto Aras terá a sua recondução à Procuradoria-Geral da República avaliada antes da indicação de André Mendonça”, informa matéria da CNN.

A fidelidade de Mendonça a Bolsonaro tem sido abalada, mas o presidente insiste em apostar no discurso que agrada sua (já nem tão) fiel base evangélica, dizendo que André Mendonça se comprometeu a iniciar as sessões da Corte com uma oração.  Apesar das tantas demonstrações de devoção ao presidente, Mendonça tem tentado se distanciar de Bolsonaro e chegou a realizou uma conversa com a bancada do PT por videoconferência.

Apesar de crítico ao governo, o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), afirmou à CNN que não tem resistência ao nome de André Mendonça à vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal. “Não tenho nada contra ele. Não misturo as coisas. É uma pessoa do bem”. 

 

Teologia da Prosperidade

O Tribunal Superior Eleitoral, por unanimidade, manteve a absolvição do ex-prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella por usar um “imóvel pertencente à administração direta e serviços custeados pela prefeitura para promover o evento Café da Comunhão, em que teria cometido abuso do poder político ao ofertar vantagens políticas a líderes religiosos evangélicos para beneficiar a candidatura de Teixeira naquele ano”.

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, decidiu devolver o passaporte de  Crivella (Republicanos)- acusado de ter comandado um suposto esquema de corrupção envolvendo propina durante a sua gestão na capital carioca – que foi indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para assumir a embaixada do Brasil na África do Sul. Crivella se encontrou com o vice-presidente Hamilton Mourão no Palácio do Planalto, em Brasília, para agradecer o “apoio” dado por Mourão à Igreja Universal do Reino de Deus em Angola.  Em sua passagem, encontrou também Jair Bolsonaro.

A Igreja Universal do Reino de Deus está envolvida em uma briga com uma locadora de canais de televisão, e estima-se que a dívida seja de cerca de R$ 38 milhões. Ainda sobre a IURD e sua crise política e institucional: governo gastou R$ 1 milhão com ida de Mourão a Angola: “informações prestadas pela Vice-Presidência da República ao Metrópoles, via Lei de Acesso à Informação (LAI), além de dados levantados pela reportagem no Painel de Viagens do Ministério da Economia, mostram que foram desembolsados R$ 441.930,16 em diárias, R$ 609.159,09 em passagens e R$ 20.818,29 com outros gastos, como seguro para viagens”.

Parece que o céu é o limite quando se fala em milhões e os pastores-empresários de nosso país. Segundo o juiz Mário Roberto Negreiros Velloso, o apóstolo Valdemiro Santiago recebeu nos últimos anos milhões e milhões da Igreja Mundial do Poder de Deus. Ao que tudo indica “há fortes indícios que a igreja esteja transferindo seu patrimônio a Valdemiro”, declarou o magistrado, destacando que a Mundial, fundada pelo líder religioso em 1998, pagou mais de R$ 1,2 milhão a ele no último ano, mais de R$ 100 mil por mês.

 

Teologia do Domínio

Antonio Carlos Magalhães Neto, ex-prefeito de Salvador, se alia a Bolsonaro e a grupos evangélicos para disputar o governo da Bahia com o PT, que há década e meia detém a hegemonia eleitoral. Segundo matéria da revista Veja,“o acordo foi intermediado pelo televangelista Silas Malafaia, que passa a controlar uma base partidária do DEM no terceiro maior colégio eleitoral do país (13 milhões de pessoas) ”. O império de Malafaia tem crescido. Mesmo em meio a pandemia, o pastor neopentecostal abriu o dobro de igrejas do que no período de 2018-2019. O próprio Malafaia diz que é muito dinheiro envolvido, visto que não abre igrejas no sistema “Mundial”, uma salinha alugada, mas sim faz templos para no mínimo 400 pessoas, com telas em led, ar condicionado etc.

 

Intolerância Religiosa

O teólogo Rodolfo Capler alerta para o crescimento de atos de discriminação de fé no mundo pós-pandemia e aponta a polêmica sobre a abertura de igrejas e templos durante a pandemia como um exemplo dos embates acirrados e muitas vezes violentos entre cristãos. “Tanto os fiéis que se mostraram favoráveis ao funcionamento dos templos evangélicos, quanto os que se posicionaram contrários, se tornaram vítimas de violência digital”, escreve.

