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Artigos

Entre a utopia e a distopia: reflexões sobre a modernidade e a pandemia pelo prisma de uma ficção feminista

A atualidade do romance “O Conto da Aia”, e seu apelo neste momento em que enfrentamos uma crise mundial do sistema apegada à questão sanitária e da vida humana, vai além somente das questões “óbvias” das pragas do apocalipse que tantas culturas projetam.

 

Por Pamela Oliveira

 

Era meados da década de 80. A luta feminista estava marcada pelo eixo do “pessoal é político”, colocando as relações do âmbito privado em evidência, e pela reivindicação das particularidades das opressões para as diferentes mulheres — em questões raciais, étnicas, geracionais, classistas e geográficas -, quando Margaret Atwood escreveu o romance “O Conto da Aia”. Mesmo com um enredo apocalíptico pouco original, com a larga literatura existente sobre o fim do mundo, por que o romance de Atwood foi adaptado a uma série televisiva em 2017 e, então, premiada e aclamada pelo público de tal modo que obteve novos desdobramentos, com uma história “posterior” ao romance, como se o discípulo tivesse superado o mestre?

 

A reprodução da vida n’O conto da Aia

Ainda que exagerada por seu caráter distópico (ambiente social imaginado cujas condições de vida são de extrema opressão) — e há controvérsias sobre o exagero — e incompleta em sua crítica às questões do nó entre gênero, classe e raça, a história fantasiosa encontra diversas associações com a realidade, na normalidade da operação do capitalismo. Mas em particular, ela pode, pela imaginação, mexer com as utopias da esquerda, que voltam a ser revisitadas neste cenário pandêmico e agonizante.

Eu avalio que sucesso de “The Handmaid’s Tale”, então, se dá primeiro porque Atwood, justo por sua perspectiva feminista, centraliza o enredo de sua distopia no trabalho reprodutivo, principalmente o geracional: na capacidade exclusiva das mulheres de gestar — ou não — vidas. No romance, com abortos espontâneos e infertilidade humana em altos índices, a reprodução de novas vidas saudáveis é vista como um commoditie mais valioso (valor de troca) do que qualquer outro.

Por seu valor prático e imediato (valor de uso), uma vida humana passa a ser produzida de forma ordenada e compulsória, sendo necessário recorrer a um largo uso de violência e disciplinamento dos corpos.

A proeza só é possível, como vai ficando evidente no enredo, sob a justificativa da falência da modernidade que, com seus valores pessoais específicos do progresso (e da luxúria), produzia a extinção da humanidade por um longo período, resultando em escalas planetárias de lixos tóxicos, doenças e esterilidade, e encaminhava para a destruição do mundo e de todas as vidas por completo.

Mas, ao meu ver, há outro brilhantismo neste romance. A atualidade do romance de Atwood, e seu apelo neste momento em que enfrentamos uma crise mundial do sistema apegada à questão sanitária e da vida humana, vai além somente das questões “óbvias” das pragas do apocalipse que tantas culturas projetam.

 

Tecnologia! Ou morte?

O enredo cruel é perspicaz quando demonstra o caráter político e social do trabalho reprodutivo e a importância deste trabalho para a economia mundial.

Muito longe de um “tópico secundário” e desnecessário aos debates que tecem a luta contra o capital, ou mesmo da ridicularização das práticas sociais que centralizam o bem-viver e os modos de vida com valores comunitários e vinculados à natureza, Atwood demonstra que, quando falamos sobre superar um sistema que produz a desigualdade e a morte, é imprescindível considerar a importância do trabalho reprodutivo.

No romance adaptado às telas, é permitido que vejamos como a esquerda, em sua gama de tendências e em sua dificuldade unificadora, percebe tarde demais como a reprodução da vida, seja pelo ato de parir ou de cuidar das pessoas e demais seres, e o controle/liberdade dos corpos femininos, são centrais para as economias: ao feminismo, era relegado um local escanteado para os debates anti-sistêmicos.

Enquanto, por outro lado, a vitoriosa direita conservadora, guiada por valores tradicionais cristãos, constrói organizadamente um golpe de estado, sob o discurso de retorno aos valores patriarcais, da família e de um Deus punitivo e soberano para superar a toxidade do mundo, e consegue implementar a subjugação pela força e pelo consenso de todo o país. Um controle reprodutivo que será pilar para a continuidade da vida em um planeta que somente será lar para os merecedores, alinhados ou coagidos pela doutrina cristã.

