Pesquisa sobre os Evangélicos e a Política

 

Por Delana Corazza*

O mês de fevereiro marca o nascimento e a morte do grande padre revolucionário, o colombiano Camilo Torres Restrepo. A pesquisa Evangélicos, Trabalho de Base e a Política, do Instituto Tricontinental, organizou neste mês, junto a mais de 20 organizações populares e centros de pesquisa de toda América Latina, as Segundas Jornadas Continentales del Amor Eficaz, um espaço de diálogo, reflexão e debate sobre a memória, a luta, o pensamento e a ação de Camilo Torres, com o objetivo de promover um diálogo internacional de conhecimento e experiências diversas em torno do pensamento-ação de Camilo para recriá-los nos tempos em que vivemos.

Conversei com dois de seus organizadores que seguem na importante tarefa de manter Camilo Vivo: a colombiana Luz Ángela Rojas Barragán (LAR), integrante da equipe internacional do Congreso de Los Pueblos (Colômbia), trabalha com educação popular e em rádio comunitária, antropóloga e é mestra do Programa de Pós-graduação Interdesciplinar em Estudos Latino-Americanos PPG IELA (UNILA – Brasil); e o também colombiano Nicolás Armando Herrera Farfán (NAH), mestre em Psicologia Social Comunitária e estudante de doutorado em Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires (Argentina), pesquisador do IEALC–UBA e do Colectivo Frente Unido–Investigación Independiente. Ambos publicaram um livro de recente reedição em Cuba: Camilo Torres Restrepo. Polifonías del Amor Eficaz. A seguir, segue a entrevista.

Ainda temos uma visão limitada de toda a contribuição de Camilo Torres para as lutas por libertação na América Latina. Sua memória está muito vinculada à imagem mítica do padre guerrilheiro. Ainda que seja uma imagem muito importante para a esquerda latinoamericana, Camilo foi também um pesquisador-militante com um importante legado para a educação e lutas populares na Colômbia. Vocês poderiam falar mais sobre isso?

LAR: Nós, com a perspetiva de movimento popular onde Camilo Torres Restrepo (CTR) é nossa referência de luta, temos trabalhado para ir além de sua imagem mítica como você diz, sem condenar suas ações, já que fez parte de um contexto e foi sua resposta a uma violência operada por parte do Estado. Sua saída para a guerrilha foi não só uma expressão de seu compromisso, mas a única saída, conforme ele mesmo fala, reconhecendo que havia um poder que não permitiria as transformações de maneira pacífica, tendo como precedentes a perseguição a movimentos camponeses e o assassinato de líderes como Jorge Eliécer Gaitan.

Reconhecer o legado de CTR, conhecer sua trajetória de pensamento e sua forma de fazer política, foi uma descoberta fundamental no trabalho popular, dado que as formas organizativas que ele ajudou a construir com outros companheiros (como as Juntas de Ação Comunal ou organizações rurais) ainda têm expressão na atualidade. Assim como organizações religiosas que reconhecem CTR como um pensador; às vezes eu sinto que todos os caminhos conduzem a CTR, e quando a gente está no trabalho popular é possível fazer uma série de arqueologia de seu pensamento e ação, que foi silenciada pelo mito que, na verdade, foi mais uma ferramenta do Estado para que não reconhecessem seu legado e a importância de seu pensamento social. Acho potente quando você está no trabalho em alguma comunidade e escuta alguma pessoa mais velha falar que conheceu Camilo, que ele a ajudou, que estudou ou simplesmente que a escutou e como isso é um gás para seu compromisso.

Na atualidade, nós, como Congreso de los Pueblos, absorvemos do pensamento de CTR sua capacidade de articulação e construção de unidade, sendo este um princípio da nossa proposta política. Resgatamos aquela perspectiva de pesquisar, conhecer a realidade para pensar as transformações. Assim, sua proposta de Amor Eficaz é um desafio individual e coletivo de humanidade, que só é possível compreender com o estudo de CTR como pensador.

