Quando se trata da Amazônia, é um olho no gato e o outro na cumbuca
Sermos pacíficos por convicção não nos impede de defender os interesses políticos, sociais e econômicos do Brasil em terra, água e ar, mesmo belicamente se isso for necessário.
Por Ana Penido*
Euclides da Cunha, em 1906, falava sobre a Amazônia: “O que me abria às vistas desatadas naquele excesso de céus por cima daquele excesso de águas, lembrava (…) uma página inédita e contemporânea do gênesis”. Isso demonstra que a enormidade da região, até hoje ainda não completamente conhecida, desperta admiração – e, como veremos, cobiça –, há mais de um século.
A Amazônia é compartilhada por nove países – Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Suriname, Guiana, Peru, Venezuela e França (Guiana Francesa) – e, por isso, tem papel fundamental na integração sul-americana. Sua proteção de forma separada, por apenas um país, é impossível. E esse entendimento foi consagrado no Tratado de Cooperação Amazônica, em 1978, com compromissos de desenvolvimento para a região e respeito à soberania de cada país.
Desenvolvimento e defesa são discussões inseparáveis. Em 1995, essa experiência amadureceu com a criação da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica, ganhando contornos mais concretos especialmente para a Amazônia Legal brasileira.
Como um país que sempre desejou a paz, o Brasil preparou-a e cultivou suas sementes junto aos vizinhos. Mas essa prática cooperativa não ignora a possibilidade de uma competição internacional por recursos naturais abundantes no nosso território, e que essa disputa possa produzir consequências indesejáveis para a Amazônia e seus povos, ainda mais em um futuro no qual riquezas como água, minerais e biodiversidade se mostram cada vez mais escassos.
O maior exemplo dessa cobiça internacional é a ideia equivocada discutida há décadas por países do “mundo desenvolvido” de internacionalizar a Amazônia. Para os defensores dessa proposta, alguns recursos estratégicos do globo, como a Amazônia, devem ser considerados bens globais, e não poderiam ficar sob a responsabilidade de um país “subdesenvolvido” como o Brasil.
Um exemplo é a afirmação do Al Gore, antigo vice-presidente dos Estados Unidos: “Ao contrário do que pensam os brasileiros, a Amazônia não é propriedade deles, ela pertence a todos nós”.
Portanto, sermos pacíficos por convicção não nos impede de defender os interesses políticos, sociais e econômicos do Brasil em terra, água e ar, mesmo belicamente se isso for necessário.
Nesse sentido, os documentos brasileiros falam em dissuasão que, em termos gerais, é a capacidade de persuadir outros países de não atacar o Brasil, pois estariam se expondo a custos muito altos. Exemplos dessa preocupação são o Sistema de Proteção da Amazônia (antes dele o Sistema de Vigilância da Amazônia), que possui um forte componente de monitoramento e inteligência; a instalação de pelotões especiais de fronteira; o Sistema Integrado de Monitoramento de Fonteiras; e outros.
Como expresso na Estratégia Nacional de Defesa: “Quem cuida da Amazônia brasileira, a serviço da humanidade e de si mesmo, é o Brasil”.
Nesse ponto, cabe ressaltar que embora seja louvável o interesse histórico das Forças Armadas, em especial do Exército, pela Amazônia, a tarefa de defesa do Brasil pertence a todo o povo brasileiro – civil e militar –, e, neste caso, especialmente aos povos amazônidas e às diversas etnias indígenas que habitam o território.
Uma medida prática nesse sentido é ficar muito atento aos interesses de outros países que podem estar disfarçados de boas intenções e que, na realidade, terminam por patentear os conhecimentos tradicionais dos povos que preservaram a floresta por séculos.
O Dossiê produzido pelo Instituto Tricontinental, “Amazônia Brasileira: A Pobreza do Homem como resultado da Riqueza da Terra”, apresenta três dos principais interesses imperialistas neste território: a mineração, o agronegócio e a cobiça por recursos naturais. Ou seja, mesmo com um discurso nacionalista de “a Amazônia é nossa”, práticas predatórias vêm ocorrendo na região por todas essas décadas.
