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DossiêNº 78

Desvinculação e multipolaridade: como restabelecer o debate sobre desenvolvimento na América Latina?

Longe do desejo produtivista, o mundo do século XXI requer reinstalar e repensar categorias para debater o desenvolvimento dos países da periferia do mundo.

Os gráficos deste dossiê foram criados usando a projeção cartográfica Equal Earth, que representa com maior exatidão os tamanhos dos países e continentes, especialmente na periferia. Equal Earth desafia as distorções das projeções tradicionais, e representa visualmente o mundo de forma mais precisa.

Fonte: Tom Patterson

Hoje em dia não fica bem dizer certas coisas perante a opinião pública:
o capitalismo exibe o nome artístico de economia de mercado;
o imperialismo se chama globalização;
as vítimas do imperialismo se chamam países em vias de desenvolvimento,
o que é como chamar meninos aos anões.

Eduardo Galeano em:
De pernas para o ar. A escola do mundo ao avesso


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Introdução

Após o esplendor da onda progressista dos primeiros anos do século XXI, estamos passando na América Latina por anos em que os conceitos estão novamente se tornando mais matizados, como havia dito Eduardo Galeano no final da década de 1990. Não chamar as coisas pelo nome por medo de ficar exposto por suposta incorreção política leva a rebeldia e o radicalismo à direita, em vez de destiná-los aos que sonham, pensam e lutam por um mundo mais justo.

O debate sobre o desenvolvimento dos países da periferia do mundo também exige a reinstalação e a reformulação de categorias. O desenvolvimento tem sido parte da agenda política global ao longo do século XX. No contexto da disputa pela hegemonia global entre a tríade imperialista (Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão) e o bloco soviético, as usinas de pensamento do centro capitalista propuseram, na década de 1950, sua receita para os países do Terceiro Mundo: a modernização capitalista. Essa receita, nascida sobretudo de um intelectual com vínculos diretos com o hard power estadunidense, Walt Rostow, que a propôs em seu livro de 1960, Etapas do crescimento econômico, um manifesto não comunista, indica o caminho a ser seguido – em teoria – pelos países subdesenvolvidos para atingir os níveis de industrialização, crescimento e distribuição de renda do centro. Basicamente, a ideia é o desenvolvimento das forças do capital, em que a poupança doméstica (austeridade), o adiamento do consumo popular e a abertura do comércio e das finanças são os principais elementos que levariam à decolagem e, depois, à modernização completa das economias nacionais.

Diante dessa proposta hegemônica, surgiu uma série de debates muito importantes na periferia global sobre quais eram as condições concretas das economias periféricas. A condição de dependência dos países periféricos foi reconhecida como uma barreira ao desenvolvimento, enquanto o centro se beneficiou dos baixos preços das commodities e das possibilidades de baixo custo de mão de obra que a periferia oferecia. Nesse contexto, a formação de projetos nacionais-populares na periferia latino-americana e a formação do Projeto Bandung, em abril de 1955, tornaram possível pensar, como aponta Samir Amin (2003, p. 33), sobre o desenvolvimento como um conceito crítico do capitalismo globalizado. As ideias de desenvolvimento nacional desconectadas do ciclo de acumulação global e na estrutura das relações de cooperação entre as nações periféricas foram um desafio de peso para a ordem social do pós-guerra conduzida pelo imperialismo estadunidense. Nessa linha de pensamento, a desconexão significava seguir uma dinâmica de desenvolvimento econômico que não se baseasse em ser a periferia do centro, mas sim em colocar os interesses da população dos países periféricos no centro de seu projeto nacional ou regional. Consideramos que esses debates foram parte dos fundamentos ideológicos dos processos de descolonização na Ásia e na África, e do momento de maior esplendor da autonomia econômica na região da América Latina.