Acrescentaria que precisamos superar a estigmatização quando se fala de Camilo, e reconhecer, estudar e refletir as facetas do seu pensamento, além de superarmos a visão colonialista que às vezes nos impede de estudar nossos pensadores e pensadoras latino-americanos por achar que eles não formularam grandes dissertação ou teorias.

NAH: Camilo Torres é conhecido como o “padre guerrilheiro” porque ele era isso, e essa imagem fez dele uma lenda. Este é um fato incontestável.

Várias pessoas, como a educadora popular argentina Claudia Korol e o sociólogo belga François Houtart, apontaram que com esta imagem Camilo se tornou um mito de luta que tocou as almas de nossos povos. Entretanto, acredito que devemos ter cuidado com esta fórmula e pensar que os mitos ou símbolos não são unívocos e exigem uma hermenêutica.

Penso que, ao longo dos anos, o mito do “padre guerrilheiro” tem se tornado cada vez mais um fetiche, que exalta apenas uma parte (sua ação final) e faz dele o todo. O que é um fetiche se não é um ídolo feito por mãos humanas e o que é fetichismo se não está tomando parte pelo todo?

Isto tem duas consequências. A primeira é que este fetichismo mítico dá origem a apenas duas possibilidades: honrar e admirar ou rejeitar e odiar. Adoração ou blasfêmia. A segunda é que reduz Camilo à sua ação guerrilheira e perde de vista (obscurece, nega ou apaga) suas outras dimensões e contribuições; de uma vida de 37 anos, opta por manter 7 meses, sem sujeitá-lo à reflexão, à crítica ou à problematização. E isto acontece igualmente à direita e à esquerda.

Em meus anos de pesquisa sobre o Camilo, descobri que se redefinirmos o mito, teremos outro Camilo, mais lúcido, mais inquieto, mais brilhante, mais interessante, mais útil para nossas lutas atuais. Precisamos saber o que aconteceu nos 36 anos e 5 meses anteriores a sua decisão para entender seu processo radical, ou seja, por que ele tomou este caminho. Algumas respostas que normalmente são dadas a esta pergunta são: ele foi ingênuo; foi precipitado demais e não calculou os riscos; ficou frustrado e foi morrer como uma espécie de suicídio; foi coerente até o final. Todas são válidas e, de certa forma, podem ser combinadas entre si, o que seriam ainda mais válidas, pois nenhuma decisão é unilinear ou monocausal. No entanto, acho que faltam peças para explicar sua evolução.

Não se trata de ignorar sua condição de “sacerdote guerrilheiro”, mas de reposicioná-lo e recuperar suas outras dimensões. Assim, surge o mito-símbolo, que nos permite valorizá-lo como precursor ou pioneiro da Teologia da Libertação, da Pesquisa da Ação Participativa (Investigación Acción Participativa – IAP), do Socialismo Raizal e da política de libertação. O mito-símbolo nos permite vislumbrar em sua experiência a mistura de profeta (em termos teológicos e sociológicos) e intelectual orgânico integral (nas palavras de Antonio Gramsci).

Como mito-símbolo, Camilo emerge como um teólogo comprometido, um educador de alfabetização, um extensionista crítico, um pensador situado e anti-colonial ou descolonizante, e um político radical, que pode ser questionado e, ao mesmo tempo, criticado.

Eu não estou dizendo nada de novo. Aprendi isto com pensadores como Orlando Fals Borda, María Cristina Salazar, Eduardo Umaña Luna, Fernando Torres Millán, Enrique Dussel, Leonardo Boff, Frei Betto, Eitan Ginzberg, Michael Löwy, Isabel Rauber, Hernán Ouviña ou Miguel Mazzeo.

Em conclusão, penso que se tirarmos Camilo do mito-fetiche, de ser apenas um estandarte, e o re-situarmos como um símbolo mítico, então ele poderá dialogar com o que Ernst Bloch chamou de “corrente quente do marxismo”, ou o que Michael Löwy chama de “marxismo romântico”. Camilo pode sentar-se à mesa com Antonio Gramsci, Rosa Luxemburgo e Walter Benjamin, e deste lado do mundo com José Martí, José Carlos Mariátegui e María Cano.

