“A noite avançava lentamente. Pensamentos voavam ao infinito, tentavam entender situações que permitiram o desenvolvimento da desumanidade.”

 

Este texto faz parte do Concurso de Ensaios Tricontinental | Nada será como antes. Saiba como participar.

 

Por Pedro César Batista

Entrou no quarto, puxou o fio para fechar a cortina, apagou as luzes e se dirigiu à sua cama. Ainda não era meia noite. Deitou-se, cerrou os olhos e tentou dormir. A temperatura e a noite estavam bastante agradáveis. Um leve vento trazia para dentro do apartamento no terceiro e último piso do prédio um leve perfume das árvores que formavam um pequeno bosque. O céu estava estrelado, na linha curva do horizonte destacava-se a curva da lua crescente, levando uma nesga de claridade para o aposento. Antes de deitar ele havia tomado um copo de água e andado de um lado para o outro dentro de casa. Na cama ficou rodando em voltas de 360 graus como um círculo. Experimentou todas as posições e para deitado de costas. Com os olhos fechados começou a pensar por que tantos jovens, em pleno estertor final da ditadura, décadas atrás, haviam se encantado com um sindicalista, que dizia defender os interesses dos trabalhadores e combatia o socialismo? Era um tempo que os trabalhadores começavam a se mobilizar também no Brasil, recorda. Mas estava lembrando de um sindicato que tinha o nome bastante forte, Solidarnosc, e que significava solidariedade. Lembra-se que era um tempo em parte significativa da juventude estava lutando para derrubar a ditadura militar, enquanto, simultaneamente, na Polônia, Lech Walesa, líder operário dos estaleiros em Gdansk, ganhava admiradores em várias partes do mundo. Ele desafiava o governo polonês, criticava o socialismo e a União Soviética. O discurso que ele fazia era reforçado nas campanhas do ocidente, que combatia o comunismo. O mundo vivia em plena guerra fria. Walesa seduziu a juventude. Era um bigodudo, bonachão, gostava de vodca e falava muito em liberdade. Este era o principal discurso usado contra os países do Leste Europeu, liderados pela União Soviética. Diziam: mesmo com a população tendo assegurada uma vida material estável não possuíam liberdade. Uma campanha poderosa, comandada pelos EUA, contra o socialismo. Foi nessa onda que surgiu o Solidarnosc, com seu líder bigodudo e que encantou jovens militantes de esquerda. Ele se lembra como se fosse hoje, a onda de propaganda em apoio ao sindicalista polonês. Passaram-se 40 anos, a URSS se desmanchou, as Alemanhas do oriente e ocidente voltaram a ser apenas uma, os países que integravam o bloco socialista no Leste se tornaram capitalistas. E a Polônia que foi no período socialista um país próspero e forte, tornou-se o oposto. Virou o que propagavam que era e não era, agora é um país governado por setores nazistas, impondo um verdadeiro pesadelo ao seu povo, com um dos regimes mais retrógados do mundo. Se alguém usar o símbolo do comunismo, com a foice e o martelo, poderá ser condenado e preso, acusado de fazer propagando comunista. As contradições entre ricos e pobres que quase não existiam na época comunista virou regra, alguns bilionários decidem a vida de milhões de pobres, que ganham mal para conseguir sobreviver. Tudo isso mexe com sua cabeça, não consegue dormir. A cama parece ter espinhos. Levanta. Vai para a sacada do apartamento. Instantaneamente pensa em acender um cigarro. Lembra-se, entretanto, que fazia um tempo que parou de fumar. Olhou a lua no horizonte e seguiu pensando na história que alimentou a admiração de milhões de jovens pelo Solidarnosc. Um turbilhão acontecia em sua cabeça. A noite continuava agradável e o sono não chegava. Seguiu debruçado no parapeito da pequena varanda.

Voltou a recordar do final da década de 1970. No Brasil, vivia-se, no mesmo período que Walesa organizava grandiosas manifestações com trabalhadores dos estaleiros de sua cidade, um tempo parecido com o atual, naquela noite com insônia. Era um tempo em que conceitos fundamentalistas, sem nenhuma base científica ou histórica, voltavam a prevalecer. No passado viveu-se uma ditadura, que prendia e matava. Ele pensou no tempo que estava a viver em que a propagação da violência individual como solução para os problemas sociais ressurgia, como se vivesse em uma fase da história em que o Estado não tinha força, quando cada um tinha que resolver individualmente seus problemas. Fortalecia-se o sentimento de cada um por si. Recomeçava um tempo em que as liberdades estavam sendo ameaçadas, direitos básicos começavam a ser retirados e propagados como se isso fosse correto e natural. Uma volta ao passado com um discurso falso de modernidade. Pessoas que perderiam seus direitos defendiam o mesmo argumento usado para que essas garantias legais deixassem de existir. Havia um efeito anestesiante coletivo e expansivo. Um sono profundo se abatia coletivamente. E não havia uma resposta ao amortecimento reinante. Os partidos e movimentos, autodenominados populares ou de esquerda, reproduziam a velha prática da institucionalidade, lideranças sindicais seguiam paralisadas atrás de suas mesas em gabinetes com ar condicionado, preocupadas em preservar o status quo, garantido pelos impostos e contribuições sindicais. O governo, que nada tinha de novo, extinguiu até o Ministério do Trabalho. Prevalecia o silêncio nas ruas, um silêncio sepulcral, enquanto vozes melosas e sádicas nos programas de televisão defendiam o retorno ao passado, como se fosse o futuro. Um tempo de volta ao medo, um espanto que paralisava, silenciava e assustava quem tinha vivido momento igual antes na história. Verdadeiros cadáveres, saiam de seus túmulos e se tornavam lideranças, trazendo de volta um tempo cinzento, sepulcral de dor e medo.