Por esse motivo, neste dossiê n. 78 tomamos a iniciativa de introduzir uma discussão sobre as possibilidades que a atual crise do capitalismo global abre para os projetos de desenvolvimento regional da América Latina e do Caribe. Longe do anseio produtivista de que a industrialização é suficiente, o mundo do século XXI nos coloca em um dilema sobre nossa participação nas cadeias globais de valor sob o comando do grande capital ocidental e dos governos a ele ligados. Que outras opções estão no horizonte para o desenvolvimento autônomo de nossos povos? Qual é a importância das alianças e parcerias sul-sul para um caminho de independência econômica e soberania política? Essas são algumas das perguntas que nos fazemos nesta nova produção do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, a fim de contribuir para o debate sobre a necessária desconexão do ciclo capitalista.

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O lugar da periferia latino-americana na ordem mundial capitalista atual

Um dos pontos de partida centrais da teoria marxista da dependência foi o reconhecimento de que não houve um processo de transição do feudalismo para o capitalismo em nossa região (Bambirra, 1977; Marini, 1973). Ao contrário, a América Latina transitou do estágio colonial para um capitalismo global já com certo grau de desenvolvimento e com um papel muito específico na época da expansão do imperialismo britânico no final do século XIX: oferecer matérias-primas baratas para reduzir os custos de reprodução da força de trabalho no centro. A assunção desse papel de fornecedor de matérias-primas tem sido interpretada como um dos motivos pelos quais a região latino-americana não alcançou altos níveis de desenvolvimento industrial e autonomia nos ciclos de acumulação (López e Barrera, 2018).

Entretanto, os anos entre a crise da década de 1930 e meados da década de 1970 foram marcados por uma situação em que um grupo de países alcançou a industrialização intermediária e um certo grau de substituição de importações, enquanto outros países da região, especialmente no Caribe, permaneceram atolados na lógica das economias de enclave.

Esses anos marcaram uma mudança em relação ao momento inicial da inserção da América Latina no mercado mundial, mas a região continuou em uma posição subordinada por meio de trocas desiguais. Por um lado, o setor primário continuou sendo altamente lucrativo e competitivo internacionalmente, enquanto a indústria manufatureira só conseguiu se reproduzir em escala nacional. Por outro lado, a industrialização foi guiada por duas forças: a força oligárquica que deu origem a um tipo específico de industrialização que passou a ser chamada de industrialização oligárquica dependente, intimamente ligada às rendas extraordinárias dos capitais primário-exportadores (Cueva, 1978); e o papel central do capital estrangeiro no apoio ao processo de acumulação de capital, que deu origem a uma alta concentração de capital e a uma maior exploração do trabalho do que a ocorrida nos centros do capitalismo global.

Esses lugares históricos na região da América Latina foram alterados após o surgimento do neoliberalismo na década de 1970. A dependência assumiu a forma de uma financeirização das economias latino-americanas que receberam a reciclagem de petrodólares absorvidos pelos Estados Unidos por meio do choque Volcker,1 o que levou às crises da dívida pública na década de 1980 em toda a região. Ao mesmo tempo, a estrangeirização das economias nacionais se acelerou, envolvendo agora a região como parte das cadeias globais de valor em uma posição subordinada nos extremos dessas cadeias: desmantelando as redes industriais anteriores e fortalecendo novas lógicas de pilhagem de recursos naturais.

A crise do projeto neoliberal e, em 2005, a negativa ao projeto da Alca (Acordo de Livre Comércio das Américas) promovido pelos Estados Unidos marcaram uma nova etapa que, longe de se consolidar, se desmanchou no ar em menos de dez anos.2 A Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América – Acordo de Comércio dos Povos (Alba-TCP), criada em 2004 como um projeto alternativo de integração, com forte apoio de Hugo Chávez e de vários presidentes da região, perdeu força tanto pelo cerco da contraofensiva neoliberal-imperialista que começou a se intensificar em 2012 quanto pela falta de apoio dos governos progressistas que estavam moderando suas iniciativas políticas, econômicas e diplomáticas. Nesse contexto, o retrocesso foi notável. Embora tenha havido alguns debates sobre uma nova onda progressista na região, está claro para nós que o radicalismo dos projetos atuais está muito abaixo do que aconteceu com as mobilizações de massa que confrontaram os anos neoliberais (Tricontinental, 2023). Os anos que se passaram, especialmente desde a pandemia, deixam claros os limites de uma agenda timidamente progressista para alterar o lugar de subordinação que o capital global atribui aos nossos países.