Vocês poderiam trazer algumas experiências concretas das ações de Camilo para além da guerrilha? Em quais espaços ele atuou? Quais foram suas principais contribuições teóricas e como ele conseguiu, de fato, ser um intelectual orgânico?

LAR: Vejamos algumas das muitas atividades que Camilo Torres realizou: ele foi sempre um homem com muita capacidade e carisma, o que lhe permitiu ter acesso a diferentes círculos sociais e projetos onde foi bem recebido.

Durante seu tempo de estudante na Bélgica, criou, junto com outros jovens, a ECISE (Equipo Colombiano de Investigación Socioeconómica), uma equipe interdisciplinar de colombianos no estrangeiro que refletiu sobre a realidade do país.

Em 1960 fez parte da equipe de acadêmicos que fundou a primeira faculdade de Sociologia na Colômbia, da Universidade Nacional da Colômbia, onde também foi professor e criou e participou do Movimiento Univesitario y Profesional de Promoción de la Comunidad (MUNIPROC), para muitos considerado uma experiência precursora da IAP. Desta experiência, surgiu a criação das Juntas de Acción Comunal, que foram pensadas como uma possibilidade de descentralizar e dar capacidade de ação às comunidades dos bairros. Um exemplo disto foi em Tunjuelito, um bairro de classe trabalhadora em uma das zonas empobrecidas da capital, onde Camilo Torres e os seus alunos realizaram diferentes investigações e ações organizativas.

Camilo Torres, com todo o seu trabalho urbano, foi um pioneiro da sociologia urbana na América Latina, e os seus estudos permitem-nos compreender o problema urbano tanto estatisticamente como em termos do impacto da economia na cultura.

Camilo também fez parte do comitê técnico da reforma agrária, que por sua vez, pertenceu ao Instituto Colombiano de Reforma Agrária (INCORA), onde se caracterizou pelas suas críticas à instituição por ser ineficiente com as exigências do campo colombiano. Esta experiência foi posteriormente traduzida na proposta da Unidad de Acción Rural de Yopal (UARY), que foi inaugurada em 1964, e também procurou reforçar o trabalho camponês nas planícies colombianas.

Fez também parte do Instituto de Administração Social da Escola Superior de Administração Pública (ESAP), um espaço concebido para a formação, investigação e administração pública.

Em suma, Camilo Torres teve muitas experiências de ação concreta, investigação e organização política, que se refletiram em artigos, comunicações, entrevistas e na sua pesquisa, mas que, devido à pressão dos setores conservadores da época e à sua morte, permanecem inacabadas.

As contribuições acadêmicas de Camilo Torres foram na sociologia urbana, que à sua maneira refletiu e se articulou em espaços para a participação dos estudantes universitários e das comunidades. Nesta mesma perspectiva estava sempre buscando uma sociologia aplicada à criação de políticas públicas.

A nível político, das muitas contribuições que fez, destacaria a sua reflexão sobre organização, mas não como um fim em si mesmo ou como base do seu protagonismo, mas em uma participação organizada que permitiria às comunidades ter a capacidade de agir, como uma ação eficaz para melhorar as suas condições sociais. Sua estratégia de comunicação foram as cartas aos setores da população e a revista semanal Frente Unido, que se caracterizavam por serem assertivas, contundentes e concretas, sobretudo com capacidade para falar com distintos argumentos para os diferentes setores sociais.

Sobre a espiritualidade, Camilo pensou no que seria uma das muitas bases da Teologia da Libertação, o conceito de Amor Eficaz, a sua prática social, mas também a sua forma de pensar sobre o papel da igreja e da religião, sendo a síntese da nossa forma latinoamericana de fé. Camilo foi um dos primeiros não só a enunciá-la, mas também a viver na prática, viabilizando a articulação entre marxismo e religião.

Quanto a saber se Camilo era um intelectual orgânico, nos termos de Gramsci, defendo que sim, porque embora vindo de uma elite, não era funcional ao sistema como os intelectuais tradicionais, que também é um ponto que enfatizamos. Camilo não se reconhecia como um intelectual que conduzia as massas, pelo contrário, sempre pensou que os setores populares tinham que compreender a necessidade de melhorar as suas condições e transformar a sociedade a partir do conhecimento e de um princípio ético; isto corresponde à abordagem de Gramsci, que falava de um bloco intelectual-moral que tornaria politicamente possível o progresso intelectual das massas e não apenas de alguns grupos intelectuais, como diz no volume IV dos Cadernos do Cárcere.

