Enquanto o ministro Mandetta alerta para o pior, Bolsonaro chama pandemia de “gripezinha”.


Por Luiz Felipe Albuquerque*

O primeiro caso do coronavírus no Brasil aconteceu no dia 26 de fevereiro, cerca de dois meses depois do surto ter se iniciado na China e um mês após a Itália. O primeiro caso de transmissão doméstico do vírus aconteceu dez dias após sua chegada no país. Desde então, o avanço do Covid-19 no território brasileiro segue num ritmo alto e constante, semelhante à Itália. Até o final do mês de março, o Brasil já tinha registrado 5.717 casos e contabilizado 201 mortes, segundo dados do Ministério da Saúde. Foram mais de 300 novos casos por dia nas últimas semanas, porém, esse número saltou para mais de mil casos em 24 horas no último dia do mês. A pandemia já chegou a todos os estados brasileiros. Se comparado o primeiro mês do coronavírus entre Brasil e Itália, a situação do país sul-americano é ainda pior que o país europeu, considerado o caso mais grave da pandemia até então. Foram registrados 2.555 infectados no Brasil nos primeiros 30 dias, ante 1.694 na Itália no mesmo espaço de tempo. Em relação às mortes, foram 59 no Brasil e 29 na Itália neste mesmo período.

Desde o início, o Ministério da Saúde vem tomando medidas razoáveis para tentar conter o avanço da doença, seguindo a maior parte das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). A política adotada no Brasil não seguiu nenhum dos dois extremos apresentados em alguns países, como os casos de alguns países asiáticos, como a Coreia do Sul, que se utilizou de medidas de prevenções drásticas desde o início e conseguiu impedir que a pandemia se espalhasse no país, ou a Inglaterra, que inicialmente ignorou a situação ao partir do pressuposto de que essa pandemia seria passageira e, portanto, todos iriam pegar, criando uma imunidade em toda a população num segundo momento. No caso brasileiro, o ministro da Saúde, Luiz Mandetta, adotou uma política gradual, que pressupõe avançar nas medidas de contenção conforme o avanço do Covid-19.

Porém, contraditoriamente, desde o início o presidente Jair Bolsonaro adota a linha de menosprezar os possíveis efeitos da pandemia, se mostrando mais preocupado com os efeitos na economia e o desgaste que isso poderia provocar no seu governo do que com as políticas sanitárias e o impacto na população. “Se afundar a economia, acaba qualquer governo, acaba o meu governo. É uma luta de poder. Há por parte de alguns, não estou dizendo todos, irresponsabilidade nisso aí”, disse Bolsonaro no início do processo, afirmando que há uma “histeria” por trás da reação ao coronavírus. Para o presidente, os efeitos da paralisação da economia por causa do vírus podem ser mais fortes que as consequências relacionadas à saúde pública. Em sua leitura, lideranças políticas estariam interessadas na bancarrota da economia como forma de desestabilizar seu governo.

Em paralelo ao posicionamento do presidente, a maior parte dos governos estaduais e municipais, sobretudo dos grandes centros urbanos, tanto de direita quanto de esquerda, adotaram medidas preventivas, seguindo a linha do Ministério da Saúde e iniciando um processo gradual de paralisação das atividades e isolamento das pessoas.

A insistência da defesa de que tudo seria um grande exagero, fez com que Bolsonaro ficasse isolado entre as instituições e entre as diferentes correntes ideológicas, incluindo boa parte da direita. O ápice da crise de institucionalidade e perda de legitimidade se deu no dia das manifestações do dia 15 de março, convocada por apoiadores do presidente. Contrariando as recomendações do próprio ministério da Saúde, manifestantes saíram às ruas para protestarem contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF), que supostamente estariam atrapalhando o desempenho do presidente. Após desincentivar as mobilizações dias antes, Bolsonaro surpreendeu a todos ao também participar da manifestação, mesmo após ter recém-chegado dos EUA e com suspeita de estar com coronavírus. Ao todo, ao menos 23 pessoas que participaram da viagem com o presidente foram contaminadas pelo Covid-19.

