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DossiêNº 86

Guerra imperialista e resistências feministas no Sul Global​​

As mulheres resistem criativamente os embates causados pelas medidas coercitivas unilaterais (MCU), uma das formas de guerra híbrida do hiperimperialismo, que reforça o patriarcado e outras formas de discriminação social.

Ilustração de capa: Instituto Tricontinental de Pesquisa Social

As ilustrações deste dossiê são parte dos cartazes criados por mulheres de todo o mundo no marco das exposições Feminismo anti-imperialista para mudar o mundo (2021) e (In)segurança feminista: Mulheres contra a guerra (2022), organizadas pelo Capire. Esta plataforma foi criada em 2021 “para fazer eco das vozes das mulheres em movimento, para tonar visível as lutas e os processos de organização nos territórios, para reforçar as referências locais e internacionais do feminismo popular, anticapitalista e antirracista.”


Alejandra Laprea (Venezuela), O acorpamento das mulheres é nossa estratégia de defesa, 2022.

Eles dizem que somos uma ameaça incomum e isso é verdade. Somos uma ameaça incomum porque temos formação, porque somos conscientes, porque não queremos continuar sendo um quintal e porque queremos continuar sendo livres, soberanos e independentes.

Ayarit Rojas, porta-voz da Infantaria Revolucionária Ecossocialista para Habitat e Moradia Antímano (INFREH AVIANT), Venezuela.

Desde as primeiras décadas do século XXI, está em curso um claro processo de redefinição das relações de poder em âmbito global, marcado pelo enfraquecimento do domínio unipolar dos Estados Unidos. Sua crise de hegemonia é tão feroz quanto a resposta que implementou para enfrentá-la: tenta compensar sua perda de poder econômico e tecnológico com domínio militarista, juntamente com sua rede de aliados no bloco político, militar e econômico que é o Norte Global (Tricontinental, 2024b). Esses países compartilham uma história de violência contra povos do Sul Global, incluindo o genocídio de povos indígenas das Américas na era colonial, o tráfico de escravos no Atlântico, o uso de bombas nucleares contra Hiroshima e Nagasaki e o genocídio em curso contra o povo palestino.

As formas que esse exercício violento de disciplinamento e submissão assume atualmente são heterogêneas: ocupação territorial e militarização, imposição de medidas coercitivas unilaterais (MCU),11 sanções e genocídio. Essa fase desenfreada do capital, em que a crueldade se impõe como forma de governo e exercício de poder, é o que chamamos de hiperimperialismo (Tricontinental, 2024a).

A particularidade das MCU como dispositivos de poder é que eles não matam diretamente, mas operam com isolamento financeiro, comercial e político, escassez e sufocamento econômico. As MCU impedem que países afetados acessem recursos financeiros, bem como os bens e serviços mais básicos para sustentar a vida: água, alimentos, eletricidade, medicamentos e suprimentos médicos. Uma característica das sanções e MCU é que geram um zelo excessivo em seu cumprimento por parte das pessoas, empresas e organizações com as quais os países afetados buscam estabelecer relações, sejam econômicas, políticas ou culturais. Isto é, por medo de sanções e das MCU, essas entidades optam por não estabelecer qualquer relação com os países sujeitos a elas.

Esse tipo de intervenção tem se aprofundado exponencialmente no contexto da intensificação da disputa global. Somente nas últimas duas décadas, as MCU aumentaram ao menos em 933% (Tricontinental, 2024b, p. 28). Os Estados Unidos lideram a fiscalização, impondo três vezes mais MCU do que qualquer outro país ou organismo internacional, chegando a 15.373 até abril de 2024. Essas medidas têm como alvo um terço de todos os países, incluindo mais de 60% de todos os de baixa renda (Stein & Cocco, 2024). Aqueles com mais MCU são Cuba, Coreia do Norte, Irã, Síria e Venezuela.

O isolamento gerado pelos MCU é uma forma de punição coletiva, um mecanismo de controle e disciplina política, uma forma violenta de subordinação que sufoca povos inteiros e os desconecta das redes de interdependência comercial, financeira e política, e que também é acompanhada por campanhas midiáticas estigmatizantes. A esperteza desse tipo de interferência é que ela envolve um exercício de reversão. O poder imperialista acusa os Estados e povos afetados pelas MCU de serem culpados pela violência à qual são submetidos. Esses países são geralmente acusados sem fundamento pelo bloco imperialista de não colaborar na guerra contra o narcotráfico, não combater o crime organizado, não serem democráticos etc., e a acusação é suficiente para a aplicação da pena. Esse investimento esconde a criminalização e a discriminação de povos, lideranças e governos que não se alinham aos interesses das potências hegemônicas e resistem ao poder neocolonial, capitalista e patriarcal do hiperimperialismo, tentando construir soberania.

As MCU ─ consideradas como uma estratégia de “guerra híbrida”, “guerra assimétrica” ou “guerra difusa” ─ operam em todas as áreas da vida social e, em particular, no controle dos corpos, corações e mentes da população. São, assim, parte de uma guerra que, sem ser declarada, não reconhece fronteiras, se espalha por todo o corpo social, intervém e exerce controle sobre todas as esferas da reprodução e da organização da vida (Ceceña, 2014). Todos os estudos e relatórios consultados, de especialistas nacionais e internacionais e de agências da ONU, ressaltam que tanto as sanções quanto as MCU têm um impacto desproporcionalmente alto nos setores mais vulneráveis da população, especialmente mulheres, crianças, idosos, pessoas com deficiência e a população LGBTQIA+. Enquanto a falta de emprego e de fontes de renda afeta toda a população, as mulheres sofrem mais com a destruição da infraestrutura e o enfraquecimento dos serviços sociais públicos, por afetarem diretamente a reprodução social, especialmente o trabalho de cuidado, realizado quase exclusivamente por mulheres. Sanções e MCU reforçam claramente o patriarcado e outras formas de discriminação social.

