O povo indonésio inspira Taring Padi a criar
De Bandung a Yogyakarta, o coletivo Taring Padi transmite o espírito de Bandung com arte radical enraizada na herança artística da Indonésia. Tings Chak explora sua visão de cultura internacionalista e criatividade coletiva.

[Ouça “Check Your People” dos artistas de hip hop indonésios, Morgue Vanguard de Bandung e Doyz de Jacarta.]
Neste mês, há setenta anos, os líderes de 29 Estados africanos e asiáticos recém-independentes ou em vias de se tornarem independentes reuniram-se em Bandung, Indonésia, representando metade da população mundial. Tal como como o Projeto do Terceiro Mundo estava nascendo durante a Conferência Asiático-Africana de 1955, também nascia o espírito de uma cultura internacionalista. Marcando esse momento histórico, ocorreu a primeira exposição coletiva internacional de artistas indonésios, incluindo pinturas contemporâneas e tradicionais. Essa diversidade de estilos marcou o pluralismo do não alinhamento, tendo a cultura anti-imperialista como fio condutor. Em seu discurso de abertura da conferência, o presidente indonésio Sukarno falou sobre a persistente “linha vital do imperialismo”, que forma a base da unidade afro-asiática. “Nenhum povo pode se sentir livre enquanto parte de sua pátria não for livre. Assim como a paz, a liberdade é indivisível”, afirmou Sukarno. “Não existe meio-livre, assim como não existe meio-vivo”. Nosso dossiê deste mês, O espírito de Bandung, homenageia essa história ao mesmo tempo em que examina sua relevância hoje.
Para o aniversário de Bandung, conversamos com o coletivo artístico indonésio Taring Padi, que significa “a espiga da planta do arroz”, referindo-se ao grão espinhoso que causa coceira e desconforto. Alex Supartono, Setu Legi, Dodi Irwandi, Fitri DK, Bayu Widodo, Lidyja Trianadewi, S. Lilik e M. Ucup se juntaram a nós via Zoom, direto da cozinha de seu espaço coletivo, onde conversas, trocas, refeições e criações acontecem. Fundado em Yogyakarta em 1998, o Taring Padi nasceu das cinzas do regime da Nova Ordem de Suharto. Uma ditadura de 32 anos se seguiu ao golpe apoiado pela CIA que depôs Sukarno em 1965, e mais de um milhão de comunistas, incluindo trabalhadores culturais, e seus simpatizantes foram assassinados. A sociedade indonésia ainda é marcada por essa ferida aberta, que levou muitas das gerações mais jovens de artistas e ativistas à vida política e à luta para recuperar, lembrar e aprender com essa história brutal que desde então foi violentamente apagada.

Instalação Memedi Sawah/Espantalho de Taring Padi exibida na Bienal de Busan, Coreia do Sul, 2024.
M. Ucup, um dos fundadores do Taring Padi, relembra: “Aprendemos sobre 1965 com nossos pais, vizinhos e amigos, pois foi a experiência direta de cada indonésio. É um tema constante que reaparece em nosso trabalho de uma forma ou de outra”. Como militantes estudantis, alguns dos membros fundadores também se envolveram no movimento clandestino que acabou derrubando Suharto. Mas seu trabalho não estava concluído. “Entendíamos que a arte política ainda era necessária em nosso país”, disse Ucup. “O sistema ainda persistia, então a arte política precisava continuar, e declaramos a criação do Taring Padi”. Para eles, a queda de Suharto não era seu objetivo final. Segundo Alex Supartono, a prioridade era “promover e desenvolver ativamente práticas culturais verdadeiramente voltadas para o povo”. Esse compromisso com a cultura popular — ou kebudayaan rakyat — tem uma longa história nos movimentos culturais revolucionários do país.