Segundo estudos do Centro para Modelagem Matemática de Doenças Infecciosas (CMMID) da London School of Tropical Medicina, do Reino Unido, o número oficial de infectados no Brasil pode representar entre 7% a 19% da realidade, já que seríamos um dos países com maior defasagem nas notificações dos contagiados. O estudo não considera os assintomáticos, ou seja, aqueles infectados com Covid-19 que não apresentam os sintomas.

Medidas econômicas

Em reposta à gravidade do impacto econômico que a chegada do coronavírus representa ao país, o governo brasileiro não apenas apresentou um pacote de medidas que não altera em nada o paradigma econômico que vinha sendo adotado até então, como se aproveitou da situação para forçar a agilidade da aprovação de políticas de austeridade já pretendidas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, como a privatização da Eletrobras (empresa de energia elétrica brasileira) e medidas que desobrigariam estados e municípios a investirem um valor mínimo nos gastos da saúde e educação.

Quanto ao pacote emergencial, a medida prevê utilizar cerca de R$ 750 bilhões em três meses, e se baseia em grande parte num remanejamento orçamentário, não injetando novos recursos para as demandas que se apresentarão neste novo cenário. Já para o mercado financeiro, o Banco Central do Brasil já injetou R$ 1,5 trilhões para dar maior liquidez aos bancos.

No que se refere aos estímulos à demanda e proteção aos trabalhadores mais vulneráveis, Bolsonaro foi mais uma vez impiedoso. Chegou a apresentar uma Medida Provisória que levava em consideração apenas os interesses patronais. Dentre os pontos, destaca-se a possibilidade do empregador suspender o salário do trabalhador por 4 meses sem nenhuma contrapartida de remuneração, diminuir em até 25% o salário sem redução da jornada, imposição do teletrabalho sem negociação e suspensão da fiscalização do trabalho. A receptividade foi tão negativa nos mais diversos setores da sociedade que obrigou o governo a recuar, excluindo apenas a suspensão do salário por 4 meses.

Porém, uma nova medida foi apresentada no final dessa semana e que traz novas regras sobre redução de jornadas e salários e suspensão do contrato de trabalho específicas para este período. Os empregadores poderão suspender os contratos e abolir o pagamento dos vencimentos ou reduzir os salários dos funcionários entre 25%, 50% ou 70%, com igual redução da carga horária. Dessa forma, caso o empresário corte o salário em 50%, o governo entraria com 50% do seguro-desemprego. Em contrapartida foi prometido uma outra Medida Provisória que prevê o pagamento de R$ 200,00 a trabalhadores de baixa renda que sejam informais, autônomos e desempregados, mas que não avançou. Essa quantia representa apenas 20% do valor do salário mínimo no país. Entretanto, graças à mobilização da oposição, o Congresso Nacional aprovou uma renda básica que destina R$ 600 à população que ganha até três salários mínimos, mas previu a possibilidade de pagar até dois benefícios por família e foi garantido o pagamento de R$ 1.200 às famílias sustentadas por mulheres. A medida foi sancionada por Bolsonaro três dias depois de ter sido aprovada no Senado, porém ainda não há data para o início do pagamento do benefício. Vale ressaltar que após o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016, foram aplicadas diversas medidas de desmonte dos direitos trabalhistas, o que fez com que o número de trabalhadores informais chegasse a 40%.

A estratégia Bolsonaro

Após imensas críticas de diferentes setores da sociedade ao discurso desdenhoso de Bolsonaro frente a situação e consequentemente o desgaste que vinha sofrendo, pensava-se na possibilidade do presidente rever seu posicionamento e se adequar a imensa maioria dos líderes mundiais. No entanto, em seu primeiro pronunciamento oficial em cadeia nacional de rádio e TV no último dia 24 de março, Bolsonaro não recuou e dobrou a aposta. Voltou a se referir ao coronavírus como “gripezinha”, disse que o isolamento é exagero, criticou os gestores que optaram por fechar escolas e culpou a imprensa pelo que chama de histeria.