Ele seguia na amurada da pequena sacada. O sono não chegava. Pensou. Seria a ligação entre as ações do Solidarnosc e o fim do chamado socialismo real, ocorrido com o fim da URSS, que teria retirado das tumbas tantos cadáveres e amortecido à disposição de luta de lideranças de trabalhadores? Continuou com suas confabulações mentais. Por que as pessoas se tornaram tão individualistas e consumistas? A experiência do Solidarnosc teria contribuído para iludir tantas pessoas no mundo? Lembrou-se do argumento usado por alguns setores reacionários: Cuba só tem saúde, educação e segurança. E era isso que os povos do socialismo real possuíam, além de elevado nível cultural e social. Agora era diferente. Era cada um por si. O que importava era comprar, ter bens e dinheiro. Ser empreendedor. Até cultos da prosperidade se espalham pelas cidades. O que importa e se dar bem e se sobressair de qualquer jeito. Não havia crítica se uns conseguissem acumular bilhões e outros nem mesmo o alimento básico conseguiam. Isso se dava na Polônia e no Brasil. Esta concepção prevalecia no ocidente e parte significativa do planeta. Por que? Mesmo com todos os equívocos, nos países que integraram o que se convencionou chamar socialismo real, havia mais justiça, igualdade e se caminhava para a efetiva dignidade humana. O que levou a ruptura, o ressurgimento da busca desenfreada pelo prazer individual, da satisfação da ilusão burguesa do consumo que ganhou o mundo e conseguiu derrotar a experiência de outra sociedade, outro mundo, em que se construía a igualdade e a justiça social? Como dormir? Os dias eram como se todas as pessoas cavassem, diariamente, uma grande cova coletiva, onde os bilhões de habitantes do mundo seriam postos e soterrados. Recordou-se da prática dos nazistas em seus pelotões da morte, que avançaram sobre o território soviético. Eles possuíam professoras para identificar as crianças que poderiam viver, aquelas com traços arianos, as demais, eram encaminhadas para campos de concentração, assassinadas em câmaras de gás. Também, lembrou-se das esposas e assistentes sociais dos soldados e oficiais da SS, a temida guarda nazista, que matavam indiscriminadamente. Recordou de Erna, uma jovem nazista, que em 1941, na Ucrânia, ao visitar um gueto, ofereceu guloseimas para crianças, depois lhes atirou, friamente, em suas nucas. Os perpetradores e esquadrões da morte nazistas, durante a invasão nazista da URSS, obrigavam as próprias vítimas a cavarem as valas em que seriam enterrados. O mundo caminhava de forma serena para uma grande triste cova coletiva. A experiência nazista parecia se repetir. Nada do sono chegar. Ele segue com conversando com seus pensamentos.

Gregório morava na capital do Brasil, uma cidade parque – bosque, uma obra modernista, construída por milhares de operários, a grande maioria oriunda da região nordeste do país, durante a gestão do presidente Juscelino Kubitscheck, que executou projetos do urbanista Lúcio Costa e do arquiteto Oscar Niemayer. Os dois foram comunistas, pensaram uma cidade que possibilitasse um mundo de igualdade e garantias aos seus habitantes. Uma autentica obra de ficção em concreto que tinha se tornado realidade. Nela, as famílias levavam suas crianças para os jardins nas entre quadras, organizadas e limpas, no bairro chamado Plano Piloto. Diferente de tudo ao ser comparada com outras cidades em qualquer parte do planeta. Durante a sua construção, dentro do plano presidencial de 50 anos em 5, Kubitscheck exigia que as obras não tivessem intervalo, teriam que ocorrer 24 horas por dia. As obras não poderiam parar. O ritmo era tão alucinante que se formaram pelotões para recolher os corpos que despencavam dos prédios em construção. Os operários caídos eram levados em padiolas e seus corpos nunca foram encontrados. Seus familiares nem sabiam de suas mortes. As obras seguiam freneticamente. Foi inaugurada em 21 de abril de 1960, um sonho que se tornou realidade. No final do século XVIII, José Bonifácio de Andrada pensou na necessidade de se fazer uma cidade no centro do território da colônia portuguesa, única forma de garantir a possessão. Era preciso levar a população para interior, sair do litoral. No cerrado, terra inóspita e sem nada, dois séculos depois, nasceu uma cidade moderna, com largas avenidas, prédios redondos, bosques e parques planejados. Os detalhes minimamente pensados, planejados e executados. Lembrou-se. Infelizmente, quatro anos depois de sua inauguração, um grupo de empresários e militares, comandados pelo governo norte americano dá um golpe de Estado. Em 1 de abril de 1964 milhares de pessoas são presas, dirigentes sindicais são cassados e as entidades sofrem intervenção, o parlamento e a imprensa são censurados. Inicia-se um tempo, que dura 21 anos, de prisões, exílios, torturas e mortes. O arbítrio e o terror eram as normas. O sono não volta e ele da sacada do apartamento pensava o que era viver na capital do Brasil. Uma cidade feita para que as pessoas, de maneira cada vez mais generalizada, dormissem. Lembrou-se das filas no final da tarde, onde pessoas felizes, bem alimentadas e vestidas se reuniam para receber o Soma, no Admirável Mundo Novo, de Huxley. A população de Brasília lhe fez lembrar a criação do autor inglês. Restaurantes lotados, avenidas entupidas de automóveis, a grande maioria com apenas um passageiro em seus carros novos, no final da tarde entrando em êxtase, provocado pelo consumo e o excessivo individualismo. Um sono profundo, viviam em um verdadeiro mundo de Alice. O Paraíso seria aqui na terra, com multidões que cantam gospel em orações da prosperidade. Um transe contagiante. Ou a cidade seria o contrário, aquele arranjo perfeito, com um belo jardim, nada fora do lugar que fazia as pessoas sofrerem insônia? Teria tudo isso uma relação com o fim do socialismo?

