Um novo começo

O período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial na Alemanha foi marcado pela destruição, fome, escassez e propagação de doenças. As mulheres representavam 60% da população alemã, e um número considerável de homens ficou ferido, permanentemente, incapaz de trabalhar, ou mesmo prisioneiro de guerra (Schröter; Rohmann, 2002, p. 503). Por pura necessidade e vontade de sobreviver, as mulheres uniram forças para apoiar umas às outras, removendo escombros enquanto cuidavam de crianças, idosos, traumatizados e feridos. No rescaldo da guerra, foram formados comitês de mulheres antifascistas, em sua maioria liderados por social-democratas e comunistas. Como grupos de interesse apartidários em âmbito municipal na Zona de Ocupação Soviética (a parte da Alemanha sob a administração da URSS), esses comitês assumiram importantes tarefas de bem-estar social, como a criação de salas de costura e lavanderia, o fornecimento de refeições por meio de cozinhas comunitárias, e oferecimento de apoio médico e psicológico às mulheres (Enkelmann; Külow, 2019, p. 31).

Katharina ‘Käthe’ Kern

(1900-1985) // Katharina esteve envolvida na luta pelos direitos das mulheres em diversas frentes; foi integrante ativa da resistência antifascista no Partido Social Democrata (SPD) e co-fundadora da Federação Democrática das Mulheres da Alemanha (DFD, na sigla em alemão) em 1947 e compôs seu conselho até sua morte. Ela liderou o secretariado feminino do SPD e mais tarde do Partido da Unidade Socialista (SED, na sigla em alemão) até 1949, bem como a DFD no parlamento até 1984 e foi diretora do Departamento Materno-Infantil do Ministério da Saúde entre 1949 e 1970. Katharina também liderou a Sociedade de Amizade Alemão-Soviética de 1958 a 1962.

As discussões no seio dos comitês de mulheres antifascistas com a Administração Militar Soviética na Alemanha (SMAD, na sigla em alemão) levaram à formação da Federação Democrática das Mulheres da Alemanha (DFD, na sigla em alemão) em 1947, que se tornaria uma força motriz da reconstrução da democracia antifascista, abrangendo a Alemanha Oriental e Ocidental antes de ser proibida nesta última em 1957. No congresso de fundação da DFD, a delegada Käthe Kern do Partido da Unidade Socialista (SED, na sigla em alemão) enfatizou a importância dessa organização de massas de mulheres, que, segundo ela, permitiria que “um grande número de mulheres sem filiação política partidária participasse no desenvolvimento da democracia alemã” (Bundesvorstand des Demokratischen Frauenbundes Deutschlands, 1989, p. 9). A formação política de massas e o trabalho cultural tornaram-se campos de ação decisivos numa luta ideológica que se propôs a transmitir um novo conjunto de valores, dos quais a igualdade de gênero era um componente chave. A DFD também desempenhou um papel fundamental na consagração da igualdade na Constituição da República Democrática Alemã (1949) e na elaboração de novas leis que promoveram a emancipação das mulheres, como o Código da Família, que tornou leis as novas relações sociais que estavam se desenvolvendo sob o socialismo.

No campo, a reforma agrária levada a cabo entre 1945 e 1948 pôs fim à servidão secular das mulheres agricultoras e trabalhadoras agrícolas, uma vez que foram dadas a elas terras que haviam sido expropriadas de grandes proprietários. Em 1952, surgiu a agricultura cooperativa, alterando fundamentalmente as condições de vida dos agricultores ao estabelecer horários fixos de trabalho, uma renda estável e férias remuneradas que foram estabelecidas nos acordos feitos por cada cooperativa e reforçadas pelo código trabalhista da RDA (Hörz, 1968/2015, p. 66). O movimento cooperativista procurou transformar as hierarquias no campo, com novos arranjos – como a prestação de cuidados infantis – para suplantar “ideias e hábitos ultrapassados”, como disse a DFD (Bundesvorstand des Demokratischen Frauenbundes Deutschlands, 1989, p. 129). As mulheres camponesas, que historicamente tinham menos direitos no campo e talvez fossem as que mais ganhavam, desempenharam um papel decisivo nesse movimento.

As novas leis refletem a agenda democrática radical seguida pela República Democrática Alemã (RDA) no período pós-guerra. As mulheres desempenharam com autoconfiança um papel ativo e de liderança na construção de um movimento socialista de mulheres que transformou essas reformas em lei e procurou reconstruir a sociedade. Esse novo começo na RDA foi também um renascimento político que procurou superar as condições antidemocráticas e burguesas e garantir a igualdade de participação no processo de produção, abrindo caminho para um novo papel social para as mulheres.

A vida das mulheres melhorou enormemente durante os 40 anos de existência da RDA em áreas como a autodeterminação, os direitos reprodutivos e o acesso a cuidados infantis e assistência médica de qualidade e a preços acessíveis. A sua participação no processo de produção desempenhou um papel crucial na concretização desses direitos, com o local de trabalho socialista ancorando essas transformações.1 Neste dossiê, o Fórum Zetkin para Pesquisa Social, o Centro Internacional de Pesquisa da RDA (IF-DDR, na sigla em alemão) e o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social analisam a história e o trabalho inacabado da emancipação das mulheres na RDA. Apesar das condições menos favoráveis ​​que se seguiram à dissolução da RDA em 1990, esse processo continua no presente e oferece lições valiosas para as lutas contemporâneas.

Igualdade jurídica

As novas leis e regulamentos estabelecidos na RDA derrubaram as disposições do direito burguês de propriedade e de família. Isso ocorreu em diversas frentes: economicamente por meio da expropriação de grandes corporações e propriedades rurais; legalmente por meio da abolição gradual das leis burguesas; e ideologicamente por meio do desmantelamento dos valores morais burgueses. Em total contraste com a Alemanha Ocidental, onde a supremacia dos homens foi protegida por lei até ao final da década de 1970 – o que, por exemplo, permitiu que os homens pudessem se opor a que suas esposas arranjassem emprego –, as mulheres na RDA estiveram diretamente envolvidas na elaboração, implementação e cumprimento de leis que aboliram sua subordinação.

O Código da Família, adotado em 1965, é o resultado desses esforços. Com base na compreensão da família como “a menor célula da sociedade”, o Código da Família estabeleceu os direitos e deveres das mulheres, dos homens e das crianças como membros iguais da sociedade, tanto dentro como fora do casamento (Deutsche Demokratische Republik, 1990). Como afirma o preâmbulo:

Com o desenvolvimento do socialismo na República Democrática Alemã, surgem relações familiares de um novo tipo. O trabalho criativo livre de exploração, as relações de camaradagem entre as pessoas nele baseadas, a igualdade de estatuto das mulheres em todas as áreas da vida e as oportunidades educativas para todos os cidadãos são pré-requisitos importantes para fortalecer a família e torná-la duradoura e feliz (…) É tarefa do Código da Família promover o desenvolvimento das relações familiares na sociedade socialista. (idem, ibidem)

O Código da Família proporcionou avanços numa série de medidas, tais como facilitar o divórcio e garantir a partilha equitativa dos bens.2 Também promoveu a emancipação das mulheres ao determinar que “ambos os cônjuges são responsáveis pela criação e cuidado dos filhos e na gestão da casa” e que “as relações entre os cônjuges devem ser concebidas de tal forma que as mulheres possam combinar as suas atividades profissionais e sociais com a maternidade” (Deutsche Demokratische Republik, 1965). Embora o casamento continuasse a ser um compromisso para toda a vida, também poderia ser finalizado a qualquer momento sem consequências, uma vez que “os fatores que na sociedade burguesa exercem uma compulsão externa para manter um casamento pouco saudável [tinham] sido largamente ultrapassados” (Deutsche Demokratische Republik, 1969, p. 29). Isto também se refletiu nas taxas de divórcio e casamento: embora o número de casamentos per capita na RDA fosse semelhante ou por vezes até superior ao da Alemanha Ocidental, conservadora e cristã, a RDA tinha uma das taxas de divórcio mais elevadas do mundo, 60% dos quais foram pedidos por mulheres (Anuário Estatístico da República Federal da Alemanha, p. 1990, p. 70; Anuário Estatístico da República Democrática da Alemanha, p. 404).

Além disso, o trabalho de reprodução social, que era em grande parte não remunerado e muitas vezes invisível, era agora visível e gerido socialmente por meio de creches, jardins de infância, centros de aconselhamento de maternidade e policlínicas gratuitas.3 A Lei sobre a Proteção das Mães e das Crianças e os Direitos das Mulheres (1950), por exemplo, exigia que organizações de massa e empresas de produção criassem creches, lavanderias e salas de costura (Hörz, 1968/2015, p. 89) .

Hilde Benjamin

(1902–1989) // Hilde, conhecida como ‘Red Hilde’, defendeu os comunistas perseguidos pelos nazistas como advogada da Red Aid. Ela ficou viúva após seu parceiro, Georg Benjamin, ser morto pelo nazismo num campo de concentração em 1942, embora isso não a tenha impedido de continuar o seu trabalho contra o fascismo. Apesar de perder o direito de exercer a advocacia, ela voltou à profissão após a guerra, tornou-se vice-presidente da Suprema Corte (1949-1953), bem como a primeira mulher ministra da Justiça do mundo (1953-1967), promovendo reformas administrativas e legais, como o Código da Família. Ela também se juntou ao comitê executivo nacional da Federação Democrática Alemã das Mulheres (DFD) em 1948.

Como explicou Hilde Benjamin, ministra da Justiça da RDA de 1953 a 1967, era essencial que as leis não só proporcionassem um marco para garantir e fazer cumprir os direitos sociais, mas também que “alcançassem mais progressos no desenvolvimento da consciência socialista” (Benjamin, 1958). As políticas da RDA fizeram isso de várias maneiras, tais como socializar os cuidados das crianças e dos idosos, permitindo assim aos cidadãos da RDA mais tempo para assumirem um papel ativo na construção de uma sociedade socialista.

Como resultado dessa mudança social, as mulheres exigiram cada vez mais melhores oportunidades de planejamento familiar. Com a aprovação da Lei sobre a Interrupção da Gravidez em 1972, pela primeira vez
as mulheres alemãs puderam decidir se queriam ou não fazer um aborto nas primeiras 12 semanas de gravidez. Nenhum motivo era exigido, nenhuma avaliação era prescrita.

