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Capitalismo ContemporâneoObservatório da Financeirização

Quanta desigualdade a democracia aguenta e quanta igualdade o capitalismo tolera?

Governo neoliberal do Chile reprime violentamente protestos contra aumento de tarifas: incompatibilidade entre democracia e capitalismo / Foto: Javier Torres/AFP

Por Beatriz Passarelli e Stella Paterniani

No mundo em que vivemos, é frequente muita gente se dizer democrata e afirmar a defesa da democracia. Mas o que caracteriza uma democracia? Eleição, partidos, liberdade de expressão, garantia de direitos fundamentais, uma Constituição? Um Estado que orquestre em defesa da garantia de direitos? Quais direitos são fundamentais numa democracia? E quais direitos devem ser priorizados no conflito democrático? Enfim: o que queremos dizer quando estamos falando de democracia?

No dia 24 de setembro, Luís Felipe Miguel, professor da Ciência Política da Universidade de Brasília, lançou seu mais recente livro “O colapso da democracia no Brasil: da Constituição ao golpe de 2016”, na editora Expressão Popular, em São Paulo. O lançamento integrou as atividades do curso Economia do Golpe e Alternativas, como parte do Projeto Brasil Popular. É aqui se insere também o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, na batalha de ideias para uma produção de conhecimento crítica e comprometida com os movimentos populares.

O livro de Luís Felipe Miguel se pretende um ensaio de interpretação, a partir dos dias atuais, olhando em retrospecto para o processo de transição democrática brasileira para tentar dar sentido a uma pergunta que tem intrigado muitos brasileiros desde 2016: “como foi possível que o regime democrático e o sistema de direitos construídos no Brasil ao longo de mais de duas décadas ruíssem em tão curto prazo?”. Essas duas coisas – a consolidação de um sistema de direitos e a construção de um regime democrático – nem sempre caminharam juntas no Brasil. Vivemos momentos não-democráticos em que direitos foram conquistados, e também vimos direitos sendo retirados em momentos democráticos. Atualmente, vivemos num regime supostamente democrático em que o sistema de direitos e a própria democracia estão sendo desmontados vertiginosamente. Como explicar isso? Para desenvolver essa resposta, o autor apresenta três argumentos principais.

O primeiro deles é o diagnóstico da incompatibilidade entre a democracia e o capitalismo, que operam por princípios contraditórios: enquanto a primeira tem a busca por igualdade no horizonte, o segundo baseia-se na produção e reprodução de desigualdades. Quanto de desigualdade a democracia aguenta e quanto de igualdade o capitalismo tolera? Essa correlação de forças, em permanente desequilíbrio, caracteriza historicamente nossa democracia: uma democracia que nasce enferma, que busca crescer e se desenvolver e vai esbarrando nas exigências do capitalismo.

A essa nossa democracia enferma, delirante, entre a desigualdade entre quem produz e quem concentra riqueza; e a igualdade de direitos garantida em nossa Constituição, Luis Felipe Miguel denomina democracia tutelada. Para o autor, a transição democrática brasileira, isto é, o período iniciado no fim da ditadura militar, não teria consolidado a democracia no nosso país; antes, ela teria fortalecido uma elite politica civil que outorga a si mesma a tutela da democracia, isto é, que não considera a democracia como um valor a ser defendido: uma elite que tem poder de veto sobre o jogo democrático.

Aliado a isso, a noção de democracia que foi crescendo e se tornando hegemônica nesses quase 35 anos após o fim da ditadura militar foi uma noção que enfatiza o componente institucional da democracia e que supõe que a consolidação democrática tem um ponto de chegada predefinido: instituições fortes. Nossa Constituição de 1988, conhecida como “constituição cidadã”, denuncia a fragilidade dessa noção de democracia, uma vez que é só pela mobilização e luta dos movimentos populares que muitos dos direitos assegurados na Constituição são cumpridos.