Em 2023 foi realizada na África do Sul a conferência Dilemas da Humanidade. Na mesa de discussão sobre Feminismos e lutas contra o patriarcado, uma questão que surgiu repetidamente foram as marcas do imperialismo na vida das mulheres e da comunidade LGBTQIA+. As campanheiras do Magreb Árabe e da Palestina relataram o horror da ocupação territorial imperialista, as dificuldades em garantir a vida em condições desumanas, a constante ameaça de morte e violência sexual, o colapso dos serviços de saúde e sanitários, o corte do abastecimento de água e suas consequências críticas na reprodução da vida e seu impacto na vida das mulheres. De acordo com os camaradas da Venezuela, Cuba e outros países da Ásia e da África, o impacto das MCU impostas pelos EUA nos territórios, na reprodução da vida, na organização do poder popular e na participação política das mulheres é bastante semelhante, embora a morte por armas de fogo não seja uma ameaça constante. Neste dossiê, pretendemos analisar, a partir de uma perspectiva feminista, as formas pelas quais as MCU, entendidas como iniciativas imperialistas de subordinação e controle, afetam a organização da vida e seus impactos econômicos, mas também políticos, sobre as mulheres em alguns dos países mais sancionados.

O processo de diálogo com companheiras dos países afetados envolveu a superação de diversas barreiras, tanto logísticas quanto contextuais. Apesar dessas dificuldades, conseguimos estabelecer alguns espaços de troca significativa na Venezuela, nos quais os camaradas compartilharam suas experiências e estratégias de resistência, reafirmando seu compromisso com a soberania e a vida comunitária. Entrevistamos lideranças feministas de várias organizações populares camponesas e de trabalhadoras, entre elas, a Infanteria Revolucionária Ecossocialista Antímano por Habitat e Moradia, a Assembleia Viviendo Venezolanos Jorge Rodríguez Padre e a Organização Heroínas sem Fronteiras. Esse processo contou com o importante apoio do Instituto Simón Bolívar para a Paz e Solidariedade entre os Povos, instituição venezuelana que também entrevistamos e que nos facilitou oportunidades de conexão e intercâmbio, mesmo nas circunstâncias mais adversas, e reforçou a importância de documentar essas lutas para avançar na resistência coletiva.


Valentina Machado e Valentina Lasalvia (Uruguay), Sem título, 2021.

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Efeitos econômicos: subdesenvolvimento forçado e decrescimento

As MCU costumam estar direcionadas a países que tentam afirmar sua soberania, priorizando a autossuficiência e o nacionalismo de recursos, e resistem a integrar a estrutura econômica neocolonial que busca manter, por um lado, o domínio ocidental e, por outro, o subdesenvolvimento econômico do Sul Global por meio de mecanismos como dívida, desequilíbrios comerciais e controle estrangeiro de seus recursos. Espera-se que a deterioração econômica provoque uma agitação social que facilitará uma mudança de regime favorável ao imperialismo.

As MCU têm efeitos econômicos adversos nos países-alvo, como queda do PIB per capita, altas taxas de inflação, flutuações no investimento estrangeiro direto, ajuda externa e subsídios financeiros. A desigualdade de renda também está aumentando, o emprego no setor manufatureiro está caindo e o consumo das famílias está diminuindo, entre outras deteriorações. Juntos, esses efeitos levam ao colapso econômico e ao consequente aumento da pobreza. Aqui elencamos alguns exemplos:

Cuba. O bloqueio econômico, comercial e financeiro dos EUA contra Cuba que já dura seis décadas é moldado pela mais antiga e exaustiva MCU da história moderna. Foi acentuada quando Trump, em 2021, reverteu todas as medidas de flexibilização do governo Obama e colocou o país de volta na lista do Departamento de Estado de países suspeitos de patrocinar o terrorismo. A hostilidade foi reeditada em 20 de janeiro de 2025, quando Trump reverteu o decreto de Joe Biden de alguns dias antes que removeu Cuba da lista. O bloqueio representa uma perda de 421 milhões de dólares por mês e um total acumulado até o momento de 1,5 bilhão de dólares. Sem o bloqueio, a estimativa é de que o PIB de Cuba pudesse ter crescido 8% em 2023 (República de Cuba, 2024, p. 10-12).

Venezuela. Desde 2014, o país enfrentou mais de mil MCU e outras medidas restritivas e punitivas (Observatório Venezuelano Antibloqueio, 2025) que afetaram seriamente sua indústria petrolífera, outros setores produtivos e seu comércio exterior. O setor de petróleo caiu para menos de 500 mil barris por dia em 2020-2021, em comparação com 2.200-2.300 mil barris por dia em 2008-2016. As estimativas de perdas variam de 797 mil barris de produção diária ─ o que seria corresponde a 16,4 bilhões de dólares por ano a preços atuais (Rodríguez, 2023, p. 71-72) ─ a 1.800.000 barris diários, uns 48 bilhões de dólares em preços atuais (Arellán, 2024). Em 2021, as receitas do governo venezuelano eram 10% daquelas do ano em que as MCU começaram. A hiperinflação provocou a desvalorização da moeda nacional, com a consequente diminuição dos salários, e afetou as importações (Observatório Venezuelano Antibloqueio, 2023: p. 31-32).