Esquerda: Podho podho [“O mesmo”] (1999) de Taring Padi em um protesto na Indonésia pedindo que Suharto responda por seus crimes. Direita: a contracapa da edição de julho de 2002 do zine Terompet Rakyat (“Trompeta do Povo”) de Taring Padi. Diz: “Lawanlah / Anda seniman, pekerja seni, budayawan, penulis / yang mempunyai keinginan membantu rakyat / bergabunglah bersama kami!” [Resista / Você é um artista, trabalhador artístico, trabalhador cultural, escritor / que deseja ajudar o povo / junte-se a nós!].
O nome original do Taring Padi, Lembaga Budaya Kerakyatan Taring Padi [Instituto de Cultura Popular de Taring Padi], ecoa o legado do Lekra ou Lembaga Kebudayaan Rakyat [Instituto de Cultura Popular], uma frente cultural intimamente ligada ao Partido Comunista da Indonésia (PKI) que alcançou mais de 200 mil membros na época do genocídio de 1965. Nascido junto com a independência do país na Revolução de Agosto de 1945, o Lekra foi fundado devido à essencial “conexão entre a revolução e a cultura, uma consciência de que a revolução tem grande significado para a cultura e, ao mesmo tempo, a cultura tem grande significado para a Revolução de Agosto”. Foi assim que o Secretário-Geral, Joebaar Ajoeb, o descreveu no congresso nacional do Lekra em 1959.
Ao longo de seus quinze anos de existência, o Lekra não apenas mobilizou milhões, mas também desenvolveu práticas culturais enraizadas nas condições concretas e materiais do povo. De sua organização, surgiram novas formas expressivas e teorias artísticas — eles estavam, em essência, escrevendo a história da arte na tradição marxista. Um de seus princípios para orientar o trabalho dos artistas-militantes Era Turun ke bawah ou turba [“descer do alto” ou “descer até as massas”], que significava trabalhar, comer e dormir ao lado do povo. O poeta Lekra, Martin Aleida, compartilhou comigo como esse princípio permitia “intensificar sua imaginação e inspiração, aguçar seus sentimentos sobre o quão difícil é a vida do povo”. A conversa completa e a história do Lekra podem ser encontradas em nosso dossiê de 2020, O legado do Lekra: organizando a cultura revolucionária na Indonésia.

Um carnaval com faixas de Taring Padi relembrando quatro anos da Tragédia da Lama de Lapindo em Siring Barat, Porong, Sidoarjo, Java Oriental (2010).
No tópico que conecta Lekra a Taring Padi, Aleida escreveu :
A história se repete, e o poder de moldar essa repetição está agora nas mãos do Taring Padi. Pelas linhas que esculpem, fica claro que a arte visual não é uma arena inebriante de acrobacias estéticas, nem meramente um local de descanso na busca da satisfação individual… As linhas — e também as cores – devem indicar inequivocamente uma direção clara, apoiando as vítimas, em tempos de paz ou de conflito, notadamente camponeses e trabalhadores, as duas forças cruciais que impulsionam o progresso da civilização. Essa era uma convicção outrora orgulhosamente defendida por Lekra.
Semelhante ao Lekra, o conteúdo e a forma da obra de Taring Padi estão profundamente enraizados nas tradições folclóricas indonésias e no realismo socialista. O próprio logotipo do coletivo é um símbolo dessa síntese. A estrela vermelha, um ramo de arroz, uma roda dentada e uma corrente de metal são uma combinação de símbolos agrários locais e socialistas clássicos. Assim como seus bonecos de papelão [wayang kardus] que eles fazem para mobilizações se inspiram na tradição indonésia de fantoches de sombra, suas gravuras em xilogravura [cukil kayu] e pinturas murais ao ar livre são inspiradas na longa história das formas populares de comunicação javanesas. Em suas diversas mídias artísticas, autoridades corruptas, capitalistas gananciosos e generais violentos são retratados usando expressões populares satíricas. Usando uma linguagem visual familiar aos indonésios comuns, o que Mao Zedong teria chamado de “a linguagem viva do povo”, Taring Padi conta a história da resistência popular em seu próprio realismo socialista localizado. Expandindo o princípio estético soviético, o secretário-geral do Lekra, Joebaar Ajoeb, definiu o realismo socialista não como sendo “simplesmente realista”, mas sim aquilo que “dá esperança e direção”.