Durante o tempo da ditadura, Gregório acreditava que sua família era muito grande e, mesmo com algumas diferenças, pensava que era mais unida, verdadeiro exemplo de união e amor fraternal. As diferenças se davam somente pelo olhar do tempo que se vivia. Uns queriam que se derrubasse a ditadura para implantar uma sociedade socialista. Acreditava-se que a luta pela liberdade e democracia possibilitaria avançar na conquista de uma nova sociedade, onde haveria o controle do Estado pelos trabalhadores. Outros, atuavam como seres puros, não se misturavam com os outros, mesmo sendo da mesma família, ainda assim, achavam que sozinhos poderiam construir o que, aparentemente, todos demonstravam sonhar. Todos, uns com sua militância política, outros, com suas rezas e orações pediam paz e justiça. Até Lech Walesa, acreditava-se que também tinha o mesmo sonho. E assim o tempo passou. Muitos anos. Décadas. E nada do sono chegar. As paredes também ficaram acordadas. As luzes da sala permaneciam apagadas, apenas o reflexo das luzes da rua deixava à mostra a sombra de seus movimentos. Sombras discretas lhe acompanhavam, pareciam lhe observar e tentar dialogar com ele. Por trás da cortina a claridade das lâmpadas dos postes da rua deserta invadiam discretamente a sala e a sacada de onde ele observada os movimentos inexistentes e estava a pensar para ver se o sono chegava. Somente as sombras lhe faziam companhia. Mexiam-se, enquanto ele continuava a se observar através delas, que repetiam cada movimento que ele fazia. Uma dança sem ritmo, sem sono e sem melodia. O tempo agradável se foi, chegou um calor, inesperadamente a brisa agradável some o que só faz aumentar suas dúvidas. E eram tantas.

Recordou-se da guerra civil espanhola. O país derrotou a monarquia e se tornou republicano. A forças populares passaram a governar o país. Em Madrid comunistas, socialistas e sindicalistas; em Barcelona a Aliança Revolucionária antifascista, integrada por anarquistas e trotskistas; e em Valença foi instalada a Junta do Levante, formada por extremistas e republicanos moderados de esquerda. Cada região passou a se defender isoladamente. Derruti, dirigente da Confederação Nacional do Trabalho – CNT e líder da Frente Popular em Barcelona foi assassinado pelos próprios companheiros. A disputa interna se tornou autofágica, suicida e levou a derrota definitiva. Hitler e Mussolini apoiaram Franco, que venceu a guerra e instaurou uma sanguinária ditadura, que deixou um saldo de 200 mil mortos. Lembrou-se de Federico Garcia Lorca, poeta fuzilado em Granada por um pelotão fascista. A vitória de Franco ocorreu no início da segunda grande guerra, quando os nazifascistas dominaram a Europa. Hitler foi derrotado pelas forças soviéticas comandadas por Josef Stalin. Depois acusado por Kruschev, com Gorbatchov jogando a pá de cal na URSS. Se na Espanha a Frente Popular não se sustentou por falta de unidade, os fascistas, liderados por Franco tiveram como um de dos fatores da vitória, a unidade. Franco ficou no poder até 1970.

Como explicar o encantamento que Gorbatchov ocasionou em várias partes do mundo, exatamente uma década após Walesa ter conseguido a mesma empatia? Uma fantasia se apoderou de muita gente, que acreditou que a União Soviética era o inferno vermelho, como propagavam os filmes de Hollywood. Quantos não falaram que o fim da URSS, provocado pela perestroika e a glasnost, traria um mundo mais justo, fraterno e solidário? Gorbatchov incutiu a ideia de que o fim da união dos povos que possibilitaria um equilíbrio no planeta que seria bom para a humanidade. O que se viu a seguir foram movimentos liderados por um alcoólatra, Boris Yeltsin, que, do alto de um tanque, fazia discursos contra a União Soviética, ao mesmo tempo que abria o país para o capitalismo,que em festa inaugurava lojas do Mc Donalds. Iniciou-se, então, com mais força ainda, uma campanha para negar a importância e o papel da URSS na libertação de milhões de homens e mulheres da miséria, ignorância e da escravidão imposta pelo império russo. Esconderam que o socialismo derrotou Hitler e seus perpetradores, o que impediu que o genocídio da limpeza étnica, ideológica e racial continuasse com o extermínio em massa e que colocou um fim a escravidão que alimentava a Volkswagen, BMW, Mercedes, Hugo Boss, Audi, Bayer, Basf, Siemens e IBM. A indústria cultural e os meios de comunicação de massa não falam da morte de 20 a 30 milhões de soviéticos, que enfrentaram o invasor nazista com o coração na ponta do fuzil, derrotando-o. Yeltsin, do alto de um tanque bradou, agora teremos o Mac Donald e as luzes do acesso aos bens de consumo e da liberdade. E foi aplaudido em todo o mundo. Logo em seguida veio a reunificação da Alemanha, com a queda do muro de Berlim. Não mais haveria o lado oriente e o lado ocidente, a Alemanha seria somente uma novamente. Gregório se lembrou então de suas conversas com o filho de um velho comunista russo, Alekxander, que lhe contou que a população dos países que formavam a antiga União Soviética se sentiram enganadas pelos responsáveis pela desarticulação da federação. Antes os trabalhadores podiam participar dos sindicatos e decidir sobre a planificação na produção e distribuição de bens, serviços e produtos, que assegurava que não faltasse os itens necessários a sobrevivência digna de toda a população, as organizações de mulheres discutiam e definiam as políticas sociais, o mesmo que acontecia com a juventude, soldados, camponeses e todos os setores, que se reuniam nos sovietes para decidir os rumos do socialismo. Tudo acabou em um encontro de Gorbatchov, regado a vodca, com os presidentes da Geórgia e Bielorrússia, que sem consultar seus parlamentos, nem seus povos ou as demais repúblicas que integravam a URSS decidiram decretar a extinção da maior experiência de solidariedade e construção humanitária até então desenvolvida, destruíram a União Soviética, a federação que derrotou o nazismo, enfrentou a fome, o obscurantismo e comprovou ao mundo que era possível assaltar os céus com apenas três assinaturas. Foi uma decisão muito rápida, conforme escreveu Maquiavel, o grande mal foi feito, dissolveu-se a maior união de povos criada na história da humanidade. O mundo capitalista aplaudiu. Os jornalistas áulicos do consumo, do individualismo e do capital elogiaram o fim do terror vermelho. Lojas produtos de consumo seriam abertas, haveria cores, luzes e cada um compraria o que desejasse, a livre concorrência do mercado seria implantada. O socialismo não dava lucro, não servia. E o sono, nada, nada de chegar.

