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DossiêNº 76

A nova guerra fria causa tremores no nordeste da Ásia

Este dossiê analisa como a Nova Guerra Fria liderada pelos EUA contra a China está desestabilizando o Nordeste da Ásia, concentrando-se na Península Coreana, no Estreito de Taiwan e no Japão.

 
Iri e Toshi Maruki, IX Yaizu, 1955, de Paineis de Hiroshima. Tinta sumi, pigmento, cola, carvão ou conté sobre papel, 180 × 720 cm.
Este dossiê foi produzido em colaboração com o International Strategy Center (ISC) em Seul, Coreia do Sul, e escrito por Dae-Han Song. Agradecimentos especiais aos membros da equipe de conteúdo do ISC (Alice Kim, Giovanni Vastida, Greg Chung, Mariam Ibrahim, Matthew Philipps e Zoe Yungmi Blank) e à equipe do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social pelo apoio, contribuições e edições que tornaram este dossiê possível.
Os Painéis de Hiroshima foram criados pelos artistas japoneses Maruki Iri (1901–1995) e Maruki Toshi (1912–2000) ao longo de um período de 32 anos para retratar os horrores causados pelas bombas nucleares lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki pelos Estados Unidos em agosto de 1945. Durante este período, eles pintaram cerca de 900 figuras humanas, representando algumas das pessoas mortas em Hiroshima e Nagasaki (embora a contagem exata de mortes seja desconhecida, estima-se que seja de 220 mil) (Wallerstein, 2020). Reproduzida no tradicional estilo de pintura japonesa conhecido como sumi-e, esta série de quinze painéis dobráveis carrega uma mensagem poderosa contra a guerra e pela paz – uma bandeira que este dossiê continua a carregar para a região e o mundo.

 Iri e Toshi Maruki, I Fantasmas, 1950, de Paineis de Hiroshima. Tinta sumi e carvão ou conté sobre papel, 180 × 720 cm.

Em 18 de agosto de 2023, os chefes de Estado dos Estados Unidos, Japão e Coreia do Sul se reuniram para uma cúpula histórica em Camp David. No isolado retiro presidencial dos EUA no Condado de Frederick, Maryland, os três líderes anunciaram um novo acordo de “cooperação de segurança trilateral” no nordeste da Ásia, com o objetivo principal de conter a ascensão da China (Casa Branca, 2023). Os esforços anteriores de Washington para criar esse pacto não foram capazes de superar as relações desgastadas entre o Japão e a Coreia do Sul, decorrentes do legado do colonialismo japonês. Mas, dessa vez, para abrir caminho para esse bloco militar, o presidente sul-coreano Yoon Suk Yeol isentou o Japão de pagar reparações por seus crimes coloniais e de guerra.

A Nova Guerra Fria liderada pelos EUA contra a China está desestabilizando o nordeste da Ásia, utilizando-se de problemas históricos da região, como parte de uma campanha de militarização mais ampla que se estende do Japão e da Coreia do Sul, passa pelo Estreito de Taiwan e pelas Filipinas, até a Austrália e as Ilhas do Pacífico. Com o apoio de Washington, o primeiro-ministro japonês Fumio Kishida acelerou o rearmamento de seu país, com o objetivo de dobrar os gastos militares até 2027 e adquirir mísseis de longo alcance para atingir alvos inimigos (Yeo, 2022). Enquanto isso, o processo de paz da Coreia tem sido prejudicado à medida que os EUA expandem sua projeção de poder na região. Embora a Coreia do Norte tenha sido frequentemente apontada como a razão para o aumento da militarização, isso sempre foi uma desculpa para as estratégias de contenção dos EUA – primeiro contra a União Soviética e hoje contra a China.

De fato, a “velha” Guerra Fria nunca terminou no nordeste da Ásia, suas brasas ainda ardem na Península Coreana e no Estreito de Taiwan. Apesar do colapso da União Soviética e da integração da China à economia global, a rede de alianças militares bilaterais dos EUA, criada após a Segunda Guerra Mundial, manteve a região dividida. Ao mesmo tempo, ao lado desses pontos de conflito, movimentos de resistência estão lutando pela paz, pela sobrevivência ecológica e pelo bem-estar das pessoas em todo o nordeste asiático, desde as ilhas Okinawa até a agitada metrópole de Seul. Para construir um futuro de paz e cooperação, é necessário interromper a Nova Guerra Fria liderada pelos EUA e desmantelar o sistema de alianças bilaterais que impediram a justiça e a reconciliação na região por mais de 70 anos.


Iri e Toshi Maruki, II Fogo, 1950, de Paineis de Hiroshima. Tinta sumi, pigmento, cola, carvão ou conté sobre papel, 180 × 720 cm.

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Parte I: a nova Guerra Fria

O pivô dos EUA para a Ásia

Desde a crise financeira internacional de 2008, a ordem global mudou de um sistema firmemente centrado no Grupo dos Sete (G7), liderado pelos Estados Unidos, para um sistema menos unipolar, embora ainda não bem definido. As potências ocidentais estão atoladas em uma crise de liderança e legitimidade gerada pela incapacidade dos EUA e de seus aliados de lidar com a crise econômica em curso (ou Terceira Grande Depressão), a ascensão econômica da China e a chegada dos principais países do Sul Global à arena política mundial, especialmente por meio do BRICS.1

Nesse contexto, o foco da política externa dos EUA em sucessivas administrações tem se voltado cada vez mais para o leste, de modo a contestar a ascensão da China, que Washington vê como a principal ameaça à sua proeminência global. O governo Obama chamou isso de “pivô asiático”, uma mudança estratégica que deveria ter dimensões econômicas e militares. Por um lado, a Parceria Transpacífica (TPP, na sigla em inglês) tinha como objetivo, nas palavras de Obama, “garantir que os Estados Unidos – e não países como a China – sejam os responsáveis por escrever as regras da economia mundial deste século” (Casa Branca, 2015). Por outro lado, a expansão do Comando do Pacífico dos EUA (posteriormente renomeado como “Comando Indo-Pacífico” em 2018) colocaria 60% dos navios de guerra dos EUA na Ásia-Pacífico até 2020 (BBC News, 2012). É importante observar que os EUA iniciaram essa virada hostil na política externa apesar de o governo chinês ter indicado que não buscava a primazia global. Em seu 18º Congresso Nacional, em 2012, por exemplo, o Partido Comunista da China (PCCh) definiu uma política externa que buscava criar “um novo tipo de relações entre grandes potências” em que a “ascensão pacífica” da China não confrontaria frontalmente os Estados Unidos (Xiao, 2013).