Irã. Passou de exportar entre 700 mil e 1,4 milhões de barris de petróleo por dia com sanções e MCU (2010-2015) para 2,5 milhões por dia quando estas foram suspensas (2016-2018) após o Plano Integral de Ação  Conjunta de 2015, antes de voltar a ser imposto após os Estados Unidos se retirarem desse acordo. Com o retorno das sanções e da MCU, as exportações de petróleo bruto caíram 57% somente em 2018 e 2019. A estimativa de receita cambial anual do país caiu mais de 62%, de 66 bilhões de dólares entre 2005 e 2011 para 25 bilhões de dólares durante 2019-2021 (ONU – Relator Especial, 2022b, p. 5).

Síria. Um dos maiores produtores de petróleo da região, com 385 mil-500 mil barris por dia, dos quais exportou cerca de 100 mil até 2010. Desde 2011, quando se iniciou o conflito, tornou-se um importador líquido de petróleo bruto. Entre 2000 e 2010, a economia síria cresceu em média cerca de 5% ao ano. Em 2010, o PIB foi de 252,52 bilhões de dólares. Em contraste, o PIB em 2020 foi de apenas 11 bilhões de dólares, 4% do nível de 2010. O conflito causou danos severos e destruição de capacidade produtiva, ativos e infraestrutura, bem como um grande número de populações deslocadas e refugiadas. As MCU agravaram a situação, fazendo com que a economia se contraísse em cerca de 90%. Entre 2016 e 2019, a economia apresentou alguma melhora, com uma fraca taxa média de crescimento anual de 0,6%. Entretanto, a intensificação das MCU, a incapacidade do Estado de explorar muitos de seus recursos econômicos por estar fora da área que controlava, somada às consequências da pandemia de Covid-19, causaram uma contração da economia de 3,9% em 2020 (ONU – Relator Especial, 2023, p. 5-6). As MCU foram flexibilizadas quando um governo pró-Ocidente chegou ao poder em Damasco no final de 2024.

Zimbábue. Desde 2001, o país enfrenta MCU dos EUA e aliados visando setores produtivos importantes da economia, como mineração, manufatura, turismo e agricultura. O país registrou um superávit comercial de 155 milhões de dólares (aproximadamente 74% do PIB) em 2000, com a produção global aumentando em 1,44%. Após a imposição de MCU adicionais e outras medidas, a balança comercial do país caiu para -23,8% em 2010 e permanece negativa desde então. A desindustrialização causada pelas MCU levou a uma grave contração econômica (de -3,1% em 2000 para -17,7% em 2008). O colapso econômico levou ao alto desemprego, ao declínio da renda per capita e à perda de profissionais qualificados (atualmente, as taxas de demanda variam entre 30 e 50% em diferentes setores). Além disso, o fechamento de empresas e as demissões de trabalhadores afetaram mais de 610 mil pessoas entre 2005 e 2020. A inflação disparou de 56% para mais de 230.000.000% em 2008, causando o colapso do sistema público e tornando o governo incapaz de fornecer serviços essenciais, de saúde e transporte a eletricidade e educação (ONU – Relator Especial, 2022a, p. 5).

As mulheres nos países do Sul Global sancionados e alvos das MCU estão sobrerrepresentadas tanto em empregos precários como formais, em indústrias voltadas para a exportação, como têxteis, vestuário, artigos de couro e montagem eletrônica. As interrupções nas exportações causadas pelas MCU podem ter um impacto severo nos meios de subsistência das mulheres (Peksen & Drury, 2014). Após as dificuldades econômicas causadas pelas medidas, as mulheres se tornam as primeiras a serem demitidas de seus empregos, aumentando sua dependência da supervisão familiar (Al-Ali, 2005).

A crescente crise econômica nos países sancionados e alvos das MCU está forçando muitas pessoas a emigrar em busca de melhores condições de trabalho. Nesse processo, mulheres, crianças e populações com diversidade de gênero enfrentam o risco de se tornarem alvos de tráfico de pessoas, exploração ilegal, crime organizado, xenofobia e violência de gênero (Madriz Franco & Oropeza, 2019). Essa população de refugiados e migrantes é forçada a trabalhar em empregos informais, não qualificados e mal pagos, nos quais, devido à discriminação nos processos de contratação, as mulheres são novamente afetadas de forma desproporcional (RV4 Platform, 2022).

Luana Fernandes (Brasil), Mulheres resistentes, 2022.

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Escassez induzida e insegurança alimentar

A partir do momento em que o Comandante Chávez morreu, esse ataque começou com mais força, uma guerra econômica contra a moeda nacional que causou hiperinflação, todos os produtos ficaram mais caros e então começaram a escassear. Tudo isso reconfigurou a dinâmica social. (…) As mulheres que estiveram na vanguarda dos processos organizativos da revolução bolivariana (…) tiveram que se retirar da luta comunitária, da luta social, das nossas próprias organizações, das nossas próprias dinâmicas de reuniões permanentes, assembleias e tudo para ir fazer longas filas para poder comprar comida. (…) Filas de 3 ou 4 horas de sol, esperando para ver se me vendiam farinha, açúcar, óleo ou o que estivesse disponível naquele momento.

Laura Franco, Instituto Simón Bolívar, Venezuela.

A produção de alimentos é frequentemente afetada pelas restrições induzidas pelas MCU, que em muitos casos incluem proibições de importações de máquinas agrícolas, fertilizantes e sementes, e criam escassez de combustível e água para irrigação. Esses fatores trazem consigo um aumento nos preços dos alimentos, escaladas inflacionárias, a formação de mercados paralelos e uma profunda crise alimentar que afeta desproporcionalmente a população mais vulnerável.

