Um legado estratégico: o pensamento revolucionário do comandante Chávez 10 anos após sua partida

Dossiê n.61

 

As imagens deste dossiê são da Terceira Assembleia Continental da ALBA Movimentos, realizado na Argentina, em 2022, reunindo mais de 300 delegados de 20 países. O vídeo para o qual essas imagens foram inicialmente produzidas apresenta uma montagem de pessoas na conferência segurando os “olhos de Chávez” na frente de seus rostos. A famosa imagem apareceu pela primeira vez em 2012, durante a última campanha presidencial de Hugo Chávez: um par de olhos estilizados colocados sobre um fundo vermelho, com sua assinatura e uma estrela negra no canto, sem slogans eleitorais. Os olhos de Chávez afirmam sua presença entre o povo, proteção do país e visão de futuro. Desde então, a imagem icônica foi reproduzida em pôsteres, camisetas, fachadas de edifícios e pichações de rua, tornando-se um símbolo popular do chavismo que perdurou para além da vida de Chávez. Como no vídeo (produzido pela Comuna AV), as pessoas continuam a manter essa imagem mesmo uma década depois de sua partida para declarar coletivamente que Chávez vive no povo.

 

Logos of The Tricontinental Institute and Chris Hani Institute

Em colaboração com o Instituto Simón Bolívar

 

1. Prólogo

Instituto Simón Bolívar

Hugo Chávez surgiu na história da Venezuela, do Sul Global e do movimento revolucionário internacional quando mais ganhavam força as teses de que as disputas ideológicas haviam acabado, a História havia chegado ao fim, conforme decretou Fukuyama, e o único caminho para o progresso da humanidade era aquele imposto pelo unilateralismo dos Estados Unidos. Longe de ter chegado ao fim, porém, a História guardava um importante papel para o povo venezuelano, que se levantou contra o neoliberalismo em 1989 e hoje está construindo o projeto de um socialismo para o século 21.

Refletindo sobre a importância do líder para um processo revolucionário, o historiador E. H. Carr observou que Lênin ganhou o apoio do Partido Bolchevique não por meio da retórica, mas por sua capacidade de persuadir e apresentar argumentos com clareza e de ter um “comando magistral único da situação” (1985 [1950], p. 82). Ao mesmo tempo, destacou a clareza de visão de Lênin, apontando sua capacidade de internalizar os interesses da classe trabalhadora e confiar no potencial dela para a tomada do poder. Pode-se dizer que o papel de Hugo Chávez na Revolução Bolivariana foi exatamente esse: utilizou sua capacidade de interpretar as necessidades e aspirações das massas na Venezuela e confiou na força criadora de seu povo.

Chávez liderou um processo social que reivindica não apenas sua própria tradição anticolonial ao renovar o pensamento de Simón Bolívar: a luta pela independência, pela unidade da nação latino-americana e pela justiça social, mas também resgata as lutas históricas dos povos  no século 20 contra o imperialismo estadunidense que, a partir da Doutrina Monroe, buscava fazer de Nuestra América parte de seu domínio. Sob a direção de Hugo Chávez, um processo popular latino-americano desafiou a avalanche neoliberal:

  1. Convocando uma recuperação da soberania nacional sobre os recursos e decisões da nação.
  2. Promovendo a unidade e a integração regional para enfrentar conjuntamente os desafios da História.
  3. Colocando em movimento um processo pedagógico para se contrapor ao consenso fabricado pela grande mídia e pela democratização da comunicação.
  4. Apostando numa democracia com participação direta e protagônica na qual o povo é agente de sua própria transformação.
  5. Consolidando o caráter popular das Forças Armadas dentro da Revolução para garantir a defesa integral do projeto por meio da união civil-militar.

Chávez fortalece o projeto revolucionário venezuelano, em cujas raízes estava a premissa bolivariana de independência acima de tudo; o conceito robinsoniano de “originalidade” da América, ou seja, a necessidade de encontrarmos nossas próprias fórmulas – e não as importadas ou impostas – sobre como nossa sociedade deve ser governada; e o princípio igualitário, da democracia popular, contido no lema de Ezequiel Zamora: “Terras e homens, livres! Horror à oligarquia!”. Já reconstruído o caminho para a defesa do interesse nacional e a luta contra o neoliberalismo, Chávez envereda pelo caminho do “Socialismo do Século 21”, no qual os elementos das lutas históricas da classe trabalhadora no século 20 se acrescentam questões próprias da atual realidade venezuelana e latino-americana: uma dimensão feminista, ecológica, protagônica e com uma espiritualidade fundada nas tradições ancestrais e na teologia da libertação.

Na prática, Chávez liderou um processo político que recuperou sua identidade própria e a revalorizou, que se apropriou de seus vastos recursos para demonstrar que é possível construir outra sociedade na qual os aspectos básicos da vida humana não sejam necessariamente tratados como mercadoria. A saúde, alimentação, moradia, o acesso à tecnologia, esportes e até à cultura, no marco das missões sociais criadas por Hugo Chávez, deram um novo sentido à vida social venezuelana e uma nova esperança às forças populares que permitiram a criação das comunas como o horizonte de uma utopia concreta e realizável, junto com a visão de um mundo multipolar no qual a cooperação e a complementaridade, dentro de um marco de respeito à diversidade, pudessem ordenar as relações internacionais e promover o que Bolívar chamou de “equilíbrio do universo”.

Hugo Chávez tornou-se um objetivo estratégico para as forças do imperialismo e do capital financeiro internacional. Sob o governo de Bill Clinton, tentaram cooptá-lo e, percebendo a força de suas convicções e liderança, o governo de George W. Bush tentou derrubá-lo com o clássico golpe de Estado, que não se concretizou porque o próprio povo venezuelano foi às ruas resgatá-lo, arriscando tudo. A administração Obama, que buscava limpar a face da sangrenta Guerra contra o Terrorismo, optou por mecanismos mais encobertos de desestabilização e acreditou que seu desaparecimento físico significaria o fim de sua liderança. No entanto, parte do legado de Hugo Chávez foi ter deixado uma liderança coletiva para a Revolução Bolivariana que hoje, sob a liderança de Nicolás Maduro e das forças revolucionárias e populares da Venezuela, tem conseguido resistir a mais de uma década da maior agressão que o país já sofreu na esfera econômica e social ao longo de sua História. A estratégia de pressão máxima implementada por Trump, visando justamente destruir todo o bem-estar social que a Revolução havia construído, colidiu com a resiliência e convicção revolucionária do povo venezuelano que ainda se inspira na liderança de Hugo Chávez.