Em 2017, foi colocada em xeque pelo governo Temer uma medida adotada durante a ditadura civil-militar que foi criação da Reserva Nacional de Cobre e Associados (Renca), que tinha como objetivo garantir a soberania nacional sobre diversos minerais estratégicos existentes na região. O desejo de extinguir a Renca expôs a intenção do governo de entregar as reservas estatais à exploração mineral.
Além das ameaças no âmbito da defesa, existem questões de segurança a serem levadas em conta como a biopirataria, tráfico de pessoas, armas e drogas pelas fronteiras, entre outras.
Um dos primeiros casos de biopirataria em larga escala se deu no ciclo da borracha, no século 19, quando a Inglaterra “extraiu” 70 mil sementes de seringueira no Amazonas para desenvolver a produção na Malásia, tendo o controle direto do processo.
Atualmente, ocorrem operações rotineiras na fronteira brasileira para atrapalhar a prática de delitos. Quanto a isso, duas questões são relevantes. A primeira delas é que, assim como nas questões de defesa, a segurança da região só faz sentido se tratada em conjunto com os nossos vizinhos.
A segunda questão é que a migração entre os povos dos diversos países fronteiriços não deve ser vista como algo negativo, e essas pessoas olhadas com desconfiança. Colombianos, venezuelanos, peruanos e outros são bem-vindos. O povo brasileiro é formado majoritariamente por migrantes, vindos de forma voluntária ou escravizados, e nosso território deve seguir como um porto seguro para aqueles que desejam viver no Brasil de forma temporária ou permanente.
Quanto ao governo Bolsonaro, o presidente vem contrariando uma história de paz e boa relação com os vizinhos de décadas, adotando um discurso belicista, em particular apoiando as propostas de intervenção estadunidenses na Venezuela, o que pode ampliar o espaço para potências de outras regiões na Amazônia brasileira, em especial os Estados Unidos.
Cabe pontuar que esse discurso belicista não é apoiado pelas Forças Armadas, que vêm atuando em Roraima junto com a ACNUR (agência da Organização das Nações Unidas responsável por refugiados). Obviamente, pelas riquezas da região, os Estados Unidos e outros países têm muitos interesses para além da Venezuela, especificamente na Amazônia.
Paralelamente, o governo Bolsonaro adotou um liberalismo econômico que vem entregando as nossas riquezas, como a proposta em discussão atualmente de liberar a mineração em terras indígenas, de permitir a compra de terras por estrangeiros, além de vender parte da indústria nacional responsável pela defesa do nosso território, como a Embraer, abrindo mão da nossa autonomia.
Enquanto entrega o patrimônio brasileiro, enfraquece ferramentas como a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e o Conselho Sul-Americano de Defesa, estratégicas para ampliar a confiança mútua entre o Brasil e seus vizinhos, e construir uma doutrina militar a partir dos olhos do Sul, e não mais cópia dos países do Norte.
Em outros termos, o presidente escolhe ignorar o famoso dito popular “um olho no gato, e um olho na cumbuca”. E que cumbuca! O Brasil abriga 60% da floresta amazônica. É o maior bioma do país, ocupando 49% da sua área total. Tem alto potencial hidrelétrico, é um banco genético enorme de plantas e animais, e imensas reservas minerais, isso só pra começar.
Qualquer governo nacional percebe isso, inclusive o de outros países. E um governo nacional e popular se comprometeria a usar todo esse patrimônio para melhorar a vida do próprio povo brasileiro.
*Ana Penido é doutora em Relações Internacionais pelo Instituto Santiago Dantas (UNESP – UNICAMP – PUC-SP) e mestre em Estudos Estratégicos pelo Instituto de Estudos Estratégicos (UFF). Atualmente é pesquisadora do Instituto Tricontinental.