Já a CPI da Intolerância Religiosa, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro ,vai apurar denúncia de aparelhamento de Conselhos Tutelares. O relator da CPI, deputado Átila Nunes (MDB), afirmou que o aparelhamento dos conselhos por membros de igrejas neopentecostais abre oportunidade para a prática de intolerância religiosa, principalmente contra religiões de matriz africana, já tão perseguidas em nosso país. Há de mencionar o aumento das depredações de templos e santuários de minorias religiosas, como ocorreu em agosto com um terreiro de umbanda em Araraquara e uma casa de reza indígena em Mato Grosso do Sul.

O presidente da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), Uziel Santana, docente da Universidade Federal de Sergipe é acusado de intolerância religiosa e de praticar lawfare (uso ou manipulação das leis/regimentos como um instrumento de combate/perseguição contra alguém) para impedir a posse do professor candomblecista Ilzver de Matos Oliveira, aprovado em concurso público.

 

Gênero, Raça e Classe 

A educação teológica das igrejas evangélicas está embebida em discursos preconceituosos que destilam ódio contra o diferente, como podemos ilustrar com o caso do vídeo que circulou da pastora evangélica Karla Cordeiro, da Igreja Sara Nossa Terra, de Nova Friburgo, Rio de Janeiro, dizendo em uma pregação: “É um absurdo pessoas cristãs levantando bandeiras políticas, bandeiras de pessoas pretas, pessoas de LGBTI, sei lá quantos símbolos têm isso aí. Mas é uma vergonha. Para de ficar postando coisas de preto, de gay, pare!”. Para o teólogo e ativista do movimento negro evangélico Ronilso Pacheco: “Muitas de nossas igrejas estão ensinando as pessoas a serem racistas e homofóbicas. Com isto quero dizer que, embora haja pessoas que sejam racistas e homofóbicas -apesar de se dizerem evangélicas-, muitas são racistas e homofóbicas exatamente porque são evangélicas”.

O pastor Tupirani da Hora Lores, da igreja Geração Jesus Cristo, que já foi condenado e preso por intolerância religiosa, está sendo investigado pela Polícia Civil do Rio de Janeiro para apurar os ataques racistas, machistas e homofóbicos feitos pelo pastor contra a pastora Karla Cordeiro. Em vídeo que circula nas redes sociais, Hora Lores dispara uma série de ofensas contra a pastora depois que ela pediu desculpas por falas racistas e homofóbicas. Ele diz que a igreja da qual ela faz parte “é de prostitutas”.  Para o pastor, Karla não deveria ter se retratado.

 

Contra-Narrativas da fé

Reafirmar que os evangélicos não são um grupo homogêneo ainda se faz necessário: nem todos são fundamentalistas e conservadores. Há tempos que muitos ativistas evangélicos estão nas trincheiras contra o machismo, racismo e LGBTQIA+fobia. E vale ressaltar que isso não é algo novo, mas que hoje ganha mais capilaridade – ainda que pequena comparada aos fundamentalistas – pelas redes sociais.

Em meio aos inúmeros fundamentalismos, o pastor Ariovaldo Ramos, coordenador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, afirma que a: a fé protestante preza pela liberdade de consciência, pelo zelo com a criação, pelo Estado Democrático de Direito, pela educação universal, pela igualdade entre seres humanos, por meio da justiça social e pela exigibilidade dos direitos humanos”.

Jackson Augusto, jovem batista e integrante da coordenação nacional do Movimento Negro Evangélico, escreve sobre o racismo da tradição cristã evangélica e fala sobre a estátua queimada do bandeirante Borba Gato. Em ensaio para a Folha, diz que : Nós, negros, periféricos e pessoas comprometidas com os direitos humanos e com a luta antirracista, não podemos mais esperar que os ídolos da branquitude brasileira caiam sem nenhum tipo de questionamento, tensão ou confronto”.

Em 2021 uma nova articulação de resistência evangélica se formou, a  Coalizão de Evangélicos pelo Clima, um tema urgente e que toca outros conceitos tão caros às lutas progressistas, como o racismo ambiental. A organização, que une 30 lideranças evangélicas, debate estratégias contra o aquecimento global, mudanças climáticas e desmatamento, assim como aposta nas leituras bíblicas que apoiam e promovem a sustentabilidade e a proteção da Terra como algo divino. Para o pastor Josias, da Igreja Batista de Coqueiral, de Recife: “Esta organização surge a partir de um chamado a uma ética evangélica profética, que denuncia o pecado da devastação gerada pela ganância”.