NAH: Em seu curto e intenso processo de vida, Camilo se convenceu da relação inseparável entre teoria e prática, práxis. No seminário, quando estava treinando para se tornar padre, buscou a ação teórica (fundou o Círculo de Estudos Sociais) e a ação prática (desenvolveu um apostolado nos bairros da classe trabalhadora). Em Lovaina (Bélgica), como estudante de ciências sociais, aprendeu teorias sociológicas e os rudimentos do marxismo, e compartilhou com os mineiros de carvão de Liège, teve relações com os sindicatos cristãos e visitou os sacerdotes operários da Bélgica, França e Espanha; também formou equipes universitárias de “quadros técnicos” para transformar a realidade social (dentro de quadros liberais e funcionalistas, não-revolucionários, como disse Luz Angela).

Ao retornar à Colômbia em 1959, ele multiplicou os laços entre teoria e prática. Como “técnico” ele assessorou as principais políticas sociais do governo. No INCORA, já mencionado por Luz Angela, acompanhou e promoveu cursos com estudantes, camponeses, trabalhadores e moradores do bairro. No MUNIPROC, também já mencionado, trabalhou intensamente na organização popular do subúrbio de Tunjuelito em Bogotá, e promoveu em seus cursos de Sociologia Urbana e Metodologia de Pesquisa que o trabalho dos estudantes deveria se concentrar na resolução de problemas comunitários. Tudo isso foi acompanhado por sua atividade sacerdotal.

Finalmente, entre 1964 e 1965, Camilo desenvolveu suas duas maiores ousadias da práxis: primeiro o UARY, já mencionado, onde ele pensava que era uma experiência de prefiguração de um projeto democrático comunitário, um novo tipo de governo a partir das bases populares e camponesas, e depois a Frente Popular Unida (FUP), como uma grande organização plebéia e multisetorial de esquerda, que buscava a unidade na diversidade, o protagonismo coletivo e o poder popular.

Camilo sempre abraçou a práxis, e tomou a sociologia como uma ferramenta para entender e transformar a realidade. A teoria não poderia ser algo para especialistas ou para o flerte intelectual, e a prática não poderia ser simplesmente um desperdício de energia ou um impulso epitelial. Na verdade, acredito que este é o núcleo que lhe permite assumir o marxismo; ou seja, que sua abordagem lenta e progressiva do marxismo é dada por sua fundação: a práxis.

Assim, em sua vida, o cristianismo e o marxismo são articulados sem contradições; ele entendeu que o primado da realidade permitia – e exigia – uni-los, mas sem declarações bombásticas ou fraseologia ideológica. Sua práxis combina teologia e materialismo histórico, o que lhe permite descobrir Deus no Povo e compreender a divindade da vida popular, e ao mesmo tempo lidar com a questão sagrada das revoluções profanas, ou a questão profana das lutas populares sagradas.

Neste processo, vejo Camilo como articulando dois papéis ou funções dinâmicas: a do intelectual orgânico integral, no sentido de Antonio Gramsci, e a do profeta, no sentido teológico e sociológico. Além disso, acredito que Camilo é um intelectual orgânico integral porque é um profeta, e é um profeta porque é um intelectual orgânico integral, pois através do ensino, da pesquisa, da ação profética, da liderança política e da luta armada, ele cumpre as funções de organização da economia, da hegemonia, da coerção, do paradigma e da espiritualidade.

A articulação “Profeta intelectual orgânico integral” é evidente em suas principais contribuições: sua visão comunalista e o Amor Efetivo como categoria integradora.

O sociólogo colombiano Orlando Fals Borda, um dos fundadores da pesquisa-ação participativa, precursor do pensamento crítico e um dos mais importantes pensadores na América Latina, deixou um legado fundamental sobre como fazer ciência a partir do nosso chão latino-americano. Qual a influência de Camilo nas obras e ações de Fals Borda?