A esquerda vem enfrentando enormes desafios mundialmente. Quando o Muro de Berlim caiu (1989), a fé na capacidade transformadora dos povos também caiu em muitas organizações e estruturas. O legado estratégico de Hugo Chávez foi ter compreendido aquela crise, confiado na capacidade transformadora do povo e empregado uma comunicação direta com os venezuelanos por meio de seu programa Alô, presidente! e sua conta no Twitter, e mostrar unidade de princípios, empatia, solidariedade e coragem diante do grande desafio de salvar a humanidade e o único planeta que temos. Hugo Chávez mostrou que a História é feita pelo povo, tomando o poder e derrotando o dogmatismo, o divisionismo e a resignação.


 

 

2. Origens do pensamento estratégico de Hugo Chávez

Em Sabaneta, no estado de Barinas, nas profundezas da planície venezuelana, nasceu o homem que dividiu em duas a História recente da América Latina e do Caribe. Hugo Chávez, filho de dois professores primários, foi militar, promoveu a transformação da Venezuela desde suas profundezas e construiu, com bases ideológicas que perduram até hoje, uma Revolução Bolivariana que continua de pé apesar da partida de seu líder natural, há 10 anos.

 

Entrada no Exército e construção do MBR-200

Compreender o pensamento estratégico do Comandante Chávez implica imbricar-se nas raízes que o erigiram. Aos 28 anos, já sendo integrante do Exército – e com antecedentes no Exército Bolivariano Revolucionário 2000, pensado como uma projeção para aquele ano (Harnecker, 2003, p. 118) – impulsionou junto com seus companheiros a formação do Movimento Bolivariano Revolucionário 200 (MBR-200) em homenagem aos 200 anos do nascimento do pai da Pátria, Simón Bolívar (1783-1830), com o objetivo de reformar o Exército e iniciar o caminho para a construção de uma nova República na Venezuela.

Nas palavras do Comandante Chávez, propôs-se desde o início “uma revolução, uma transformação política, social, econômica e cultural inspirada na abordagem de Bolívar” (Cabieses, 2005), que se tornou mais complexa até consolidar o apoio ideológico que a denominação tinha no primeiro momento de A árvore das três raízes, e que mais tarde seria oficializado como Sistema EBR (Ezequiel-Bolívar-Rodríguez), desenvolvido detalhadamente em O livro azul, texto que agrupa as principais teses históricas, ideológicas e políticas do processo a ser iniciado .

Nele, Chávez descreve os três eixos ideológicos fundamentais do projeto bolivariano:

“Há, pois, compatriotas, uma única e poderosa razão: é o projeto de Simón Rodríguez, O Professor; Simón Bolívar, O Líder; e Ezequiel Zamora, O General do Povo Soberano; referência verdadeiramente válida e pertinente ao caráter sócio-histórico do ser venezuelano, que clama novamente por espaço para ser semeado na alma nacional e conduzir sua marcha rumo ao século 21” (2013, p. 43).

 

Simón Rodríguez e a raiz robinsoniana

Nascido em Caracas, Simón Rodríguez (1769 – 1854) foi educador, filósofo e tutor de Bolívar. Acompanhou o Libertador no histórico Juramento do Monte Sagrado e foi fundamental na criação de seu pensamento original. As principais contribuições de Simón Rodríguez — também conhecido por seu pseudônimo de Samuel Robinson — ultrapassaram os limites pedagógicos e forjaram em seus alunos a urgência de criar um pensamento original como resposta à repetição e cópia que os tutores do método tradicional então propunham.

A principal preocupação de Simón Rodríguez era a criação das repúblicas americanas, para as quais a formação de novos cidadãos e cidadãs era um requisito fundamental, colocando a educação em um lugar central. Com esse objetivo independentista e profundamente político, Rodríguez desenvolveu um método centrado no trabalho como ferramenta e categoria pedagógica, a partir da noção de igualdade como princípio da nova sociedade, e no papel que a experiência de cada pessoa desempenhava no processo pedagógico contribuiu para a criação de novos conhecimentos que iriam construir as novas repúblicas.

Nesse sentido, Rodríguez desenvolvia uma visão da educação como um direito humano, que deveria ser garantido nas futuras repúblicas nascentes para a formação de cidadãos que não só estivessem prontos para criar novas repúblicas, como também o fizessem de forma original, distante das receitas ou preceitos europeus que reproduzissem a lógica colonial. Em suma, para Rodríguez, o processo pedagógico deveria ser eminentemente criativo e original, como afirmava na sua máxima: “ou inventamos ou erramos” (Rodríguez, 2004 [1842]: 138).

 

Simón Bolívar e a raiz bolivariana

O desenvolvimento do projeto bolivariano e suas principais características são o nó central do pensamento do Comandante Chávez. São inúmeras as dimensões do pensamento bolivariano que se encontram no desenvolvimento da Revolução Venezuelana e que forjaram as chaves do projeto. Simón Bolívar, prócere e Libertador, promoveu o maior projeto de emancipação da coroa espanhola no continente.

Em seu pensamento, entre centenas de características, destacam-se, como fundamentos da raiz bolivariana do processo promovido pelo Comandante Chávez, as ideias de independência e unidade continental como estratégia contra o império espanhol, no qual ressalta a ideia de liberdade e igualdade humana herdada da Revolução Haitiana em relação à abolição da escravidão, mas que foi muito além. O principal propósito bolivariano, central para o projeto venezuelano, foi a transformação da luta anticolonial pela independência em um processo revolucionário que incluísse mudanças democráticas que transformassem as condições materiais e concretas do povo, e que permitissem a construção de Estados independentes, formados por mulheres e homens livres.