Vamos considerar três variáveis importantes para explicar a situação dependente das economias da região: estrangeirização, posição nas cadeias globais de valor e custos de mão de obra. Essas variáveis estão incluídas em um artigo de López e Noguera (2020) que fornece um relato da posição dependente dos países da região. Sua expressão pode ser vista neste Índice de Dependência.

Figura 1. Índice de dependência por país. Ano de 2018.

Fonte: Elaboração própria com base em dados da Penn World Table, TiVA-OECD, Banco Mundial e Unctad.

Essa figura mostra que os países da periferia têm graus mais altos de dependência.

A dinâmica global do capitalismo pretende ser imposta por meio do controle financeiro, da logística e da digitalização, e tenta reproduzir a dependência da periferia. Portanto, embora os níveis de participação do capital estrangeiro no centro e na periferia sejam semelhantes, há duas diferenças qualitativas muito importantes. A primeira é que, enquanto o capital que opera nos países centrais é orientado principalmente para a realização de valor no mercado interno, nas economias periféricas há uma participação predominante de capital estrangeiro voltado para a realização de valor no mercado externo. Esse foi um dos elementos mais importantes que Marini (1973) apontou como determinante do ciclo do capital na periferia: o declínio da demanda por consumo popular. A segunda é que o centro tem níveis mais profundos de financeirização, o que implica que ele tem o controle acionário da maioria das corporações transnacionais que operam na periferia. O controle do processo de acumulação da periferia é dirigido pelo centro.

Diante dessa situação de subordinação, qual tem sido a estratégia de desenvolvimento dos governos progressistas da região no contexto de sua suposta segunda onda do século XXI? Na agenda do progressismo dos nossos tempos, a ideia de que nossos países precisam de um processo acelerado de industrialização, baseado na incorporação de alta tecnologia, com orientação para a exportação, a fim de romper as cadeias do desenvolvimento dependente parece ocupar um lugar-chave, em uma regressão permanente à ideologia da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). A aposta é colocar em prática uma trajetória de crescimento semelhante àquela seguida pelos chamados “tigres asiáticos” no século passado, aproveitando as possibilidades de industrialização dos abundantes bens comuns de nossa região.

Em grande parte, essas opiniões continuam confiando no papel da indústria manufatureira, quando o maior crescimento do emprego na região é explicado pelo crescimento do emprego em serviços financeiros, de saúde e de transporte (OIT, 2023). Além disso, não há dúvida de que a industrialização, por si só, não garante uma melhoria produtiva que permita a desconexão de nossas economias e o progresso em direção a níveis mais altos de soberania e independência econômica. Isso ocorre porque a questão central é a caracterização dos atores que levarão adiante o processo de desenvolvimento. Em geral, as propostas progressistas parecem ignorar duas questões cruciais para se pensar em um caminho de desenvolvimento nacional autônomo: o alto grau de propriedade estrangeira da maioria das economias da região e a subordinação do capital de pequeno e médio porte à dinâmica do grande capital concentrado, geralmente estrangeiro. Essas perguntas são fundamentais para pensar por que nossos países não conseguem romper o círculo vicioso da dependência com atores que são beneficiários diretos (grandes capitais transnacionais) ou que produzem as condições para a produção e reprodução da dependência (grandes capitais nacionais).

O ponto central é que, no mundo de hoje, a periferia já é a fábrica do mundo. Os processos de deslocalização produtiva, na busca constante de redução de custos e de construção de novos espaços de alta rentabilidade para o capital, levaram à inclusão da maior parte da periferia como produtora de manufaturas, como mostra a tabela 1:

Tabela 1. Relação entre a produção industrial e a renda per capita de diferentes regiões periféricas e o centro (média 2000-2019).