Bolsonaro apenas se isolou ainda mais, sendo novamente criticado por diversas forças sociais, incluindo antigos aliados, os presidentes do Senado e da Câmara Federal, meios de comunicação, economistas liberais e governadores de direita.

Segundo reportagens da imprensa, o discurso foi preparado com a participação de poucas pessoas e em segredo, e foi uma sugestão do grupo ideológico do Palácio do Planalto, formado pelo chamado “gabinete do ódio”, responsáveis pelas redes sociais do presidente. A estratégia seria para polarizar o debate no esforço de municiar o eleitorado bolsonarista a voltar a sair em defesa do governo, que estava coagido nas últimas semanas. Essa foi a primeira vez desde sua posse que a oposição ao governo nas redes sociais foi mais forte do que as mensagens em defesa do presidente.

A avaliação é de que, diante do clima de animosidade, era hora de orientar a milícia digital apontando inimigos, como os veículos de imprensa e os governos estaduais, mobilizando os eleitores fieis a responderem às críticas contra a gestão federal.

Outro ponto tem que ser levado em consideração na estratégia bolsonarista. Caso as medidas tomadas pelos governos estaduais deem certo e sejam capazes de inibir um avanço exponencial da pandemia, Bolsonaro validaria seu discurso de que o coronavírus não passou de uma gripezinha e que tudo isso fazia parte do plano de desestabilização de seu governo por parte de seus adversários, acusando-os de terem adotado providências desnecessárias e destruidoras da atividade econômica. Por outro lado, caso se confirme uma situação mais drástica, com um provável desaquecimento da atividade econômica e, consequentemente, com o aumento do desemprego, esse resultado não seria de sua responsabilidade, mas dos governos estaduais que adotaram medidas de contenção. Com quase metade da população na informalidade, os ânimos na sociedade tendem a se agravar caso a situação não seja acompanhada de políticas públicas que deem suporte à população mais vulnerável.

A ofensiva bolsonarista parece já surtir efeito. No último dia 26 de março, o governo federal lançou a campanha publicitária para defender a tese do isolamento vertical, com o slogan “O Brasil Não Pode Parar”. Com isso, foram organizados atos em diversas partes do país, mas a grande maioria contou apenas com a participação de setores da classe média e foram muito reduzidos.

Ao tomar tal postura, Bolsonaro propõe guerra não ao coronavírus, mas aos demais poderes institucionais, se colocando como o antissistema que está à beira de sofrer um golpe da classe política tradicional. Ele tenta se colocar como defensor dos interesses dos milhões de micros, pequenos e médios empresários que constituem sua base eleitoral e dos trabalhadores mais precarizados, que se dependesse do governo, estará jogado à própria sorte. O que lhe importa é avançar na consolidação de seu poder, e das frações burguesas que representa, sobre o Estado brasileiro. Pretende derrotar, ao mesmo tempo, a oposição de esquerda e a direita tradicional, e vê a luta contra o coronavírus como uma janela de oportunidade.

Evidentemente, Bolsonaro não está sozinho nesta empreitada. Ele adota o mesmo discurso do presidente dos EUA, Donald Trump, e segue a linha de parte da burguesia interna brasileira, que não admite ter prejuízos momentâneos, mesmo que isso signifique milhares de mortes. A síntese desse pensamento foi a entrevista concedida pelo empresário brasileiro Junior Durski, dono de uma rede de restaurante, ao dizer que o “Brasil não pode parar por 5 ou 7 mil mortes”.

Quanto às Forças Armadas (FFAA), o cenário ainda parece nebuloso. No mesmo dia do pronunciamento do presidente em cadeia nacional, o comandante do Exército, Edson Leal Pujol, seguiu na linha contrária ao do presidente. Em pronunciamento divulgado nas redes sociais, o general pediu a união de todos os brasileiros frente a pandemia, e que esse seria um momento de “cuidado” e “prevenção”. Em nenhum momento ele citou o nome do presidente e as pautas defendidas por ele, o que demonstrou um certo distanciamento das FFAA em relação a Bolsonao. Porém, há rumores de que integrantes das Forças Armadas no núcleo do governo já demonstram certa preocupação com um possível caos generalizado caso a quarentena se estenda até o final de abril, aumentando o número de roubos, furtos e saques no país.