 

Ezequiel Zamora e as raízes zamoranas

Ruidosa para a oligarquia venezuelana, a ideologia zamorana abalou a estrutura social do século 19, pois apontava para a raiz do conflito social fundamental na Venezuela e evidenciava a desigualdade e a exclusão sofridas pelas maiorias populares. Ezequiel Zamora, líder popular nascido em 1817 em Cúa, estado de Miranda, participou em numerosas lutas camponesas, como a insurreição de 1846, na qual cunhou sua histórica palavra de ordem Terras e homens livres e onde obteve a nomeação de “General do Povo Soberano” (Cordero Negrín , 2004: 34).

Ele lutou contra a oligarquia na Guerra Federal, pelo direito do campesinato a uma distribuição equitativa de terras e exigindo a distribuição geral da riqueza sem a qual não haveria verdadeira emancipação popular ou igualdade social. Nas palavras do presidente Nicolás Maduro “Chávez traz para o presente o General do Povo Soberano, para dar continuidade ao combate social, à luta pela igualdade, por um país real e verdadeiramente igualitário” (Chávez, 2013: 26).

 

Do MBR 200 ao MVR, e a refundação da Pátria.

Com o MBR-200 e A árvore das três raízes presentes em seu dever para com o país, Chávez organizou a tentativa de golpe de Estado de 4 de fevereiro de 1992, que abriria uma nova etapa na história política venezuelana. Apesar de seu fracasso, e após sua liberdade, Hugo Chávez redobrou seu compromisso com a transformação da pátria que havia prometido ao Libertador, e promoveu a criação do Movimento V República, uma coalizão entre partidos de esquerda, para conseguir com ele o instrumento político eleitoral que lhe permitisse chegar ao Palácio de Miraflores.

Fiel aos seus princípios do Sistema EBR, o Comandante avançou desde o início com a prioridade colocada na transformação da pátria, que até então tinha uma Constituição que garantia a desigualdade, a exclusão, e que provocou a crise de representação que caracterizou a Venezuela durante o décadas de 1980 e 1990, e que atingiu seu ponto mais visível com o Caracazo, em fevereiro de 1989. Assim, desde o início, propôs uma Assembleia Nacional Constituinte para refundar o país, convocada assim que tomou posse como presidente, e que, uma vez aprovada em referendo consultivo, iniciou um ano de debates em fábricas, universidades, organizações nos bairros e nos campos, assembleias populares, entre outros espaços de democracia popular.

 

 

3. Pensamento estratégico (1992 – 2013)

Partindo dessas três raízes, podemos ver no pensamento estratégico do Comandante Chávez um movimento complexo e dialético que reconhece e elabora a partir da realidade concreta do povo venezuelano. Por isso, o pensamento estratégico de Chávez não é uma receita ou uma elucubração teórica, mas um pensamento vivo, profundamente revolucionário, que vai deixando marcas e superando dificuldades práticas. Chávez nos deixou vários eixos de seu pensamento estratégico.

 

Estratégia política: uma nova república, produto de um novo tipo de democracia

As consequências do modelo neoliberal na Venezuela levaram a uma profunda crise de representatividade onde o povo, com crescentes níveis de pobreza e desigualdade, não estava representado nas estruturas democráticas vigentes até então. Foi precisamente essa crise que o Comandante Chávez localizou como o motor para avançar com o processo constituinte, pois como Rodríguez havia apontado, e Bolívar e Zamora haviam feito, havia uma urgência de criar algo novo, soberano, independente e popular.

Na discussão sobre a Constituição e a redação da nova carta que daria origem à República Bolivariana da Venezuela, propôs-se então uma transformação radical da concepção de democracia, passando de meramente representativa para uma democracia popular e participativa. Nesse modelo, o povo – latente, vivo e protagonista – é o verdadeiro poder constituinte originário. Nesse marco, as estruturas institucionais e o governo devem ser sempre democráticos, participativos e descentralizados.

Seguindo a visão zamorana e robinsoniana, a Constituição propunha um novo tipo de relação entre o que até então eram setores sociais dominantes e dominados, e um novo tipo de Estado e de sociedade que não mais se basearia na subordinação e exploração das maiorias. A partir dessa nova concepção do Estado – que mais tarde seria proposto como Estado comunal –, as instituições caminham lado a lado da população organizada, o que é entendido como parte da nova proposta democrática: não há instituições sem o povo, que é o verdadeiro protagonista do seu processo.

O papel das instituições deve ser, então, facilitar, abrir canais e implementar o que for necessário para garantir o desenvolvimento desses processos ascendentes. E o papel do Constituinte primário, o povo como corpo coletivo, não é o de aplaudir ou repudiar as ações de uma elite, mas projetar e tomar decisões comuns com sua própria capacidade, seu próprio destino, que é original, soberano e popular, como apontaram, respectivamente, Rodríguez, Bolívar e Zamora. Com o passar dos anos, o próprio Comandante Chávez batizaria esse processo de socialista.

Com o desenvolvimento da nova Constituição e a criação da República Bolivariana, esses princípios do Sistema EBR começariam a se materializar em uma série de iniciativas concretas que emanavam dos processos democráticos nascidos nos setores populares, que foram encontrando uma infraestrutura e possibilidades claras nessa relação de novo tipo com as instituições governamentais. Exemplos disso são as missões promovidas entre o governo e os setores organizados que se capilarizavam nos setores populares e respondiam às necessidades que neles iam surgindo. Algumas das mais conhecidas são a Missão Robinson, encarregada de eliminar o analfabetismo a nível nacional, ou a Missão Barrio Adentro, com brigadas médicas internacionais, especialmente de Cuba, que desenvolveviam a abordagem da medicina preventiva e que hoje é promovida por profissionais venezuelanos.

Mais um passo no caminho da transformação foi o impulso, durante o segundo governo do Comandante, de um Estado diferente do burguês, com a proposição da Lei Orgânica dos Conselhos Comunais (2009), com uma série de estruturas de administração nos conselhos (comunais, cidades comunais, trabalhadores, estudantes, camponeses, mulheres), que podem “exercer diretamente a gestão de políticas públicas e projetos voltados para responder às necessidades e aspirações das comunidades” a fim de construir uma “sociedade de equidade e justiça social”.