2000–2019

Regiões Renda per capita na periferia versus renda per capita no centro Manufaturas na periferia versus manufaturas no centro
Periferia 17.7% 126%
África subsaariana 3.4% 113%
América Latina 19.5% 113%
Leste asiático e Pacífico 12% 144%
Europa e Ásia Central 52.7% 98%
Sul da Ásia 2.8% 111%
Norte da África e Meio Oriente 15.5% 185%
Centro 100% 100%
América do Norte 109.9% 84%
União Europeia 74% 96%
Austrália e Nova Zelândia 115% 101%
Japão 101.1% 119%
Fonte: Elaboração própria com base em dados do WDI

Embora as periferias do mundo produzam mais manufaturas do que o centro, a renda per capita dos países da periferia está muito abaixo da situação média dos países do centro. Por esse motivo, a estratégia de industrialização em si não funciona como um projeto de desenvolvimento autônomo e inclusivo para a periferia, mas hoje apenas reproduz sua subordinação aos papéis atribuídos a ela pelas grandes corporações do centro nas cadeias globais de valor. A periferia latino-americana não tem graus significativos de diversificação de sua produção manufatureira e, acima de tudo, não produz bens industriais de alta tecnologia, como mostra a figura 2.

Figura 2. Setores de média e alta complexidade técnica como porcentagem do valor agregado da manufatura. Ano 2023.

Fonte: Elaboração própria com base na OIT, UN-Comtrade e Banco Mundial..

A Europa e a América do Norte mantêm o controle quase total das manufaturas altamente complexas e, em contrapartida, as manufaturas menos complexas estão concentradas nos países periféricos. A exceção é, obviamente, alguns países asiáticos. Para os governos progressistas, isso se deve à falta de um plano de desenvolvimento nacional que favoreça os setores de tecnologia de desenvolvimento de capital, nos moldes da nova Cepal. Entretanto, essa assimetria produtiva é inerente ao capitalismo, que não é apenas um sistema baseado na desigualdade em escala nacional, mas também em escala global. Como nos recorda Samir Amin (2003, p. 10), o capitalismo é um “sistema polarizador” entre as nações. Enquanto nos países do centro há uma diversificação produtiva e um foco em serviços, finanças e bens industriais altamente complexos, as periferias ocupam hoje, além de seu papel histórico como fornecedoras de matérias-primas, o lugar de exércitos de reserva de baixos salários para a produção de manufaturas básicas para abastecer o mercado mundial. Os países periféricos comercializam mais com as nações centrais das quais dependem historicamente do que com outros países periféricos, e a crescente participação nas cadeias globais de valor reafirma essas posições.

Na década de 1980, a Cepal começou a mesclar ideias desenvolvimentistas e perspectivas globalistas e, a partir de então, propôs a necessidade de intensificar a produção de manufaturas altamente complexas e de posicionar os países latino-americanos em uma estratégia de exportação. Esse deve ser o horizonte de desenvolvimento dos países dependentes. O otimismo nessa estratégia de desenvolvimento extrovertida parece reconhecer como desejável a mobilidade internacional do capital em busca de melhores plataformas de exportação. Isso apenas multiplica as posições de dependência de nossos países.

Essa visão parece ignorar o óbvio: os padrões espaciais do desenvolvimento capitalista são impulsionados pela​ busca constante do lucro privado. As empresas capitalistas têm opções para aumentar seus lucros empregando novas tecnologias, pressionando ainda mais os trabalhadores – aumentando as horas de trabalho ou piorando as condições de trabalho – ou investindo em localizações geográficas mais lucrativas. O investimento de capital excedente em diferentes partes do mundo oferece uma solução espaço-temporal para o declínio da lucratividade devido ao aumento dos custos de produção e à desaceleração do crescimento nos locais existentes. Nas palavras de Harvey (2014, p. 152): “A organização de novas divisões territoriais do trabalho, novos complexos de recursos e novas regiões como espaços dinâmicos de acumulação de capital oferecem novas oportunidades para gerar lucros e absorver o capital e o trabalho excedentes”.

Assim, a deslocalização e a fragmentação da produção em cadeias globais de valor, que são apresentados como uma solução espaço-temporal para os problemas de lucratividade do grande capital global, permitem que as empresas no centro aumentem a taxa de lucro integrando áreas de custo mais baixo ao processo geral de produção. As oportunidades de lucro que tornam determinadas regiões atraentes para o investimento e a acumulação de capital podem incluir excedentes de força de trabalho de baixo custo, habilidades específicas da mão de obra, rápido desenvolvimento tecnológico, mercados em rápido crescimento, infraestrutura de qualidade e a existência de recursos naturais pontuais.