Tanto Donald Trump quanto Joe Biden, com suas próprias características, deram continuidade ao Pivô Asiático de Obama, com uma diferença importante. Quando Trump assumiu o cargo, ficou claro que o Congresso dos EUA não aprovaria a TPP, que logo entrou em colapso (no entanto, os países asiáticos – com a China como a maior economia entre eles – avançaram com a Parceria Econômica Regional Abrangente, assinada em 2020). A guerra comercial de Trump contra a China substituiu a intervenção econômica multilateral de Obama na região, já que Washington adotou uma postura mais beligerante em relação a Beijing.2 Em sua Estratégia de Segurança Nacional (2017), o governo Trump delineou uma estrutura de “Indo-Pacífico Livre e Aberto” que retratava explicitamente a China como uma ameaça, alegando que o país busca “desafiar o poder, a influência e os interesses americanos, tentando corroer a segurança e a prosperidade estadunidenses” e, por fim, “moldar um mundo antitético aos valores e interesses dos EUA” (Casa Branca, 2017).

O governo Biden aprofundou a política protecionista de Trump (geralmente chamada de “dissociação”) e militarismo. Por meio de amplos controles de exportação, o governo Biden procurou restringir o acesso da China a semicondutores de última geração (um dos pilares da Quarta Revolução Industrial) e a tecnologias relacionadas, ao mesmo tempo em que pressionou os líderes do setor de semicondutores, como Coreia do Sul, Japão, Taiwan e Holanda, a adotar restrições semelhantes (Shivakumar et. al., 2024). Enquanto isso, com a “lei dos chips” (em inglês, CHIPS and Science Act), de 2022, Biden procurou atrair novamente a fabricação de semicondutores para os EUA (Lovely, 2023). Como disse o ex-funcionário do Pentágono, Jon Bateman, referindo-se às políticas do governo Biden, “o objetivo estratégico e o compromisso político estão mais claros do que nunca. A ascensão tecnológica da China será desacelerada a qualquer preço. (…) [Os EUA] bloquearão abertamente o caminho da China para se tornar um jogador econômico avançado” (Bateman, 2022).

O mais alarmante é que Biden intensificou a estratégia militarista do Indo-Pacífico de seu antecessor. O governo Biden desenvolveu ainda mais o Diálogo de Segurança Quadrilateral (“Quad”), um agrupamento estratégico que inclui a Austrália, a Índia e o Japão revivido sob Trump, e criou novos blocos, como o pacto de submarinos movidos a energia nuclear entre Austrália, Reino Unido e Estados Unidos (AUKUS) e a parceria de segurança entre Japão, Coreia do Sul e Estados Unidos (JAKUS). Essas ações estão aumentando as tensões e alimentando uma corrida armamentista na Ásia, especialmente no nordeste asiático, que contém a maior presença militar dos EUA no exterior do mundo (Hussein; Haddad, 2021).

 Iri e Toshi Maruki, III Água, 1950, de Paineis de Hiroshima. Tinta sumi, carvão ou conté sobre papel, 180 × 720 cm.

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Construindo uma Otan asiática?

Na região da Ásia-Pacífico, a “ordem baseada em regras” liderada pelos EUA é mantida por meio de sua imensa presença militar no exterior, que se estende do Havaí e de Guam até a costa da China. No nordeste da Ásia, essa força está estacionada principalmente no Japão e na Coreia do Sul, que juntos contêm mais de 80 mil soldados e 193 bases militares dos EUA, representando quase um quarto de todas as bases estrangeiras dos EUA (Hussein; Haddad, 2021). Baseando-se nessa presença armada, a parceria militar trilateral dos EUA com o Japão e a Coreia do Sul está se aproximando de um nível de compromisso semelhante ao da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Na conclusão da Cúpula de Camp David de 2023, os EUA, o Japão e a Coreia do Sul emitiram uma declaração conjunta descrevendo sua “cooperação de segurança trilateral”. Nele, eles declararam o “compromisso de se consultarem mutuamente” e “coordenarem [suas] respostas aos desafios, provocações e ameaças regionais”, mencionando a China e a Coreia do Norte entre suas “preocupações comuns”. Além disso, os Estados Unidos “reafirmaram inequivocamente” que seus “compromissos de dissuasão” com o Japão e a Coreia do Sul eram “rígidos e apoiados por toda a gama de capacidades dos Estados Unidos” (Casa Branca, 2023). Como um todo, essas promessas estão perigosamente próximas do princípio da “defesa coletiva” que sustenta a aliança militar da Otan.

Os Estados Unidos estão ansiosos para minimizar essas comparações, com o conselheiro de segurança nacional Jake Sullivan afirmando enfaticamente que o acordo JAKUS “explicitamente não é uma Otan para o Pacífico” e insistindo que “não é algo novo” em termos de política externa dos EUA. Ao mesmo tempo, porém, Sullivan comemorou a parceria como um “avanço significativo” (Casa Branca, 2023b). Embora os compromissos da JAKUS de “consultar” e “coordenar respostas” possam ficar aquém do princípio de “defesa coletiva” da Otan, os funcionários dos EUA elogiaram o acordo por elevar “a segurança e a coordenação mais ampla para o próximo nível de uma forma realmente fundamental” (Katz, 2023). Com todos os três países se comprometendo a proteger um conjunto comum de valores, identificando a China como uma ameaça e se comprometendo com a defesa antimísseis e exercícios trilaterais anuais, a cooperação de segurança JAKUS possui elementos importantes de uma aliança militar que poderia arrastar a Coreia do Sul e o Japão para um conflito entre os EUA e a China, especialmente em torno de Taiwan.

Do ponto de vista militar, o pacto JAKUS aumentará o acesso dos EUA à “primeira cadeia de ilhas” na costa da China, que se estende do Japão, passando por Taiwan e Filipinas, até a Malásia. Durante a Guerra Fria, as autoridades dos EUA conceituaram essa “cadeia” de ilhas como a linha de frente de sua estratégia de contenção contra a União Soviética e a China. Os exercícios militares que antes ocorriam em uma base criada para este fim agora foram institucionalizados como exercícios trilaterais anuais de múltiplos domínios, promovendo a interoperabilidade das Forças Armadas dos três países (Comando do Pacífico dos EUA, 2023). Em termos mais amplos, os Estados Unidos pretendem usar essa aliança trilateral para preservar e fortalecer sua projeção de força na região, tendo como alvo o sistema de mísseis A2/AD (estratégia anti-acesso/Negação de área) da China – que impede o acesso e a capacidade de manobra dos navios de guerra dos EUA na região – por meio de uma estratégia de Defesa Integrada contra Ar e Mísseis (IAMD, na sigla em inglês) (Savage, 2022). A estratégia A2/AD da China envolve a implantação de mísseis de longo alcance para impedir que os porta-aviões dos EUA realizem operações perto da costa chinesa. Para combater isso, o IAMD planeja conectar ativos militares – desde mísseis Terminal de Defesa da Área de Alta Altitude (Terminal High Altitude Area Defence – THAAD) na Coreia até navios de guerra Aegis japoneses – em uma rede unificada com “integração ofensiva-defensiva” para proteger as operações de ataque (Comando do Pacífico dos EUA, 2021). Além disso, os radares dos três países seriam integrados a uma plataforma comum dos EUA no Havaí (Dominguez, 2023).