A noite avançava lentamente. Pensamentos voavam ao infinito, tentavam entender situações que permitiram o desenvolvimento da desumanidade. Uma enorme vontade de acender um cigarro, mas ele não mais fumava. A lua, suspensa no céu, observava aquele debate imaginário, conflitos, guerras, fome e injustiças sociais se misturavam em uma velocidade muito grande. Como àquela união de mais de uma dezena de povos, muito mais sólida que o principal opositor, os EUA, tinha sido desmontada tão facilmente? Havia caído como um castelo de cartas. O ocidente capitalista venceu a batalha, ganhou a guerra fria. A URSS não mais existia. Por 73 anos deu esperanças a milhões de mulheres, homens e jovens de que poderia haver a dignidade plena à humanidade. Nada adiantou. A União Soviética se desmanchou, república por república. Em todos os lados se podia ver o velho palhaço, o Mac Donald, com suas luzes e cores, rindo da vitória conquistada. O povo alemão, logo após a sua reunificação, de acordo com pesquisas publicadas, queria o muro de volta. Era tarde, o muro tinha se esfarelado. Nem mais poeira tinha. Passou. Uma forte onda varreu os países do leste europeu, onde existiu o que se denominou socialismo real. Os russos e demais povos da ex-URSS sentiram-se traídos por Gorbatchov e Yeltsin. Eles não queriam o fim do socialismo. Agora estavam vivendo outros tempos. Não tinham mais assegurado seus direitos elementares, a sociedade se tornava cada vez mais injusta, com a formação de um grupo de milionários. Polônia, Hungria e Ucrânia tinham governos que se identificam com o nazismo. A Iugoslávia tinha sofrido uma guerra civil, tornando-se três países: Croácia, Macedônia e Servia. Todos com forte influência nazista. Por toda parte o mundo se tornava mais injusto. A liberdade tão propalada, que possibilitaria dar a felicidade a toda população, estava assegurada para a venda de corpos, do trabalho em troca de salários miseráveis ou apenas pelos aplicativos sem nenhuma garantia, nem mesmo de receber um pagamento. Crescia o sonho em ser também um capitalista. Tornar-se patrão e ter seus empregados que produzissem riquezas e fossem explorados. O que parecia a cada momento mais distante e difícil com os ricos ficando mais ricos e os pobres mais pobres. O planeta é inteiramente controlado por um grupo de menos de 100 pessoas. Um punhado de bilionários que possui a riqueza equivalente ao que detêm mais três bilhões de pessoas. Assim conseguem desconstruir cada vez mais a experiência do leste europeu. Os poderosos controlam a internet, as universidades, as redes de televisão, os portais de notícias e as informações que circulam no mundo real e virtual. Poderosas campanhas tornam as pessoas cada vez mais consumistas e egoístas. E anticomunistas. Conseguem convencer os pobres e mais humildes que a experiência soviética foi negativa. Intelectuais chegam a comparar o socialismo ao nazismo. Sustentam isso em salas de aula, como se verdade fosse. E as pessoas acreditam. A noite parece não andar. A lua continua no horizonte. Um traço apenas em que Gregório mira. O mundo parecia entrar em uma obscuridade absoluta. A claridade das luzes dos postes e o reflexo da lua crescente impedem-no de crer que a escuridão predominará. E nada, nada do sono chegar.

Aquela noite parecia dia. Um dia, como no tempo da juventude, quando se fazia de tudo a todo tempo e o dia nunca acabava. Era no tempo de Zuleida. Ela sempre estava cantando, encantando as pessoas e animando a vida. Estivesse acompanhada ou não com seu violão, um qualquer outro instrumento. Ela tinha a capacidade de espalhar e contagiar a alegria. Quantas vezes ao começar a cantar o tempo parava. O vento e as folhas das árvores paravam para lhe escutar. Sua voz era tão envolvente, que até as nuvens ficavam mais lentas para ouvi-la. Passarinhos pousavam nos fios elétricos acima das cabeças que a escutavam e terminavam por compor a harmonia que encantava aquele momento inesquecível. Uma sintonia livre e fina. Quantas vezes o dia e a noite confundiram-se de forma mágica, seduzidos pela melodia da voz de Zuleida? As canções, cantadas por todos, falavam de sonhos, de dores e das conquistas obtidas nas lutas contra os que lhes ameaçavam. Inúmeras ocasiões, a noite mal havia dado seus primeiros passos, compondo os primeiros acordes daquela sinfonia inesperada e encantadora, quando chegavam os homens de coturno, com seus cassetetes na cintura, revolveres nas mãos, algumas vezes traziam cachorros bravos, tudo para que o grupo se dispersasse. Eles, os homens de coturno, impediam que os jovens se reunissem, demonstravam medo, um enorme medo de que a luz que a voz de Zuleida e o coro que ela inspirava pudesse derrubá-los. Sempre que o grupo começava a germinar, gestar seu crescimento, eles apareciam e usavam de excessiva violência. Praticavam uma violência desmedida para dispersar o grupo de jovens, em que Gregório sempre estava presente.

Certa vez, a turma cantava para o alvorecer. Haviam saído da casa de um deles, onde haviam passado a noite em festa e pararam em uma praça. O sol ainda nem havia despontado, a noite estava se esticando maliciosamente pelos cantos do tempo. Os moços e moças, unissonantes, acompanhavam Zuleida, como fosse uma borboleta, com suas leves asas coloridas, leves e suaves, animando a brisa da madrugada. Uma composição em completa harmonia. Cada voz fazia parte da panapanã que sobrevoava as mais belas flores, que ainda dormiam, encantadas e enfeitiçadas pela voz da jovem que animava a noite, que se arrastava como uma leve vaga no rio preguiçoso, que brilhava sob o vento embalado pela claridade da lua. Ali estavam, quando sem esperar chegavam os homens de coturno, faziam muito barulho com suas vozes estridentes, totalmente desafinadas, acompanhadas pelo som mecânico de uma sirena em alto volume. Chegavam sem nada perguntar, nem pediam informações de nenhuma natureza. Chegavam para sufocar as melodias que despertavam a manhã, que logo mais despontaria. Era uma época em que o tempo, muitas vezes, escondia-se de tão assustado, os homens de coturno chegavam arrastando uma escuridão desconhecida para a noite, especialmente para aquelas noites, quando Zuleida e seus amigos cantavam para acalentar a manhã que ainda dormia fogosamente. Certa vez, levaram Zuleida e outros para a prisão. Buscavam amedrontar a madrugada, assustar a manhã, espantar o dia, que insistia em não acordar, enquanto dormitava ao som daquela sinfonia do vento, da lua e das vozes repleta de todas as luzes, magistralmente orientadas pela maestrina de pássaros e do tempo, que paravam para lhe escutar. Naquela vez, quando foram levados à delegacia, tiveram seus nomes anotados e foram liberados em seguida, depois de serem ameaçados de ficarem presos e serem proibidos de circular pelas ruas da cidade onde nasceram e viviam. Ainda assim, o dia amanhecia, iniciava e parecia nunca terminar, preservando uma relação de total entrega e amor à noite, que nem se percebia a diferença entre a falta de sono, a insônia e a tristeza que o tempo sofria quando o canto daquela orquestra silenciava.