 

Os lastros de realidade nas distopias

Que o enredo pode ser facilmente associado à uma ministra que implementa o casamento com mulheres virgens (“eu escolhi esperar”) como política pública, e com governos de Estados-nação que se valoram pela escritura cristã ortodoxa ou pela teleologia da prosperidade, isto sabemos.

Facilmente é possível associar a punição às mulheres na série televisiva aos projetos de lei que desejam tornar ainda mais impiedosa a criminalização do aborto (como o PL5069), que legitimam o estupro pelos maridos, ou aqueles que, pela educação não libertadora, desejam impor discursos baseados na fé cristã (escola sem partido) e disciplinar as crianças.

Mas, para além destes paralelos imediatos, vejo que é justamente por centralizar a reprodução para o desenvolvimento do enredo, que Atwood nos permite fazer deduções mais relevantes para a construção de novas utopias e para a compreensão da importância da luta feminista como uma luta de toda a esquerda, não somente das mulheres.

No caso do livro — ou da série –, norteados pelo conservadorismo religioso e patriarcal, a superação da “tóxica” modernidade é feita a partir de um culto ao passado bíblico. E, muitas vezes, é por esta interpretação hegemônica sobre as tradições e experiências ancestrais de reprodução, que a esquerda nega algumas potências antigas, relevantes para o pós-capitalismo.

Em Gilead, nome do estado-nação criado pelos “Filhos de Jacó”, é necessário sovar todo pão, usar absorventes menstruais de pano, a nova lei destrói a moda, implementa a morte por apedrejamento, proíbe os testes de gravidez (mas o circula por contrabando) e acompanha o ciclo menstrual apenas pelos efeitos do corpo, recorrendo sempre a técnicas medicinais menos aparelhadas, a um parto que podemos relacionar ao “humanizado”.

Tudo isso, permitindo, é claro, que as metralhadoras sejam extremamente bem desenvolvidas e as técnicas de vigilância sejam de última geração. Para que funcione, as mudanças são implementações na cultura. Por consenso ou coerção, a nova lei visa estabelecer os padrões de comportamento adequados às necessidades do sistema: irá hegemonizar e enraizar novos (ou antigos) valores, tornando cada vez mais comum e fácil a disciplina dos corpos.

 

Tradição versus Modernidade: uma oposição (in)oportuna

Mas estes discursos e práticas, como estou sugerindo, estão longe de ser “neutros” ou igualmente balanceados com as ações de resistência. Quando a direita contrapõe o velho com o novo, é sob uma ótica específica. E seja na atuação ou na vida real, me parece que a esquerda esteve olhando com as mesmas lentes do sistema dominante a respeito da modernidade e do passado, quando nos debruçamos sobre os trabalhos, a política, a ciência, a economia, etc.

E qual seria este olhar? Assimilamos uma discussão simplificada entre o “ultrapassado versus o promissor” e temos enxergado que negar aspectos da modernidade é negar tudo o que foi construído a partir do século das Luzes. Muitas vezes, a esquerda avalia as teóricas que fazem a crítica ao progresso e também à certa fixação com o trabalho fabril (ou produtivo), e as que discorrem sobre a importância do trabalho reprodutivo para a luta de classes, com desdém. Relegam este debate para algo que pode ser feito com menos urgência ou relevância.

É como se a resistência às tecnologias hegemônicas e aos valores que as permitem ser propagadas pela cultura fosse, tão logo, uma volta às técnicas rudimentares e aos modos de vida “des-iluminados”, “incivilizados” (sim, desta forma pejorativa): um culto à natureza animalesca, que é baixa, e que já a teríamos superado como humanos, superiores aos demais seres. Os vínculos, o cuidado, as relações com a natureza e os saberes ancestrais são comumente vistos como um atraso.

Mas, enquanto nos debatemos e nos congelamos pela falsa dicotomia entre progresso e atraso, quem realmente se beneficia deste discurso hegemonizado? A quem interessa uma conformação e a luta aliada entre esquerda e direita para combater quem aponta os saberes pré-capitalistas como potencialidades para superação do capitalismo? A quem serve, de fato, a cristalização de uma forma específica, positivista de ver o passado e de olhar para o futuro?

 

Feminismo gestando novas utopias

Como marxistas, nós atuamos e interpretamos a realidade imediata, é fato. Mas olhamos para um futuro que vai sendo gestado no tempo presente, e temos a responsabilidade de carregar de novos elementos, de atualizar as utopias sobre a sociedade pós-capitalista de que estamos falando, pois ela deve ser um modo de vida possível a todas as pessoas, segundo suas possibilidades e de acordo suas capacidades. Certo?