A criação dessa rede unificada está no centro da pressão dos EUA para que a Coreia do Sul e o Japão estabeleçam uma maior cooperação de segurança, inclusive compartilhando inteligência militar por meio do Acordo de Segurança Geral de Informações Militares (GSOMIA, na sigla em inglês), assinado em 2016. Embora o GSOMIA tenha sido anunciado como uma medida destinada a combater as atividades de mísseis norte-coreanos, seu compartilhamento abrangente de inteligência significa que as partes também são legalmente obrigadas a compartilhar informações relacionadas à China e à Rússia (Fórum do Pacífico, 2020). Com base nos acordos bilaterais existentes dos EUA com a Coreia do Sul e o Japão, o GSOMIA abriu caminho para o compartilhamento trilateral de inteligência, incluindo dados de alerta de mísseis em tempo real (Dominguez, 2023).

 Iri e Toshi Maruki, IV Arco iris, 1951, de Paineis de Hiroshima. Tinta sumi, pigmento, cola e carvão ou conté sobre papel, 180 x 720 cm.

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O bicho-papão norte-coreano

Duas das principais justificativas para o aumento das capacidades militares dos EUA e dos aliados no nordeste da Ásia são a “ameaça” representada pela Coreia do Norte e a necessidade de “defender” Taiwan. No entanto, é importante observar que a paz com a Coreia do Norte sempre foi secundária em relação às estratégias mais amplas de contenção dos EUA voltadas para a União Soviética e a China. Os EUA ainda não buscaram seriamente a paz de forma consistente com a Coreia do Norte desde que o acordo de armistício da Guerra da Coreia foi assinado em 1953. Ao longo das décadas, quaisquer avanços nas negociações foram sabotados, interrompidos e/ou negligenciados por mudanças na administração. Por exemplo, durante o governo Clinton, os EUA e a Coreia do Norte assinaram o Agreed Framework (1994), que quase ofereceu um caminho para a paz e a desnuclearização até ser paralisado por um Congresso dos EUA dominado pelos republicanos e depois inviabilizado pelos neoconservadores John Bolton e Robert Joseph durante o governo Bush Jr. (Hecker, 2023, p. 77 e 86). Essa dinâmica se repetiu novamente em 2019, quando as negociações entre os EUA e a Coreia do Norte entraram em colapso depois que o governo Trump mudou abruptamente os termos de um possível acordo durante uma cúpula em Hanói, no Vietnã (com Bolton mais uma vez desempenhando um papel fundamental) (Seong, 2020).

A manutenção de um estado de tensão e conflito controlado na Península Coreana serve como um pretexto útil para a atividade militar dos EUA na região. Por exemplo, a instalação do sistema antimísseis THAAD, de propriedade dos EUA, na Coreia do Sul em 2017 foi justificada como uma medida defensiva contra mísseis norte-coreanos, embora o local escolhido o impeça de defender metade da população do país, incluindo a área metropolitana de Seul (Kang, 2017). No entanto, a localização do THAAD permite que ele examine profundamente o sistema de mísseis da China (Taylor, 2017). Por meio da Nova Guerra Fria, os EUA continuam a inviabilizar a busca pela paz na Península Coreana e a promover divisões geopolíticas mais nítidas, com o sul se movendo em direção aos Estados Unidos e o norte em direção à Rússia e à China.

 Iri e Toshi Maruki, V Meninos e meninas, 1951, de Paineis de Hiroshima. Tinta sumi, carvão ou conté sobre papel, 180 × 720 cm.

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Taiwan, um ponto quente

Da mesma forma, a paz nunca foi o principal objetivo dos EUA no Estreito de Taiwan. Embora Beijing, Taipei e Washington reconheçam oficialmente que a ilha e o continente fazem parte da “China Única”, a intervenção dos EUA manteve as duas regiões divididas desde o fim da Guerra Civil Chinesa em 1949. As tensões mais recentes em torno de Taiwan começaram em 2016, com a eleição de Tsai Ing-wen, do Partido Democrático Progressista de Taiwan (DPP, na sigla em inglês), pró-EUA e com tendência separatista, que defende a posição de que Taiwan é um “Estado soberano” e “não faz parte da República Popular da China” (Democratic Progressive Party of Taiwan, 2024). A situação se agravou tanto com Trump quanto com Biden, pontuada por uma série de visitas polêmicas e sem precedentes à ilha por autoridades e legisladores dos EUA de ambos os principais partidos. Em 2020, o secretário de Saúde e Serviços Humanos de Trump, Alex Azar, tornou-se o mais alto funcionário do gabinete dos EUA a visitar Taiwan desde 1979. Dois anos depois, durante o governo Biden, a então presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, Nancy Pelosi, visitou a ilha, tornando-se a primeira presidente da Câmara a fazê-lo desde 1997. Essas reuniões fizeram com que a China respondesse com exercícios militares em larga escala, de acordo com sua Lei Antissecessão de 2005, que declara que “empregará meios não pacíficos e outras medidas necessárias para proteger a soberania e a integridade territorial da China” caso “as possibilidades de uma reunificação pacífica (…) se esgotem completamente” (Embaixada da República Popular da China, 2005). No 20º Congresso Nacional do PCCh em 2022, o presidente chinês Xi Jinping enfatizou novamente essa posição:

Taiwan é Taiwan da China. Resolver a questão de Taiwan é um assunto para os chineses, um assunto que deve ser resolvido pelos chineses. Continuaremos a nos empenhar pela reunificação pacífica com a maior sinceridade e o maior esforço, mas nunca prometeremos renunciar ao uso da força e nos reservamos a opção de tomar todas as medidas necessárias. Isso é direcionado apenas à interferência de forças externas e aos poucos separatistas que buscam a “independência de Taiwan” e suas atividades separatistas; não é de forma alguma direcionado aos nossos compatriotas de Taiwan (Jinping, 2022).