As MCU também incluem mecanismos de extorsão, como medidas impostas a empresas privadas de fornecimento de alimentos, a criminalização de empresários e o confisco pelo sistema financeiro internacional de dinheiro destinado ao pagamento de fornecedores de alimentos.

Em Cuba, em 2019 e 2020, a falta de combustível dificultou o plantio de 12.399 hectares de arroz, o que resultou na perda de produção de mais de 30 mil toneladas deste cereal essencial. Da mesma forma, ao afetar o transporte, a escassez de combustível impediu a produção de 2 milhões de litros de leite e 481 toneladas de carne, o que prejudicou parte da dieta básica da sociedade cubana (Delgado e Ferrer, 2023, p. 19). A falta de fertilizantes e pesticidas levou a uma queda de 40% no rendimento histórico de diversas culturas e, em comparação com 2019, a produção de arroz, ovos e leite diminuiu 81%, 61% e 49%, respectivamente (República de Cuba, 2024, p. 15, 28).

Nos países afetados pelas MCU, a insegurança alimentar também é agravada pelas restrições às importações de alimentos e pelo colapso do investimento direto no setor. Na Venezuela, desde 2014 houve uma queda drástica nas importações de alimentos, que passaram de 10 bilhões de dólares em 2014 para menos de 1 bilhão de dólares em 2019, uma queda de mais de 90% (Delgado & Ferrer, 2023). Cuba informou que em 2024 pagou 76% mais dinheiro pela mesma quantidade de alimentos importados do que em 2019 (República de Cuba, 2024, p. 28).

Segundo a Unicef, as restrições à importação de alimentos na Venezuela levaram a um aumento constante da desnutrição entre 2016 e 2022, com mais de 2,5 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave (Arizmendi, 2023, p. 76). Em 2019, houve uma diminuição violenta nas importações de alimentos de quase 90%, com efeitos na subnutrição da população (Arizmendi, 2023, p. 80). Em 2017, o sistema financeiro dos Estados Unidos bloqueou a transferência para a Venezuela de 18 milhões de caixas de alimentos subsidiados do programa Comitês Locais de Abastecimento e Produção (Clap), criado em 2016 em resposta à escassez de alimentos gerada pela guerra econômica. Nesse mesmo ano, um total de 23 operações financeiras venezuelanas destinadas à compra de alimentos, insumos básicos e medicamentos foram devolvidas por bancos internacionais (Arizmendi, 2023, p. 76). O fornecimento de alimentos também foi comprometido pelo colapso operacional de empresas estatais, pela falta de fornecimento de produtos intermediários para o setor agroalimentar, pela escassez de combustível para a produção e distribuição de produtos finais aos mercados e pelo declínio do poder de compra dos trabalhadores.

Sob as MCU, a Síria enfrentou uma grave crise alimentar. Segundo o Programa Mundial de Alimentos (PMA), 12 milhões de sírios, mais da metade da população, estavam em situação de insegurança alimentar, 51% a mais do que em 2019. A relatora especial da ONU sobre o impacto negativo da UCM na Síria, Alena F. Douhan, revela um aumento da desnutrição entre crianças menores de 5 anos de 48% entre 2020 e 2021; enquanto mais de 10% das mulheres grávidas e lactantes estavam desnutridas (2023, p. 9).

Enquanto isso, no Zimbábue, a crise alimentar tem sido uma preocupação fundamental desde 2001, tanto em termos de acessibilidade quanto de preço. A proporção de pessoas em situação de insegurança alimentar aumentou de 29% em 1995 para 58% em 2003. Essa situação piorou ainda mais no final de 2020, atingindo mais de 60% da população e, em 2017, 30% da população rural necessitava de assistência alimentar (ONU ─ Relatora Especial, 2022a).

A insegurança alimentar afeta mais severamente os setores mais vulneráveis, nos quais as mulheres estão super-representadas. Na Venezuela, 65% das famílias pobres são monoparentais e têm uma mãe solteira como chefe da família (Delgado & Ferrer, 2021, p. 44). Nessas casas, o acesso à alimentação depende em grande parte das mulheres, uma tarefa à qual elas dedicam muito tempo, esforço e estresse. Assim, o impacto no acesso à alimentação também tem um impacto diferencial devido a questões de gênero.

Nesses cenários, as políticas de distribuição de alimentos são extremamente relevantes. Na Venezuela, por exemplo, em dezembro de 2020, 88% das famílias estavam recebendo suplementos alimentares fornecidos pelo Programa Clap. Segundo as estatísticas oficiais, em 2020, foram distribuídos pacotes de alimentos do Clap a 7,5 milhões de famílias (Arizmendi, 2023, p. 75-76).

Além das políticas de distribuição e fornecimento de alimentos para lidar com a insegurança alimentar, em alguns desses países as políticas governamentais para garantir a autossuficiência alimentar e agrícola se tornaram uma prioridade.

De acordo com o Programa Mundial de Alimentos, as taxas de autossuficiência no Irã variaram de 53% a 82% entre 2000 e 2012. Atualmente, o país ainda depende de importações de alimentos, com uma taxa de autossuficiência de aproximadamente 85% (ONU – Relatora Especial, 2022b, p. 9). No entanto, a reimposição de MCU em 2018, juntamente com restrições comerciais e financeiras a bancos estrangeiros, interrompeu significativamente o fornecimento de sementes, fertilizantes e equipamentos agrícolas necessários para a produção.

O governo venezuelano também fez esforços significativos para reverter a dependência de importações de alimentos; segundo a Superintendência Nacional de Gestão Agroalimentar, em poucos anos a Venezuela passou de importar 85% dos alimentos para consumo interno para produzir 97% dos alimentos que o povo venezuelano leva para casa diariamente (Sunagro, 2025).