A imprensa da Alemanha Ocidental alertou que tais medidas levariam à “destruição da família”. Isso não aconteceu. Em vez disso, as medidas políticas da RDA aumentaram a liberdade das mulheres, garantindo subsídios para os anos iniciais do cuidado infantil; as mães tinham licença maternidade integralmente remunerada de 6 meses, podendo ser estendida a até 12 meses, com até 90% da remuneração, e garantia de estabilidade após o retorno ao trabalho. A licença paternidade também era de até 12 meses com um pagamento de até 90% dos rendimentos médios líquidos (Hörz, 1968/2015, p. 173).


Lykke Aresin

(1921–2011) // Ex-neurologista e psiquiatra, Lykke tornou-se uma das sexólogas e especialistas mais proeminentes do mundo em direitos das mulheres e direitos reprodutivos, desempenhando um papel crucial nas políticas da RDA sobre métodos contraceptivos acessíveis e aborto gratuito, bem como no combate à discriminação contra pessoas LGBTQ+, garantindo direitos das pessoas transexuais no sistema de saúde pública. Ela estava profundamente comprometida com a educação popular e publicou vários livros para jovens leitores que forneciam informações sobre casamento, sexualidade e planejamento familiar, contribuiu em mais de 200 publicações científicas e discursou em inúmeras conferências na África, Ásia, Europa e América Latina. Além disso, foi uma integrante influente da Federação Internacional de Parentalidade Planejada e da Organização Mundial da Saúde.

Embora o desmantelamento da lei burguesa e a introdução do Código da Família e de outras legislações semelhantes tenham sido passos decisivos para a igualdade, reconheceu-se que isso por si só não alcançaria a igualdade social. Como disse o SED:

O importante agora é a solução gradual de todos os problemas que determinam até que ponto as mulheres podem fazer uso dos seus direitos iguais. Sem subestimar a crescente cooperação dos homens no agregado familiar, continua a ser um fato que o principal fardo é suportado pelas mulheres (…) [Devemos] melhorar os cuidados infantis para que as mulheres possam trabalhar. (Kranz, 2005, p. 73)

Esses problemas ficaram particularmente evidentes na falta de mulheres em posições de direção e na carga do trabalho doméstico e de cuidados.

 Trabalhar

O número crescente de mulheres que ingressaram no mercado de trabalho após a Segunda Guerra Mundial enfrentou vários desafios, incluindo a falta de estruturas de acolhimento de crianças adequadas, longos deslocamentos, infraestruturas de transporte subdesenvolvidas, horários de trabalho inadequados para as mães e discriminação persistente relativa à sua capacidade de desempenhar funções de gestão. Todos esses fatores restringiam a participação das mulheres na sociedade. A integração das mulheres na força de trabalho era, portanto, uma prioridade na RDA, uma vez que, como argumentou a especialista em ética Helga Hörz, a posição da mulher na sociedade só poderia ser “alterada por meio do seu papel no processo de trabalho”. Hörz (1968/2015, p. 23) argumentou que a incorporação das mulheres na força de trabalho não era apenas uma questão de proporcionar rendimento adicional ao agregado familiar ou de dar às mulheres o seu próprio dinheiro para despesas. Pelo contrário, o novo caráter social do trabalho, construído por meio da propriedade pública dos meios de produção, permitiu às mulheres um maior envolvimento na vida pública. Para as mulheres, isso significou não só uma maior participação na vida econômica, mas também um envolvimento ativo nos processos sociais e uma participação plena no sistema político.

Helga E. Hörz

(1935–) // Helga é uma filósofa marxista e militante dos direitos das mulheres. Ingressou no SED em 1952 e tornou-se professora de ética na Universidade Humboldt em Berlim Oriental, onde estudou a emancipação das mulheres na RDA de um ponto de vista filosófico e psicológico e lecionou sobre as interseções entre economia e direitos das mulheres. O seu trabalho e compromisso com a igualdade das mulheres levaram-na a tornar-se vice-conselheira da Federação Democrática Internacional das Mulheres de 1969 a 1990 e a ocupar cargos importantes como representante da RDA nas Nações Unidas, onde desempenhou um papel fundamental na elaboração e adoção da Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres.

No entanto, mesmo quando as mulheres foram integradas na força de trabalho numa escala sem precedentes, rapidamente se tornou evidente que elas estavam predominantemente envolvidas em tarefas menos complexas e não tinham a oportunidade de prosseguir com educação adicional e desenvolvimento profissional. Em seu Comunicado das Mulheres, publicado em Dezembro de 1961, o escritório político do comitê central do SED condenou o “fato de que uma percentagem totalmente insuficiente de mulheres e jovens exercem funções médias e de gestão”, culpando, em parte, “a subestimação do papel das mulheres” na sociedade socialista que ainda existe entre muitos – especialmente homens, incluindo dirigentes partidários, estatais, econômicos e sindicais” (Ulbricht, 1961, p. 1). O comitê central apelou a “todo o público” para superar esses problemas, mas considerou que os sindicatos, “como uma organização de massas de trabalhadores”, tinham a responsabilidade primária de “garantir o desenvolvimento de uma opinião social correta sobre o papel das mulheres no socialismo” (idem, p. 2).

Na recém-fundada Federação Sindical Alemã Livre (FDGB, na sigla em alemão), a revolucionária e sindicalista Grete Groh-Kummerlöw advertiu, já em 1946, que “[só] com as mulheres conseguiremos alcançar a unidade e, portanto, a vitória da classe trabalhadora” (SED Kreisleitung Plauen, 1985, p. 15). Até a década de 1950, contudo, os sindicatos não abordavam suficientemente a forma como as empresas representavam os interesses das mulheres. Em 1952, o SED começou a formar comitês de mulheres no local de trabalho, que deveriam atuar de forma independente ao lado dos sindicatos e exercer influência sobre eles. Assim que estes comitês surgiram, o DFD voltou ao seu foco original, trabalhando em áreas residenciais. Os comitês de mulheres defenderam a habitação, o cuidado das crianças e uma divisão do trabalho adequada à idade e contra as diferenças salariais (Clemens, 1990, p. 22-23).

Grete Groh-Kummerlöw

(1909–1980) // Nascida em uma família da classe trabalhadora, Grete foi militante sindical dos trabalhadores têxteis e membra do Partido Comunista (KPD). Ela ganhou um assento pelo partido no parlamento regional da Saxônia em 1930, aos 21 anos, tornando-a a integrante mais jovem do parlamento na Alemanha na época. Durante a Segunda Guerra Mundial, Grete lutou na resistência e foi presa. Após a guerra, ela mergulhou na reconstrução e renovação do movimento operário. Ela representou a Federação Sindical Alemã Livre (FDGB) no parlamento da RDA de 1950 a 1971. Como chefe do departamento de política social do FDGB, desempenhou um papel importante na reorganização do sistema de seguridade social, ajudando a implementar um sistema unificado gerido pelos próprios sindicatos e trabalhadores da RDA (Groh-Kummerlöw, 2024).

O comunicado, frequentemente referenciado em discussões subsequentes, criticava veementemente a complacência da direção do partido e das organizações de massas. A direção do partido reconheceu as suas deficiências e propôs soluções, como a introdução de “planos de avanço” para as mulheres. Esses planos, elaborados anualmente por um comitê de mulheres em consulta com representantes sindicais, criaram requisitos que a gestão da empresa era obrigada a seguir em questões como a educação das mulheres, medidas de saúde e segurança no trabalho e a expansão dos cuidados infantis e licenças para grávidas, lactantes e jovens mães (VFDG, 2017, p. 61). Tais planos eram parte integrante do acordo coletivo de trabalho entre o sindicato e a gestão, e a implementação e a execução eram supervisionadas pelos comitês de mulheres (VFDG, 2017, p. 62).

Esses planos tornaram-se uma ferramenta crucial para os comitês de mulheres defenderem medidas sociais e profissionais nas empresas e, assim, melhorarem as oportunidades de carreira para as mulheres (Hörz, 2010, p. 73). A incorporação dos comitês de mulheres nas estruturas sindicais do FDGB em 1965 aumentou ainda mais os direitos das mulheres trabalhadoras. Apesar dos desafios com que lutou nos seus primeiros anos, o FDGB emergiu como o órgão central de representação das mulheres, ultrapassando o DFD. Em 1987, dos 9,5 milhões de membros sindicalizados, 5 milhões eram mulheres, 1,4 milhões das quais estavam ativamente envolvidas em funções sindicais, como os comitês de mulheres (Enkelmann; Külow, 2019, p. 61).

No final da década de 1980, as mulheres tinham atingido os mesmos níveis de qualificação formal que os homens, com a proporção de mulheres no ensino superior e nas escolas técnicas chegando a 55% em 1988 (Schröter; Rohmann, p. 2002, p. 97). A paridade de gênero também se refletiu em áreas cruciais da vida político-democrática, influenciando as decisões e políticas tomadas sobre a vida social. As mulheres representavam mais de 50% de todos os juízes; 35% de todos os prefeitos; e 40% do parlamento (Aus erster Hand, 1986, p. 59). Apesar de não atingir a plena paridade de gênero em cargos de gestão, em 1986 havia mais mulheres em cargos de gestão na RDA (34%) do que na Alemanha hoje (28,9% em 2022).4 Em 1989 (um ano antes da dissolução da RDA), 92,4% de todas as mulheres em idade ativa estavam empregadas e a maioria delas era sindicalizada (Kaminsky, 2016, p. 97).

As mulheres gozavam quase de paridade salarial em comparação com outras sociedades industrializadas naquela época e hoje, embora a RDA não tenha conseguido erradicar completamente as diferenças salariais. Para as trabalhadoras da produção, por exemplo, houve uma diferença notável nos níveis salariais entre homens e mulheres, que foi em média de 16% entre 1984 e 1988 (em comparação com 30% na Alemanha Ocidental durante o mesmo período) (Stephan; Wiedemann, 1990, p. 550 e 556). Existem várias razões para essa disparidade. Por um lado, foram pagos prêmios monetários especiais aos trabalhadores envolvidos em trabalho por turnos ou pesado, que mais frequentemente cabiam aos homens (Stephan; Wiedemann, 1990, p. 550). Se esses prêmios e suplementos forem deduzidos dos salários, a disparidade salarial líquida entre homens e mulheres cai de 16 para 12%, em média, no mesmo período (Bundesministerium für Familie, 2015, p. 26-27). Outro fator que contribuiu para essa disparidade foi que, na RDA, os trabalhadores industriais (um setor predominantemente constituído por homens) eram mais bem remunerados que os trabalhadores dos serviços (predominantemente mulheres). Por último, com essas diferenças salariais relacionadas com o setor, a histórica falta de formação profissional para as mulheres, o número insuficiente de mulheres em cargos de gestão e o aumento do trabalho de tempo parcial na última década da existência da RDA contribuíram para a redução dos rendimentos das mulheres.