O maior foco de Washington em Taiwan reflete o declínio relativo da força militar apoiada pelos EUA na ilha em relação ao continente. Conforme observado em um relatório de 2022 do Serviço de Pesquisa do Congresso dos EUA, “Durante décadas, as Forças Armadas de Taiwan eram mais avançadas do que as da China (…) À medida que as forças aéreas, navais, de mísseis e anfíbias da China se tornaram mais capazes, o equilíbrio de poder no Estreito de Taiwan mudou significativamente a favor da RPC” (Lawrance; Campbell, 2022). Diante de uma China muito mais capaz, os Estados Unidos pressionaram Taiwan a adotar uma “estratégia do porco-espinho”, aumentando as vendas de armas para a ilha a fim de dar a ela a capacidade de infligir danos suficientes contra a China continental para evitar que Beijing consiga obter a reunificação por meios forçados (Kaushal, 2020). A estratégia depende, em última análise, da disposição de infligir pesadas baixas e danos contra a China continental e aceitar níveis ainda maiores de destruição para Taiwan.

 Iri e Toshi Maruki, VI Deserto atômico, 1952, de Paineis de Hiroshima. Tinta sumi, pigmento, cola, carvão ou conté sobre papel, 180 × 720 cm.

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A ameaça de escalada militar

Se os temores em relação a uma possível escalada militar na Nova Guerra Fria forem dissipados pela noção de que as tecnologias de defesa antimísseis podem proteger os Estados Unidos e seus aliados, um contra-argumento seria a porosidade dos sistemas de defesa antimísseis. Não importa quantos recursos sejam investidos na criação de radares para detectar mísseis e interceptores para neutralizá-los, o custo relativamente mais barato e a produção mais fácil de mísseis permitem que o país ofensivo “simplesmente construa mais mísseis para superar a defesa” (Arms Control Center, 2024). Isso ocorre porque os sistemas de defesa exigem maior precisão do que os mísseis ofensivos, pois eles têm a tarefa de abater um alvo em movimento no céu. O fato é que a defesa deve abater uma bala com uma bala. O sistema de Ground-based Midcourse Defense (GMD), que protege os Estados Unidos de ataques de mísseis, só foi eficaz em 55% das vezes em exercícios altamente programados. Para atingir um nível de confiança de 90%, o sistema GMD teria que disparar três interceptores por ogiva de entrada. Em toda a rede de defesa antimísseis dos EUA, incluindo os sistemas de alcance mais curto, a taxa de sucesso nos testes ainda é limitada a aproximadamente 80% (Arms Control Center, 2024). As tecnologias de defesa antimísseis são simplesmente incapazes de proteger completamente os Estados Unidos, muito menos Taiwan, Coreia do Sul ou Japão. Dessa forma, o único “impedimento” realmente viável é a ameaça de retaliação imediata em massa, que corre o risco de desencadear conflitos que saiam do controle e resultem em destruição mútua.

 Iri e Toshi Maruki, VII Arvoredo de bambú, 1954, de Paineis de Hiroshima. Tinta sumi, carvão ou conté sobre papel, 180 × 720 cm.

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Parte II: a “antiga” Guerra Fria nunca terminou

As tensões atuais no nordeste da Ásia estão fervilhando com base em linhas históricas divisórias que se abriram na região durante a “antiga” Guerra Fria. De um lado estavam os Estados Unidos, a Coreia do Sul, o Japão e Taiwan e, do outro, a União Soviética, a China e a Coreia do Norte. Para dar sentido à Nova Guerra Fria, é importante entender como essa história moldou o Japão, a Península Coreana e Taiwan.

Iri e Toshi Maruki, VIII Socorro, 1954, de Paineis de Hiroshima. Tinta sumi, pigmento, cola, carvão ou conté sobre papel, 180 × 720 cm.

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O rearmamento do Japão

Em 1947, após a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial, uma nova “constituição de paz” foi promulgada no país, na qual se comprometeu a “renunciar para sempre à guerra (…) e à ameaça ou uso da força como meio de resolver disputas internacionais” (Gabinete do Primeiro Ministro do Japão, 1947). Entretanto, diante da iminente Revolução Chinesa e temendo a disseminação do comunismo, os Estados Unidos decidiram apoiar o Japão como um baluarte anticomunista na região. Conforme relatam os historiadores do Departamento de Estado dos EUA, “a ideia de um Japão rearmado e militante já não alarmava as autoridades estadunidenses; em vez disso, a verdadeira ameaça parecia ser o avanço do comunismo, principalmente na Ásia” (Departamento de Estado dos EUA, 2024). A partir do Tratado de Paz de São Francisco de 1951 entre as potências aliadas e o Japão, os EUA construíram uma rede de alianças bilaterais na região conhecida como Sistema de São Francisco, que dividiu o nordeste da Ásia ao longo do Estreito de Taiwan e da Península Coreana (San Francisco Peace Treaty Project, 2024). Por mais de sete décadas, o Sistema São Francisco manteve as divisões regionais e manteve acesas as brasas do conflito no Estreito de Taiwan e na Península Coreana.

A principal preocupação dos Estados Unidos não era construir uma paz duradoura na Ásia do pós-guerra, mas aumentar sua força militar para a guerra contra o comunismo. John Foster Dulles, principal negociador dos EUA para o Tratado de Paz de São Francisco, descreveu a postura de Washington da seguinte maneira: “temos o direito de colocar quantas tropas quisermos no Japão, onde quisermos e pelo tempo que quisermos? Essa é a questão principal” (Departamento de Estado dos EUA, 1977, p. 812). Para atingir seus objetivos, os Estados Unidos obstruíram o processo de justiça após a guerra, ignorando a responsabilidade do Japão por seus crimes coloniais e de guerra (incluindo massacres, guerra biológica, escravidão sexual, experimentos com humanos e trabalho forçado).3 O tratado isentou o Japão de pagar indenizações às suas maiores vítimas. No entanto, entre os 51 participantes das negociações do Tratado de São Francisco, estavam ausentes a China continental, Taiwan e as Coreias do Norte e do Sul, todas submetidas à ocupação japonesa. Além disso, vários criminosos de guerra e oficiais de alto escalão do Estado Imperial Japonês (1868-1945) foram perdoados após a Segunda Guerra Mundial e restaurados ao poder pelos EUA, que estavam focados exclusivamente em fortalecer sua posição na Guerra Fria.