Daily Guerrero Hernández (Cuba), Fale, calar doi mais, 2021.

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Desmantelamento da infraestrutura social

Além de impedir o transporte de pessoas e bens como alimentos, a falta de combustível e a incapacidade de obter peças de reposição para áreas estratégicas de produção e infraestrutura afetam a sustentabilidade dos sistemas de produção e distribuição de hidrocarbonetos, energia e água potável, o que impacta criticamente o acesso da população a serviços essenciais.

A relatora especial Alena Douhan observou que as MCU impedem que países sancionados obtenham peças para manter a infraestrutura vital para a vida diária. Devido ao excesso de exigências, empresas estrangeiras e instituições financeiras se recusam a fornecer materiais de construção, peças de reposição e software para usinas de energia, refinarias e estações de bombeamento de água, ou bloqueiam transações financeiras para pagamento de tais bens e serviços (ONU, 2021).

Como resultado, esses países enfrentam grave escassez de eletricidade, combustível e água potável, devido à destruição de usinas e infraestrutura de distribuição e à incapacidade de realizar atividades de reabilitação, manutenção e desenvolvimento. Quedas de energia são frequentes.

Na Síria, a distribuição média de eletricidade é entre 2 e 4 horas por dia (ONU – Relatora Especial, 2023, p. 7). Em Cuba, a crise energética se agravou e durante o ano de 2024 foram registrados dias com taxas máximas de impacto superiores a 50%. Os cortes de energia se devem principalmente à escassez de combustível — consequência da falta de divisas para importá-lo — e às frequentes panes nas usinas termelétricas do país, causadas por uma crônica falta de investimentos. Nos últimos meses, Cuba recebeu ajuda solidária do governo da República Popular da China, que doou 69 toneladas de radiadores, motores, peças e outros acessórios ao país caribenho para apoiar a recuperação do sistema elétrico da ilha (Swissinfo, 2024).

Restrições comerciais e financeiras induzidas por MCU também apresentam desafios na aquisição de equipamentos mecânicos e elétricos para projetos de água e sistemas de esgoto, afetando o acesso das populações à água e ao saneamento.

Na Venezuela, estima-se que 90% dos domicílios estejam conectados ao sistema nacional de abastecimento de água, mas as interrupções são frequentes devido a cortes de energia para abastecer as bombas de água. De acordo com o relatório do Relator Especial da ONU (2021), o ministro responsável pela água relatou que 52% do sistema de distribuição de água utilizava tecnologia estadunidense e 29%, equipamentos alemães e suíços. As crescentes dificuldades na aquisição de peças de reposição e na realização de trabalhos de manutenção fizeram com que apenas 50% das unidades de distribuição estivessem operacionais. Isso obrigou a distribuir a água de forma racionada para garantir o abastecimento a todos.

Na Síria, apenas 50% dos sistemas de água e saneamento do país estão funcionando corretamente, devido à destruição e à falta de manutenção do sistema de energia elétrica e à redução da capacidade de geração de energia. Em 2022, a relatora especial da ONU, Alena F. Douhan, observou que, além de terem apenas duas horas de eletricidade por dia, as escolas primárias e secundárias na zona rural de Homs, que atendem centenas de alunos, não têm água encanada. A atribuição de água potável foi reduzida para 30–40 litros por dia, em comparação com os 130 litros por dia disponíveis antes de 2011 (ONU – Relatora Especial, 2023, p. 8).

No Zimbábue, a escassez de água tem efeitos críticos. Relatórios indicam que, em 2019, 77,1% das famílias não tinham acesso a fontes melhoradas de água limpa, com disparidades entre áreas rurais (67,9%) e urbanas (97,3%). Isso acelerou epidemias de doenças, como cólera e febre tifoide (especialmente em 2008 e 2018), com um número estimado de mortes combinadas de mais de 3 mil pessoas, e colocou mais de 100 mil pessoas em risco (ONU ─ Relator Especial, 2022a, p. 7).

Paulina Veloso (Chile), Sem título, 2021.

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Saúde precária

As MCU reduzem a capacidade dos Estados de sustentar serviços públicos essenciais para a população mais vulnerável. Nessas condições, o direito à saúde fica limitado porque se torna muito difícil o acesso às fontes de energia, água, alimentos, produtos de higiene pessoal, fraldas, absorventes higiênicos, medicamentos, mas também aos espaços de assistência à saúde, todos necessários para uma vida saudável.

Na Venezuela, a proibição de importação de insumos e peças de reposição afeta a funcionalidade dos equipamentos utilizados na assistência médica, e atualmente apenas 20% estão em condições ideais de funcionamento. Outro impacto foi a escassez em 2017-2018 de vacinas contra sarampo, febre amarela e malária (Delgado & Ferrer, 2023, p. 35). O nono relatório periódico da Venezuela à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (República Bolivariana da Venezuela, 2021) denuncia que as MCU afetaram o desempenho do programa “Medicamentos de Alto Custo” do Instituto Venezuelano de Previdência Social que, em 2014, distribuiu 535.071 medicamentos gratuitamente, enquanto em 2020 apenas 64.078, uma redução na cobertura de quase 90% (RBV, p. 26).

Yirley Rodríguez, trabalhadora social, feminista popular e mãe cuidadora, conta como, enquanto estava grávida, se preocupava porque “não conseguia as coisas que precisava para o parto e para o bebê […] Não conseguia ter acesso a todos os alimentos da minha dieta, medicamentos que não conseguia encontrar”. O mesmo tipo de situação relatada pela Relatora Especial da ONU para a Síria (2023, p. 10-11).