Quando a historiadora marxista Silvia Federici revisita estudos de Michel Foucalt sobre o controle dos corpos e recupera a caça às bruxas como evento histórico, político e social crucial para a privatização dos corpos femininos, ela nos dá uma chave importante para repensar nossas utopias.

Federici avalia como o controle da reprodução da vida (as terras e o alimento, as mulheres, os saberes médicos, o cuidado compartilhado na comunidade) e a conformação cultural do trabalho reprodutivo como “sem valor” (e sujo), foi uma forma de acumulação primitiva essencial para a consolidação do sistema produtivo capitalista, de seus valores burgueses e positivistas, e de suas formas econômicas.

Era necessário controlar a reprodução para controlar os trabalhadores, o exército de reserva e suas capacidades mentais e físicas de trabalho, junto a produzir a dicotomia entre público e privado, pago e não pago, escravizado e livre, produtivo e não-produtivo.

A partir daí a historiadora constrói suas reflexões, presentes em outros livros, apontando como precisamos olhar para o pré-capitalismo e seus modos de vida diversos no mundo para enxergar “o ponto zero” da revolução.

Mas as reflexões da crítica à modernidade vem sendo gestadas também a fundo em outros referenciais teóricos, não originalmente feministas. Michel Lowy, ecossocialista, abre vias paralelas quando, nas possibilidades da emancipação humana, enxerga uma necessidade de superação justamente de tais valores iluministas e positivistas que hegemonizaram o pensamento e a cultura após a consolidação do modo capitalista de produção.

David Harvey, geógrafo marxista, discorre longas literaturas sobre a impossibilidade material de seguirmos sustentando os modos de vida perpetrados pelo capital – hoje financeiro, urbano e do espetáculo -, e prenuncia seu fim com os pés fincados nos textos marxianos. Harvey nos incomoda para que compreendamos a urgência de revisitarmos os valores humanos, as relações com o mundo e com a natureza (não) humana.

Enquanto isso, segue-se uma taxação de “ecletismo” entre as tendências de esquerda, ou mesmo um desdém com as sabedorias antigas e com aquilo que não foi validado pelo positivismo, que somente reforçam a pertinente dualidade entre tradicional e moderno, que vive a nos convidar a escolher sempre entre uma ou outra, e a nos lastimar enquanto classe trabalhadora.

Com suas formas romantizadas de observar as práticas humanas e pejorativas de observar outros seres e seus modos de vida, apenas afastamos um debate iminente, que se demonstra mais urgente quando a rapidez do espraiamento de um vírus pelo mundo globalizado e predatório nos põe a refletir o “ponto zero” de toda utopia de esquerda: a vida (e a morte), e a necessidade de que exista um viver digno.

 

Um tiro no pé esquerdo

No contexto da pandemia, a Antropóloga Els Lagrou escreveu sobre a vingança do povo morcego. Ela resgata sabedorias dos ameríndios Huni Kuin sobre os fundamentos do adoecimento humano, que critica a práticas predatórias e agressivas humanas com os biomas e os demais seres. A partir desta lente, Lagrou apresenta a análise de que os morcegos portadores do vírus infectaram a humanidade como uma vingança. Seria uma lei de retorno da natureza: Nisun.

Quando li seu artigo, uns dos mais impactantes para mim sobre o tema da Covid-19, logo me lembrei das diversas vezes em que a desconfiança ou a chacota tomaram o ambiente quando eu ou outra pessoa falou em saberes ancestrais, “misticismos”, ou culturas de povos que resistem à colonização de seus saberes. Coisa de mulher, coisa de hippie, coisa de louco, charlatanismo, viagem. Muitos nomes e muitos risos. E descartam debater sobre o que é pré-capitalista e pode ser reintegrado aos nossos viveres.

Curiosamente, no tempo em que eu paria estas reflexões, numa ligação por vídeo com uma amiga, ela comentou, sem mais nem menos, sobre a importância em nos enxergarmos, primeiro, também como seres da natureza, não alijados ou inimigos dela. Nisun?

Eu entendo que sim. Mas a modernidade nos ensinou, em casa ou na escola positivista, seu modo de avaliar o mundo. E tornou pejorativo as práticas holísticas desenvolvidas por milênios, que permitiram a existência da Terra em estado saudável e as quais, quando visitamos sítios arqueológicos, levamos a mão à boca entreaberta e nos chocamos com o nível tecnológico existente naquelas sociedades.