Apesar desses desafios, vale a pena notar que durante os 40 anos de existência da RDA, o nível salarial duplicou, enquanto as diferenças salariais globais entre os estratos sociais permaneceram pequenas. Por exemplo, os diplomados universitários ganhavam apenas 15% mais do que os trabalhadores da produção, em forte contraste com a Alemanha Ocidental, onde essa diferença chegava a 70% (Stephan; Wiedemann, 1990, p. 550). Outros exemplos notáveis ​​incluem o fato de apenas cerca de 5% dos salários serem destinados a aluguel (em comparação com cerca de 23% na Alemanha atual), os cuidados infantis e a escola serem gratuitos e os preços dos alimentos serem fixados em patamares baixos.

As conquistas da RDA em matéria de igualdade salarial continuam a ter impacto na antiga Alemanha Oriental. Por exemplo, um relatório publicado pelo Instituto Leibniz de Ciências Sociais em 2018 mostra que a disparidade salarial entre homens e mulheres é muito menor na antiga RDA (6,3%) do que na parte ocidental (20,6%), e a proporção do número de mulheres em posições de liderança também permanece superior (Wagner, 2021, p. 29). No entanto, o impacto duradouro da quase paridade salarial na antiga RDA é diminuído pelo fato de o rendimento na região permanecer muito inferior ao da Alemanha Ocidental, mesmo 34 anos após a chamada reunificação.

Brigadas de donas de casa

No meio da atmosfera de reconstrução do pós-guerra, no início da década de 1950, surgiram coletivos auto-organizados de mulheres desempregadas, muitas vezes mães e donas de casa filiadas ao DFD, para aceitarem trabalho remunerado de curta duração onde a mão-de-obra era urgentemente necessária, seguindo o exemplo de mulheres camponesas que se organizaram para ajudar na colheita. As militantes do DFD rapidamente organizaram brigadas também em outros setores, encorajando cada vez mais mulheres a entrarem no mercado de trabalho e a desafiarem o papel isolado das mulheres na esfera doméstica privada e individual, promovendo a organização coletiva e a integração no processo de produção.

Em 1960, existiam 4.031 brigadas de donas de casa compostas por cerca de 30 mil mulheres (Bundesvorstand des Demokratischen Frauenbundes Deutschlands, 1989, p. 154). A maior parte das brigadas foi para cooperativas de produção agrícola em áreas rurais, embora outras tenham sido direcionadas para os setores industrial, de serviços e de saúde. Vendo sua eficácia, as empresas passaram a solicitar as brigadas. No entanto, depois de alguns deles terem começado simplesmente a convocar as brigadas por curtos prazos para cumprirem as suas cotas, o DFD e a Federação Sindical Alemã Livre (FDGB) tornaram obrigatório que as empresas estabelecessem contratos como pré-condição para o destacamento de brigadas, fortalecendo assim os direitos laborais das participantes da brigada e abrindo caminho para o seu emprego a longo prazo.

Como observou o DFD, havia uma crença generalizada de que, embora a escassez do pós-guerra tenha inicialmente levado as mulheres a procurar emprego, o socialismo tinha progredido o suficiente para que as mulheres abandonassem o trabalho e ainda desfrutassem de um padrão de vida confortável (Bundesvorstand des Demokratischen Frauenbundes Deutschlands, 1989, p. 154). Num artigo de 1958 sobre as suas experiências de agitação entre donas de casa, a deputada do DFD, Käte Lüders, analisou como os homens – incluindo membros do partido – não queriam abdicar do “conforto doméstico” das suas esposas que cuidavam deles de bom grado, reforçando ainda mais essa dinâmica. As brigadas de donas de casa cumpriram assim dois propósitos importantes: primeiro, revitalizaram o debate político sobre o isolamento das mulheres na esfera doméstica e, segundo, reforçaram a sua participação no processo de produção e, portanto, a sua independência econômica em relação aos homens (Arendt, 1979, pág. 66).

No entanto, com o aumento do emprego das mulheres, que já tinha atingido 70% em 1965, e no contexto da recuperação econômica após a construção do Muro de Berlim, em 1961, a falta de acesso das mulheres ao desenvolvimento profissional e à formação de competências emergiu como uma questão ainda mais premente e as brigadas diminuíram (Staatliche Zentralverwaltung für Statistik, 1966, p. 62 e 518). Eram urgentemente necessários trabalhadores qualificados e as mulheres exigiam as oportunidades de formação profissional que lhes foram prometidas.

Trabalho doméstico

Embora a vida das mulheres tenha melhorado muito como resultado do projeto socialista na RDA, o duplo fardo do trabalho doméstico e os empregos remunerados revelou-se difícil de erradicar. Medidas como o Código da Família procuraram criar uma divisão mais igualitária do trabalho no lar, mas muitas vezes não foram implementadas de forma consistente. A entrada generalizada das mulheres no mercado de trabalho criou uma abertura para enfrentar esse duplo fardo: como resultado do seu envolvimento no processo de produção, as mulheres puderam expressar as suas necessidades e exigências como trabalhadoras, enquanto o próprio local de trabalho se tornou um lugar social onde o trabalho reprodutivo poderia ser socializado.

O Estado decidiu socializar o trabalho doméstico e criar condições para que as mulheres participassem mais plenamente na sociedade, em vez de ficarem presas à sua casa. Isso é particularmente evidente no caso do acolhimento de crianças: na Alemanha Ocidental, praticamente não havia acolhimento de crianças para as mulheres, o que muitas vezes impossibilitava que elas arranjassem trabalho ou se envolvessem de forma significativa na vida fora de casa (apenas 1,6% das crianças de 3 anos frequentavam creches em 1986). A RDA, entretanto, estabeleceu uma estrutura estatal abrangente de cuidados que oferecia creches gratuitas, frequentadas por 81,1% das crianças até os 3 anos de idade em 1986, bem como jardins de infância gratuitos e cuidados pós-escolares e programas de férias acessíveis ou financiados por empresas para crianças e famílias. Como resultado, enquanto a Alemanha Ocidental tinha uma taxa de colocação em jardins de infância de 67,6%, na RDA ela representava 93,4% (Bundesministerium für Familie, 2015, p. 54-55).

Embora tenham sido feitos esforços semelhantes para promover a igualdade no domínio do trabalho doméstico, não obtiveram o mesmo nível de sucesso. De acordo com os primeiros inquéritos detalhados sobre as horas dedicadas ao trabalho doméstico, realizados pelo Institut für Bedarfsforschung (Instituto de Investigação do Consumo) no início da década de 1960, as mulheres trabalhadoras dedicavam, em média, 4,6 horas por dia a tarefas domésticas – excluindo cuidar de crianças, os doentes e os idosos. Isso equivalia a 15 horas, ou 24% mais tempo de trabalho doméstico por semana do que os homens trabalhadores (Bischoff, 1966, p. 35 e 87).

No meio da recuperação econômica da década de 1960, prevaleceu o otimismo de que o tempo gasto nas tarefas domésticas poderia ser reduzido com a ajuda das novas tecnologias e que o trabalho que tinha sido realizado pelas mulheres individualmente, no isolamento da sua casa, poderia ser socializado. As diferentes soluções propostas para superar a dupla carga do trabalho doméstico suscitaram um debate: um lado argumentou que a melhor solução para esse problema era socializar o trabalho doméstico, enquanto o outro argumentou que a melhoria das condições para o trabalho doméstico – como o desenvolvimento e aumento do acesso a novas tecnologias – fizeram da abordagem individualizada do trabalho doméstico a melhor opção.

Herta Kuhrig

(1930–2020) // Herta foi integrante do órgão consultivo do governo Mulheres na Sociedade Socialista, e foi s ecretária científica do Conselho Científico de Pesquisa Sociológica da Universidade Humboldt. De 1964 a 1990 foi responsável por administrar o conteúdo e pela o pesquisa científica publicada no boletim INFORMATIONEN, que procurava proporcionar uma visão multifacetada sobre a posição da mulher na sociedade com base em contribuições de diversas áreas de investigação, como sociologia, história, literatura, economia e pedagogia. A pedido da Ministra da Justiça, Hilde Benjamin, Herta, junto com as Mulheres da Sociedade Socialista, redigiu, junto comos advogados Anita Grandke e Wolfgang Weise, o projeto do que viria a ser o Código da Família da RDA de 1965.

Esse debate ganhou força na década de 1960 com as pesquisas produzidas pelo Institute for Consumption Research. Seu diretor, Werner Bischoff, argumentou que a família deveria continuar a existir como uma unidade privada de consumo sob o estado nascente das forças produtivas na RDA. A aquisição e utilização adequada de aparelhos que aliviem o trabalho reprodutivo não só ajudariam a economia nacional, argumentou, mas também racionalizariam eficazmente o trabalho doméstico e poupariam tempo. Do outro lado desse debate estava Herta Kuhrig, que defendia a abolição e a socialização completa, ou industrialização, do trabalho doméstico. De acordo com Kuhrig, a tecnologia era suficientemente avançada para aliviar o fardo do trabalho doméstico das mulheres, mas faltava vontade política para fazê-lo. Bischoff, pelo contrário, enfatizou a validade da exigência de socialização, mas alertou para a sua natureza utópica se esta fosse vista como o único caminho a seguir nas condições econômicas dadas.

Em última análise, os tomadores de decisão optaram por uma estratégia para automatizar o trabalho doméstico. A partir da década de 1970, a mídia também mudou no sentido da participação de toda a família nas tarefas domésticas. Embora o trabalho doméstico tenha se tornado menos árduo devido ao maior acesso a tecnologias melhoradas (tais como novos sistemas de aquecimento e de lavagem), no geral, essa estratégia não foi eficaz: embora o trabalho doméstico tenha caído de 38 horas por semana em 1965 para 31 horas por semana no final da década de 1970, permaneceu praticamente inalterado durante a existência da RDA (Kaminsky, 2016, p. 117).

Um esforço para resolver essa questão foi o “dia do trabalho doméstico”, introduzido em 1952 para as mulheres que trabalhavam em período integral e eram casadas ou, se solteiras, eram mães que viviam em casa com as suas mães e com filhos menores de 16 anos.

As mulheres exigiram veementemente que o dia do trabalho doméstico se estendesse a outras camadas da população por meio de petições, reuniões sindicais e do DFD. Como resultado desses esforços, em 1965, os dias de trabalho doméstico foram estendidos às mães solteiras com filhos menores de 18 anos, independentemente de viverem ou não com as mães. O parágrafo 185 do Código do Trabalho da RDA de 1977 estendeu ainda mais os dias elegíveis para trabalho doméstico a mulheres solteiras e sem filhos com idade igual ou superior a 40 anos, bem como a pais solteiros e homens cujas esposas necessitassem de cuidados (Deutsche Demokratische Republik, 1990).