Assim a noite se arrastava, lentamente e preguiçosamente. Como Gregório não fumava mais, restava-lhe tomar um copo de água e retornar para a cama. Insistir com Morfeu para que o recebesse em seus braços e pudesse repousar e recuperar a tranquilidade necessária para enfrentar aquele tempo estranho. Nada. Deitava e não conseguia pregaros olhos. Como faróis seu olhar e sua mente seguiam caminhando de mãos dadas em busca do entendimento de tantas perguntas. Um entendimento que a ciência e a história poderiam esclarecer, mas muitas dúvidas afloravam diante das descobertas e recordações que lhe apossavam. Como tudo havia dado errado? Seguia se perguntando. Foram tantos momentos de alegria, não importava se a infância tivesse sido com fartura, tranquilidade e os cuidados de seus pais, com uma adolescência repleta de descobertas, aprendizagens e elaboração de sonhos. Estudou em boas escolas, teve bons professores e muitos colegas; sempre um aluno dedicado, estudioso e voraz leitor. Foi neste tempo que começou a participar da resistência. Gregório concentra seu olhar na lua que ainda está no horizonte. Aquele fiapo de luz brilhante. Lembra-se das reuniões clandestinas do partido, as leituras obrigatórias, tarefas e debates; participava das brigadas que pichava os muros, acompanhava mais dois, um deles, o mais velho, tinha um carro, uma Brasília azul celeste; pela manhã, sempre bem cedo, participava da distribuição de panfletos em portas de escolas, depois de já terem passado em obras de construção civil, garagens de empresas de ônibus e com os trabalhadores do comércio; recordou das brigadas para vender jornais, quando usavam megafone, para destacar as principais manchetes em discursos de agitação, sendo que, muitas vezes, foram obrigados a sair em desabalada carreira para não serem pegos pela polícia. Sempre conseguiam fugir. Os mais velhos, os dirigentes, constantemente recebiam em suas casas agentes da Polícia Federal, iam em busca dos jornais, livros e outros documentos, que eram guardados com segurança. A polícia nada conseguia. Foi o período que se criou por todo o país comitês pela Anistia, que conquistada, com a libertação dos presos políticos e o retorno dos exilados ao Brasil. O estranho nisso tudo, foi que os torturadores e os assassinos da ditadura nem foram a julgamento, não sofrendo nenhuma condenação, ficaram impunes, apesar de tantas dores, mortes e crimes que praticaram. Lembrou que foi nesta fase da juventude que fez a escolha definitiva para o resto de sua vida. Decidiu estar ao lado de quem busca dignidade, justiça e a efetiva emancipação humana, fazer o combate à exploração, à opressão e à ignorância. E lá seguia, rodopiava na cama de um lado para o outro sem conseguir encontrar Morfeu. Lembrou-se do tempo que fumava. Como seria bom acender um cigarro naquele momento, saborear a fumaça, fazer círculos que se perderiam ao subirem aos céus. Por quanto tempo este companheiro inseparável lhe acompanhou, nas mais variadas situações, fosse de alegria, com amigos e companheiros das lutas, nas manhãs, ainda antes de colocar algo quente no estômago, acender e fumar prazerosamente o primeiro cigarro das três carteiras que queimava ao longo do dia. Como explicar que as lutas, com perdas de tantas vidas, destruição de sonhos, não tenha ainda possibilitado a efetiva liberdade humana. Os escravocratas, seus lacaios e os algozes seguem no poder. Olhando para o teto pensa. Sim. Muitas conquistas foram pequenas concessões, fruto de acordos entre agentes que buscaram tirar algum proveito e garantir privilégios conciliando com os donos das riquezas, tudo para evitar que ocorresse uma ruptura na sociedade. Ocorreram muitas lutas e conquistas, mas o poder seguia nas mãos dos mesmos de sempre. Os donos das terras, das industrias, dos bancos e da informação. Eles conseguiram alimentar a divisão entre os mais necessitados, os mais pobres e entre quem diz defender a mudança das estruturas da sociedade, a destruição do estado e do sistema. No lugar dos iguais se unirem, passaram a sonhar em poder subjugar e dominar os demais iguais a si. Pobre querendo ser rico; trabalhador sonhando em se tornar patrão; lideranças populares buscando apenas a hegemonia, sem efetivamente querer transformar a realidade. Tudo programado pelos poderosos donos do poder. As mudanças sempre superficiais, pintam a fome e a desesperança com novas cores, cores mais brilhantes, iluminadas, com bastante tecnologia para ludibriar a amortecer a indignação. Que situação. Vive-se um dos piores momentos da recente história. O país tem um governo que propaga as mesmas ideias do nazismo, elogia torturadores e publicamente defende que é preciso matar. Não esconde isso. E não há resistência à altura. Cadê o enfrentamento aos nazistas, que conseguiram o apoio de pobres e humildes? Eles avançam, destroem as relações de respeito e a frágil democracia conquistada depois da ditadura de 1964? Tudo isso martelava em sua cabeça. Eram sons que o deixavam atordoado, aumentando mais quando via sua impotência. Nada podia fazer, nem mesmo dormir estava conseguindo.