Estratégia socioeconômica: do humanismo radical ao socialismo comunal

No desenvolvimento de seu pensamento e da ação, Hugo Chávez forjava uma visão programática de transformação social, econômica, política e cultural para a Venezuela. Desde os anos da escola militar, a preocupação com a mudança social em seu país era latente. A própria formação do movimento MBR-200 implicou uma visão de justiça social e de ampliação de direitos de acordo com as necessidades do povo que o neoliberalismo reinante não conseguiu conter.

Em suma, podemos pensar na contribuição de Chávez para a estratégia de desenvolvimento econômico e social em quatro momentos: o momento antineoliberal, o momento nacionalista radical, o momento socialista do século 21 e, finalmente, o momento do socialismo comunal.

O primeiro momento coincide com uma reflexão sistemática por parte de Chávez nos anos em que iniciou uma pós-graduação em Ciência Política. Como ele mesmo reconhece em diálogo com Ignacio Ramonet, essa necessidade de formação surgiu de um profundo conhecimento do neoliberalismo implantado por Carlos Andrés Pérez na Venezuela. O plano denominado “El Gran Viraje” [A grande virada] expressava para Chávez “(…) aquilo o capitalismo hegemônico mundial e o Fundo Monetário Internacional impuseram, por meio de um severo plano de ajuste estrutural que acabou provocando um protesto popular e a explosão do Caracazo” (Ramonet, 2018: 325).

Nesse contexto, Chávez começa a desenvolver uma série de discussões sobre a transição, planejamento e possíveis modelos de desenvolvimento para a Venezuela somados à estratégia de unidade civil-militar para desenvolver esse programa. Em grande parte, esses elementos foram incluídos no Projeto Nacional Simón Bolívar de 1992, que incluía, entre outros elementos, a perspectiva de redução do custo de vida; a geração de empregos produtivos por meio da construção de moradias, reflorestamento, saneamento ambiental, agricultura etc.; obtenção da autossuficiência alimentar e desenvolvimento de uma integração da economia solidária por meio de uma rede de cooperativas dentro de um esquema de novas formas econômicas (Chávez, 1992, apud Serrano Mancilla, 2014).

O posterior desenvolvimento do planejamento estratégico das áreas econômica e social de Hugo Chávez continuaria aprofundando esses elementos para pensar a transição necessária e possível com base nas condições concretas da Venezuela, especialmente na prisão de Yare, após a rebelião de 4 de fevereiro de 1992, que não cumpriu os objetivos a que se propunha. Assim, o primeiro momento da estratégia de Chávez em relação ao programa socioeconômico é uma proposta que, necessariamente, rejeita categoricamente o neoliberalismo e assim se conecta com o sujeito popular articulado em torno do Caracazo. Pensamento e ação. Estratégia e leitura do processo histórico concreto.

Após os anos de prisão, com a crescente popularidade de sua figura e de sua liderança, Chávez começou a desenvolver o segundo momento de seu pensamento estratégico no plano socioeconômico: o momento do nacionalismo radical. Ao contrário do que pensa o nacionalismo burguês, o desenvolvimento desse momento nacionalista radical anda de mãos dadas com a convicção de formar alianças entre os países do Sul, particularmente na região latino-americana, de forma a alcançar uma transição antineoliberal. Claramente, esse momento do pensamento e ação estratégica de Hugo Chávez Frías foi marcado por seu encontro com Fidel Castro em Havana, em 1994, bem como pelo desenvolvimento de um tecido cada vez mais denso de organizações populares na Venezuela, em que sua figura como líder crescia rapidamente.

Desde esses dias intensos em Havana até seus primeiros dias de governo, o Comandante Chávez apresenta com mais detalhes uma agenda econômica e social de cunho nacionalista radical que servirá de base para o próximo momento de radicalização de seu pensamento estratégico. Em 22 de julho de 1996, Chávez divulgou o documento intitulado “Agenda Alternativa Bolivariana”. Essa proposta inclui todos os elementos fundamentais que aparecerão no programa eleitoral de 1998 que, como assinala Serrano Mancilla (2014), constituiu toda a heterogeneidade do pensamento estratégico de Chávez.

Nesse texto, a articulação do momento anterior (antineoliberal) com o novo momento da proposta nacionalista radical é claramente proposta “como se pode pensar, por exemplo, que resolver o déficit fiscal pode ser mais urgente do que acabar com a fome de seres humanos? (…) Diante da ofensiva neoliberal, então, surge aqui e agora uma arma para a contraofensiva total (Chávez, 2014a: 23-24).

Além disso, a proposta desse programa aborda a saída do projeto neoliberal e a construção de uma alternativa integral “(…) por meio de uma abordagem humanística, integral, holística e ecológica” (Chávez, 2014a: 24). Surge também a necessidade de recorrer ao Poder Constituinte para levar adiante uma refundação do poder nacional em todas as suas vertentes. A análise que leva a essa necessidade histórica para Chávez e o movimento popular é que o governo de Rafael Caldera continuou, para além de suas promessas anteriores, na linha geral do Consenso de Washington e seu decálogo. Os resultados mais evidentes dessa continuidade neoliberal foram a multiplicação da pobreza e da desigualdade e a estrangeirização e desnacionalização da economia. Por isso, o programa nacionalista radical exposto na “Agenda Alternativa Bolivariana” tenta construir um novo senso comum epocal baseado no fortalecimento do Estado em comunhão com uma mobilização popular permanente; ao mesmo tempo em que buscava desenvolver uma narrativa que pudesse dar conta da agudização dos conflitos sociais no neoliberalismo” (Wainer, 2020: 56).

Em termos mais concretos, a transição para um desenvolvimento diferente daquele proposto pelo Norte Global parte de uma série de pontos-chave que são destacados por Serrano Mancilla (2014) e que voltarão a se radicalizar nos anos seguintes:

  • Um Estado forte, democratizado e que regula o poder do mercado.
  • Propriedade e controle estatal-nacional da produção de petróleo.
  • Desenvolvimento econômico humanista e autogerido baseado em um esquema de cinco setores: empresas básicas estratégicas em regime de propriedade estatal, bens de consumo essenciais em regime misto, bancos e finanças em regime misto e grande indústria essencialmente privada.

