Resenha: Compreendendo as coordenadas históricas da modernização chinesa
A atual conjuntura histórica é caracterizada por múltiplas crises e conflagrações, desde a guerra fratricida entre a Rússia e a Ucrânia, à resistência da África francófona contra o neocolonialismo, às lutas travadas por milhões de pessoas para acessar necessidades básicas como alimentação e moradia, mesmo em países supostamente ricos como os Estados Unidos. Na epistemologia de Lu Xinyu – professora da Escola de Comunicação da Universidade Normal do Leste da China – essa conjuntura é moldada pela exploração contínua de caminhos para a modernização, que começou na segunda metade do século XIX e se estendeu pelo longo século XX. Embora seu livro Neoliberalismo ou Neocoletivização da China Rural anuncie a China como objeto central de estudo, a verdadeira preocupação de Lu é o caminho da modernização do mundo inteiro, e particularmente do Sul Global.1
Na perspectiva de Lu, a questão mais importante no caminho para a modernização é a questão agrária: como a agricultura pode se modernizar, mantendo e desenvolvendo a estrutura coletiva das áreas rurais, e o que deve acontecer com o campesinato nos processos de industrialização e urbanização? A partir da segunda metade do século XIX, três caminhos distintos para a modernização podem ser identificados. Primeiro, nos EUA, a Guerra Civil (1861–1865) deslocou a população rural à força do campo e os lançou nas cidades – grande parte composta por descendentes de africanos escravizados levados para as Américas. Isso contribuiu para uma vasta desigualdade e lançou as bases para movimentos sociais como o Movimento dos Direitos Civis das décadas de 1950 e 1960, e os protestos Black Lives Matter de 2013. Segundo, países como Alemanha e Japão não podiam facilmente se livrar de sua população rural como os EUA fizeram, então eles escolheram a expansão militar, o que levou a duas Guerras Mundiais e uma Guerra Fria, esta última ainda em andamento em muitos aspectos. O terceiro caminho para a modernização é o da revolução comunista pioneira da União Soviética e da aliança operário-camponesa, que acabou sendo sufocada pela Guerra Fria, mas continua em espírito na forma da Revolução Chinesa, que ela inspirou. Os debates em torno dessas tipologias de modernização ajudam a estabelecer uma coordenada histórica para compreender o passado e traçar um caminho para o futuro.
Ideologia e luta de classes na China
Há uma piada recorrente na China de que o país, internacionalmente, é “odiado tanto pela esquerda quanto pela direita”. A direita despreza a China por ser comunista, enquanto a esquerda a despreza por ser capitalista. Uma explicação simples para essa contradição é o fato de que a luta de classes na China nunca terminou. No âmbito da ideologia e da cultura, um ponto focal dessa luta é a interpretação do significado da Revolução Chinesa para o campesinato. A revolução, liderada pelo Partido Comunista da China (PCCh), realmente libertou os camponeses ou impediu sua progressão natural rumo à modernização e urbanização dentro de uma sociedade civil orientada para o mercado? O declínio das áreas rurais é a força motriz original da revolução ou é seu pecado original? Como sugere o título do livro, o futuro do campo chinês deve ser definido pelo neoliberalismo ou por um renascimento do coletivismo no contexto da modernização?
O corpo principal do livro de Lu se origina de um debate de oito anos (2003–2011) entre ela e Qin Hui, um intelectual e historiador liberal chinês que atualmente é professor adjunto no Departamento de Governo e Administração Pública da Universidade Chinesa de Hong Kong. Para leitores fora da China, é importante notar que o debate Lu–Qin não foi meramente um exercício intelectual ocorrendo na torre de marfim da academia. Em vez disso, esse debate reflete um discurso público mais amplo sobre a direção do processo de reforma e abertura da China. O debate Lu–Qin ocorreu nos primeiros dez anos do século XXI, um período crítico para a China e o PCCh. Em 2022, a Qiushi, revista oficial do Comitê Central do PCCh, publicou um artigo resumindo a década desde o 18º Congresso Nacional do PCCh em 2012. Essa era foi descrita como o momento de “conter uma maré furiosa de varrer tudo e impedir que um prédio desabasse”.2 Em sentido figurado, isso significava rapidamente reverter uma crise iminente e sustentar um país cambaleante.