A decisão inicial de reservar o dia do trabalho doméstico apenas para as mulheres representou um dilema. Por um lado, havia uma necessidade real de evitar que o trabalho doméstico recaísse exclusivamente sobre os ombros das mulheres. Por outro lado, as estatísticas e a realidade da vida das mulheres trabalhadoras mostraram muito claramente que as mulheres continuaram a fazer a maior parte desse trabalho. A concessão de dias de trabalho doméstico a setores mais vastos da população foi uma tentativa de contrariar essa divisão de trabalho profundamente enraizada. Esta foi a primeira vez que uma parte do trabalho reprodutivo das mulheres, por menor que fosse, foi paga por lei.

O rescaldo

No final da década de 1980, um movimento de mulheres “independente” emergiu em oposição à organização de massas femininas da RDA, criticando sua aparente estagnação. Isso se deu em grande parte ao fato de o movimento organizado de mulheres na RDA ter lutado para envolver as gerações mais jovens e desenvolver o fervor revolucionário dos primeiros anos da RDA. No entanto, quando a chamada reunificação seguiu o seu curso, foi o movimento independente que foi fácil e voluntariamente instrumentalizado para fazer retroceder as conquistas da RDA: todas as leis foram anuladas e tornou-se claro que não haveria continuidade das políticas socialistas da RDA na sociedade capitalista.

Além do retrocesso nas proteções legais para as mulheres e no bem-estar geral dos alemães orientais, a privatização e a desindustrialização sem precedentes da economia da Alemanha Oriental apresentaram desafios únicos. Quando a infraestrutura social da RDA foi desmantelada, as mulheres foram as primeiras a enfrentar o desemprego, bem como o desprezo dos seus novos superiores da Alemanha Ocidental e, em última análise, foram empurradas de volta para um modelo familiar tradicional em que dependiam dos homens como únicos provedores.

A experiência na RDA mostra que as mulheres fizeram grandes progressos para quebrar a secular dependência econômica dos homens. Este provou ser um processo complicado e demorado que enfrentou os maiores obstáculos no domínio do trabalho doméstico. Embora as políticas na RDA, especialmente nos primeiros anos, constituíssem passos importantes na melhoria da vida das mulheres, era impossível impô-las simplesmente “de cima”. Foram as iniciativas de massa das mulheres, como as brigadas de donas de casa, que provocaram a mudança de mentalidade necessária para conquistar grupos sociais em favor da emancipação das mulheres.

Esse processo permaneceu inacabado na RDA. Quando ela foi dissolvida em 1990, o trabalho doméstico foi largamente deixado às mulheres e a disparidade salarial persistiu, tal como os papéis familiares tradicionais (embora cada vez menos pronunciados nas gerações mais jovens). No entanto, os exemplos trazidos neste dossiê testemunham o compromisso e a capacidade da RDA em procurar criativamente os instrumentos necessários para promover a emancipação das mulheres num determinado conjunto de circunstâncias. As contradições que emergiram durante esse processo refletem a necessidade de sempre renovare re validar constantemente as táticas adotadas em nosso compromisso inabalável com tal emancipação.

Nota

1 Para saber mais informações sobre o sistema de saúde da RDA, ver: Internacional Forschungsstelle DDR e Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, “Socialismo é a melhor profilaxia: o sistema de saúde da República Democrática Alemã, Estudos sobre a RDA n. 2, 14 fev. 2023. Disponível em: https://thetricontinental.org/studies-2-ddr-health-care-2/.

2 Sobre filhos ilegítimos, ver Grandke, Die Entwicklung des Familienrechts in der DDR, 211; Deutsche Demokratische Republik, Familiengesetzbuch, seções 13 e 39.

3 Ver: Internacional Forschungsstelle DDR e Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, “Socialismo é a melhor profilaxia”.

4 A seguir indica-se a percentagem de mulheres em todas as funções gerenciais: Em 1986, mais de 34% (Aus erster Hand, Gleiche Rechte, p. 53); em 1987, 33% (VFDG, Der FDGB, p. 19); em 1988, 32% (Staatliche Zentralverwaltung für Statistik, 40 Jahre DDR, p. 97); e em 1988/89, 31,5% (Bundesministerium für Familie, 25 Jahre Deutsche Einheit, p. 23). Dienel, Frauen in Führungspositionen, 154; Statistisches Bundesamt, “Frauen in Führungspositionen”.

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O escritório Brasil do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social tem a satisfação de reunir nesta publicação alguns dos textos mais recentes de Álvaro Garcia Linera, um dos mais destacados pensadores latino-americanos deste século.

São textos de combate, curtos, escritos no calor da hora do intervalo entre o golpe e a redemocratização na Bolívia e a ascensão de uma segunda onda progressista no continente, porém desprovida do vigor e da radicalidade da primeira onda, aquela que abriu flanco na hegemonia neoliberal, e ao mesmo tempo diante de uma extrema-direita radicalizada e com adesão social. São, portanto, reflexões que dizem respeito ao conjunto da esquerda, não apenas latino-americana.

Os textos aqui apresentados – com exceção de “Por que a extrema direita cresce no mundo” – foram organizados e publicados originalmente pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO) em espanhol. Parte da tradução em português foi publicada pelo site Outras Palavras. A este material, acrescentamos então as reflexões de Linera a partir da vitória de Javier Milei na Argentina, publicado originalmente pela revista Jacobin.

 Esta publicação é também parte das celebrações do Dia dos Livros Vermelhos de 2024. Todos os anos, a União Internacional de Editores de Esquerda convida militantes e organizações para celebrar a produção e organização da classe trabalhadora, tendo como marco a data de lançamento do Manifesto Comunista em 1848. A escolha dos textos de um intelectual orgânico, vinculado profundamente com a luta de classes e projetando os desafios e contradições deste período histórico nos parecem a escolha apropriada para celebrarmos este dia.

Agradecemos à Garcia Linera pela gentileza em disponibilizar seus textos e esperamos que suas provocações alimentem um novo impulso transformador em nosso continente.

 

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As colagens neste dossiê foram criadas pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social com base em fotografias de Satarupa Chakraborty durante o Festival Alegria em Aprender de 2023, em Siddapura. Essas fotografias estão entrelaçadas com imagens recortadas do Manual do Festival Alegria em Aprender (Kalika Habba Kaipidi), publicado pelo Samagra Shikshana Karnataka (Departamento de Educação Primária e Secundária, Governo de Karnataka) em 2022.

Alunos de várias escolas em Siddapura e vilarejos próximos participam de um ato para inaugurar o Festival Alegria em Aprender 2023.

O Movimento da Ciência Popular na Índia tem poucos paralelos no resto do mundo em termos de conceito, escala e escopo. O movimento começou popularizando a ciência em uma nação jovem e independente, na qual a maioria da população (87,8%) era analfabeta, e pouco familiarizada com conceitos científicos modernos (Shah, 2013, p. 12-16). O movimento propõe para si um papel complexo, adotando uma compreensão rigorosa da ciência que engloba fenômenos naturais e sociais, bem como as interações entre eles. Desde sua fundação, na década de 1960, o Movimento da Ciência Popular tem trabalhado para democratizar a geração de conhecimento e sua disseminação e integração na sociedade indiana, tendo como foco a consciência sociocultural do povo indiano. O movimento vê o pensamento científico e a aplicação de princípios científicos como necessários para a construção de uma sociedade que questione e compreenda as desigualdades e possa, enfim, escolher o caminho de ruptura com hierarquias opressoras. Uma consciência que está presa em dogmas religiosos, que aceita passivamente a tradição e a superstição, que é incapaz de investigar e analisar a natureza e a sociedade não tem as ferramentas científicas necessárias para construir um mundo social igualitário.

Este dossiê, Como o Movimento da Ciência Popular está trazendo alegria e igualdade para a educação em Karnataka, Índia, concentra-se na pedagogia e na filosofia do trabalho do movimento com crianças em idade escolar em Karnataka, um estado no sul da Índia com uma população de 69 milhões de pessoas. O documento se baseia em entrevistas com professores e militantes do Movimento da Ciência Popular e na participação do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social nos Festivais Alegria em Aprender (também conhecido como Kalika Habba), que ocorreu entre dezembro de 2022 e fevereiro de 2023.

As origens do Movimento da Ciência Popular

Em seus primeiros anos, o foco principal do Movimento da Ciência Popular era popularizar a ciência, explicando questões complexas em uma linguagem acessível e cotidiana, com o objetivo de combater crenças supersticiosas que apontavam a bruxaria como a causa de doenças, mortes e desastres (Isaac, Ekbal, 1988; Parameswaran, 2013). Nesse período, o movimento era composto em grande parte por várias organizações dispersas, muitas delas concentradas no estado de Kerala, no sul do país. O mais importante deles, o Kerala Sasthra Sahitya Parishad (Fórum de Escritores Científicos de Kerala, ou KSSP, na sigla em inglês), foi formalmente inaugurado em 1967. Várias das principais pessoas envolvidas nesse movimento estudaram na União Soviética e trouxeram os desenvolvimentos feitos pelos soviéticos para a Índia. M. P. Parameswaran, por exemplo, estudou engenharia nuclear no Instituto de Energia de Moscou (1965) e voltou a Bombaim para fundar a Federation of Indian Languages Science Association [Associação Científica da Federação de Línguas Indianas] em 1966, ansioso para popularizar as ciências em seu país.

O Movimento da Ciência Popular tem suas raízes no movimento nacional de independência da Índia, que tinha uma visão claramente anti-imperialista das ciências, em contraste com seu uso colonialista como um instrumento de exploração e lucro. Os cientistas daquela época viam seu campo como um elemento central no caminho para a emancipação do trabalho penoso e da opressão e procuravam combinar, como escreveu Amit Sen Gupta, “o potencial libertador da ciência com a consciência de que ela só pode prosperar entre pessoas que são verdadeiramente livres” (Sengupta, 2013). A importância que a nação recém-independente deu às ciências está refletida na Constituição Indiana (Artigo 51A), que afirma que “Será dever de todo cidadão da Índia […] desenvolver uma atitude científica, o humanismo e o espírito de investigação e reforma” (Ministry of Law and Justice, Government of India, 1950).