A noite seguiu agradável e o sono se distanciava. Lembranças se apoderavam de sua consciência. Apesar de serem antigas pareciam seguir presentes. Lembrou-se dos caminhões do Exército, lotados com soldados que passaram pelas estradas perto da cidade de Imperatriz, atravessaram a ponte sobre o rio Tocantins como uma cobra venenosa se arrastando calmamente. Eram muitos caminhões, uma enorme fila indiana. Os poucos carros que circulavam na estrada, ficaram parados por um bom tempo, aguardando os caminhões passarem, levando milhares de homens vestidos de verdes. Podia-se ver muitas armas, metralhadoras enormes seguiam sozinhas na carroceria de alguns veículos, os soldados sentados levavam fuzis no colo. Levavam uma carga mortífera, como se fossem combater um poderoso exército inimigo. Circularam a informação que iriam combater os índios que atacavam as cidades na região do Araguaia. Todos acreditaram na informação divulgada, mentira que se propagou como uma nuvem pesada em toda a região, levando a escuridão sobre a verdade. O fato é que os milhares de homens de verde, jovens recrutas, também não sabiam que estavam se dirigindo para matar outros jovens, que abandonaram o conforto de seus lares, seus estudos e se dispuseram a viver junto aos camponeses na imensa floresta entre o sul do Pará, e o norte dos estados do Maranhão e de Goiás, depois dividido e que originou o estado de Tocantins. Gregório estava de olhos arregalados deitado em sua cama. Via lá fora a claridade da lua, escutou o ronco de uma motocicleta enquanto recordava o movimento dos caminhões. Ele era criança e acompanhou tudo. Hoje o fato é do conhecimento de toda a sociedade, apesar de que as mentiras divulgadas ainda prevalecem, escondendo os crimes praticados pelos homens de verde, comandados por oficiais do Exército, Marinha e Aeronáutica. Muitas informações sobre como foram realizadas as matanças pelos homens de verde ainda são desconhecidas, mantidas em sigilo pelo Estado, que assegura a impunidade dos assassinos fardados. Foi um tempo anterior a Copa de Futebol do Mundo, em 1970, no México, quando a seleção brasileira conquistou o tricampeonato. A conquista da taça foi usada pelos generais, alimentou a alegria da população, que nem imaginava a dor de quem enfrentava a covardia de Ustra e outros torturadores, que sadicamente chamavam a casa de torturas e mortes como Casa da Vovó, quando pegavam alguma presa na cidade de São Paulo. Também usaram quarteis e delegacias, onde aplicavam livremente a tortura em paus-de-arara, aplicando choques elétricos, afogamentos, estuprando jovens ou senhoras militantes. Foi um tempo de violência desmedida contra os presos políticos. Ele se lembra que as informações publicadas nos jornais eram censuradas por militares que ficavam dentro das redações. Nada se podia falar sem a autorização dos golpistas fardados, que matavam, roubavam e mentiam cinicamente, em nome do Estado, pagos para isso com os recursos públicos dos contribuintes. Muitos dos milhares de jovens transportados nos caminhões também verdes nada sabiam, apenas eram informados que deveriam combater o inimigo interno, os comunistas e subversivos. Um período que deixou um número desconhecido de mortos, a maioria formada por jovens que saíram de suas casas e se embrenharam dentro da floresta na esperança de conseguir acumular força para derrotar o arbítrio oficial, orientado e organizado a partir dos EUA. Lembrou-se do filme O dia que durou 21 anos, documentário produzido a partir de documentos oficiais da Biblioteca do governo estadunidense, com todas as informações sobre a ação do presidente John Kenedy e do embaixador Lincoln Gordon, que dirigiram a ação em 1964. Todas as informações se tornaram públicas. Infelizmente apenas alguns jovens entre os que foram atacados pelas Forças Amadas brasileiras na região do Araguaia sobreviveram. Os demais, quase uma centena, foram assassinados; uns em combate, como a jovem Elenira Resende; a maioria, entretanto, assassinada de forma covarde, após serem presos e sofrerem cruéis torturas. Mortos foram enterrados no meio da mata, em locais desconhecidos para que seus corpos nunca fossem localizados. Os documentos oficiais do Exército sobre o assunto não se tornaram públicos, apenas, descobriu-se, que uma parte foi incinerada. Passaram-se mais de 50 anos e dezenas de corpos até hoje não foram encontrados. Foi um tempo de mentira, morte e dor impostas pelo Estado. Gregório recorda dos caminhões passando sobre a ponte, pararam o trânsito e a população acreditando que os soldados se dirigiam para defender o povo, quando na realidade seguiam para matar o povo, assassinar aqueles que ousaram enfrentar o arbítrio e o terror. Na região, durante a caçada aos guerrilheiros do Araguaia, integrantes do PcdoB, muitas famílias foram destruídas, com suas filhas estupradas, pais torturados e mortos, tudo em nome de uma pretensa segurança nacional, que transformou jovens soldados do Exército em assassinos. O comandante dos assassinatos, Sebastião Curió, promovido a coronel, terminou ganhando uma cidade em sua homenagem no Pará, Curionópolis. Oficializando o sadismo de um estado assassino e contra seu povo. Foi um tempo de muito terror e tristeza, celebrado pelos criminosos com a criação de uma cidade para lembrar o chefe da morte. Gregório se levanta novamente. Deixa a luz do quarto apagada, orienta-se apenas pela claridade do luar que ainda penetrava em seu aposento pelas frestas da cortina.