Da fragilidade de nossa democracia, o autor depreende seu terceiro argumento principal: as consequências das estratégias adotadas pelo lulismo para manter a governabilidade e implementar o programa de reformas sociais. Uma noção ampla de democracia deveria estar comprometida com a realização de transformações sociais profundas num país tão desigual como o Brasil. O autor destaca que a estratégia adotada pelo lulismo implicou o abandono da agenda dessas transformações (que poderia ter incluído a democratização dos meios de comunicação; a reforma agrária; a reforma política e do judiciário), e que a ação dos governos Lula e Dilma foi marcada pela ênfase no combate à desigualdade por meio do combate à extrema pobreza. Além disso, as gestões mantiveram a violência seletiva dos aparelhos repressivos de Estado, que tem perpetuado o genocídio da juventude negra de periferia. Para cumprir sua agenda de combate à desigualdade, o Partido dos Trabalhadores foi progressivamente adaptando o seu discurso aos limites impostos pela democracia tutelada e se aliando aos setores mais reacionários e corruptos da politica brasileira.

Quando os impactos da crise que começa nos Estados Unidos em 2009 começam a ser sentidos no Brasil, as elites que têm poder de veto à democracia recompõem a direita brasileira, com o golpe de 2016 como marco histórico dessa recomposição. Três principais elementos sumarizam o ataque à democracia: a retirada de direitos e a publicização de discursos, feitos inclusive e especialmente pelo presidente Jair Messias Bolsonaro, favoráveis a violências e opressões; perseguições a intelectuais, professores e movimentos populares, acusados de “doutrinação comunista”, “marxismo cultural” e “ideologia de gênero”; e a crescente desnacionalização da economia. Sabemos que todos esses elementos são necessidades da agenda neoliberal, que compõem o que a escritora Naomi Klein chama de “a doutrina do choque”. Essa doutrina, historicamente experimentada no Chile de Pinochet e na Inglaterra de Thatcher, se autoproduz como a cura para uma democracia enferma, e suas prescrições têm sido: o autoritarismo; a produção de perda de referências e de desorientação (a afirmação de que as coisas são como são e não há outros caminhos); e a obliteração da história, para impor medidas antinacionais – sob a doutrina do choque, até o que se sonha é controlado. O cinismo da uberização do trabalho sob a narrativa do empreendedorismo é uma das facetas de como o desmonte do sistema de direitos, aliado ao domínio do capitalismo financeiro, atua até mesmo no controle do que se sonha.

O bolsonarismo aparece, portanto, nesse ensaio de interpretação crítica da história recente brasileira, como uma consequência e um elemento de um longo processo. As políticas ambientais e sociais efetivadas ao longo deste quase primeiro ano de governo Bolsonaro vinculam-se ao processo da doutrina do choque brasileira, que o autor chama de colapso da democracia. Por isso a importância em nos dedicarmos a compreendê-lo e situá-lo historicamente, por um lado, e a formular saídas e análises que não o tomem como um fim em si mesmo nem como uma realidade inalterável, por outro.

Como bem advertiu Celso Furtado, em sua obra “A construção interrompida”, o “ponto de partida de qualquer novo projeto alternativo de nação terá que ser agora, inevitavelmente, o aumento da participação e do poder do povo nos centros de decisão do país”. Um novo projeto politico de nação não pode se pautar apenas na viabilidade ou não do crescimento econômico, mas sim na possibilidade de sua democratização.

O ensaio de Luís Felipe Miguel nos inspira a buscar lutar e construir uma noção de democracia que não oblitere nossa história, pelo contrário: que parta da experiência brasileira e dos interesses do povo brasileiro. Uma noção de democracia que se descolonialize, que não tenha um ponto de chegada predefinido a partir das experiências democráticas europeias e norte-americanas. Para construirmos essa noção descolonial de democracia, é fundamental compreender as desigualdades e o racismo como elemento fundante da sociedade brasileira e vincular essa compreensão a uma noção de democracia que garanta educação política e soberania nacional, para seguirmos sujeitos de nossa própria história e ousarmos sonhar para além do permitido.