Quando a Índia independente decidiu embarcar em um caminho autônomo de desenvolvimento e romper com o centro de gravidade imperialista, tornou-se imperativo formar cientistas, engenheiros, médicos e outros profissionais científicos modernos que pudessem construir uma base sólida para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Esse esforço teve de enfrentar a sociedade rural do país, em grande parte atrasada e assolada por uma série de práticas retrógradas. O Movimento da Ciência Popular conseguiu fazer um progresso significativo nesse sentido, alimentando intelectuais como professores, engenheiros, médicos, pesquisadores e cientistas que eram produtos da vibrante cultura acadêmica pós-independência, enraizada em um forte interesse no desenvolvimento nacional, muitos deles parte do movimento estudantil ou influenciados pelos discursos sociopolíticos desse meio.

Nos anos que se seguiram à independência da Índia, o Estado desenvolveu institutos educacionais de qualidade para formar um grupo de intelectuais com visão de futuro e pensamento crítico, que não apenas lançariam as bases para a autonomia do país em termos de pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico e industrial, mas também seriam catalisadores no rompimento dos grilhões profundamente enraizados do feudalismo. No entanto, a verdade é que eles eram praticamente inacessíveis para a maioria da população, limitados em parte pelos recursos públicos insuficientes alocados a eles. Até mesmo as melhorias na alfabetização foram – e continuam sendo – lentas, com milhões de crianças crescendo sem entrar nas escolas ou tendo saído delas muito cedo (Social and Rural Research Institute, 2014).

Nesse contexto, o KSSP, apoiado pelo movimento de esquerda no estado de Kerala, no sul do país, desenvolveu programas inovadores de alfabetização científica. Um desses programas foi a formação de grupos culturais conhecidos como kalajathas, na década de 1970, por meio dos quais os militantes aproximaram a ciência das pessoas, principalmente nos vilarejos, por meio da arte, da música, da dança e do teatro. Isso inspirou campanhas semelhantes em estados de todo o país, bem como a formação da Bharat Gyan Vigyan Samiti (Associação Indiana de Conhecimento Científico ou BGVS, por sua sigla) em vários estados, incluindo Karnataka. Com base no trabalho do KSSP em Kerala, a BGVS tornou-se a principal força que impulsionou o Movimento da Ciência Popular em Karnataka e um ator importante na promoção da ciência em muitos estados do país.

Em 1984, um vazamento de gás e uma explosão na fábrica da Union Carbide na cidade de Bhopal (estado de Madhya Pradesh) estimularam a formação de muitos grupos de alfabetização científica em toda a Índia, vários dos quais se propuseram a explicar o aspecto criminal do vazamento e da explosão e a buscar justiça para os sobreviventes e as vítimas. Muitos desses grupos começaram a trabalhar juntos, o que culminou na formação da Bharat Jan Vigyan Jatha (BJVJ) ou Associação Científica Popular Indiana, que buscava aumentar o letramento popular sobre ciência em todo o país. Esse processo levou à formação de uma rede nacional de 26 organizações científicas em 1988, denominada All India People’s Science Network [Rede Científica Popular de Toda a Índia] (AIPSN, na sigla em inglês).

À medida que a AIPSN deixava sua marca no país, várias agências governamentais entraram em contato com ela para ajudar na Missão Nacional de Alfabetização, cujo objetivo era diminuir o analfabetismo de adultos na zona rural da Índia. A AIPSN viu uma imensa oportunidade na missão de levar seus esforços de alfabetização científica a todo o país. Logo, as unidades da BGVS em cada estado formaram uma rede por meio da AIPSN para auxiliar na tarefa, mantendo sua independência.

Por meio desses programas governamentais em toda a Índia, a AIPSN conseguiu crescer nos estados do norte da Índia, onde os movimentos progressistas historicamente não conseguiram desenvolver uma presença forte. Durante esse movimento de alfabetização de adultos, a AIPSN conseguiu alcançar 60 mil vilarejos em vários estados da Índia por meio da BGVS – um exercício sem precedentes no qual milhares de ativistas, professores e alunos viajaram por todo o país para ensinar as pessoas da Índia rural. Embora o Movimento da Ciência Popular tenha um longo histórico de atividades de construção para promover a ciência entre as crianças, a incorporação de dezenas de milhares de professores ao movimento de alfabetização por meio da BGVS permitiu que essas práticas chegassem às salas de aula em uma escala muito maior e impulsionou a democratização do movimento científico.


O proprietário de uma fábrica de óleo de coco explica o processo de produção aos alunos durante o Festival Alegria em Aprender de 2023 em Siddapura.

O neoliberalismo e o movimento científico

A BGVS e a AIPSN decolaram no final da década de 1980 e início da década de 1990, período em que a classe dominante da Índia estava impondo uma estrutura neoliberal ao país. Enquanto os ativistas da AIPSN se espalhavam pelo país para promover a alfabetização e combater a superstição como base para o conhecimento científico, as forças da extrema direita viajavam pela Índia para criar uma campanha para demolir uma mesquita do século XVI em Ayodhya (estado de Uttar Pradesh), mergulhando o país na divisão social. Desde então, a AIPSN tem trabalhado para intervir em uma sociedade que se tornou cada vez mais devastada pela crescente legitimidade do fanatismo religioso e do conservadorismo, bem como pela destruição dos sistemas de conhecimento e educação pelas forças neoliberais.

Essas forças neoliberais mudaram a direção de longo prazo do sistema educacional da Índia.1 Enquanto persistem os males profundamente enraizados gerados pela escassez de financiamento e de acesso à educação, essa visão nacional para a educação se reduziu a pouco mais do que fornecer uma força de trabalho barata, equipada com habilidades que beneficiam o capital nacional e internacional, em detrimento de uma educação completa que promova o pensamento crítico na sociedade. Aprender qualquer coisa além das habilidades técnicas imediatas necessárias para alimentar as indústrias não é visto apenas como um sério desperdício de recursos públicos, mas também como uma ameaça às estruturas sociais autoritárias e às ações estatais existentes. Nesse sistema orientado para provas e para o lucro, aqueles sem recursos que não conseguem concluir sua educação e aqueles que obtêm seus diplomas estão unidos pelo fato de estarem sendo jogados em uma reserva de mão de obra barata, abundante e dócil. A redução do financiamento governamental sob o neoliberalismo privou milhões de crianças da educação primária, enquanto as famílias de outros milhões se endividam permanentemente para pagar uma escola particular. Essas escolas particulares maximizam o lucro aumentando as taxas e pagando salários baixos aos professores, ao mesmo tempo em que não oferecem condições favoráveis à educação.2

A abordagem neoliberal da educação esvazia a obrigação constitucional em relação à ciência e incentiva uma adesão cega a pensamentos e ações irracionais e, muitas vezes, odiosos e violentos, incluindo uma visão distorcida, mas orgulhosa, da história antiga e um desprezo pela história e pelos sistemas científicos. Por exemplo, livros didáticos no estado de Gujarat afirmam que a Índia antiga possuía habilidades de engenharia genética porque os filhos de Kunti (a mãe dos Pandavas no épico Mahabharata, do século IV) nasceram fora de seu útero. Enquanto isso, o tribunal superior da cidade de Allahabad (estado de Uttar Pradesh) afirmou em 2021 que as vacas exalam oxigênio, e o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, afirmou em 2014 que a Índia antiga era excelente em cirurgia plástica, conforme evidenciado pelo Lorde Shiva hindu, que substituiu a cabeça de seu filho Ganesh pela cabeça de um elefante. Essa lógica permite que o capital obtenha sua mão de obra dócil, enquanto a sociedade obtém uma população que busca soluções para sua miséria em todos os lugares errados.

É importante observar que, diferentemente das ONGs que atuam na esfera social, o Movimento da Ciência Popular mantém distância do financiamento neoliberal. Por exemplo, a BGVS em Karnataka evita rigorosamente qualquer financiamento corporativo e institucional, como o do Banco Mundial e até mesmo de agências das Organização das Nações Unidas (ONU). Embora trabalhe com o governo, não recebe fundos do governo e depende totalmente das contribuições das pessoas.

A capa desta edição da revista mensal Professor da BGVS em 2021 retrata as escolas de bairro que a organização iniciou no início da pandemia de Covid-19.
Crédito: Megha Ramachandra

As escolas de bairro da BGVS

Foi nesse contexto de investida do neoliberalismo, do crescente sufocamento da educação pública e do aumento da divisão socioeconômica entre escolas públicas e privadas, a partir da década de 1990, que a BGVS se expandiu. Com a força de professores militantes, a BGVS aproveitou todas as oportunidades para questionar, mudar e transformar os métodos pedagógicos predominantes nas escolas de vários estados indianos. A BGVS tem se envolvido ativamente no desenvolvimento e na implementação de uma metodologia criativa de ensino para combater o preconceito da elite na educação, que afasta as crianças da aprendizagem; a utilização de métodos de ensino não científicos que matam a curiosidade das crianças; e a influência nociva do sistema de castas e dos dogmas religiosos nas mentes dos jovens.

Quando a pandemia de Covid-19 chegou e as instituições neoliberais insistiram no ensino remoto em um contexto em que a maioria das crianças não tinha acesso à Internet ou a computadores (enquanto as que tinham acesso não aprendiam nada significativo), a BGVS, em Karnataka, deu início às escolas de bairro [vatara shalas]. Os professores de escolas públicas se ofereceram para administrar essas escolas em salões comunitários e espaços públicos como pátios de templos, mesquitas ou igrejas, de acordo com as recomendações sanitárias em meio à pandemia. As cerca de 60 escolas de bairro iniciais, a maioria em áreas rurais, foram possivelmente a primeira resposta organizada, pelo menos na Índia, para lidar com a interrupção da educação após o início do isolamento social em abril de 2020, atraindo o apoio dos pais e a atenção da mídia. Isso obrigou o governo a anunciar seu apoio às escolas do bairro. Até o final do ano, havia mais de 35 mil escolas de bairro em Karnataka.

Com a bem-sucedida experiência das escolas do bairro, a BGVS conseguiu convencer o departamento de educação do governo a atenuar, até certo ponto, a fixação do governo em “resultados de aprendizagem” orientados pelo mercado. A pedagogia das escolas de bairro inspirou a participação de um grande número de professores voluntários que ajudaram a convencer o departamento de educação de sua importância. Isso resultou não apenas em apoio governamental adicional para as escolas de bairro, mas também para os Festivais Alegria em Aprender, já que o pior da pandemia chegou ao fim em 2022.