Acende a luz da sala, dirige-se a estante de livros, começa a olhar um por um, degrau por degrau, procura algum título. Termina por retirar a biografia de José Saramago. Começa a folhear, está em pé, termina por sentar na poltrona do sofá. Localiza o que estava a procurar, a informação sobre a expectativa de vida em Portugal na década de 1930. Consta que não passava de 38 anos naquele tempo nas terras de Pessoa. Lê umas duas páginas e abandona o livro. Volta a se encostar na sacada. A cidade segue dormindo, a lua permanece com sua tênue luz, dourada e brilhante clareando a noite. Recorda-se de um momento no passado quando teve um sério debate dentro da organização que atuava. Não fazia muitos anos que isto havia ocorrido. Era um grupo pequeno, onde todos os integrantes tinham estabilidade financeira, alguns com bons empregos públicos, outros, aposentados, quase todos com casa própria. Tinha um membro da direção nacional que possuía muitas propriedades, ele e a esposa eram de famílias tradicionais de Minas Gerais. Eram criadores de gado holandês em uma fazenda de sua propriedade. Também possuía uma chácara onde havia uma biblioteca com milhares de títulos. Este dirigente era profundo conhecedor das obras de Marx e Lênin, entre outros autores revolucionários. Um erudito que tratava todas as demais pessoas olhando por cima, como se fosse superior. Dizia-se comunista. Apenas o apartamento onde ele morava estava avaliado em alguns milhões de reais. Na organização, a única pessoa que estava desempregada, pagava aluguel e tinha uma família enfrentando dificuldades era a de Gregório. Isso não reduzia sua dedicação ao trabalho revolucionário na construção da organização. Podia-se afirmar que era um dos mais dedicados, mesmo enfrentando constantes dificuldades materiais. A noite seguia iluminada pela lua. Nada do sono chegar. Fazia mais de um ano que ele estava desempregado, pensava. Nunca havia recebido uma manifestação de solidariedade da organização, que seguia publicando documentos bem elaborados e inelegíveis para a maioria da população com textos rebuscados e eruditos, inclusive muitos militantes não entendiam o que estava escrito. Ele analisou que a organização não conseguia falar para fora. Nem mesmo para dentro agia, mostrando ser apenas um aglomerado de intelectuais, que se satisfaziam com discussões prolongadas, textos letrados e discursos radicais. A maioria de seus membros possuía um elevado padrão de vida. Olhando a lua pela janela, Gregório pensava como iria pagar o aluguel. Atuava profissionalmente como um revolucionário, seus pensamentos, ações, textos e amizades sempre buscaram reforçar a busca de um novo tempo. Recordou-se quando descobriu que havia sido retirado da Comissão Política do Comitê Central. Levou o debate para dentro da estrutura de direção. O secretário geral, criador de gado nelore, sempre realizava as reuniões do Comitê Central em seu luxuoso apartamento, onde duas trabalhadoras domésticas preparavam as faustas refeições para os dirigentes, em que ele estava inserido. Gregório questionou por que ele havia sido removido do órgão de direção política, o proprietário do apartamento ficou nervoso, quando afirmou rispidamente que o comitê que decidiu. Porém, mais ninguém se manifestou. Ficando claro que foi uma decisão do dirigente proprietário do apartamento a exclusão. Isto terminou por causar o seu afastamento do grupo, que permaneceu como um coletivo diletante com discursos revolucionários. Saiu da organização, não saiu do combate, nem da trincheira. Continuou inserido nas lutas, e seguia desempregado, sofria boicotes de muitos dirigentes. Observou que prevalecia entre muitos ativistas uma enorme falsidade, grassando o oportunismo em torno de interesses pessoais e menores. Não tinha dúvidas. Este comportamento de muitos dirigentes das organizações pretensamente de esquerda havia sido determinante para que ocorresse a eleição do governo nazista que dirige o Brasil. – Como? Falou em voz alta, como se dialogasse com a lua que continuava sobre o parapeito da sacada. – Como se a própria organização não pratica a justiça? Muitos integrantes da sua organização não passam de demagogos. Nada além disso. Recordou uma viagem que fizeram para outro país. Foram várias pessoas de muitas organizações. O que chamava a atenção era o proprietário do apartamento e dirigente comunista esbanjar fazendo compras de forma acintosa, enquanto diversos que integraram a caravana fizeram a viagem com muita dificuldade. Foram pela importância em comemorar o centenário da Revolução de Outubro de 1917, na cidade de Moscou. Por que não havia saído antes deste grupo de oportunistas? Pensava. A noite não respondia, a lua seguia calada, as estrelas brilhavam e dançavam como fechos de luz estroboscópica no cosmo, em um salão de baile que cabia todas as pessoas. E lá seguia ele. Nada do sono se aproximar. Quanto mais pensava nas contradições que a vida lhe mostrava, mais alerta ficava. Não conseguiria dormir tão cedo. Cansou. Resolveu abrir o livro com a biografia de Saramago.

Folheou, não conseguiu se concentrar. Começou a lembrar do último livro que Saramago escreveu, A Viagem do Elefante. Assim tem sido a vida, o peso nas costas, as dores do tempo, a morosidade da burocracia estatal para atender os interesses dos mais necessitados, que terminam por viver abandonados e largados a própria sorte. Como a viagem do elefante Salomão, que seguiu com seu fiel cornaca, Subhro, na longa turnê até a Áustria. Saramago, ferino e mordaz, com suas características encantadoras. Um dos maiores autores de todos os tempos, renegado em sua terra, justamente por sua justeza e precisão literária, com criações infindáveis sobre a vida e o comportamento humano. Sim. A humanidade seguia cega, em sua jornada, misturada em meio as putrefações produzidas pela sociedade de consumo, egoísta e autofágica. Ninguém escapava de O ensaio sobre a cegueira, que arrastava todas as pessoas, com o crescimento do hedonismo e um individualismo ensurdecedor, o aumento da exploração dos mais ricos que alimentava a competição entre os pobres. A cegueira avança assustadoramente. Gregório imaginava a posição dos movimentos que não se uniam. Mesmo sendo a parte de quem não tinha atémn de sua força de trabalho e inteligência para vender, mulheres não se uniam aos homens, negros não aceitavam brancos e outros setores, como homossexuais e lésbicas não aceitavam construir ações com quem não fosse de seu grupo ou segmento. Era cada um formando seu grupo, partidos nasciam falando em nome da classe trabalhadora, sem conseguir unir ninguém. Faziam discursos, atuando somente em busca do protagonismo de suas posições e correntes. Isto tudo sem se atentarem que para milhões o único alimento era conseguido nas latas de lixo, que sustentava multidões de miseráveis, abandonados por quem se dizia de esquerda ou revolucionário, muitas vezes tratados de forma inferior aos detritos, que são reciclados, enquanto os condenados da terra se transformavam em restos da espécie humana, que se amontoam, cada vez mais, em guetos abandonados de pessoas esfomeadas, sem tetos, sem pátria, sem perspectivas. Uma intermitência da miséria, como a morte, que não poderia atravessar a fronteira. A polícia seguia fiscalizando para que não fosse descoberto outro horizonte, outro modo de viver, outros sonhos. Era proibido sair do que se propaga o sistema. As massas eram massas para os poderosos, mãos úteis que serviam para atender os interesses para a acumulação dos ricos. Eram lembradas em horas de votar, justificariam a farsa da democracia dos ricos que seguiam controlando tudo. Saramago havia saído da linha,rompeu com o sistema, com a gramática, com o poder. Saramago era inspiração por um novo olhar, quem sabe agora ele poderá dormir. Olha o céu, estrelado, a lua baixa calmamente, sem pressa.