Entre eles estava Nobusuke Kishi, ex-governador do estado fantoche japonês de Manchukuo, no nordeste da China, que era conhecido como o “Monstro da Era Shōwa”.4 Preso após a guerra como suspeito de ser um criminoso de guerra de Classe A, Kishi foi libertado e, com o apoio dos EUA, tornou-se primeiro-ministro do Japão de 1957 a 1960 (Levidis, 2022). O Partido Liberal Democrático, nacionalista e de direita de Kishi, recebeu milhões de dólares em apoio da Agência Central de Inteligência dos EUA (CIA) durante a Guerra Fria e governa o país quase ininterruptamente desde 1955 (com exceção de 1993-1994 e 2009-2012) (Weiner, 1994). Como observa o historiador Andrew Levidis (2022), “uma linha reta corre entre Kishi e o presente, ligando a elite conservadora [atual] do Japão à era imperialista e do tempo de guerra”.

Ao manter a ala direita no poder, os Estados Unidos evitaram que o Japão tivesse que lidar com seu passado imperialista e encobriram sua história a fim de promover a remilitarização do Japão e fortalecer a posição estratégica dos EUA na Ásia. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, os EUA mantêm uma presença militar maciça no Japão, incluindo a ocupação de Okinawa de 1945 a 1972 (quando Okinawa foi devolvida ao Japão, embora o exército dos EUA tenha mantido sua presença na ilha). Durante esse período, o Japão, pressionado pelos EUA, tem se rearmado constantemente e expandido o escopo de suas Forças Armadas. Talvez mais perceptivelmente:

  • Em 1954, foi criado um novo exército chamado de Forças de Autodefesa do Japão (JSDF), apesar da resistência da população do país, cansada da guerra.
  • Em 1960, a JSDF se comprometeu a responder a ataques contra as Forças Armadas dos EUA em território japonês.
  • Em 1992, o exército japonês começou a participar de missões internacionais de manutenção da paz.
  • Em 1997, os EUA e o Japão adotaram novas diretrizes que permitiam que a JSDF operasse em “áreas vizinhas”.
  • Na década de 2000, o Japão participou de operações militares no exterior no Afeganistão e no Iraque em apoio aos EUA (Maizland; Cheng, 2021).

Atualmente, o Japão tem mais bases militares (120) e efetivo (cerca de 54 mil) estadunidenses do que qualquer outro país do mundo (Hussein; Haddad, 2021).

Em meio ao pivô dos EUA para a Ásia, a remilitarização do Japão se acelerou significativamente. Em 2014, o então primeiro-ministro Abe Shinzo (neto de Nobusuke Kishi) apresentou a noção de “pacifismo proativo” para reinterpretar a constituição do Japão do pós-guerra.5 A reinterpretação permitiu o uso da força pelo Japão em situações de “autodefesa coletiva”, inclusive se “ocorrer um ataque armado contra um país estrangeiro que esteja em um relacionamento próximo com o Japão e, como resultado, ameaçar a sobrevivência do Japão” (Ministério das Relações Exteriores do Japão, 2014). Em dezembro de 2022, sob o comando do primeiro-ministro Fumio Kishida, o Japão emitiu uma nova Estratégia de Segurança Nacional que apontou a China como “o maior desafio estratégico para garantir a paz e a segurança do Japão e a paz e a estabilidade da comunidade internacional” (Governo do Japão, 2022). Ao mesmo tempo, Kishida derrubou um teto que, desde 1976, limitava os gastos militares a 1% do Produto Interno Bruto (PIB) do país e anunciou que o Japão dobraria os gastos para 2% do PIB até 2027– igual à meta de gastos dos membros da Otan e que faria do Japão o terceiro na lista de países com maior gasto militar do mundo (Yeo, 2022). Em 2022, os seus gastos militares per capita já eram quase o dobro dos da China, uma diferença que continuará a crescer com o aumento dos gastos militares do Japão (Stockholm International Peace Research Institute, 2024).

Iri e Toshi Maruki, IX Yaizu, 1955, de Paineis de Hiroshima. Tinta sumi, pigmento, cola, carvão ou conté sobre papel, 180 × 720 cm.

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 A divisão da Coreia

Em 15 de agosto de 1945, imediatamente após a Coreia ter conquistado sua independência do domínio colonial japonês (1910-1945), os Estados Unidos dividiram a península ao longo do paralelo 38, que se tornaria a República da Coreia, no sul, e depois a República Popular Democrática da Coreia no norte. Essa divisão, que perdura até hoje, não teve nenhuma base histórica ou material além da intervenção dos Estados Unidos: dois coronéis estadunidenses traçaram uma linha arbitrária em um mapa da National Geographic e, em um instante, dividiram um povo em dois (Fry, 2013). Cinco anos depois, estourou a Guerra da Coreia. Apesar de afirmar que defendia os valores democráticos liberais, o Governo Militar do Exército dos Estados Unidos na Coreia, no sul, recusou-se, como disse o historiador Bruce Cumings, a “entregar a Coreia aos coreanos” (Cumings, 2005). Em vez de reconhecer as assembleias populares democráticas de base em toda a Península Coreana, o Governo Militar do Exército dos EUA na Coreia as oprimiu e perseguiu como comunistas. Em um esforço para inculcar relações de mercado entre a população do sul – “cuja grande maioria consistia de camponeses pobres e uma pequena minoria que detinha a maior parte da riqueza”, como escreveu Cumings (2005) – os EUA apoiaram a pequena e ofendida elite que havia colaborado com a ocupação japonesa.

Esse foi o pano de fundo para a divisão da Península Coreana e a eclosão da Guerra da Coreia. Apesar da natureza de procuração da guerra, seus horrores, mortes e destruição criaram a base material para uma ideologia anticomunista no sul que apoiou ditadores e reprimiu a dissidência por décadas sob a Lei de Segurança Nacional (Kyung-san, 2018). Embora os períodos de reaproximação com a Coreia do Norte tenham diminuído a eficácia polarizadora da “caça aos comunistas”, o anticomunismo continua a impedir um debate verdadeiro e aberto na Coreia do Sul. Além disso, o legado da colaboração durante a ocupação colonial não foi abordado e continua a moldar o sul. Para o 70º aniversário da libertação da Coreia, o meio de comunicação Newstapa lançou Collaboration and Forgetting (2015) [Colaboração e esquecimento], um documentário que revelou que, no sul, muitos descendentes dos combatentes da independência coreana vivem na pobreza porque suas famílias foram estigmatizadas como comunistas, enquanto os descendentes dos colaboradores japoneses vivem de suas consideráveis heranças de terras.6