Os Festivais Alegria em Aprender

A alegria é essencial para o aprendizado. Essa perspectiva é sintetizada pelo canto e pela dança de alunos e professores como parte da metodologia dos festivais para ensinar ciências. Há dois componentes principais da metodologia dos festivais: primeiro, as quatro estações de aprendizagem nas quais as atividades dos festivais são divididas e, segundo, um programa de “convidado-anfitrião” por meio do qual crianças de outros vilarejos são colocadas em pares com alunos do vilarejo local, ultrapassando barreiras de casta, idioma e classe, vivendo e trabalhando juntos em pares durante os festivais. Embora o programa convidado-anfitrião ainda não tenha sido implementado em todos os festivais (e, na verdade, só esteja presente em uma minoria deles nesta fase), ele é fundamental para a metodologia desses eventos e para sua meta de acabar com as divisões socioeconômicas da sociedade indiana, com o objetivo de aumentar sua escala nos próximos anos.

Os festivais Alegria em Aprender 2022-2023 ampliaram a metodologia desenvolvida pelas escolas do bairro e se basearam nos 620 festivais que a BGVS realizou em 2019, antes da pandemia. Em contraposição às soluções neoliberais para o déficit educacional intensificado pela pandemia, esses festivais infantis são discutidos, projetados e implementados pelos próprios professores, com a participação dos pais, membros eleitos dos panchayats (autogovernos locais) dos vilarejos, comitês de monitoramento do desenvolvimento escolar e outros. Mais de 35 mil professores e 1 milhão de crianças participaram dos Festivais Alegria em Aprender de 2022-2023, que foram organizados em mais de 4.100 grupos (cada grupo é um conjunto de escolas, do 8º ao 12º ano, localizadas próximas em uma determinada área geográfica).

As crianças tocam, sentem, experimentam e exploram o assunto por conta própria, dando ao professor a oportunidade de explicar a mecânica e as teorias científicas relacionadas à atividade. Essa abordagem incentiva as crianças a experimentar, observar, compreender, analisar e encontrar padrões significativos na natureza e na sociedade enquanto trabalham em uma equipe coletiva. Essas atividades vão além de uma abordagem mais tradicional que se limita a palestras e livros didáticos, atraindo não apenas crianças, mas também seus pais nos pequenos vilarejos onde esses festivais são realizados.

Raveendra Kodi, um professor assistente no distrito de Udupi, em Karnataka, refletiu sobre essa forma de ensino:

A aprendizagem deve ir além da sala de aula; deve ser agradável e experimental, e deve desenvolver a curiosidade das crianças e sua capacidade de pensar criativamente e de se envolver criticamente. Nos focamos em como tornar o aprendizado interessante para as crianças.

Uday Gaonkar, professor de ciências, militante cultural e líder da BGVS, explicou que, embora as crianças muitas vezes não façam perguntas em uma sala de aula típica, elas geralmente participam mais se estiverem em um ambiente lúdico. Esse espaço de interação aberta é importante para seu crescimento intelectual. A pedagogia do movimento científico é, portanto, diferente do método convencional de ensino em sala de aula, que geralmente cria uma divisão entre “bons alunos” e “maus alunos” com base na adesão ao aceno acrítico com a cabeça em detrimento do pensamento crítico e do envolvimento prático. Uday Gaonkar reflete sobre o uso dessa abordagem de “aprender fazendo”:

Todas as quatro estações são divididas em duas faixas etárias. Por exemplo, quando crianças entre 10 e 13 anos de idade estudam uma árvore, elas a estudam de forma diferente das crianças mais velhas. As mesmas atividades podem ser realizadas de maneiras diferentes por grupos etários diferentes. As crianças mais velhas usam fórmulas de trigonometria um tanto complexas, o que as mais novas não conseguem fazer. Mas os alunos de todas as faixas etárias gostam dessas atividades, assim como os professores. As atividades em todas as estações de aprendizagem são projetadas de tal forma que não requerem especialistas; qualquer professor pode facilitá-las. Essas atividades ajudam os alunos a aprender coisas diferentes sem que lhes seja dito o que estão aprendendo.

Um grupo de estudantes apresenta o mapa feito depois de visitar a aldeia como parte da atividade do canto Uru Tiliyona (“descobrindoa aldeia”).

As quatro estações de aprendizagem

O festival é organizado em quatro estações de aprendizagem: “descobrindo o vilarejo”(Uru Tiliyona); ciências, ou “mãos à obra”(Madu Adu); desenvolvimento da linguagem, ou “cantar e tocar”(Hadu Adu); e artesanato, ou “tesoura e papel”(Kagadha Kattari). Todas essas estações de aprendizagem têm o objetivo de desenvolver curiosidade, observação e habilidades interativas, aprendizagem em grupo e pensamento científico entre as crianças.

1) Uru Tiliyona (“descobrindo o vilarejo”)

 Na estação Uru Tiliyona, os alunos fazem um breve passeio pelo vilarejo, durante o qual entrevistam as pessoas, aprendem sobre sua cultura e biodiversidade de sua comunidade, estudam e praticam como realizar medições e, por fim, preparam um mapa do vilarejo. Os participantes realizam quatro atividades principais:

  • estudo da ecologia de um espaço definido;
  • estudo de um objeto ou área específica, como uma árvore, a terra ou o ambiente ao redor;
  • elaboração de mapas de uma localização geográfica;
  • entrevista com os moradores.

Essa metodologia pode ser usada para estudar outros aspectos da vida no vilarejo, por exemplo, como a eletricidade é usada. Em outra atividade, as crianças visitaram dez casas e coletaram informações básicas sobre o uso de eletricidade: quantas pessoas moram em determinada casa, quanta eletricidade usam ali e quanto pagam mensalmente pelo serviço. Com isso, eles conseguiram calcular o consumo de energia per capita. Em seguida, as crianças compartilharam os resultados de seu estudo com os moradores.

Outra atividade ensinou aos alunos sobre a biodiversidade local. Nessa atividade, uma mulher idosa carregando um amontoado de folhas ajudou os professores, explicando por que aquele tipo de árvore cresce na região e como os moradores se beneficiam dela. Em seguida, os alunos foram a uma fábrica de óleo de coco nas proximidades, onde o proprietário interrompeu a produção por uma hora para explicar o processo de fabricação do óleo, o uso de vários cocos para fazer diferentes produtos e como as máquinas funcionam. “Eles não são apenas festivais infantis”, disseram os organizadores da BGVS; “são festivais dos vilarejos”. Essa breve caminhada com as crianças deixou isso bem claro, pois todo o vilarejo interagiu com o Festival de diferentes maneiras.

2) Madu Adu (ciência, ou “mãos à obra”)

Nessa estação, as crianças aprendem como determinados experimentos levam a resultados definitivos por meio de atividades lúdicas baseadas em conceitos científicos. Essa estação de aprendizagem é extremamente popular devido ao uso de histórias, músicas e danças. As atividades incluem:

  • o experimento da roda de neve de Newton-Benham, ou o disco que desaparece. Quando um disco que exibe as cores primárias é girado, aparece a cor branca, o que facilita uma discussão sobre a percepção visual;
  • aprendizado da ciência do atrito criando brinquedos, cujos materiais demonstram resistência ao deslizamento, e depois brincando com eles;
  • reprodução de uma ligação de telefone usando copos de papel e cordas para aprender como o som viaja.

3) Hadu Adu (desenvolvimento da linguagem, ou “cantar e brincar”)

 Essa estação se concentra no desenvolvimento da linguagem, no pensamento crítico e em atividades coletivas. As atividades trazem à tona uma infinidade de expressões por meio de jogos, músicas, apresentações e conversas, e ajudam as crianças a se abrirem para o mundo por meio de palavras, mas também por meio de outras formas de expressão. Ashok Thekkatte, um professor responsável por essa estação, explicou:

O Hadu Adu é um setor para o desenvolvimento da linguagem e, por meio de canto, dança e outras atividades, incentivamos as crianças a trabalharem em equipe. Há uma atividade em que damos às crianças duas palavras que rimam e pedimos a elas que encontrem outras duas palavras que rimam, e então elas compõem poemas sozinhas. Esse exercício os ajuda a adquirir o domínio do idioma.

4) Kagadha Kattari (artesanato, ou “papel e tesoura”)

Essa estação oferece um espaço para as crianças fazerem experiências e serem criativas com vários materiais. Os professores contam histórias que as crianças são inspiradas a ilustrar. Essa atividade é menos estruturada e mais aberta do que as das outras estações, deixando espaço para que as crianças conduzam a atividade sozinhas e usem o papel, a tesoura e as canetas fornecidas para criar diferentes formas, bonecos e imagens. Por meio de atividades como origami e artesanato em papel, as crianças aprendem precisão, limpeza e concentração.

Um grupo de estudantes apresenta o mapa feito depois de visitar a aldeia como parte da atividade do canto Uru Tiliyona (“descobrindoa aldeia”).

Quebrando barreiras

Os Festivais Alegria em Aprender e as escolas de bairro precisam enfrentar os aspectos regressivos da sociedade rural, principalmente as hierarquias de castas. Por exemplo, em uma das escolas da vizinhança – que as crianças da casta dominante e da casta dalit (casta oprimida) frequentavam durante a pandemia – as famílias da casta dominante se opuseram à entrada das crianças dalit em um templo do vilarejo onde a escola estava localizada. Os professores decidiram transferir a escola do bairro para a parte dalit do vilarejo, o que incomodou algumas famílias da casta dominante, que pediram aos professores que transferissem a escola de volta para o templo. Os professores disseram que só fariam isso se os pais da casta dominante concordassem que as crianças dalits pudessem entrar no templo, o que foi aceito. Como mostra essa anedota, os professores muitas vezes são capazes de fazer frente às estruturas sociais regressivas, experimentando maneiras criativas de romper barreiras sociais e preconceitos.

Outra abordagem desenvolvida como parte dos Festivais Alegria em Aprender para quebrar a discriminação profundamente enraizada em alguns lugares é chamada de método do convidado-anfitrião. Durante o Festival, as crianças de um distrito são alojadas nas casas de crianças de outro distrito, muitas vezes de diferentes origens socioeconômicas e castas. Por exemplo, durante o festival de Siddapura, 150 alunos da escola primária local e suas famílias hospedaram 150 crianças de outras partes de Karnataka em suas casas, trabalhando juntos durante os três dias do Festival. Cada par de crianças morava junto, comia junto e participava das atividades junto, superando as diferenças sociais, culturais, econômicas, linguísticas e outras entre elas.