LAR: Acreditamos que a relação entre Camilo Torres e Fals Borda começa com a sua própria amizade e na capacidade de trabalhar em equipe. Nestes tempos de competição intelectual e capitalismo acadêmico, é importante resgatar essa perspectiva de trabalho coletivo, de respeito e complementaridade.

Ambos se influenciaram mutuamente, primeiro por terem se tornado desconfortáveis e indisciplinados pelas epistemes eurocêntricas que os educaram. Fals Borda, formado nos Estados Unidos, e Camilo, na Europa, chegaram à Colômbia, que os acolheu com as portas abertas por serem jovens que faziam parte de uma elite do país e chegavam com diplomas internacionais, sendo assim, foram recebidos em espaços acadêmicos e de elaboração de políticas públicas. O que as elites não esperavam era que começassem a falar de prática, do povo e da organização como princípio da sua investigação, ou seja, que não só diagnosticassem, mas também quisessem transformar essas realidades.

Esse primeiro trecho do caminho conjunto mostrou a necessidade do que mais tarde Fals Borda chamaria de uma ciência própria, capaz de compreender as realidades do contexto latino-americano e colombiano, ou também, diria Camilo, quando falava de uma sociologia latino-americana. Assim, perceberam que os sapatos da Europa e dos Estados Unidos não lhes permitiam seguir o caminho, que tinham de caminhar com os pés no chão para se reconectarem com uma perspectiva própria que ainda não sabiam nomear.

Após a morte de Camilo, depois de viver a repressão de perto, quando ele e sua esposa, outra grande pensadora, Maria Cristina Salazar, foram injustamente presos, Fals Borda teve alguns anos que lhe permitiram refinar seu trabalho, mas também reconhecer que o que havia sido caminhado tinha que ser purificado, e chegou outra etapa onde Fals Borda começou a tecer, resgatando o trabalho de sua esposa, Maria Cristina Salazar. Ele continuou tecendo, resgatando também a influência de Camilo, tentando entender o papel de sua vida e do seu  trabalho como uma das muitas inspirações, aspectos que são expressos em algumas ideias desenvolvidas abaixo:

  1. O papel de Camilo Torres, como tantos outros, como agentes de mudança social na Colômbia, que subvertem a ordem ao representar anti-valores e sendo expressões anti-elites, onde questionam as coordenadas espaciais e temporais das tradições sociais. Isso é discutido em seu livro La Subversión en Colombia: El cambio social en la historia [Subversão na Colômbia: Mudança Social na História], que foi republicado em 2008.
  2. O sentipensar de Fals Borda, embora seja um conceito que surge de seu trabalho Historia doble de la costa, e de sua experiência com pescadores em San Martin de Loba, vem da noção de Amor Eficaz de Camilo. Ambas as definições, a seu modo, buscam uma conexão real entre sentir, pensar e fazer e ajudam a superar as contradições na fé cristã e o fazer entre ciência e sentimento.
  3. Podemos dizer que o trabalho inicial com Camilo tem um valor importante em toda a criação da IAP que pode ser vista em textos como Por la praxis: el problema de cómo investigar la realidad para transformarla, especialmente na natureza participativa da ação, pois embora a pesquisa-ação já tivesse como conceito alguns desenvolvimentos na Europa, é o tempero da participação que a torna decisiva, e é lá que as experiências de trabalho com Camilo em conselhos de ação comunitária em organizações rurais, até na própria universidade, nos permitem entender esta participação como o potencial da autonomia dos setores populares.
  4. E, no final, com o socialismo Raizal, que busca integrar a práxis e as propostas de mudança que, como as de Camilo, buscavam alternativas para reconstruir uma sociedade em crise, sendo um pensamento radical que queria entender as raízes de seu povo e sua cultura, e uma perspectiva organizacional para a ação política.