O pacto de segurança trilateral JAKUS é o mais recente capítulo dessa história. No passado, o legado colonial do Japão na Coreia impediu que essa parceria entre o Japão e a Coreia do Sul fosse concretizada. Para contornar esse impedimento, o governo conservador de Yoon Suk Yeol da Coreia do Sul renunciou à responsabilidade do Japão por seus crimes. Por exemplo, Yoon ignorou uma decisão da Suprema Corte sul-coreana de 2018 que responsabilizou empresas japonesas, como a Mitsubishi, pelo trabalho forçado de coreanos (Je-Hun, 2023). Em contraste com a abordagem mais equilibrada adotada pelo governo anterior de Moon Jae-in em relação aos Estados Unidos e à China, o governo de Yoon adotou uma postura pró-EUA muito mais clara.7 O Partido do Poder Popular, ao qual Yoon pertence, é a mais recente encarnação política do movimento conservador da Coreia do Sul, cujas raízes remontam à colaboração com o colonialismo japonês e a ocupação estadunidense.8

 Iri e Toshi Maruki, X Petição, 1955, de Paineis de Hiroshima. Tinta sumi, pigmento, cola, carvão ou conté sobre papel, 180 × 720 cm.

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Taiwan, um “porta-aviões inafundável”

A Guerra Civil Chinesa foi travada intermitentemente de 1927 a 1945 entre o Partido Comunista da China (PCCh) e o nacionalista Guomindang (KMT). Com a intenção de impedir uma vitória comunista, os EUA apoiaram fortemente o KMT, fornecendo, por exemplo, mais de 2 bilhões de dólares em ajuda entre 1945 e 1949 (Departamento de Estado dos Estados Unidos, 1967). No entanto, o PCCh prevaleceria, estabelecendo a República Popular da China (RPC) no continente, enquanto o KMT fugiu para Taiwan, onde estabeleceu um governo rival no exílio, a República da China. Situada a cerca de 150 quilômetros da costa do continente, Washington utilizou Taiwan como uma plataforma para pressionar Beijing e isolá-la da comunidade internacional (por exemplo, de 1949 a 1971, os EUA e o KMT manobraram com sucesso para excluir a RPC da Organização das Nações Unidas (ONU), argumentando que Taiwan era o único governo legítimo de toda a China). De fato, as autoridades dos EUA se referiram abertamente à ilha como um “porta-aviões inafundável” (Time Magazine, 1950).

Durante a Guerra Fria, a República da China, apoiada pelos Estados Unidos, estabeleceu uma ditadura repressiva em Taiwan, incluindo um período de 38 anos de lei marcial, de 1949 a 1987, conhecido como “Terror Branco”, que foi marcado por severa repressão política, prisão e tortura de 140 mil a 200 mil pessoas e execução de 3 mil a 4 mil outras (Ministério da Cultura de Taiwan, 2014). Embora Washington tenha encerrado suas relações oficiais com Taiwan na década de 1970, quando normalizou suas relações com a China, manteve relações “não oficiais” com a ilha, incluindo amplos laços militares, políticos e econômicos. Como parte de sua Nova Guerra Fria, os EUA estão aumentando o armamento de Taiwan em parceria com forças separatistas (Wingfield-Hayes, 2023). Como a China deixou claro que considera Taiwan uma questão de “linha vermelha que não deve ser ultrapassada”, a intervenção contínua dos EUA ameaça desencadear um grande conflito na região (Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2023c).

Iri e Toshi Maruki, XI Mãe e filho, 1959, de Paineis de Hiroshima. Tinta sumi, pigmento, cola, carvão ou conté sobre papel, 180 × 720 cm.

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Parte III: um caminho para a paz no nordeste da Ásia

Para evitar o surgimento de conflitos no nordeste da Ásia, é necessário desfazer o sistema de alianças militares liderado pelos EUA e a tendência mais ampla de militarização que está aumentando as tensões na região. No entanto, para construir uma paz duradoura, os movimentos sociais e os governos também devem ir além e desmantelar as divisões históricas subjacentes semeadas pelo colonialismo, pela Guerra Fria e pela intervenção estrangeira contínua. Deve-se permitir que ambas as Coreias escolham seu próprio caminho de paz e reconciliação. A China continental e Taiwan devem ter permissão para determinar seu futuro sem interferência externa. O Japão deve assumir a responsabilidade por seu passado imperialista e enfrentá-lo. E, acima de tudo, as Forças Armadas dos EUA devem sair.

Em 28 e 29 de outubro de 2023, o International Strategy Center (ISC) realizou um fórum internacional intitulado “Building Peace: Preventing War in Northeast Asia” [Construindo a paz: evitando a guerra no nordeste da Ásia], que apresenta organizações e indivíduos envolvidos em lutas na linha de frente contra o militarismo dos EUA (International Strategy Center, 2023). As experiências dos movimentos locais de base na região, extraídas deste fórum e de outros locais, ajudam a ilustrar tanto os obstáculos quanto os possíveis caminhos para a paz.

Iri e Toshi Maruki, XII Lanternas flutuantes, 1968, de Paineis de Hiroshima. Tinta sumi, pigmento, cola, carvão, 180 × 720 cm.

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Lutas contra a militarização em Okinawa

As Ilhas Okinawa representam menos de 1% da massa terrestre do Japão, mas abrigam 74% das bases militares dos EUA no país (Hibbett, 2019). Em um referendo não vinculativo de 2019, 72% dos okinawanos votaram contra uma proposta de construção de uma nova base militar dos EUA na baía de Henoko-Oura, que substituiria a Futenma Marine Corps Air Station (Hibbett, 2019). Essa oposição está enraizada na história violenta da ocupação estadunidense – incluindo o estupro coletivo de uma menina de 12 anos por soldados americanos em 1995 – e na história de traição do Japão à ilha. Por exemplo, os civis de Okinawa foram usados como escudo do Japão continental contra o exército estadunidense que se aproximava em algumas das batalhas mais sangrentas no Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial (Song, 2023). Okinawa foi então sacrificada ao domínio militar dos EUA para que o Japão pudesse recuperar sua soberania nacional como parte do Tratado de Paz de São Francisco.

Além de buscar a paz, os movimentos sociais em Okinawa estão lutando contra a presença das bases militares dos EUA por motivos relacionados ao meio ambiente, à saúde pública e à violência de gênero. Por exemplo, o Projeto de Justiça Ambiental de Okinawa está contestando a realocação da base de Futenma para a área costeira da Baía de Henoko-Oura, dada a poluição tóxica produzida pelas bases militares dos EUA (Projeto de Justiça Ambiental de Okinawa, 2024). Enquanto isso, a luta contra a Base Aérea de Kadena, nos EUA, está ligada à violência sexual dos soldados estadunidenses, bem como aos acidentes relacionados aos aviões dos EUA que sobrevoam áreas urbanas. Muitas vezes, os movimentos que surgem inicialmente em resposta a outras questões evoluem para lutas mais amplas por paz e justiça.