Está claro que os países originais do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), alguns de seus novos membros e talvez algumas economias do Sudeste Asiático, embora subordinados na ordem global, têm um desenvolvimento de suas forças produtivas que os aproxima de posições que podem desafiar a estabilidade da ordem unipolar que os Estados Unidos estão tentando impor hoje por meio da militarização extrema em sua ascensão em espiral rumo ao hiperimperialismo (Tricontinental, 2024). Esse grupo de países mostra claramente que a multipolaridade é uma construção espaço-temporal contra-hegemônica que pode questionar a construção espaço-temporal hiperimperialista e abrir o que David Harvey (2000) chamou de espaços de esperança que podem confrontar os espaços do capital.

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A disputa entre os Estados-nação e a multipolaridade como uma oportunidade

De acordo com a estrutura que apresentamos, as deficiências da perspectiva da Cepal e de outros projetos de desenvolvimento para a periferia da América Latina giram em torno de duas questões fundamentais. O primeiro é que eles estão enraizados em uma visão centrada no Estado, na qual este aparece como um ator no desenvolvimento, externo à dinâmica da acumulação de capital e da própria luta de classes. O Estado-nação não é pensado como uma relação social que, portanto, cristaliza as lutas de classe, mas sim em um marco estrutural de relações predominantemente capitalistas, isto é, de poder assimétrico entre o trabalho e o capital. Isso, que parece óbvio do nosso ponto de vista, parece ter sido completamente apagado como um problema para o desenvolvimentismo do século XXI e é, em grande parte, uma das causas centrais da incapacidade da região de traçar um caminho de desenvolvimento estável, independente e soberano, com melhorias significativas no bem-estar da população. Basicamente, essa visão centrada no Estado desconsidera a importância das estratégias de confronto com os setores mais concentrados do capital por considerá-los parte necessária de uma estratégia de desenvolvimento ou como um ator fundamental. É nesse ponto que reside uma das questões mais importantes. Se pensarmos no desenvolvimento, como propunha Samir Amin, como um conceito crítico do capitalismo, então a contestação do Estado-nação a partir de uma perspectiva transformadora se torna absolutamente indispensável.

Em segundo lugar, todas as abordagens que se concentram no Estado-nação pressupõem que a posição subordinada da América Latina na ordem global é estritamente um produto da incapacidade dos governos da região de promover uma estratégia de desenvolvimento bem-sucedida, competitiva e responsiva. Nessa interpretação, a dinâmica global de acumulação, o aumento constante das desigualdades que a participação nas cadeias globais de valor acarreta para os países da região e a importância de construir uma escala geográfica de acordo com as necessidades da periferia, ou seja, a construção de uma estratégia multipolar, parecem ser de importância secundária. Os polos de poder global estão claramente estabelecidos, a perda da capacidade hegemônica dos EUA é um fato, especialmente após 2001 e o fracasso do projeto de um novo século estadunidense. Diante disso, a estratégia hiperimperialista envolve um risco profundo para a humanidade. Nesse contexto, a capacidade de integrar regiões e superar a lógica da unipolaridade que o centro está tentando desenvolver é uma parte crucial da agenda para um desenvolvimento alternativo, soberano e independente para a América Latina.

Por essas razões, acreditamos que uma estratégia de desenvolvimento para a região da América Latina deve questionar o lugar atribuído à região pelo grande capital global e seus governos e, ao mesmo tempo, disputar as prioridades dos Estados nacionais que aceitam essas condições de desigualdade e colocam o grande capital como o ator central do desenvolvimento. Essa estratégia não é apenas prejudicial para os trabalhadores da América Latina, mas também levou ao fracasso constante dos governos progressistas. Portanto, uma estratégia de desenvolvimento no contexto atual, entendida como um conceito crítico do capitalismo, exige a construção de um projeto político de coordenação continental baseado na cooperação em oposição à lógica da competição, na complementaridade em oposição à substituição da produção, na unidade continental em oposição aos acordos bilaterais, no respeito aos bens da natureza em oposição à pilhagem dos bens comuns, no desenvolvimento de condições nacionais de valorização em oposição à primazia da exportação, na garantia de direitos em oposição à precarização da vida.