Voltou para a cama, ficou rolando de um lado para o outro. Seguiu de olhos abertos mirando o teto do quarto. A penumbra da noite se confundia com a nesga do reflexo da luz da lua crescente que insistia em invadir o quarto. A história continuava. O mundo enfrentava o coronavírus, com milhares de pessoas morrendo em todos os continentes. Para não mudar o roteiro, os detentores das riquezas seguiam inventando mentiras, desafiando a verdade e invertendo os fatos. Em menos de dois meses aproximadamente 20 mil mortos, 400 mil infectados para uma pandemia que ainda não se tinha a cura. Nem havia sido descoberto uma vacina. Circulava a informação que a doença foi criada em laboratórios norte americanos e lavada para a China, onde primeiro se identificou o vírus. A terra de Mao Tse Tung impôs um ostensivo recolhimento e conseguiu controlar a contaminação, impondo a reclusão absoluta da população da cidade onde se identificou as contaminações. E agora, no Brasil, seguindo orientações do presidente nazista realizam-se carreatas em várias cidades. Motoristas em veículos de luxo, mostrando a bandeira nacional, realizam manifestação exigindo que a população não fique isolada e tudo funcione normalmente. O Brasil não pode parar é o slogan criado pela Secretaria de Comunicação da Presidência da República é a palavra de ordem do movimento, formado por magnatas, grandes empresários e gente inculta, que, mesmo com a orientação medica de que haverá milhares de mortes caso não se faça uma quarentena de toda a população assim podendo preservar a vida e combater a disseminação da contaminação do convid-19. A loucura toma conta das ruas, setores abastados, liderados por um nazista pedem o fim da quarentena. Afirmam que não importa se morrerão sete ou dez mil de pessoas, o que vale é preservar a economia, garantir o lucro de seus negócios. O presidente, verdadeiro nazista, vai a televisão defender que se volte à normalidade, mesmo com os cientistas, em todo o planeta, afirmando que as mortes seguirão de forma avassaladora. Especialmente entre os pobres, que não têm acesso ao saneamento, nem boa alimentação, nem higiene. Pastores brigam para reabrir suas igrejas, mesmo sabendo que onde ocorrer aglomerações o vírus se disseminará. Gregório, sozinho em sua cama, assombra-se.Como entender ter chegado a Presidência do Brasil um genocida. Lembra que o principal dirigente do país foi deputado federal por 28 anos. Sua trajetória começou quando tentou explodir uma bomba no quartel, onde servia como tenente. Foi expulso, conseguiu recorrer e acabou aposentado, após empatar uma votação no Superior Tribunal Militar. Ainda conseguiu uma promoção para capitão. Sempre atacou as mulheres, a quem considera seres inferiores, o mesmo que sempre falou de negros e homossexuais. Seu herói é um assassino, o único condenado pelos crimes da ditadura, Brilhante Ustra, o chefe da triste Operação Bandeirante, apelidada sadicamente pelos torturadores de Casa da Vovó. O nazista conseguiu, com o apoio de programas policiais, feito por jornalistas que babam sangue, desabrochar a maldade e a crueldade em muitas pessoas, que agora defendem que podem morrer alguns milhares para salvar a economia. Ao mesmo tempo, o governo destina bilhões aos bancos e empresas aéreas, enquanto oferece migalhas aos pobres. E há pobres que aplaudem. O discurso repete a acusação aos comunistas. Um pesadelo que parece nem ter começado, pensa Gregório. É um tempo estranho. As amizades se perderam, as pessoas vivem isoladas em celulares, desenvolvem uma prática niilista sem fim, voltadas para satisfazer seu hedonismo. Os nazistas conseguiram fazer isso, sem esforço. Eles mataram milhões entre 1937 e 1945, perderam a guerra para os comunistas soviéticos, que tiveram dezenas de milhões de mortos entre seus povos. A raça superior ariana foi derrotada, mas os negros, pobres, ciganos, palestinos, imigrantes, mulheres, homossexuais e os comunistas continuaram sofrendo a perseguição dos poderosos continuamente. Como explicar isso? Seguiu falando consigo, Gregório. A tecnologia aumentou a produtividade de uma forma surpreendente, enquanto a riqueza se concentrou mais nas mãos de poucos de maneira mais veloz. A mesma velocidade das novas comunicações, que leva as pessoas a solidão, ao desespero, a formação de multidões que sobrevivem com remédios controlados e indicados por médicos, verdadeiros vendedores e porta-vozes de laboratórios das multinacionais. A população cada vez mais dispersa, separada, pessoas separadas, sem conseguirem ter empatia ou alteridade vitais para a espécie humana. Mesmo sendo iguais em suas necessidades e capacidade de trabalho, vivendo graças a venda de sua energia manual ou intelectual. Ninguém escapa das consequências, todos, bichos e a fauna resistem. Mais destruição, mais desertos se formam, mais inundações ocorrem. Mais lágrimas são desperdiçadas, menos abraços, menos beijos, menos cuidado entre os seres vivos. O planeta, assim como Gregório, não consegue mais dormir. Os dias e noites se desencontram, se dispersam e se desesperam. A luz da aurora desponta por detrás da sacada, ele observa e se levanta. Lembra-se que tem uma carteira de cigarro em uma gaveta no armário da cozinha. Vai até lá, coloca água no fogo, prepara um café e coloca na xícara, pega um cigarro, dirige-se a varanda e acende o cigarro. Pensa no renascimento. Um novo tempo sem dor, onde a solidão será de paz, a morte, natural, no tempo certo, em que as traições estarão somente nos registros da história, um tempo que haverá de ser conquistado. Um novo dia começa a despontar no horizonte.