Esquerda: Rakyat Demokratik [Democracia Popular], de Taring Padi, foi criado em 1998, após a queda de Suharto. Foi incendiado em 1999 por um grupo de fundamentalistas islâmicos. Uma réplica foi produzida em 2021 e exibida na Documenta 15. Direita: Exposição da Documenta quinze. Almoço de despedida no Gudkitchen, onde cozinhamos comida indonésia.
Nos “Cinco Males da Cultura” formulados no manifesto de Taring Padi, o coletivo condena a “arte pela arte”, aquilo que afasta as pessoas do desenvolvimento da arte, e os artistas que exploram as lutas das pessoas para ganho pessoal. Em vez disso, sua prática insiste em criar arte com e para comunidades oprimidas para resistir a males sociais e políticos, como corrupção e violência militar, enquanto lutam por um futuro por meio de lutas pela reforma agrária e igualdade de gênero. A arte coletiva de Taring Padi, de mais de 27 anos, os trouxe aos holofotes internacionais, exemplificado por sua participação na Documenta quinze em Kassel, Alemanha. No entanto, essa atenção traz suas próprias contradições. “O mundo da arte pode ser muito sedutor, mas tentamos nos manter enraizados”, acrescentou Alex. “Estabelecemos algumas regras, por exemplo, não fazemos exposições em galerias comerciais. Vendemos nosso trabalho não reproduzível apenas para instituições com financiamento público”.
Para navegar por esses mundos, Alex disse: “A resposta é simplesmente continuar trabalhando com o coletivo, com as pessoas, com nossos companheiros”. Eles priorizam o trabalho com movimentos e comunidades locais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Brasil em 2023 e o coletivo aborígene australiano ProppaNow em 2024, além de manter sua kampung [comunidade] intergeracional unida em Yogyakarta. Trabalhar coletivamente e sempre assinar suas obras coletivamente é uma prática fundamental da Taring Padi. “Trabalhar coletivamente é importante porque não podemos resolver problemas sozinhos”, reflete Setu Legi. “Não é um problema apenas para nós na Indonésia. Nós, como artistas, não podemos fazer isso sozinhos; precisamos estar juntos para nos fortalecermos”. É por meio da colaboração que a Taring Padi aprende e cultiva seu próprio espírito de internacionalismo.

Colaboração entre Taring Padi e militantes do MST na produção do cartaz Retomar Nossa Terra / Rebut Tanah Kita (2023) no Brasil.
O Espírito de Bandung de sete décadas atrás estava enraizado no internacionalismo, que o Presidente Sukarno entendia estar no centro da resistência anticolonial e anti-imperialista. Em 1959, ele convocou os artistas a se juntarem às fileiras dessas lutas. “Devemos ser mais vigilantes, mais tenazes e mais perseverantes na oposição à cultura imperialista, especialmente à cultura imperialista dos EUA, que na realidade continua a nos ameaçar de todas as formas e maneiras”. Esse também foi o ano da Revolução Cubana. Tanto a Indonésia quanto Cuba estavam unidas contra o imperialismo e organizavam conjuntamente a Conferência Tricontinental de 1966, que aconteceria em Havana — a mesma conferência à qual prestamos homenagem em nosso próprio nome no Instituto Tricontinental de Pesquisa Social . Nem os comunistas indonésios, o Lekra, nem a presidência de Sukarno viveriam para ver essa conferência. Para Taring Padi, a arte política é necessária porque essa luta nascida há sete décadas permanece inacabada.

Instalação do banner Justiça Popular: Palestina na Exposição Nandur Srawung, Yogyakarta, 2024.
“Ainda lutamos pela humanidade, pela democracia, pelo meio ambiente”, afirma Setu Legi. “Na Indonésia, agora, existem diferentes dimensões de fascismo e militarismo; parece a luta que tivemos em 1998. A extrema direita está em todo o mundo. Este é um momento importante. Mas o que estamos fazendo a respeito? Esta é uma questão que temos no Taring Padi. Precisamos lutar juntos. Precisamos lutar juntos”.
Para encerrar este boletim neste espírito de unidade, aqui está um pantun não atribuído, uma forma popular de poesia oral que foi documentada nas páginas do jornal Harian Rakyat do PKI .
O barquinho navega para lá e para cá
E chega a Surabaya
Em Cuba repeliram o ataque
América Latina unida à Afro-Ásia.
Cordialmente,
Tings Chak,
Diretora de Arte do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social
PS: Confira aqui nossos retratos de abril em homenagem a revolucionários e trabalhadores culturais do mundo todo.