 

 

  • Educação, cultura, ciência e tecnologia como parte de um projeto autônomo e independente, de acordo com as ideias de Simón Rodríguez.
  • Uma renegociação da dívida externa onde se alcancem níveis mais elevados de soberania nacional.
  • Equilíbrios macrossociais que permitam o desenvolvimento humano integral da população da Venezuela.
  • Uma proposta de desenvolvimento produtivo com uma mudança para uma maior democratização econômica.

Esses elementos marcam um programa contra a corrente neoliberal e também de muitas das opções que timidamente se enquadravam alguns anos antes na “terceira via”. É aqui que podemos ver os pilares de um novo momento que se desenvolverá a partir de 2005-2006 e depois será claramente sintetizado no Plano da Pátria e no socialismo comunal. Após o triunfo eleitoral, a formação de um “Estado das Missões” foi a característica distintiva do período e das formas adotadas pela política econômica e social implementada pelo Governo Bolivariano. Hugo Chávez desenvolve a proposta de Missões Sociais partindo, por um lado, das diferentes limitações burocráticas do Estado herdado e, por outro, de uma grande vocação para resolver os problemas mais prementes do povo. Os problemas da pobreza, pobreza extrema, analfabetismo, saúde, cultura, formação profissional, moradia, entre outros, começaram a ser atendidos em 2004, por meio do Sistema Nacional de Missões Sociais Bolivarianas. Uma resposta integral, participativa e solidária que conseguiu tensionar fortemente a estrutura centralizada e burocrática do Estado burguês. Segundo Chávez, as missões são

componentes fundamentais do novo Estado Social, do novo Estado Social de Direito e de Justiça, os excluídos estão agora incluídos junto com todos: estudando, capacitando-se, organizando-se, trabalhando com uma nova cultura, com uma nova consciência, porque as missões estão gerando uma nova realidade, inclusive na ordem cultural, psicológica, ideológica e filosófica, além da realidade concreta e prática que estão gerando: social, econômica e educacionalmente (Chávez, 2004: 5, apud Hurtado, 2018).

Precisamente, as reflexões sobre as missões e a capacidade de organizar em termos práticos a satisfação das necessidades populares com o projeto estratégico de desenvolvimento da Venezuela, leva Hugo Chávez, após a vitória no referendo revogatório de 15 de agosto de 2004, a ensaiar mais um passo para a formulação de um projeto de transformação radical para a Venezuela e para toda a América Latina. No âmbito do Fórum Social Mundial de Porto Alegre em 2005, o Comandante afirmou claramente que a alternativa ao neoliberalismo, ao projeto do império, é o Socialismo do Século 21. Depois de uma noite de pensamento revolucionário na América Latina, mais uma vez o gênio de Chávez conseguiu romper os limites das visões pós-modernas e propor um conceito que unificasse a estratégia de construção de uma sociedade justa e igualitária, aprendendo com os erros cometidos antes e sem manuais.

Há uma sistematização, feita por Molina, Roloff e Madrid (2018), que dá conta das principais dimensões incluídas na visão de Chávez sobre o Socialismo do Século 21, que supera em muito as visões dos autores que propuseram essa categoria naquele momento. Das que aqui nos interessam, podemos constatar que a dimensão da economia popular e solidária como um dos fundamentos do Socialismo do Século 21 promovido por Chávez:

Aqui iniciamos experiências como a promoção de cooperativas e associações, propriedade coletiva, bancos populares  e núcleos de desenvolvimento endógeno etc. Trata-se de deixar para trás a lógica do funcionamento perverso do capitalismo. Muitas experiências são válidas, como autogestão e cogestão, propriedade cooperativa e coletiva etc. Estamos lançando um ensaio de empresas de produção social e unidades de produção comunitária. (p. 238)

Por fim, o momento de maior radicalidade pega esses elementos da estratégia socialista do século 21 e os aprofunda em um programa socialista  de desenvolvimento de longo prazo, no chamado Plano Para a Pátria. Todas e cada uma das dimensões que compõem o desenvolvimento humano em termos integrais estão incluídas neste programa. O plano tem 5 objetivos estratégicos (Plan de la Patria, 2013):

  • Defender, expandir e consolidar o bem mais precioso que reconquistamos após 200 anos: a independência nacional.
  • Continuar construindo o socialismo bolivariano do século 21, na Venezuela, como alternativa ao sistema destrutivo e selvagem do capitalismo e, assim, garantir “a maior soma de segurança social, a maior soma de estabilidade política e a maior soma de felicidade” para nosso povo.
  • Transformar a Venezuela em um país poderoso nas esferas social, econômica e política dentro da Grande Potência Nascente da América Latina e Caribe, o que garante a formação de uma zona de paz em Nuestra América
  • Contribuir para o desenvolvimento de uma nova geopolítica internacional na qual tome corpo um mundo multicêntrico e pluripolar que permita alcançar o equilíbrio do universo e garantir a paz planetária.
  • Preservar a vida no planeta e salvar a espécie humana.

Esse é o legado político-estratégico de Hugo Chávez, mas, ao mesmo tempo, há um elemento que consideramos fundamental: a radicalização socialista que Chávez construiu com seu pensamento e ação tem um marco muito importante na proposta que já mencionamos de uma nova organização territorial, econômica, política e militar que são as comunas. A transformação de baixo para cima do Estado burguês a partir da estrutura estatal em si mesma é uma novidade e ao mesmo tempo uma aposta de longo alcance para pensar projetos emancipatórios em escala nacional.

 

 

 
Estratégia regional: Pátria Grande, integração de governos e povos por meio do Socialismo do Século 21

O século 21, para nós, é o século da esperança. É o nosso século. É o século da ressurreição do sonho bolivariano, do sonho de Martí, do sonho latino-americano.

Hugo Chávez Frías, discurso proferido na Universidade de Havana, 14 de dezembro de 1994.

A política externa de Hugo Chávez teve uma orientação clara desde o início de seu governo, mas é justo dizer que, na verdade, essa perspectiva esteve presente pelo menos desde a apresentação internacional do projeto bolivariano.

No auge da década neoliberal, e quando os efeitos das políticas de ajuste ainda não davam sinais de esgotamento no continente, em 14 de dezembro de 1994, o tenente-coronel Hugo Chávez Frías foi recebido na Universidade de Havana por Fidel Castro. Ao longo dos anos, esse encontro adquiriu um lugar de destaque na história da região. Entre outras coisas, porque aqui podem ser reunidas as análises que subsidiaram o diagnóstico e as ideias que mais tarde se tornariam políticas de Estado.