A expansão dos gastos militares japoneses exigirá que o governo aumente os impostos ou reduza o bem-estar social, o que pode diminuir o apoio do público. Para angariar apoio, o governo japonês pressionou pelo posicionamento das forças da JSDF em algumas das ilhas do sul de Okinawa, cujas populações não compartilham as mesmas experiências de guerra ou ocupação, e contou com uma enxurrada de propaganda sobre ameaças relacionadas à China, Taiwan e Coreia do Norte. De acordo com Hideki Yoshikawa, diretor do Okinawa Environmental Justice Project Peace [Projeto de Paz e Justiça Ambiental de Okinawa], a resposta das organizações de base é trabalhar para “criar um movimento de paz maior e mais coeso”, realizando eventos e mobilizações para reunir grupos de paz do Japão continental e do exterior. A crescente aliança trilateral da JAKUS, observa Yoshikawa, “provocou uma contra-aliança entre os movimentos pacifistas” em cada um dos três países (Song, 2023).

 Iri e Toshi Maruki, XIII Morte dos prisioneiros de guerra estadunidenses, 1971, de Paineis de Hiroshima. Tinta sumi sobre papel, 180 × 720 cm.

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Um tratado de paz na Península Coreana

De junho de 2020 a julho de 2023, datas que marcaram o 70º aniversário da eclosão da Guerra da Coreia e do acordo de armistício, respectivamente, movimentos e povos da Coreia do Sul e de todo o mundo coletaram centenas de milhares de assinaturas para uma petição pedindo um tratado de paz para finalmente encerrar a Guerra da Coreia. Essa luta pela paz e reunificação tem sua origem nos esforços da sociedade civil que culminaram na primeira cúpula intercoreana, realizada de 13 a 15 de junho de 2000 em Pyongyang, e na declaração conjunta emitida pelo presidente sul-coreano Kim Dae-Jung e pelo presidente norte-coreano Kim Jong-il (United Nations Peacemaker, 2000). A reunião, que ocorreu na Coreia do Norte sob sigilo absoluto (para evitar a intervenção dos EUA), declarou que a paz e a reunificação seriam alcançadas por meio dos “esforços conjuntos do povo coreano, que é o dono do país”. Os EUA, no entanto, tinham outras ideias. Após os ataques de 11 de setembro ao World Trade Center, o presidente dos EUA, George W. Bush, agrupou a Coreia do Norte, o Irã e o Iraque como parte do “eixo do mal”, inviabilizando o incipiente processo de paz que havia se transformado em uma grande esperança para a Coreia do Sul e que havia sido apoiado pelo antecessor de Bush, Bill Clinton. Esse foi mais um caso em que a paz na Península Coreana foi mantida como refém dos interesses geopolíticos dos EUA.

Além desses esforços civis e diplomáticos para acabar com a Guerra da Coreia, a Coreia do Sul também continua a luta contra a presença militar dos EUA na península. Desde 2007, os moradores de Gangjeong têm manifestado sua oposição à construção de uma base naval que estacionaria navios de guerra dos EUA na Ilha de Jeju. Assim como a luta em Henoko-Oura Bay, em Okinawa, esse movimento surgiu inicialmente devido a preocupações com a destruição ambiental que a construção da base causaria, mas logo se transformou em uma luta maior contra a militarização. Embora o movimento antibase em Jeju tenha diminuído de tamanho ao longo do tempo, ele continua revelando como a militarização pode transformar as comunidades afetadas em bastiões da paz.

Iri e Toshi Maruki, XIV Corvos, 1972, de Paineis de Hiroshima. Tinta sumi sobre papel, 180 × 720 cm.

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Paz no Estreito de Taiwan

Em comparação com a Coreia do Sul e o Japão, o movimento pela paz em Taiwan é menos desenvolvido. De acordo com Daiwie Fu, professor da Universidade Nacional Yang-Ming Chao-Tong, em Taipei, e participante do fórum internacional do ISC, a população de Taiwan está praticamente dividida em relação à posição internacional da ilha, com 50% desejando um maior alinhamento com os Estados Unidos (dos quais 10% são a favor da independência e 40% de um status quo pró-EUA) e os 50% restantes preferindo um maior equilíbrio em relação à China (dos quais 10% são a favor da reunificação e 40% de um status quo mais neutro). No entanto, Fu observou que há uma contradição entre a militarização de Taiwan e a necessidade de maiores gastos sociais, criticando a “estratégia do porco-espinho” promovida pelos EUA e adotada por Taipei por pressupor uma eventual guerra de atrito que mataria  muitos civis em todo o Estreito de Taiwan.

Embora o Partido Democrático Progressista de Taiwan, com tendência separatista, tenha vencido as eleições gerais de janeiro de 2024, dados de pesquisas recentes indicam que as opiniões da população de Taiwan podem estar mudando. Enquanto as eleições de 2016 e 2020 resultaram em maiorias do PDP, a sua participação eleitoral caiu para 40% nas eleições de 2024, 17 pontos a menos do que em 2020. Enquanto isso, os partidos de oposição mais favoráveis a Beijing – o KMT e o Partido Popular de Taiwan  – obtiveram juntos 60% dos votos em 2024. Além disso, no período que antecedeu a eleição, a pesquisa American Portrait descobriu que apenas 34% da população de Taiwan achava que os EUA eram um país confiável, uma queda de 11 pontos em relação a 2021, com alguns comentaristas apontando a guerra na Ucrânia como tendo prejudicado a credibilidade dos EUA (The Guardian, 2023).

 Iri e Toshi Maruki, XV Nagasaki, 1982, de Paineis de Hiroshima. Tinta sumi, pigmento, cola, carvão ou conté sobre papel, 180 × 720 cm.

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Uma proposta para o Movimento pela Paz

Os Estados Unidos estão travando uma nova Guerra Fria contra a China para manter sua primazia global e a “ordem baseada em regras” que construíram. Embora essas “regras” sejam frequentemente equiparadas aos princípios da Carta das Nações Unidas, as duas não são a mesma coisa.9 Enquanto a Carta da ONU reflete o consenso de seus 193 Estados-membros, as “regras” da “ordem baseada em regras” não derivam do direito internacional, mas são autodeclaradas pelos EUA para atender a seus interesses nacionais. Sobre esse ponto, um relatório de 2022 do Council on Foreign Relations observou que “os Estados Unidos têm um dos piores registros de qualquer país na ratificação de tratados de direitos humanos e ambientais”(Wahal, 2022).