NAH: Acredito que existe uma relação inseparável entre Camilo Torres e Orlando Fals Borda, porque eles expressam o mesmo horizonte. Camilo não pode ser compreendido sem as contribuições de Fals Borda e Fals Borda não pode ser explicado sem a experiência pioneira de Camilo. Seus alunos usaram uma metáfora: eles se pareciam com Castor e Pollux, os gêmeos mitológicos, mas eu acho que, até certo ponto, eles são como uma espécie de Marx e Engels, já que cada um tem suas próprias especificidades e, ao mesmo tempo, eles constroem um Corpus complexo. Há alguns anos, venho trabalhando em suas sintonias teológicas, sociológicas e políticas, pois tenho encontrado pistas nos próprios escritos de Fals Borda, lendo nas entrelinhas, “arqueologicamente”.

No início eu pensava que era uma simples deferência, um gesto de grande amizade, mas ao ler manuscritos, arquivos inéditos e palestras de Camilo, ou ao ouvir entrevistas com várias pessoas, comecei a entender que Fals Borda tinha notado isso muito cedo.

No entanto, acredito que a origem não está em Fals Borda, mas em María Cristina Salazar, a primeira doutora em sociologia da história da Colômbia, que foi amiga íntima da esposa de Camilo e, mais tarde, conforme Luz Angela mencionou, esposa de Fals Borda. Ela foi a primeira a defender Camilo contra os ataques do Cardeal e depois ela foi a primeira a propor um projeto de pesquisa para reunir o trabalho de Camilo e analisá-lo. Não estou dizendo que Fals Borda não teve suas intuições ou convicções, mas penso que o caminho dos “esclarecimentos” foi facilitado pelas contribuições e reflexões de María Cristina. Ela foi uma pioneira e infelizmente está esquecida. Ela deve ser resgatada do esquecimento.

Agora, no que diz respeito a Fals Borda, em diálogo com que Luz Angela já apresentou, penso que há evidências em suas obras que mostram a influência de Camilo Torres, e ele avança pelo menos quatro reivindicações:

1) Reivindicação histórica. Este é um esforço para explicar o que Camilo fez à luz da história e da tradição rebelde colombiana. Fals Borda recupera quatro elementos: (1) Camilo é um subversivo moral (ou ético) que se rebela contra uma ordem social injusta para estabelecer uma nova ordem (utópica); (2) Camilo é um modelo anti-elite, ou seja, alguém que trai sua classe de origem e coloca seu prestígio e conhecimento à disposição das maiorias populares. O jovem Marx chamou isso de “disponibilidade eletiva”; (3) Camilo é um campeão, promotor e defensor do comunalismo, de uma política que parte do próprio coração das comunidades organizadas, que propõe um novo tipo de poder: o poder popular, que é uma espécie de tecelagem de poderes comunitários locais; (4) Camilo é um prefigurador de uma nova era histórica, pois ele recupera o horizonte socialista, mas o recria com elementos de inspiração evangélica e análise sociológica situada; ele propõe assim uma “utopia pluralista” ou um “ecumenismo político” que Fals Borda chamou de Neosocialismo ou “Socialismo Raizal”. Estes elementos estão presentes em La subversión en Colombia (1967) e Las revoluciones inconclusas en América Latina, 1810-1968 (1968).

2) Reivindicação pedagógica e científica. Fals Borda reivindica as ações pioneiras de Camilo como educador revolucionário, sociólogo crítico e radical, e expoente de uma ciência rebelde e subversiva que mais tarde daria origem à IAP. Basicamente, ele insiste em três contribuições fundamentais: (1) telesis, ou seja, o entendimento de que a ciência não pode ser feita sem propósito, “ciência por causa da ciência”, como dizem, mas que é necessário entender e assumir que a ciência deve ser feita para resolver as necessidades das maiorias, e isto requer levar a sério as palavras dessas maiorias; (2) phronesis, um conceito retirado da Ética Nicomacheana de Aristóteles que alude ao bom julgamento ou a critérios justos na tomada de decisões; e (3) praxis, de origem marxista, que alude à relação inquebrável entre teoria e prática para a transformação das condições materiais da existência. Estes elementos estão presentes em Ciencia propia y colonialismo intelectual (1970), Por ahí es la cosa (1971), Causa popular, Ciencia popular (1972), e múltiplas conferências, discursos e artigos, mesmo nos últimos anos de sua vida.