Um setor particularmente afetado na Venezuela tem sido a população com deficiência e as mulheres que cuidam dessas pessoas desde que o país perdeu o controle da empresa petrolífera venezuelana CITGO, sediada nos Estados Unidos. Essa empresa apoiava financeiramente a política social de assistência para esse setor, especialmente quando envolveu intervenções médicas e cirúrgicas complexas fora do país (Delgado & Ferrer, 2023, p. 65).

Diante de todas essas dificuldades, uma das soluções tem sido recorrer à medicina natural para aliviar os efeitos nocivos do bloqueio, como destaca Marta, do Programa Todas las Manos a la Siembra [Todas as Mãos a Semear]: “Voltamos à medicina natural”. Ela revaloriza o uso das plantas para a cura de doenças sem negar a importância da medicina convencional: “O conhecimento científico, técnico e ancestral ou popular devem andar de mãos dadas, sempre se acompanhando para obter um melhor resultado”.

A saúde reprodutiva tanto das mulheres quanto da população sexualmente diversa é particularmente afetada de diferentes maneiras. Entre 2017 e 2020, na Venezuela, o acesso aos exames citológicos foi dificultado, impedindo a detecção precoce do câncer de colo de útero e de mama em milhares de mulheres, o que muitas vezes resulta em mortes. Há dificuldades na aquisição e distribuição gratuita de terapia antirretroviral (TARV), essencial para o tratamento do HIV. Os níveis de vulnerabilidade a gravidezes indesejadas e infecções sexualmente transmissíveis aumentaram porque a distribuição gratuita e massiva de contraceptivos orais, preservativos, dispositivos intrauterinos ou outros métodos de planeamento familiar e prevenção de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) essenciais para o desenvolvimento de uma sexualidade saudável foi reduzida (Delgado & Ferrer, 2023, p. 57).

A taxa de mortalidade materna, que estava caindo na Venezuela até 2014, voltou a subir após a implementação das MCU e só recuperou valores semelhantes após a pandemia (Delgado & Ferrer, 2023, p. 58). No Zimbábue,2 onde todos os indicadores de saúde se deterioraram a níveis muito graves desde a imposição das MCU, a taxa de mortalidade materna foi de 614 por 100 mil habitantes em 2014, e um modelo do Banco Mundial estima que pode ter chegado a 314 até 2020, uma das mais altas do mundo. A taxa de mortalidade infantil também é muito elevada: 29 a cada 1.000 nascidos-vivos (ONU – Relatora Especial, 2022a, p. 8).

O embargo devastou o sistema de saúde gratuito e universal de Cuba, um dos pilares do processo revolucionário. Entretanto, mesmo após a crise da Covid-19, o país mantém uma alta expectativa de vida, 73,7 anos, muito semelhante à média das Américas e superior à média mundial (OMS, 2021). A excelente formação dos profissionais de saúde cubanos, 71% dos quais são mulheres, fez com que a exportação de serviços de saúde representasse 71% do total exportado. As missões médicas cubanas chegaram a 60 países durante a pandemia, mas tiveram que se retirar de alguns devido à “campanha de difamação sustentada do governo Trump” (Oxfam, 2021).

Nesse país, as MCU afetam severamente o acesso aos medicamentos. 51% dos 651 medicamentos incluídos na Lista Nacional de Medicamentos Essenciais não estão disponíveis. Há escassez de contraceptivos, preservativos e medicamentos para mulheres grávidas, bem como de meios de diagnóstico, testes de gravidez e testes de doenças sexualmente transmissíveis (República de Cuba, 2024, p. 24, 89). Como Indira Pino aponta:

Sofremos com a escassez de medicamentos. As farmácias estão vazias porque as matérias-primas são de difícil acesso em nosso país. Por exemplo, os absorventes higiênicos, o material de que são feitos não é de boa qualidade e isso causa desconforto às mulheres durante o ciclo menstrual (Oxfam, 2021, p. 18).

O Irã produz cerca de 95% de seus medicamentos básicos e vacinas como medida para aliviar o impacto das MCU, mas sofre, assim como a Venezuela, com a falta de acesso a medicamentos, suprimentos e equipamentos que salvam vidas no caso de doenças mais raras ou complexas (ONU – Relatora Especial, 2022b, p. 7).

Um cenário muito diferente é o do Zimbábue, onde 70% dos medicamentos essenciais dependem de importações e a escassez de profissionais de saúde é alarmante: as taxas de demanda de profissionais são de 89% para parteiras, 64% para médicos em serviços públicos e 49% para tutores de enfermagem (ONU – Relatora Especial, 2022a, p. 8).

A produção farmacêutica da Síria antes da guerra excedia em 87% as necessidades do país e era exportada para 73 países. Hoje, sofre com uma escassez significativa de equipamentos médicos e uma enorme deterioração do sistema de saúde pública que obriga as pessoas a recorrerem ao sistema privado, cujos custos são proibitivos para a população mais vulnerável, incluindo as mulheres (ONU – Relatora Especial, 2023, p. 10).

As intenções genocidas do bloqueio ficaram ainda mais claras quando, no auge da pandemia de Covid-19, medidas adicionais de controle de natalidade foram impostas a Cuba, incluindo o reforço da proibição da importação de ventiladores pulmonares e a proibição da importação de oxigênio, além das dificuldades na obtenção de kits de teste e equipamentos de proteção individual (República de Cuba, 2024, p. 12; Oxfam, 2021, p. 6). A Venezuela e o Irã enfrentaram dificuldades semelhantes (Delgado & Ferrer, 2023, p. 38; ONU – Relator Especial, 2022b, p. 8-9).