A desumanidade da “ordem baseada em regras” tem sido abertamente demonstrada durante o genocídio de Israel contra os palestinos em Gaza, que recebeu total apoio dos Estados Unidos. Acima de tudo, não são os direitos humanos, a justiça ou a liberdade que essa ordem busca defender, mas um mundo dominado pelos EUA e sustentado por uma rede global de mais de 900 bases militares estadunidenses – várias centenas das quais cercam a China (Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2024b).

As mudanças sísmicas que estão ocorrendo no nordeste da Ásia estão empurrando a região para a guerra. Durante esse período, os movimentos pela paz na região devem se unir em um conjunto comum de demandas e princípios, incluindo os seguintes:

  1. Encerrar a cooperação de segurança da JAKUS. Os acordos militares multilaterais que isolam ou visam outros países, por sua natureza, tendem a dividir as regiões em blocos ou campos opostos, promovendo tensões e gastos militares. O pacto trilateral entre os EUA, o Japão e a Coreia do Sul não é diferente.
  2. Pôr fim dos exercícios de guerra dos EUA. Embora rotulados como “rotina”, esses exercícios militares são hostis e provocativos. Por exemplo, exercícios de guerra conjuntos entre os EUA e a Coreia do Sul ensaiaram o lançamento de ataques nucleares contra a Coreia do Norte, a “decapitação” de sua liderança e uma invasão em grande escala. Enquanto isso, os exercícios de guerra dos EUA com a Austrália e as Filipinas ensaiaram ataques de longo alcance contra a China continental. Essas atividades agressivas fecham a porta para aberturas diplomáticas e deixam os países visados sem outra opção real a não ser mobilizar suas Forças Armadas em resposta.
  3. Pôr fim à intervenção dos EUA. Por mais de 70 anos, os EUA alimentaram as chamas do conflito no nordeste da Ásia, principalmente na Península Coreana e no Estreito de Taiwan. Em toda a Ásia-Pacífico, os povos da região devem ter direito de determinar seus futuros e caminhos para a paz, livres de interferência estrangeira e militarismo.
  4. Apoiar as lutas uns dos outros. A luta pela paz no nordeste da Ásia deve ser regional. Embora seja fácil ser absorvido pelas demandas imediatas de sua luta local, os problemas que a região enfrenta estão interconectados. Para enfrentá-los, é necessário ter uma visão de longo prazo e um compromisso de fortalecer todas essas lutas. Isso exige que as organizações participem ativamente de campanhas e lutas em toda a região, não apenas em seu próprio país, como a marcha anual pela paz em Okinawa, que ocorre todo mês de maio, as comemorações da cúpula intercoreana de 15 de junho de 2000 e outras iniciativas.
  5. Apoiar as lutas da linha de frente. Embora a guerra e a militarização possam parecer abstratas e distantes da vida cotidiana, elas são concretas e imediatas para aqueles que vivem perto dos locais de luta da linha de frente, como a Base Aérea de Kadena e a Baía de Henoko, em Okinawa, e a instalação do THAAD em Soseong-ri e a Base Naval de Jeju, na Coreia do Sul. As lutas nesses locais, que em grande parte começaram como uma resposta ao impacto local imediato que as pessoas sentiam em suas vidas diárias, oferecem focos de resistência que transformam os envolvidos e o público em geral.

Estamos em tempos perigosos. É imperativo que encontremos um terreno comum e um entendimento para que possamos trabalhar juntos em objetivos táticos e estratégicos. Nossa capacidade de fazer isso determinará se conseguiremos evitar a guerra e alcançar a paz na região e no mundo, permitindo que voltemos nosso foco para a melhoria do bem-estar das pessoas e do planeta.


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Notas

1 Leia mais sobre a Terceira Grande Depressão em: Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2023a; para saber mais sobre as economias do Norte Global e o imperialismo contemporâneo, ver: Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2024a.

2 Para saber mais sobre guerras comerciais, ver: Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2018.

3 Para ler mais sobre o papel dos Estados Unidos na reabilitação de criminosos de guerra no Japão, ver: Guillemin, 2017.

4 A era Shōwa refere-se ao reinado do imperador Shōwa (1926-1989), cujo início marcou a ascensão do militarismo no Japão.

5 A reinterpretação de 2014 da constituição do pós-guerra contornou o processo estabelecido de emenda constitucional e, em vez disso, foi feita por meio de uma decisão do gabinete. O gabinete de Abe era dominado por membros da Nippon Kaigi, uma organização não governamental japonesa de extrema direita da qual o próprio Abe também é membro. Ver Kawasaki; Nahory, 2014.

6 Dos 430 quilômetros quadrados de terras sul-coreanas que pertenciam aos colaboracionistas durante a ocupação japonesa – o equivalente a cerca de dois terços do tamanho de Seul – apenas 3% voltaram a ser propriedade do Estado desde a libertação.  Ver: Kim Ri-taek, 2019.

7 O governo Moon se comprometeu com os “três nãos”: não à implantação adicional do THAAD; não à participação na rede de defesa antimíssel dos EUA; e não ao estabelecimento de uma aliança militar trilateral com os EUA e o Japão. O governo Yoon, em contrapartida, abraçou o “Indo-Pacífico livre e aberto” dos EUA. Além disso, Yoon foi o primeiro presidente a participar de uma cúpula da Otan. Ver: Byong-su, 2017.

8 As raízes do Partido do Poder Popular e do movimento conservador mais amplo na Coreia do Sul remontam à ditadura militar de Park Chung-hee (1961-1979) e estão impregnadas de uma ideologia anticomunista. Antes da libertação da Coreia do Japão, Park serviu no Exército Imperial Japonês, ajudando a caçar combatentes da independência. Mais tarde, o Japão forneceria tanto a inspiração quanto os fundos para os projetos de modernização de Park. A filha de Park, Park Geun-hye, foi presidente da Coreia do Sul de 2013 a 2017, quando sofreu impeachment e foi condenada por acusações de corrupção. Após esse escândalo, o Partido do Poder Popular foi formado pela fusão de vários partidos conservadores, incluindo o sucessor do Partido Saenuri (Partido Coreia Liberdade) de Park Geun-Hye.

9 Para saber mais sobre a “ordem baseada em regras” e o sistema da ONU, ver: Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2023b.

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