3) Reivindicação comunal-camponesa. No balanço do fracasso da política cooperativa camponesa e com vistas a uma ação futura comprometida com o campesinato, Fals Borda propôs retomar as ideias dos Núcleos de Acción Rural (NAR) e as ideias das Unidades de Acción Rural (UAR) propostas pela Lei de Reforma Agrária, como forma de garantir o protagonismo camponês na luta pela posse da terra. Foi precisamente Camilo quem foi pioneiro na proposta das UARs quando, como Diretor-Reitor do Instituto de Administração Social da Escola Superior de Administração Pública (IAS-ESAP), propôs a Unidade de Ação Rural de Yopal (UARY), como já mencionado, como uma experiência regional em um novo tipo de governança camponesa com uma perspectiva comunitária. Isto aparece em El reformismo por dentro (1972).

4) Exigência política. Em sua elaboração do Socialismo Raizal, Fals Borda insistiu que Camilo tinha sido um pioneiro e um catalisador fundamental. Sua proposta política ecumênica e pluralista, de baixo para cima e da periferia para o centro, é o modelo que Fals Borda aponta como uma referência obrigatória para sua própria experiência. Às vezes ele o nomeia explicitamente, às vezes implicitamente. Isto se encontra principalmente em El socialismo que queremos: Un nuevo pacto social y político en Colombia (1982), Conocimiento y poder popular (1986), Acción y espacio. Autonomías en la Nueva República (2000), ¿Por qué el socialismo ahora: retos para la izquierda democrática (2003) e Hacia el socialismo raizal y otros escritos (2007).

Acredito que com o que tenho dito, posso ilustrar a influência que Camilo teve na ação de Fals Borda e, ao mesmo tempo, a importância de Fals Borda para entender as perspectivas de Camilo.

Por fim, nós, do Instituto Tricontinental, temos nos desafiado a fazer uma nova ciência, articulados de forma orgânica aos movimentos sociais, não só no sentido de dar suporte teórico para as lutas, mas, principalmente, de entender que os militantes nos territórios, fazendo política, são nossos principais aliados para construirmos conhecimento com todo rigor científico necessário. Inspirados em Fals Borda e Camilo Torres, compreendemos que subverter a ordem é tarefa científica dos pesquisadores de nosso Instituto junto aos militantes-pesquisadores que estão conosco nos territórios de luta. É a partir dessa subversão, entendida como ação concreta, que criamos nossos códigos de interpretação da realidade para compor, radicalmente, a nossa narrativa, construída pelo olhar do nosso povo, de sua história, sua trajetória e, principalmente, de sua participação na luta contra as opressões vividas historicamente. Eu gostaria de ouvir de vocês, a partir da prática política de vocês, como manter Camilo vivo?

LAR: Para esta resposta gostaria de fazer uma pequena adaptação de uma frase inicial de um belo livro escrito por Omar Cabezas sobre a revolução sandinista chamado “Canção de amor para os homens”.

“Eu tinha cerca de 18 anos quando, de repente, Camilo apareceu muito cedo pela manhã, com o sol, pintado numa parede da universidade. Camilo Vive”.

Esta adaptação é para dizer que Camilo está vivo em uma prática política, acadêmica, espiritual que nos transcende muitas vezes e que nos une. Assim, se procurarmos na história das ciências sociais na Colômbia, encontramos Camilo; na religião também, na política novamente, e este é um fenômeno muito poderoso porque quando o regime o mata, esconde o seu corpo e torna um estigma falar de Camilo no meio de uma política de guerra, torna-o mais mítico, mais lembrado. Assim mesmo Camilo é também recordado por outro aspecto, que é o fato de acreditar no conhecimento coletivo, em fazer e ser uma escola, de modo que as iniciativas que apoiava eram coletivas e davam poder às comunidades, o que lhes permitia sobreviver, ser uma boa colheita e uma semente que se espalhava muito para além da Colômbia e da América Latina.