Desafios para o campo popular

Dentro deste contexto, virou consenso na classe política, com exceção dos aliados mais fiéis, da incapacidade de Bolsonaro permanecer à frente da Presidência da República. É provável que o Brasil esteja vivendo o auge de sua crise pós o golpe de 2016, e que não se resume apenas à crise sanitária e econômica, mas sobretudo política. Cada vez mais as forças fascistas que integram o governo, junto ao pensamento conservador e reacionário de parte da elite brasileira, vem mostrando sua intencionalidade, colocando seus interesses políticos e de classe acima de qualquer outra questão.

Diante da gravidade desse quadro, muitas saídas começam a sondar as diferentes esferas públicas da sociedade, como a possibilidade de afastamento ou impeachment do presidente. É inevitável e legítimo que a palavra de ordem “Fora Bolsonaro” ganhe corpo na sociedade, tanto entre a classe política da direita tradicional, constantemente deslegitimada pelo Bolsonaro, quanto por parcela da esquerda. Embora não falte motivos jurídicos e políticos para essas saídas, algumas questões mais de fundo apontam os limites para essas soluções apresentadas:

1. Interdição do Bolsonaro: o processo de afastamento do cargo, além de desgastar o presidente, indica ser uma forma de evitar o impeachment, um procedimento lento e de difícil previsão. Seria uma forma de encurtar o caminho para afastar Bolsonaro da presidência, evitando toda o trâmite que envolve o julgamento no Congresso Nacional, ainda mais nos tempos que vivemos.

2. Impeachment: já existem alguns pedidos de impeachment em curso, porém estão sendo apresentados sem nenhuma alteração da correlação de forças na sociedade que permite impulsionar uma medida dessa magnitude de fora para dentro. O impeachment necessitaria passar por longo debate no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal, mas ambas as instituições estão parcialmente paralisadas pelo atual contexto.

Todavia, mais do que questões burocráticas, a limitação dessas iniciativas é de natureza política. Um suposto afastamento do Bolsonaro, seja por impeachment ou interdição, colocaria seu vice, Hamilton Mourão, na cadeira de presidente. A presença de Mourão, um general da reserva, apenas reforçaria a presença militar no governo e nas decisões, e daria ainda mais chance à direita de se reorganizar e avançar nas suas políticas de austeridade e desmonte do Estado brasileiro. Ou seja, essas soluções apresentadas não acumulam para a retomada da democracia e muito menos para um projeto popular de país.

Neste momento, entra a velha máxima: o que fazer? A legítima angústia que assola a todos nós não pode se resumir em respostas imediatas e impulsivas, dadas no calor do momento. A política exige frieza e a capacidade de se olhar mais adiante.

O momento é de acumular forças, discutir com os coletivos, ter a paciência do prolongado trabalho de base. Construir e estimular o espírito de solidariedade entre as pessoas e observar a movimentação da sociedade, ao mesmo tempo que denunciamos as atrocidades do atual governo e propomos saídas concretas para a crise. Ao que tudo indica, as condições de desgaste estão sendo criadas e sua popularidade está em queda, tamanha barbaridade com que vem tratando a atual crise sanitária.

É preciso construir as condições objetivas para que, não apenas Bolsonaro seja expurgado do poder, mas toda a classe que compactua com seu ideário de sociedade, ao mesmo tempo que tenhamos força real de construir uma alternativa ao que está colocado. Apesar de trágico, a pandemia abriu uma janela histórica que deixou o modelo hegemônico do neoliberalismo nu. Agora, temos que ter a perspicácia de aprender com os ensinamentos que a história nos oferece para que essa janela novamente não se feche.

*Luiz Felipe Albuquerque é jornalista e responsável pela comunicação do escritório do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social no Brasil.