Ali, Chávez comentou que não esperava o tratamento que Fidel lhe concedeu e falou sobre suas esperanças de merecê-lo no futuro que imaginava:

Ontem à noite, quando tive a imensa e agradável surpresa de ser recebido no Aeroporto Internacional José Martí por ele mesmo, disse-lhe: “não mereço esta honra, aspiro merecê-la um dia nos próximos meses e anos”. Digo o mesmo a todos vocês, queridos compatriotas cubano-latino-americanos: esperamos um dia chegar a Cuba em condições de estender os braços e de nos alimentarmos mutuamente em um projeto revolucionário latino-americano, imbuídos, como estamos, há séculos, da ideia de um continente hispano-americano, latino-americano e caribenho, integrado como uma única nação que somos (Hugo Chávez Frías, apud Elizalde e Báez, 2005: 110).

Apenas três dias antes, a primeira Cúpula das Américas havia sido concluída em Miami. Promovida com o objetivo histórico de consolidar e ampliar o domínio dos EUA por meio de uma Área de Livre Comércio das Américas (Alca), a cúpula teve apenas um Estado-nação americano ausente. Cuba havia sido expulsa da OEA em 1962, sob o argumento de não respeitar a democracia liberal ocidental, que tampouco era respeitada pelas ditaduras militares apoiadas pelos Estados Unidos na época. Assim, enquanto a viagem organizada para recolonizar o continente começou em Miami, Fidel e Chávez se encontraram quase em espelho em Havana, talvez apenas eles imaginando o que ninguém naquele momento poderia imaginar.

O momento político estava marcado pela queda do Muro de Berlim, a ascensão dos Estados Unidos como única potência após sua vitória na Guerra Fria e a ofensiva ideológica contra o socialismo. Para ilustrar, é útil reproduzir algumas das palavras que Fidel Castro disse naquela ocasião, antes das de Chávez:

Não há dúvida de que para uma personalidade como Hugo Chávez, aceitar aquele convite foi um ato de coragem, porque hoje em dia não há muitas pessoas corajosas neste mundo que se atrevam a aceitar um convite para vir a Cuba; há também muitos que vinham a Cuba e agora ficam fazendo piruetas para esquecer que já foram amigos da Revolução Cubana, ou mesmo para esquecer que já foram pessoas de esquerda. No simples fato de aceitar o convite, já vimos um ato de muita coragem (Fidel Castro, in Ibid.: 121).

O chefe de um movimento revolucionário bolivariano – ou  bolivariano revolucionário que é o mesmo, aqui a ordem dos fatores multiplica o produto – aqui, na Aula Magna da Universidade de Havana, falando de seus projetos patrióticos, de seus projetos nacionais e falando de seus projetos internacionais, de seus projetos de unidade latino-americana e caribenha. E em que momento! Em um momento em que, talvez mais do que nunca, são necessárias as ideias de Bolívar e Martí; em um momento em que, como nunca antes neste mundo de hegemonismo unipolar, nossos povos correm o risco de serem devorados, totalmente devorados pelo império; no momento em que querem destroçar o princípio da independência e da soberania popular, em nome dessa grande democracia que é a democracia norte-americana, onde votam apenas trinta e poucos por cento do povo (Ibid.: 126).

Em meio a um dos momentos de — pelo  menos aparentemente — maior debilidade continental, e quatro anos antes de Hugo Chávez chegar ao governo, é interessante rever a análise de Fidel sobre o significado histórico daquele encontro com Chávez, especialmente em sua relação com termos estratégicos com a Primeira Cúpula nos EUA. Outro simbolismo é a resposta de Chávez sobre sua chegada ao país, em 13 de dezembro de 1994, coincidindo com o fato de que acabava de acontecer a famosa Cúpula de Miami.

Ninguém planejou assim, mas o acaso quer, de novo, que outra coisa verdadeiramente simbólica aconteça a 90 milhas de Miami: o encontro do povo de Cuba com o movimento revolucionário bolivariano da Venezuela e da América Latina.

Não se pode falar de Bolívar sem pensar em todo um continente, sem pensar em toda a América Latina e em todo o Caribe, do qual fazemos parte nós e outros países de língua espanhola, ou francesa, ou inglesa. Se produziria uma cúpula de ideias, das ideias bolivarianas e das ideias de Martí. E é de se perguntar se Martí e Bolívar pudessem ter presenciado a cúpula de Miami, o que pensariam, o que diriam. E se ouvissem as palavras do presidente dos Estados Unidos, mencionadas por Hugo Chávez, em que tentava apresentar aquela cúpula como a realização dos sonhos de Bolívar – só restava dizer que era também a realização dos sonhos de Martí – o que pensariam Martí e Bolívar desse tipo de “sociedade para a prosperidade” – acho que é assim que a coisa se chama agora – que eles estão propondo?

 

 

Vejamos, portanto, outro grande simbolismo, essa coincidência entre aquela cúpula e as ideias daquela cúpula, e as ideias de Bolívar e as ideias de Martí (Fidel Castro, in Ibid.: 125-126).

Em sua resposta, Chávez concorda com a visão otimista de Fidel, naquele momento muito particular de crise do socialismo e período especial:

Sem dúvida, estamos numa época de despertares, de ressurreições de povos, de forças e de esperanças. Sem dúvida, presidente, essa onda que o senhor anuncia ou que anunciou e continua anunciando nesta entrevista a que me referi antes, Um grão de milho, é sentida e palpável em toda a América Latina (Hugo Chávez Frías, in Ibid.: 111).

E então oferece os elementos centrais de seu programa histórico, que seguirá impulsionando com dedicação nos próximos dezoito anos vertiginosos, criativos, de refundação:

Em primeiro lugar, estamos empenhados em erguer uma bandeira ideológica pertinente e propícia à nossa terra venezuelana, à nossa terra latino-americana: a bandeira bolivariana.