Foi assim que em décadas Camilo foi estudado, resgatado e tem inspirado artistas, intelectuais, religiosos e políticos. Durante muitos anos vimos como a comemoração da morte de Camilo sempre nos trouxe um fio de pessoas e experiências, mas também vimos como pouco a pouco uma geração de pensadores nos deixou e com eles a memória mais vívida de Camilo.

Na atualidade, o nosso maior desafio é atualizá-lo, sintonizá-lo com os nossos tempos e torná-lo uma referência no que pensamos e fazemos, sem fazer dele um ídolo, ou algo inatingível; pelo contrário, trazê-lo à mesa para construir conosco. O desafio para manter Camilo é reconhecer que temos um papel na história; isto foi falado por Umaña Luna, advogado, humanista, amigo e membro da família de Camilo, que em um 15 de Fevereiro (dia que Camilo tombou), quando estávamos indo para o auditório para uma conferência sobre Camilo Torres, ele falou para um grupo de estudantes: “agora é a vez de vocês”.

Espaços como Las Jornadas del Amor Eficaz, onde vêm pessoas de todos os países e origens, de diversos interesses, de vários espaços de investigação e divulgação do pensamento de Camilo Torres, possibilita falar sobre muitas outras pessoas e ações que mantém Camilo vivo, de falar sobre o IAP, sobre fé e política, de falar sobre paz, sobre muitos temas que nem mesmo Camilo teria sabido que poderiam ser uma fonte de inspiração.

NAH: Gostaria de responder a esta pergunta referindo-me a três canções.

A primeira é chamada “Va Camilo por Chucurí”, do colombiano Edson Velandia. Lá ele diz que encontra Camilo, que já está morto, que lhe pede para trazê-lo de volta à vida, mas depois ele reflete e diz: “Melhor não, não se preocupe, eu me trarei de volta à vida sozinho”.

Portanto, a ideia que tenho é que Camilo não precisa de nós para mantê-lo vivo, porque esse é o seu trabalho. É o trabalho dos mártires, dos heróis, dos profetas, dos referentes. Quando seu sangue toca a terra, ele germina, e quando seu corpo é enterrado, ele floresce. O mito da ressurreição ou de “voltarei e serei milhões” nos diz que nenhuma derrota é eterna e que há sempre uma oportunidade de recuperar forças. É a mensagem de Jesus de Nazaré, de Tupac Amaru, de Evita Perón, de Che Guevara.

O poder instituído que ordenou a morte de Camilo não poderia impedi-lo de ressuscitar sozinho e aparecer em todo o continente como um povo: indígena, camponês, negro, sindicalista, estudante, intelectual orgânico, anti-elite, político desorganizado e cronopio do futuro. O mesmo poder que ordenou e consentiu com o desaparecimento de seu corpo, o “túmulo vazio”, não pôde impedir seu espírito de vagar pelas lutas populares e seu espectro de assombrar mesmo em sonhos.

A segunda canção é “Cruz de luz”, do uruguaio Daniel Viglietti. Ela contém duas frases icônicas: “Onde Camilo caiu, nasceu uma cruz, não de madeira, mas de luz” e “Camilo Torres morre para viver”.

O corpo de Camilo caiu no chão, mas seu exemplo, compromisso, misticismo, coerência e radicalismo espiritual e ético-político vivem em cada um de nós. A semente deve morrer para que a árvore germine e dê frutos, e acredito que no caso de Camilo sua luz continua iluminando as lutas e as buscas, mesmo que não saibamos bem do que se trata.

A última canção é “Una canción necesaria”, do cubano Vicente Feliú. Este trabalho, dedicado ao Che, talvez me permita responder mais precisamente à questão de como manter vivo Camilo. Nas palavras do cantor, é uma questão de evitar levantá-lo sobre um altar, construir lendas para ele, torná-lo inatingível, repetir suas frases de memória (e sem contexto). Devemos tentar manter a modéstia, o amor, a fé e o respeito por sua práxis, mas estar conscientes do profundo dever de defendê-lo de ser um Deus.

 

*Delana Corazza é pesquisadora do Instituto Tricontinental, Cientista Social (PUC-SP) e mestre em Arquitetura e Urbanismo (USP).