Desde a década de 1980, Qin tem realizado inúmeras análises sobre formações históricas e sociais em seus escritos, comparando as estruturas sociais “despóticas” da área rural de Guanzhong, na província de Shaanxi, durante as dinastias Ming e Qing, à cidade-Estado “democrática” da antiga Atenas. Seu argumento principal é que a Revolução de Outubro foi retrógrada e produziu um governo soviético com características de despotismo oriental.3 O objetivo final desse argumento é desafiar a legitimidade do “império despótico” do PCCh.4 A representação idealizada de Qin Hui de uma bela cidade-Estado grega, descentralizada e desvinculada do dever de fornecer infraestrutura e serviços públicos, oculta o fato de que tais Estados dependiam do sangue, do suor e do trabalho não remunerado de escravos das minas de prata de Laurion. Essa mitologia é paralela à imagem neoliberal idealizada dos EUA e suas “casas grandes, picapes grandes e bifes grandes”, uma imagem popularmente usada por internautas chineses, que esconde um lado oculto do imperialismo e do racismo institucional.
Em 2013, Qin escreveu um artigo zombando do apelo de Xi Jinping para aprender com a experiência do colapso da União Soviética e os perigos do niilismo histórico.5 Os intelectuais liberais que Qin representava estavam confiantes de que a bandeira vermelha da China estava prestes a mudar de cor. Eles acreditavam genuinamente que reformas liberais, semelhantes às da União Soviética, eram o caminho que a China deveria seguir. Uma característica fundamental desse caminho era minar intelectual e ideologicamente a legitimidade da Revolução Chinesa e retratar o PCCh como um regime repressivo que sufoca a vitalidade socioeconômica e abre caminho para a servidão.
Para responder às afirmações de Qin, Lu conduziu uma pesquisa histórica completa, abrangendo a Eurásia e as Américas durante milhares de anos. Em seu livro, Lu acertadamente aponta que a entrada do sistema neoliberal na China, juntamente com o processo de reforma e abertura no final da década de 1970, transformou milhões de camponeses rurais em trabalhadores migrantes nas cidades. A visão neoliberal para as áreas rurais da China refletia suas propostas globais: a privatização da terra (para que pudesse ser tomada pelo grande capital) e a livre circulação de populações rurais (para que camponeses sem terra pudessem se tornar mão de obra barata nas cidades). A proposta provocativa de Qin de “conceder o direito de construir favelas aos pobres urbanos” é precisamente a direção política que Lu alerta veementemente que a China evite.6
Toda história é história contemporânea, e todo debate sobre história reflete a política contemporânea. Embora observadores estrangeiros frequentemente acreditem que a China seja uma mente coletiva, o debate registrado neste livro captura vividamente quão abertos e intensos podem ser os debates nos círculos acadêmicos e intelectuais chineses e quão intimamente eles estão relacionados às disputas políticas do mundo real.
A marcha do Sul Global rumo à modernização
A imagem de “ferro e fogo” aparece repetidamente no livro de Lu. Em sua visão, a grande luta pelo futuro da modernização humana deve, em última análise, ter como objetivo unir os sete bilhões de pessoas do Sul Global para embarcar em um caminho conjunto de modernização. Essa grande luta envolverá tanto “ferro” (desenvolvimento econômico) quanto “fogo” (revolução armada). Na última década, Lu tem se concentrado cada vez mais em questões relacionadas à revitalização e reorganização rural na China. O capítulo final de seu livro discute seu trabalho de campo, desde o povoado de Tangyue, na província de Guizhou, há muito empobrecido e quase vazio, até a associação camponesa abrangente da comunidade de Pu-Han, na província de Shaanxi, que abrange 43 povoados, e o experimento de cooperativa financeira na aldeia de Haotang, na província de Henan.