Mas nesse trabalho ideológico de revisão da história e das ideias que nasceram na Venezuela e neste continente há 200 anos, […] nesta imersão na história em busca de nossas raízes, desenhamos e lançamos à opinião pública nacional e internacional, a ideia de inspiração na Árvore das três raízes, […] uma das quais é aquele Simón Bolívar que clamava, por exemplo, para que aquela unidade latino-americana pudesse opor uma nação desenvolvida como contrapeso à pretensão do Norte, que já se desenhava com suas garras em nossa terra latino-americana (Ibid.: 112-113).

Trazemos aqui essas palavras porque entendemos que elas sintetizam poderosamente o sentido geral das políticas internacionalistas e americanistas promovidas pela Revolução Bolivariana. Naquela noite de 1994, Chávez já falava da unidade e integração latino-americana e caribenha como condição de possibilidade de libertação. Ele propunha assim:

Esta paixão que me move esta noite é um projeto estratégico de longo prazo, no qual os cubanos têm e teriam muito a contribuir, muito a discutir conosco. É um projeto com um horizonte de 20 a 40 anos, um modelo econômico soberano. Não queremos continuar sendo uma economia colonial. Um modelo econômico complementar. A Venezuela tem imensos recursos energéticos, por exemplo. Nenhum país do Caribe ou da América Latina deveria importar combustível da Europa, por quê? Se a América Latina tem, entre eles, a Venezuela, com imensos recursos energéticos […].

Um projeto em que não é aventurado pensar, do ponto de vista político, em uma associação de Estados latino-americanos. Por que não pensar nisso, que foi o sonho original dos nossos libertadores? Por que permanecer fragmentados? Até aí, na área política, chega a pretensão desse projeto que não é nosso, nem é original, tem 200 anos, pelo menos […].

O próximo século, para nós, é o século da esperança. É o nosso século. É o século da ressurreição do sonho bolivariano, do sonho de Martí, do sonho latino-americano.

Queridos amigos, vocês me honraram ao sentar-se esta noite para ouvir essas ideias de um soldado, de um latino-americano dedicado total e eternamente à causa da revolução desta Nuestra América (Ibid.: 118-120).

Este percurso mínimo por aquele primeiro contraponto público está diretamente vinculado às iniciativas políticas que deram forma a uma década de crescente soberania na política externa para a América Latina e o Caribe.

Em primeiro lugar, devemos mencionar a formação da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América, a partir de dezembro de 2004. Dez anos depois, também em Havana — dizem, justamente ao amanhecer — começava a se formar a Alba dos Povos, em oposição à Alca, esse objeto de desejo estadunidense também lançado dez anos antes.  A Alba passaria a se chamar Alba-TCP (Tratado de Comércio dos Povos), com a incorporação progressiva de outros países: Bolívia (2006), Nicarágua (2007), Equador (2009, depois retirou-se em 2018), Dominica (2008), brevemente Honduras (2008, até o golpe de Estado de 2009), Antígua e Barbuda (2009), São Vicente e Granadinas (2009), Santa Lúcia (2013), São Cristóvão e Nevis (2014), Granada (2014).

Passariam apenas alguns poucos meses, até junho de 2005, quando foi lançado o Petrocaribe, o principal mecanismo de integração energética da história entre os Estados do Caribe, que, quase duas décadas depois de seu lançamento, reúne cerca de vinte países da região. Essa iniciativa é de natureza fundamental para a emancipação. “A criação de um sistema sul-americano-caribenho de integração energética é decisiva para derrotar definitivamente a hegemonia imperial da oligarquia estadunidense”, consideram Mario Sanoja e Iraida Vargas, em sua monumental obra sobre a Revolução Bolivariana (2015: 240).

Poucos meses depois do lançamento do Petrocaribe, o bloco da Alba, em coordenação estratégica com o emergente bloco progressista da América do Sul, coordenou com Lula e Néstor Kirchner a derrota da Alca, em novembro de 2005, em Mar del Plata. A maior derrota da diplomacia estadunidense no continente – um fracasso de proporções históricas.

Chávez pensava na Alba e no Petrocaribe como “instrumentos para a unificação de nossos povos” (Chávez Frías, 2012a: 90). Nesse sentido, é importante destacar o conteúdo oficial da Alba-TCP quanto às raízes históricas com as quais se identifica:

As raízes da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América-Tratado de Comércio dos Povos (Alba-TCP) podem ser encontradas na Carta da Jamaica (1815), quando Simón Bolívar estabeleceu a doutrina da unidade e soberania dos países que se tornavam independentes do poder colonial.

A Aliança se baseia no pensamento de Bolívar, Martí, San Martín, Sucre, O’Higgins, Pétion, Morazán, Sandino, Garvey, Túpac Katari, Julián Apaza, Bartolina Sisa e tantos outros próceres, cuja luta serviu de modelo político e ético para a persistência de uma nova consciência e força emancipatória de nossas pátrias. A Aliança reivindica os ideais desses próceres em favor da consolidação estratégica da unidade de nossos povos e governos, preservação dos interesses históricos, sociais e econômicos, por meio de uma ação conjunta, autônoma, democrática, de nossa identidade nuestro-americana e do benefício comum (Alba-TCP, s/f).

Esse espaço, eminentemente político, promoveu articulações práticas nos campos da economia, educação, saúde e cultura. E tornou-se na plataforma estratégica a partir da qual se apostaria para construir patamares ainda mais elevados de unidade.

Com o mesmo sentido de unidade e integração, Chávez promoveria, junto com seus aliados estratégicos, dois instrumentos igualmente relevantes: a Unasul, a União das Nações Sul-Americanas, fundada em 2008; e a partir do desenvolvimento da Unasul, a Celac, Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, criada em 2010. Esse último espaço é o primeiro em toda a história que reúne os 33 estados da América Latina e Caribe. Ou seja, toda a América, exceto EUA e Canadá. Por isso adquire importância estratégica e se torna o antagonista natural da Organização dos Estados Americanos, liderada pelos Estados Unidos desde a sua fundação, no final da Segunda Guerra Mundial.

Durante essa jornada, Chávez tomou consciência da importância da batalha ideológica, cultural e comunicacional. Por isso fundou, em 2005, o canal multiestatal teleSUR, uma emissora de televisão que se propôs a disputar o sentido das notícias e se tornar referência no sinal informativo a partir do ponto de vista dos povos da América Latina e do Caribe.