Gaonkar nos ajudou a entender esse processo, que foi construído por longos períodos de luta:

É difícil quantificar e dizer com precisão em que escala nossos festivais causam impacto na sociedade. Mas certamente temos experiências extraordinárias. Em um festival em Sri Rangapatna, um estudante de Mangalore chamado Mohammad Hafil dormiu duas noites na casa de Punit, outro estudante. Hafil era de uma família abastada, enquanto Punit era de uma família de baixa renda. Naturalmente, havia problemas de recursos na casa de Punit, incluindo a falta de um banheiro, e até mesmo os alimentos que cada aluno estava acostumado a comer eram diferentes. No entanto, eles se tornaram amigos rapidamente. Antes de sair da casa de Punit, Hafil queria ver a avó de Punit, que já havia saído para trabalhar pela manhã. Então, ele pediu aos funcionários do departamento de educação que o levassem ao local de trabalho da avó. Depois de conhecer a avó, os oficiais perguntaram a ela se havia sido difícil aceitar Hafil em sua casa, pois ele era de outra religião. A avó de Punit simplesmente ignorou a pergunta.

Embora nem todos os casos levem a um entendimento mais generoso, isso ocorre com frequência. Nas reuniões de pais, surgem discussões em que os pais expressam sua reticência em receber crianças de outras origens. Essas discussões são importantes, especialmente porque os militantes da BGVS aproveitam essas hesitações para incentivar o companheirismo, em vez de silenciar essas manifestações públicas das evidentes hierarquias sociais.

Professores como organizadores

Os professores são, sem dúvida, o coração dos Festivais Alegria em Aprender. Eles decidem o local do festival, coordenam o processo com o governo local, desenvolvem as estações de aprendizagem e atraem o vilarejo para o festival. Os professores que vivenciam o evento ensinam outros professores, desenvolvendo a BGVS e incorporando ainda mais os festivais nos vilarejos e na sociedade indiana em geral.

Os professores da BGVS passam cerca de 15 a 16 horas trabalhando no primeiro dia do festival, sob forte calor e umidade. À noite, quando os alunos saem, os professores se reúnem para avaliar o trabalho deles e discutir como melhorar os festivais. Essas discussões revelam a ética de trabalho dos professores e seu esforço constante para criar uma sala de aula igualitária e chegar aos alunos mais marginalizados. Esse ato de dedicação é resultado de um vibrante processo de formação, do engajamento de pais e da liderança do vilarejo e, por fim, da enorme sensação de satisfação ao ver os alunos desfrutando do processo educativo.

Conclusão

O Festival Alegria em Aprender apresenta a filosofia do Movimento da Ciência Popular. A ciência e o conhecimento, nessa tradição, não são meramente acadêmicos. Em vez de se concentrarem no desenvolvimento individual, esse esforço social criativo desenvolve a capacidade dos alunos de pensar e refletir criticamente sobre o mundo. Ao envolver toda a comunidade do vilarejo no festival e ao envolver os alunos na prática da ciência (inclusive no estudo de sua produção agrária e de suas realidades econômicas), os festivais integram a ciência à comunidade como parte de um amplo processo cultural que responde diretamente ao ambiente e às condições materiais dos moradores e dos alunos, permitindo que eles desenvolvam uma compreensão baseada em fatos e observações feitas em seu contexto social.

Há muito tempo, o trabalho manual na Índia é desvalorizado e mantido separado da teoria e do conhecimento, em grande parte devido ao sistema de castas e depois exacerbado pela investida do neoliberalismo a partir de 1991. Isso cria um ambiente no qual a prática, a observação e os experimentos desempenham um papel secundário no ensino de ciências. As ocupações e comunidades associadas ao trabalho manual são menosprezadas e seus trabalhadores são privados de educação de qualidade e mantidos longe da teoria. Já aqueles que aprendem a teoria se mantêm longe do trabalho manual, criando uma divisão que não é propícia nem para o desenvolvimento científico nem para o desenvolvimento de uma atitude científica.

A maneira como a ciência e a tecnologia são praticadas sob o neoliberalismo anda de mãos dadas com atitudes sociais não científicas e com a ideologia propagada pela direita indiana. O ensino e a prática da ciência de forma descentralizada, experimental, observacional, prática e baseada em pesquisas são fundamentais para cultivar um pensamento científico entre as crianças. A concepção de ciência do Movimento da Ciência Popular não significa apenas investigar os fenômenos naturais, mas também compreender e analisar as relações sociais que deles subjazem.

Com base nesse entendimento, o Movimento da Ciência Popular criou um modelo facilmente replicável para o ensino de ciências por meio de seus Festivais Alegria em Aprender. Embora o Estado neoliberal seja obrigado – até certo ponto – a adotar esses modelos, eles não podem ser implementados em escala massiva enquanto a direita estiver no poder.

A singularidade do Movimento da Ciência Popular é que ele opera nos espaços disponíveis devido às brechas do capitalismo, diferenciando-o de outras organizações classistas que, por definição, confrontam o capital com força total. A abordagem do Movimento da Ciência Popular permite que o projeto socialista conteste a hegemonia cultural do neoliberalismo e a toxicidade social da direita, construindo novos espaços para a consciência científica, racional e humana.


Notas

1 Para saber mais sobre essa mudança neoliberal, ver: Narayanan, Dhar, 2022; Chakraborty, Ambedkar, 2022.

2 Os fundos públicos agora também estão sendo transferidos para escolas particulares. O ministro-chefe do programa Equal Education Relief, Assistance, and Grant [Auxílio, assistência e subsídio para educação igualitária] (CHEERAG), de Haryana, por exemplo, está incentivando os pais a mandarem seus filhos para escolas particulares, para as quais o governo arcará com um custo mínimo. Ao mesmo tempo, o governo introduziu taxas em suas próprias escolas. Para saber mais, ver: Siwach, 2022.

Referências bibliográficas

Chakraborty, Satarupa; Ambedkar, Pindiga (eds.). Students Won’t Be Quiet. New Delhi: LeftWord Books, 2022.

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Siwach, Satyapal. ‘Haryana Teachers Protest Against CHEERAG’, Peoples Democracy, 7 ago. 2022. Disponível em: https://peoplesdemocracy.in/2022/0807_pd/haryana-teachers-protest-against-cheerag.

Em janeiro de 2023, um repórter do Yomiuri Shimbun pediu à secretária de Comunicação do Ministério das Relações Exteriores do Japão, Hikariko Ono, uma definição do termo “Sul Global”. “O governo do Japão não tem uma definição precisa do termo Sul Global”, ela respondeu, e completou: “entendo que, em geral, se refere aos países emergentes e em desenvolvimento” (Ministério de Relações Exteriores do Japão, 2023a).

O governo japonês se esforçou para encontrar uma avaliação mais precisa do Sul Global, a qual tentou apresentar no Diplomatic Bluebook 2023. Em uma longa seção sobre a ideia do Sul Global, as autoridades japonesas reconhecem que o antigo Terceiro Mundo parece ter desenvolvido um novo estado de espírito. Quando os países do Norte Global, liderados pelos Estados Unidos, exigiram que os países do Sul Global adotassem a posição da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) sobre a guerra na Ucrânia (ou seja, isolar a Rússia), eles se recusaram, acusando o Ocidente de “dois pesos e duas medidas”, uma vez que, como observa o Ministério das Relações Exteriores do Japão, os EUA justificam suas próprias guerras enquanto critica as guerras dos outros. À luz desse novo clima no Sul Global, a chancelaria japonesa declarou a necessidade de uma nova atitude com “uma abordagem inclusiva que supere as diferenças de valores e interesses”; como escreveu o ministro da pasta, Yoshimasa Hayashi, no prefácio do relatório: “O mundo está agora em um momento decisivo da história” (Ministério das Relações Exteriores do Japão, 2023b).

Esse ponto de inflexão é exemplificado pelo fato de que poucos Estados do Sul Global estão dispostos a participar do isolamento da Rússia, recusando-se, por exemplo, a apoiar as resoluções ocidentais na Assembleia Geral das Nações Unidas. Nem todos os países que se recusaram a se juntar ao Ocidente em sua cruzada contra a Rússia são “antiocidentais” em um sentido político; muitos deles são motivados por questões práticas, como os preços mais baixos da energia na Rússia. Seja porque estão fartos de serem pressionados pelo Ocidente, seja porque veem oportunidades econômicas em seu relacionamento com a Rússia; cada vez mais os países da África, Ásia e América Latina se recusam a capitular diante da pressão de Washington para romper os laços com a Rússia. Foi essa recusa e evasão que levou o presidente da França, Emmanuel Macron (2023), a admitir que estava “muito impressionado com o quanto estamos perdendo a confiança do Sul Global”.

Em uma mesa de debate em 18 de fevereiro de 2023, na Conferência de Segurança de Munique, três líderes da África, da América Latina e da Ásia desenvolveram o argumento sobre por que estão insatisfeitos com a guerra na Ucrânia e com a campanha que os pressiona a romper laços com a Rússia. Como disse a primeira-ministra da Namíbia, Saara Kuugongelwa-Amadhila: “Estamos promovendo uma resolução pacífica do conflito [na Ucrânia] para que o mundo inteiro e todos os recursos do mundo possam se concentrar na melhoria das condições [de vida] dos povos em todo o mundo, em vez de serem gastos na aquisição de armas, na morte de pessoas e na criação de hostilidades”. Quando lhe perguntaram por que a Namíbia se absteve na votação das Nações Unidas sobre a guerra, Kuugongelwa-Amadhila disse: “Nosso foco é resolver o problema (…) e não transferir a culpa”. O dinheiro usado para comprar armas, disse ela, “seria melhor utilizado para promover o desenvolvimento na Ucrânia, na África, na Ásia, em outros lugares, e na própria Europa, onde muitas pessoas estão passando por dificuldades” (Conselho de Segurança de Munique, 2023).

Uma série de relatórios publicados pelas principais instituições financeiras ocidentais fazem eco ao desconforto de Macron sobre o declínio da credibilidade do Ocidente no Sul Global. A BlackRock observa que estamos entrando em “um mundo fragmentado com blocos concorrentes”, enquanto o Credit Suisse aponta para as “fraturas profundas e persistentes” que se abriram na ordem mundial (BlackRock Investment Institute, 2023, p. 13; Credit Suisse, 2023, p. 14). Em sua avaliação, o Credit Suisse descreve com precisão essas “fraturas”: o Ocidente global (países desenvolvidos ocidentais e aliados) se afastou do Oriente global (China, Rússia e aliados) em termos de interesses estratégicos centrais, enquanto o Sul global (Brasil, Rússia, Índia, China e a maioria dos países em desenvolvimento) está se reorganizando para buscar seus próprios interesses” (Credit Suisse, 2023, p. 14).