Em grande medida, a agenda estratégica 2030 da Alba-TCP está alinhada com essas necessidades de nossos povos, nos níveis econômico, político, social e cultural (Alba-TCP, 2024). Obviamente, o sucesso desse projeto para a América Latina como um todo requer o aprofundamento da discussão nos países que estão atualmente em caminhos diferentes. O crescimento dos projetos entreguistas da extrema direita, da direita conservadora clássica e a vacilação do horizonte emancipatório nos projetos progressistas levaram a um processo de semibalcanização da região e a uma nova dinâmica de subordinação de uma parte significativa de nosso território aos desígnios do centro.

Para que essa agenda seja ampliada e contribua para um caminho de desenvolvimento independente e soberano, podemos anunciar pelo menos quatro aspectos básicos de desconexão que contribuiriam para a multipolaridade de nossa região:

  1. Desvinculação financeira: os governos devem desenvolver e aprofundar ferramentas como o Banco da Alba, mas também a participação no Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS para gerar estratégias de financiamento específicas para a região, orientadas para atividades produtivas e para eliminar o dólar da maioria das transações realizadas na região. Sem uma moeda soberana, a dependência financeira e a volatilidade econômica da região só aumentarão.
  2. Desvinculação comercial: basear a estratégia comercial na cooperação regional, na complementaridade da produção de bens de consumo de massa, como alimentos, energia e serviços básicos. Ao mesmo tempo, é essencial pensar na autossuficiência de grande parte dos produtos necessários na própria região, o que implica uma estratégia de valorização baseada na renda das pessoas e não na lógica da superexploração.
  3. Desvinculação de recursos estratégicos: a região tem uma capacidade muito importante de produzir energia e produtos primários. Para alcançar a industrialização sustentável, em harmonia com a reprodução da vida, é necessário pensar em termos de estratégias não capitalistas, com ampla participação dos Estados-nação e dos povos no planejamento desses recursos.
  4. Desvinculação logística: uma infraestrutura pública comum para o desenvolvimento do comércio, para o movimento de pessoas e para o desenvolvimento de uma rede de serviços é muito importante para destruir os monopólios logísticos das empresas, geralmente impostos por grandes corporações transnacionais, como é o caso hoje dos portos, vias navegáveis e estradas.

É provável que haja outros elementos que sejam importantes para pensar em uma estratégia de desenvolvimento para a região. Em todos os casos, a construção de um projeto independente e soberano, baseado em noções de igualdade, humanidade e respeito pelo nosso planeta nesses tempos de depredação, exige romper com a linguagem eufemística, que é a linguagem do capital, e chamar as coisas pelo nome. Os países da periferia latino-americana são países dependentes, situação que resulta de anos de opressão e pilhagem por parte dos países do centro, com a consolidação de uma classe dominante e uma forma de Estado que habitualmente reproduzem esses interesses. O enfrentamento dessa opressão começa com o fato de pensar com a cabeça onde os pés pisam, e isso exige muito mais do que pensar no desenvolvimento como industrialização.


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Notas

1 O aumento da taxa de juros sobre os títulos do Tesouro dos EUA para 11,2% em 1979 e depois para 20% em 1981, um ajuste monetário ortodoxo realizado quando Paul Volcker era presidente do Federal Reserve no governo de Ronald Reagan (Federal Reserve Bank of St. Louis, disponível em: https://fred.stlouisfed.org/graph/?g=S9gl).

2 O México aderiu ao Acordo de Livre Comércio da América do Norte com o Canadá e os Estados Unidos em 1994. Diante do fracasso do tratado continental, os Estados Unidos optaram por assinar acordos de livre comércio separados. Em 2004, Costa Rica, El Salvador, República Dominicana, Guatemala, Honduras e Nicarágua assinaram o Acordo de Livre Comércio entre os Estados Unidos, a América Central e a República Dominicana. Tratados bilaterais com os Estados Unidos foram assinados pelo Chile em 2003, Colômbia em 2006, Panamá em 2007 e Peru em 2009.

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Referências bibliográficas

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Fontes de dados

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