O desenvolvimento de uma política de unidade e integração da Pátria Grande foi concebido como a pedra angular do Estado Bolivariano, premissa que inclusive foi consagrada na Constituição da República Bolivariana da Venezuela, aprovada pelo voto popular em 1999. Isso não foi em detrimento, mas, pelo contrário, em apoio a uma política internacional ativa para o resto do mundo, também regida pelos

princípios de independência, igualdade entre os Estados, livre determinação e não intervenção em seus assuntos internos, solução pacífica de conflitos internacionais, cooperação, respeito aos direitos humanos e solidariedade entre os povos na luta pela sua emancipação e pelo bem-estar da humanidade (República Bolivariana da Venezuela, 2013: 225-226).

Chávez interveio em todas as arenas internacionais para promover a refundação de uma ordem internacional mais justa e, nesse sentido, apelou reiteradamente à reorganização do sistema das Nações Unidas.

 

 

Povos do mundo, o futuro de um mundo multipolar em paz reside em nós . Na articulação dos povos majoritários do planeta para nos defendermos do novo colonialismo e alcançarmos o equilíbrio do universo que neutralize o imperialismo e a arrogância (Chávez Frías, 2011: 42).

Foi uma voz de alerta contra as consequências do capitalismo para o futuro do mundo. “Se o clima fosse um dos maiores bancos capitalistas, os governos ricos já o teriam salvado”, disse ele na COP 2009, realizada em Copenhague, após aderir às palavras de ordem da militância ambientalista: “Não vamos mudar o clima, vamos mudar o sistema! E, consequentemente, começaremos a salvar o planeta” (Chávez Frías, [2009] 2014b: 11-12).

Foi um defensor pleno da paz, mas “não a paz dos cemitérios, como dizia ironicamente Kant, mas uma paz baseada no mais zeloso respeito pelo Direito Internacional” (Chávez Frías, 2011: 22). Para isso, identificou claramente “a maior ameaça que paira sobre o nosso planeta”, como apontou na Assembleia Geral da ONU, em setembro de 2006:

A pretensão hegemônica do imperialismo estadunidense põe em risco a própria sobrevivência da espécie humana. Continuamos alertando sobre esse perigo, e conclamando o povo dos Estados Unidos e do mundo a deter essa ameaça, que é como a própria espada de Dâmocles (Chávez Frías, [2006] 2013: 9).

A marca de Chávez também esteve presente nos programas políticos coletivos, que visavam essencialmente “à diversificação das relações políticas, econômicas e culturais para a criação de novos blocos de poder”, com o objetivo de alcançar “a quebra da hegemonia do império estadunidense” (República Bolivariana da Venezuela, 2007: 55-56). O internacionalismo também foi expresso nos documentos fundamentais do Partido Socialista Unido da Venezuela, incluindo sua Declaração de Princípios:

O Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) deve enquadrar sua prática internacionalista para contribuir com a união dos povos que lutam para estabelecer projetos emancipatórios e libertários na América Latina, no Caribe e em outros continentes do mundo; na busca de proporcionar a maior soma de soberania, independência, autodeterminação, bem-estar e felicidade possível aos seus cidadãos.

A Revolução Bolivariana, dado seu caráter anticapitalista e anti-imperialista, criará mecanismos para consolidar alianças com movimentos políticos e sociais semelhantes em todo o mundo, com o objetivo de alcançar uma nova ordem internacional pluripolar  (PSUV, 2010: 34-35).

No ideário de Chávez, não está desconectada a visão do mundo de projeto de país. É por isso que o propósito fundamental do PSUV é, no mesmo nível, “a construção do Socialismo Bolivariano, a luta anti-imperialista, anticapitalista e a consolidação da democracia bolivariana, participativa e protagônica, por meio do reconhecimento e fortalecimento do poder popular” (PSUV, 2010: 50). Essa articulação da política interna e externa, fundamentada na participação democrática, percorre toda a obra de Chávez e é um de seus legados fundamentais, um guia estratégico para os revolucionários e as revolucionárias que virão.

 

4. Pensamento estratégico 10 anos após a morte do Comandante: uma estratégia renovada para um novo momento regional

Já se passaram mais de dez anos desde as últimas palavras públicas de Chávez, aquelas em que convocou o povo da Venezuela e da Pátria Grande a continuar a gestar a independência: “diante de novas dificuldades, sejam quais forem as suas dimensões, a resposta de todos e todas patriotas, os revolucionários, aqueles de nós que sentimos o país até nas entranhas, como diria Augusto Mijares, é unidade, luta, batalha e vitória” (2012).

O desaparecimento físico de Hugo Chávez, em 2013, coincidiu com o agravamento de uma ofensiva imperial em todo o continente. Estando os EUA imerso em um confronto global com rivais de peso, como China e, em menor medida, Rússia, e golpeado por una sucessão de fracassos em sua estratégia de intervenção, sua política exterior se orientou desde então a recuperar o terreno perdido na primeira década do século 21. Foi nessa mesma década que o impulso de Chávez, junto com o dos povos da América, realizou sonhos que pareciam impossíveis. A Venezuela tornou-se, então, objeto de uma intensa guerra híbrida, no marco de um novo Plano Condor: não mais apenas com o auxílio da força. Embora sem desdenhar do hard power, a estratégia imperial concentrou-se em desenvolver uma combinação de táticas centradas no soft power. Especialmente nos anos 2015-2020, o cerco foi relativamente bem-sucedido e conseguiu atingir a Revolução Bolivariana e paralisar as iniciativas de unidade e integração continental. Mas não conseguiu derrotar o sonho de Chávez.

Com avanços e retrocessos, dez anos depois daquele 5 de março de 2013, as lutas da América Latina e do Caribe continuam vivas. Sonhos de independência econômica, soberania política e justiça social ainda continuam vigentes. Nenhum futuro está escrito de antemão e tudo depende da própria atividade e criatividade popular. Para isso, os povos desta região e do mundo dispõem de um acervo de postulados-chave, que sintetizam uma história e uma possível perspectiva de futuro. Parte desse legado fundamental – essas linhas estratégicas – é obra de Chávez.

 

 

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