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Sobrecarga de trabalho de cuidado

[…] o peso das tarefas domésticas, dos cuidados e do trabalho, aumentou, é claro. Uma vez que nós mulheres saímos para trabalhar, o dia todo na rua inclusive, com dois ou três empregos, então, à noite, quando chegamos em casa, temos que fazer as tarefas domésticas; não só lavar, esfregar, cozinhar, mas também estudar com nossos filhos […]; se temos pais ou avós em casa, temos que cuidar deles, eles estão sob nossos cuidados. Isso é um fardo, e bem, por último, também devemos ser esposas [e] cumprir nossos deveres para com nossos maridos.

Comuneira e dirigente camponesa (44 anos) (apud Delgado & Ferrer, 2023, p. 91).

A guerra imperialista, em sua forma híbrida, tem efeitos importantes na vida cotidiana e na possibilidade de conciliar tempo e esforço entre trabalho, cuidado, tempo livre e participação política. Essa guerra silenciosa reafirmou a tradicional divisão sexual do trabalho, impactando o uso do tempo e aumentando os dias de trabalho não remunerado das mulheres ao assumir uma maior carga de cuidados (Franco, 2022).

Esse cenário tem um impacto profundo nas mulheres, que absorvem parte da crise por meio do trabalho não remunerado e para quem administra a saúde e a alimentação passa a exigir muito mais tempo, em detrimento do tempo dedicado ao trabalho remunerado e outras atividades. Eles também são os que enfrentam as dificuldades que a escassez de água causa na vida cotidiana. As mulheres são geralmente as responsáveis por encontrar e gerir água potável para as suas famílias, o que num contexto de escassez pode exigir muito mais dedicação:

A falta de água atrapalha os cronogramas de vida, é necessário muito mais tempo de trabalho para cuidar, porque obter água se tornou algo muito diferente. É muito difícil equilibrar o tempo que você gasta cuidando de si mesma como mãe com seu tempo de trabalho no seu emprego e com seu tempo de trabalho enquanto é politicamente ativa. Tornou-se desorganizado. Como a prioridade é a água, quando a água chega você tem que sair para lavar, para armazenar, não importa a hora. Isso teve um impacto negativo na organização e harmonia dos horários e gerou uma sobrecarga de trabalho de cuidado.

Yirley Rodríguez, assistente social, feminista popular e mãe cuidadora. Venezuela.

Elsa Rakoto (França/Coletivo afrofeminista Sawtche), Todas as feministas em luta contra o imperialismo, 2021.

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As mulheres na vanguarda da organização social

Entretanto, diante das adversidades causadas pelas sanções e as MCU, as mulheres se tornam uma rede de apoio, apoiando soluções coletivas no âmbito da organização comunitária e garantindo a sustentabilidade da vida nos territórios. Em tempos de aumento do trabalho voluntário, em suas comunidades cuidam de todos os casos de saúde, distribuem alimentos, gerenciam a resolução de problemas, demonstrando múltiplas formas de resistência, reinvenção e resiliência.

Nos momentos mais adversos da guerra econômica contra a Venezuela, as mulheres que lideram os processos de organização comunitária se tornaram as principais aliadas na implementação das políticas estatais de abastecimento alimentar em todo o país. Como já mencionado anteriormente, em 2016 foram criados os Comitês Locais de Abastecimento e Produção (Clap) para substituir os circuitos privados de distribuição de alimentos por mecanismos estatais, incorporando a participação da comunidade na execução da política, um novo elemento de supervisão de caráter popular. Esse programa, ao realizar a entrega de uma cesta básica diretamente nos lares, sem intermediação privada, colaborou na organização social e familiar, e em especial das mulheres, que ainda suportam a maior parte das tarefas não remuneradas ligadas à reprodução doméstica e comunitária da vida. Não é por acaso que as mulheres são o destacamento de vanguarda que, por meio do Clap, hoje garantem a distribuição de alimentos em comunidades das cidades e do campo. A participação feminina nos Conselhos Comunitários e comunas ultrapassa os 70%, o que as torna protagonistas na resistência à agressão imperialista e patriarcal (Franco, 2022).

Para este dossiê conversamos com Marta, integrante do Programa Todas las Manos a la Siembra, criado pelo governo durante a crise do petróleo na Venezuela para aumentar o conhecimento nas escolas sobre soberania alimentar, produção sustentável e questões ambientais, mas também para apoiar processos e projetos locais de produção de alimentos. Marta conta que no pior momento da “guerra econômica”, escolas agroecológicas organizaram mercados populares locais, com apoio das Feiras do País Soberano, nas quais vendiam alimentos a preços mais baratos, o que acabou sendo uma estratégia importante para aliviar a crise inflacionária e a escassez. Esse programa foi a resposta do governo nas áreas rurais para distribuir proteínas, frutas e vegetais de baixo custo em 1.500 comunidades prioritárias nas quais as mulheres produtoras rurais desempenharam um papel de destaque.

Contudo, é importante não idealizar essas tarefas, pois, apesar de serem imbuídas de heroísmo nesse contexto ao assumirem o protagonismo na sustentação da vida, elas também constituem modalidades de divisão sexual do trabalho político. Embora a organização comunitária tenha uma influência e liderança feminina significativa, isso não se estende a outras áreas de representação política institucional e gestão estatal. O trabalho comunitário estende a jornada de trabalho não remunerada das mulheres para além de casa, o que amplia a desigualdade de gênero em relação ao trabalho e à renda, com sua correlação em termos de feminização da pobreza e super-representação nos mercados de trabalho informais. E, além disso, muitas vezes obstruem o direito das mulheres ao lazer, à recreação e a viver bem (Delgado & Ferrer, 2023, p. 75).