A modernidade chamou de ciência o que servia ao seu progresso e jogou a água suja, a bacia, o bebê e até a pessoa que lavava o bebê, porque ela construía um saber por outros caminhos, no lixo do ultrapassado.

Colonizou aquilo que conferia autonomia aos povos e diversidade cultural: as práticas medicinais e curativas, as aproximações vinculadas com os elementos, as energias, a alimentação, as ervas e os demais seres, e varreu-o debaixo do tapete do desdém, da superioridade tecnocrata e da deslegitimação. E aquilo que vinha vinculado ao feminino foi varrido junto.

Tal dualidade, que descarta uma diversidade larga de saberes por um julgamento do que “já foi superado”, e que coloca estes saberes no abrigo opressor e conservador do patriarcado (como ocorre no romance), nos faz cavar nossa própria vala, atirar em nosso pé esquerdo. Vamos fazendo a propaganda pertinente ao capital.

Afinal, o avanço do progresso e a modernidade não se consolidaram alijados de um propósito capitalista, e tampouco os saberes antigos precisam estar associados às práticas patriarcais ou rudimentares, visto os saberes que acumulamos e as lutas que travamos nos últimos séculos.

Então, me questiono, quando praguejamos o controle dos meios de produção, iremos tomá-los para continuar “o progresso” capitalista e carregar com isto as mesmas contradições de sua estrutura de poder?

 

Positivar a reprodução social

Em Teses sobre Feuerbach, Karl Marx nos elucidou sobre como o presente e o futuro estão sendo construídos no processo da práxis e este é nosso fio condutor. Há uma multiplicidade de caminhos que, muito diferente da linearidade racional, masculinizada e tecnocrática imposta pelos valores iluministas, podem ser cunhados da união de diversas perspectivas, inclusive pelo resgate e a valorização de saberes reprodutivos historicamente oprimidos, negativados e subjugados pelos sistemas econômicos.

Afinal, antes que fosse nomeado trabalho reprodutivo este labor que não se resume só ao gestar, estamos falando de toda a reprodução da vida, essencial para quaisquer sistemas econômicos. E, por isso, quando construímos nossos debates, não podemos perder de vista que estamos falando sobre permitir a vida em toda sua capacidade.

Se lutamos e travamos ações de solidariedade em meio à pandemia, em âmbitos alimentares ou culturais, é porque precisamos garantir a vida da classe trabalhadora no agora e no futuro.

Então, trata-se de encontrar uma forma, superando o discurso do progresso capitalista, para que todos os seres possam ter atendidas as necessidades de alimentação, educação, saúde, alento e o acolhimento, sob os valores da solidariedade, respeitando os comportamentos dos ciclos da terra e dos seres, as inter-relações com os diversos sistemas e biomas, modos de vida e limites do próprio planeta.

Não podemos assumir para a esquerda o discurso colonizador do capitalismo, que assume a vida humana — e masculina branca— como superiora e ditadora de um modo único do viver. Um discurso meramente produtivo.

Outra vez, é tal ímpeto da produtividade que, no contato e na prática predatória com os biomas e os animais, origina-se um vírus cruel ao viver humano. E este é um convite pertinente para que passemos a analisar como estes valores racionais estão limitando a potencialidade de nossas utopias e de nossos corpos, compreendidos como máquinas, alienados da natureza.

No conto sobre as aias, foi a direita quem soube se aproveitar, por um discurso totalitário, do que seriam as práticas válidas do passado, usurpando os saberes historicamente femininos e a sapiência biológica da gestação. Repaginado pela bíblia, sua finalidade era o controle sobre os corpos das mulheres e a manutenção do poder masculino das frações de classe dominante, mesmo que, para isso, apresentasse-se avessa à certos apelos da modernidade. Mas nós sabemos que é a utopia, não a distopia, que deve nos apontar um caminho de lutas. Porque não resistimos e criamos ações de solidariedade com a perspectiva da derrota e da capitulação a estes valores necróticos.

Enquanto isso, vemos como o totalitarismo, em um novo retorno e baixo a novas tecnologias, se avizinha nas diversas partes do mundo, e está apontando soluções ao futuro do sistema, à moda do horror e da morte.

E nós, como podemos aprender com o passado (distante), se nosso centralismo é a vida?