Lu não se limita a realizar pesquisas acadêmicas, mas busca ativamente caminhos viáveis para a reorganização rural na China. Ela se preocupa particularmente com duas questões econômicas práticas. Primeiro, quais mecanismos podem garantir que o desenvolvimento econômico rural se torne um processo autossustentável, impulsionado por motivações e recursos endógenos? Segundo, como garantir a sobrevivência das economias coletivas no contexto de uma economia de mercado? Portanto, é fácil para acadêmicos do Sul Global entenderem por que ela sempre inicia suas visitas a aldeias rurais perguntando sobre a situação das economias coletivas locais. Esse foco se alinha com sua pesquisa teórica sobre as questões fundiárias pré-revolucionárias da Rússia e as reformas agrárias de Stolypin. Apesar de sua formação em língua e literatura chinesas e em estética da literatura e da arte, os estudos aprofundados de Lu sobre a questão agrária são verdadeiramente notáveis.
Lu argumenta que os debates ideológicos internos da China refletem uma luta internacional e uma batalha existencial contra a ideologia hegemônica ocidental. A importância dessa batalha tornou-se ainda mais evidente quando o presidente Xi Jinping afirmou que “os países do Sul Global marchando juntos rumo à modernização são monumentais na história mundial e sem precedentes na civilização humana”.7 O Sul Global, como a parte “rural” do sistema capitalista mundial, compartilha um destino e um caminho intimamente ligados às áreas rurais da China. Assim como as plantações de soja expulsam os agricultores sem terra no Brasil, os produtores de soja da China também são esmagados pelo grande capital internacional – ambos são vítimas do sistema capitalista mundial.
Nos últimos anos, Lu tem se envolvido em iniciativas como o Fórum Acadêmico do Sul Global e no estabelecimento de bases de pesquisa em áreas rurais como Rongjiang, na província de Guizhou, Ganzhou, na província de Jiangxi, e Xiong’an, na província de Hebei. Essas iniciativas visam comunicar as histórias de erradicação da pobreza e revitalização rural da China ao mundo, em geral, e ao Sul Global, em particular. Elas buscam contar a história das lutas na China rural de modo mais vívido e multidimensional, levando em conta os debates complexos e ricos que ocorrem no país. Nesse contexto, Neoliberalismo ou neocoletivismo na China Rural também é um convite a pesquisadores da China e do Sul Global para trocar experiências e se envolver em um debate mais aprofundado sobre a questão agrária e o caminho para a modernização.
Notas
1Lu Xinyu, Neoliberalismo ou China Rural Neocoletiva (Palgrave Macmillan, 2024).
2Jiang Jinquan, “The Great Transformations of the Decade in the New Era” [Qiushi], 22 (2022).
3Nota do editor: O tropo do despotismo oriental deriva da obra de Karl August Wittfogel, historiador germano-americano marxista que se tornou anticomunista. Para mais informações, leia: Karl August Wittfogel, Oriental Despotism: A Comparative Study of Total Power (Yale University Press, 1957).
4Qin Hui, “Moving Away from the Imperial Regime” [走出帝制:从晚清到民国的历史回望] (Qunyan Press, 2015).
5Qin Hui, “Os últimos dias do Partido Comunista Soviético: ainda um verdadeiro “homem”” [苏共末日:尚有一人是“男儿”], The Economic Observer , 27 de março de 2013.
6Jiang Qian, “Professor Qin Hui da Universidade de Tsinghua propõe que Shenzhen assuma a liderança no estabelecimento de favelas” [清华大学教授秦晖建议深圳率先兴建贫民区], Southern Metropolis Daily [南方都市报], 14 de abril de 2008.
7Xi Jinping, “Combinando a grande força do Sul global para construir juntos uma comunidade com um futuro compartilhado para a humanidade”, Ministério das Relações Exteriores da República Popular da China, 24 de outubro de 2024, disponível em https://www.mfa.gov.cn/eng/xw/zyxw/202410/t20241024_11515589.html.