As mulheres cubanas relatam dificuldades semelhantes: “É muito mais difícil para as mulheres, porque devido à carga doméstica que geralmente têm, não poder contar com o transporte causa mais estresse”, diz Yunisleydis Duvergel, gerente de transporte (Oxfam, 2021). O bloqueio não cria desigualdades de gênero, mas piora as condições em que as mulheres devem realizar o trabalho doméstico e de cuidado tradicionalmente atribuído a elas.

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Conclusões: resistência e comunidade

As mulheres afetadas pelo hiperimperialismo desenvolveram formas de resistência e enfrentamento baseadas no retorno à terra e em uma economia alternativa, familiar e cooperativa.

O trabalho das mulheres na tecelagem da capilaridade da sociedade e na organização comunitária tem desempenhado um papel central na sustentação e no aprofundamento de processos revolucionários em cenários de grande adversidade e no enfrentamento de ataques externos e internos que buscam gerar terror e desestimular a esperança. Ayarit Rojas, porta-voz da Infantaria Revolucionária Ecossocialista por Habitat e Moradia (INFREHAVIANT), uma organização popular venezuelana liderada por mulheres que desde 2011 vem realizando mais de 1.600 projetos para construir novas comunidades ecossocialistas e projetos habitacionais baseados em um sistema de desenho participativo, nos conta sobre as obras que conseguiram realizar com esforço, criatividade e coragem, apesar do grande impacto que o bloqueio teve na possibilidade de acesso a materiais de construção, em sua maioria importados:

Fomos classificadas como uma ameaça incomum, a escassez induzida, a hiperinflação e tudo isso nos levou a nos fortalecer a cada dia e a buscar alternativas para continuar avançando. No setor da construção, as MCU foram caóticas e nós, mulheres, éramos as que tínhamos três vezes mais peso sobre os ombros devido à questão da casa, à questão do trabalho e à questão da construção, então era demais. Mas, mesmo assim, alcançamos nosso objetivo porque hoje temos nossa moradia e nosso habitat digno graças a esse processo revolucionário.

Ayarit Rodriguez, porta-voz da INFREHAVIANT, Venezuela.

As mulheres enfrentam consequências adversas em termos econômicos, produtivos e sociais. Mas também desempenham um papel decisivo na guerra psicológica que esses cenários provocam. Isso porque a participação feminina, que politiza a precariedade cotidiana e coletiviza a gestão da sobrevivência, constitui um elemento decisivo contra a pedagogia neoliberal da crueldade, do esquecimento e do hiperindividualismo:

A força para avançar neste contexto difícil são as relações comunitárias e esse bom senso que ainda prevalece na Venezuela, esse grande consenso da vida coletiva, de nos resolvermos em comunidade, de sermos um apoio para o outro, como esse grande tecido social que a revolução bolivariana vem construindo (…) O que me dá força é que aqui há condições políticas para criar a comunalização da vida, há outra proposta para o mundo, para a sociedade, para as relações sociais, que é comunalizar versus a proposta de liberalização do grande capital. É isso que me dá força, é que existe a possibilidade de criar, de argumentar sem que isso nos custe a vida, de dialogar com quem está em posições de poder, de decisão. Esse cenário político e social é o que me dá forças para continuar acreditando e apostando em mudanças estruturais a partir do feminismo popular e enfrentar a situação que vivemos hoje diante das sanções econômicas e dessa guerra psicológica que elas travam contra nossa emocionalidade e espiritualidade.

Yirley Rodríguez, assistente social, feminista popular e mãe cuidadora. Venezuela.

Como diz Yirley Rodríguez, a força para resistir nas piores circunstâncias vem da convicção de que é possível construir um mundo diferente, que não se baseie na exploração nem na destruição do tecido social, mas na possibilidade de construir uma vida em comum, com participação popular e no qual todas as pessoas possam viver com dignidade.


Sarah de Roure, (Brasil/Marcha Mundial das Mulheres), Time de luta, 2021.

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Notas

1Comum, mas erroneamente, chamadas de sanções. No cenário internacional, somente medidas determinadas pela ONU de acordo com as disposições da Carta das Nações Unidas podem ser legitimamente chamadas de sanções. Se um país aplica medidas repressivas contra outro, elas não são sanções, mas sim MCU, e devem cumprir os princípios do direito internacional, o que normalmente não é o caso.

2Conforme declarado no Relatório do Relator Especial. Não há dados mais atualizados coletados diretamente, apenas estimativas.

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Entrevistas 2024

Martha León, Programa Todas as Mãos na Semeadura, Venezuela.

Yirley Rodríguez, assistente social, feminista popular e mãe atenciosa. Venezuela.

Ayarit Rojas, principal porta-voz da Infantaria Revolucionária Ecossocialista para Habitat e Moradia Antimano (INFREHAVIANT) e do projeto de desenvolvimento urbano Assembleia de Venezuelanos Vivos “Jorge Rodríguez Padre” (AVV), Venezuela.

Norma Valdez, Organização Heroínas sem Barreiras, Venezuela.

Laura Franco, Instituto Simón Bolívar para a Paz e a Solidariedade entre os Povos, Venezuela.

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CAPIRE

Galeria de cartazes: feminismo anti-imperialista para mudar o mundo mundo. 2021. Disponível em: https://capiremov.org/es/multimedia-es/galeria-es/galeria-de-afiches-feminismo-antiimperialista-para-cambiar-el-mundo/

(In)segurança feminista: mulheres contra as guerras. 2022. Disponível em: https://capiremov.org/es/multimedia-es/galeria-es/inseguridad-feminista-mujeres-contra-las-guerras/

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