Para entender essas grandes mudanças que estão ocorrendo no mundo e a perplexidade do Norte Global com o novo clima no Sul Global, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social produziu o dossiê n. 72, A agitação da ordem global, com base na pesquisa realizada com a Global South Insights e em nosso documento de trabalho produzido em colaboração, Hiper-Imperialismo: uma nova fase perigosa e decadente (janeiro de 2024).1


Sobre os termos Sul Global e Norte Global

A Organização das Nações Unidas (ONU) é formada por 49 países do Norte Global e 145 países do Sul Global. Neste dossiê, usamos os termos “anéis” para descrever o Norte Global e “grupos” para descrever o Sul Global, com base nas representações das figuras a seguir. Os anéis do Norte Global são organizados em torno dos Estados Unidos e de seus aliados mais próximos no centro, sendo que cada anel que circunda esse centro, ou núcleo interno, é composto por Estados do Norte Global que, por diferentes motivos, não estão no núcleo interno. Esses anéis não sugerem nenhuma fragmentação do Norte Global, que opera como um bloco. O Sul Global, por sua vez, não é um bloco, mas um projeto emergente formado por diferentes grupos, cada um com sua própria lógica, como explicaremos a seguir.

O Norte Global

A guerra na Ucrânia esclareceu e acelerou certas mudanças geopolíticas. Por um lado, um grupo de países que segue a orientação dos Estados Unidos reagiu à entrada das forças russas na Ucrânia como um bloco militar, econômico e político integrado. Esses países participam de determinadas plataformas, das quais a Otan e o Grupo dos Sete Países (G7) são as mais significativas. Isso reflete uma dinâmica que vem ocorrendo desde a queda da União Soviética em 1991, na qual a Otan e o G7 agem juntos para conduzir uma agenda amplamente definida pelos Estados Unidos, com a Europa e o Japão como potências secundárias na aliança.

Nas últimas décadas, as contradições entre a Otan e os países do G7 foram amenizadas e ficaram em segundo plano. Apesar das diferenças secundárias entre as posições e capacidades militares, econômicas e políticas desses países (como a discordância entre os EUA, o Reino Unido e a França sobre quem exportaria submarinos para a Austrália em 2021), o Norte Global pode ser melhor entendido como um bloco que está disposto a se unir em torno de questões centrais (Krause-Jackson et al., 2021; Prashad, 2021).

O intelectual egípcio Samir Amin escreveu, em 1980, sobre a “consolidação gradual da zona central do sistema capitalista mundial (Europa, América do Norte, Austrália)”. Logo depois, Amin começou a usar o termo Tríade para se referir a essa “zona central” de potências imperialistas que surgiu após a Segunda Guerra Mundial (Amin, 1980, p. 104; Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2023). Ele argumentou que as classes dominantes da Europa e do Japão haviam subordinado seus próprios interesses nacionais ao que o governo dos Estados Unidos começou a chamar de “interesse comum”. Com base na concepção de Amin, organizamos a Tríade em quatro anéis, com modificações que refletem as tendências atuais das relações internacionais e regionais.

Esses quatro anéis são:

  1. O núcleo interno dos Estados colonizadores anglo-americanos imperialistas liderados pelos EUA, formado por Austrália, Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia e Reino Unido (todos fazem parte do Five Eyes Intelligence Oversight and Review Council [Conselho de Revisão e Supervisão de Inteligência dos Cinco Olhos], uma rede de agências de inteligência vinculadas por acordos não divulgados), além de Israel. Esses países – enraizados em formas de supremacia branca – são os mais avançados nas áreas militar, econômica e política, com os Estados Unidos mantendo o domínio sobre o grupo.
  2. A camada seguinte é composta pelas nove principais potências imperialistas europeias: Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França,  Holanda, Itália, Noruega e Suécia. Todos esses países são membros da rede de espionagem “Quatorze Olhos” (formalmente conhecida como Sigint Seniors Europe), e todos são membros da Otan (com a adesão da Suécia praticamente garantida). Esses poderosos países europeus, no entanto, subordinam seus interesses nacionais ao núcleo interno, operando quase como Estados vassalos. Veja o caso da Alemanha, que – apesar de ter uma das maiores economias do mundo e dominar a União Europeia –, ainda assim enfraqueceu sua capacidade de cuidar de seus cidadãos desde o início da guerra na Ucrânia, em 2022, para não contestar a hegemonia dos EUA sobre a política externa europeia. Como descreveu o economista Michael Hudson, essa é “a terceira vez em um século que os Estados Unidos derrotam a Alemanha” (Hudson, 2022).
  3. O terceiro anel é formado pelo Japão e por potências europeias secundárias, como Áustria, Finlândia, Grécia, Irlanda, Portugal e Suíça. Embora leais aos Estados Unidos, esses países não têm tanta influência na ordem mundial quanto as potências imperialistas europeias, com base em suas capacidades militares, econômicas e políticas. Alguns deles, como Portugal, Finlândia e Islândia, fazem parte da Otan, mas são menos importantes para a estratégia militar dos EUA. No caso de Portugal, por exemplo, apesar de ser uma antiga potência colonial, seu PIB relativamente menor é um fator de exclusão do círculo de potências europeias secundárias.
  4. O quarto anel externo é composto por dezenove países do antigo Bloco Oriental. Esses países, que não eram potências coloniais, foram atraídos para o bloco imperialista na era pós-Guerra Fria, principalmente por meio da subordinação econômica e da expansão da Otan no leste. Alguns desses países são governados por regimes de direita pró-Otan (por exemplo, Polônia, Ucrânia e Estônia), que desempenham um papel de linha de frente nos esforços do Ocidente para conter a Rússia. Outros tentam manter distância da Otan (como a Sérvia), embora a pressão ocidental muitas vezes não lhes dê muita escolha.

Em 1945, os EUA começaram a consolidar sua hegemonia sobre os países do Norte Global por meio de três eixos principais:

  1. O domínio militar dos Estados Unidos na Europa por meio da Otan e a expansão das bases militares dos EUA nas potências do eixo derrotadas (Alemanha, Itália e Japão).
  2. Integração econômica e dependência dos Estados Unidos por parte do Japão, da Europa Ocidental e dos Estados colonizadores anglo-americanos. Isso começou com o Plano Marshall (1948) na Europa e no início da ocupação militar do Japão (1945-1952).
  3. A subordinação política das elites dos Estados colonizadores europeus, japoneses e brancos à estrutura de elite dos EUA, selecionando quais partidos políticos teriam permissão para estar no poder. Isso foi realizado por meio da criação de uma elite global pró-EUA, por exemplo, abrindo as universidades dos EUA para estudantes de elite dessas partes do mundo e formando um conjunto de redes (como a Reunião de Bilderberg em 1954) que buscavam criar um entendimento comum do mundo moldado pelos Estados Unidos (Prashad, 2020).

Além da subordinação do Norte Global aos Estados Unidos ao longo desses três eixos – que exigiu muito esforço e luta para ser alcançada –, três outros fatores são fundamentais para entender tanto o conceito de Norte Global quanto a lógica dos quatro anéis em que dividimos esses países.

  • Uma história compartilhada de brutalidade. O termo Norte Global não é um termo geográfico neutro. De fato, ele decididamente não é geográfico, dada a inclusão de países como a Austrália e a Nova Zelândia em seu núcleo interno. Em vez disso, o termo Norte Global é sinônimo de outros termos, como Ocidente e países avançados. Todas essas são designações educadas para o termo mais adequado: o bloco imperialista. Vale a pena observar que a maioria desses países – sejam eles os liderados pelo núcleo anglo-estadunidense (como Reino Unido e os Estados Unidos); o núcleo europeu (como a Alemanha e a Itália); ou potências europeias secundárias (como Portugal e Áustria) – moldaram o mundo moderno por meio de uma história compartilhada de violência que começou com o tráfico atlântico de pessoas escravizadas e continuou com o uso de bombas nucleares contra os civis em Hiroshima e Nagasaki e o genocídio contínuo dos palestinos. Não existe uma contabilização abrangente das centenas de milhões de pessoas mortas pelo colonialismo.2Uma característica central dessa violência é a drenagem da riqueza das regiões colonizadas do mundo para as potências coloniais, que não apenas encheu os cofres dessas potências e pagou pela infraestrutura opulenta existente ainda hoje; ela também moldou o sistema neocolonial que continua a sugar a riqueza dos Estados colonizados muito depois do fim do colonialismo formal.
  • O escoamento da riqueza do Sul para o Norte. Apesar de representarem apenas 14,2% da população mundial, os 49 países do Norte Global respondem por 40,6% do Produto Interno Bruto (PIB) do mundo, com base na Paridade do Poder de Compra (PPC).3 Ao controlar o capital e a produção de matérias-primas, a propriedade intelectual e a ciência e tecnologia – todos parte do legado do colonialismo –, os países do Norte Global continuam garantindo o acúmulo de uma parcela maior da riqueza do planeta. Um exemplo do enorme roubo colonial de riquezas são os quase 45 trilhões de dólares que os britânicos drenaram da Índia entre 1765 e 1938, o que representa quase todo o período de domínio britânico na Índia (1757-1947). Essa riqueza inundou o sistema bancário britânico, possibilitou a acumulação de capital para a industrialização britânica e criou vantagens que perduraram por gerações (Patnaik, 2019). Enquanto isso, a expectativa média de vida diminuiu em 20% entre 1870 e 1921; e a taxa de alfabetização quando a Índia conquistou sua independência em 1947, após 300 anos de colonialismo, era de apenas 12,2% (Hickel; Sullivan, 2023).
    Um artigo recente mostra que, com base em trocas desiguais, 152 trilhões de dólares foram saqueados do Sul Global entre 1960 e 2017. Os autores destacam que, somente em 2017, o Norte Global se apropriou de 2,2 trilhões de dólares em commodities no Sul Global – “o suficiente para acabar com a pobreza extrema 15 vezes” (Hickel et al., 2021).  Imagine se pudéssemos calcular toda a drenagem de riqueza das (antigas) colônias e o impacto social que isso teve em seus sistemas de saúde e educação.
  • Uma condição comum de militarização e inteligência. O papel das redes de inteligência é frequentemente subestimado na avaliação do poder do Norte Global. A categoria de “inteligência” não se trata mais apenas de espionagem do tipo antigo, mas agora inclui vigilância digital e guerra (incluindo ataques cibernéticos à infraestrutura principal). Cada um dos países do Norte Global participa de uma coordenação militar de alto nível e do compartilhamento de inteligência, impulsionado pelo núcleo interno. Quanto mais próximo um país estiver do núcleo interno, mais sincronizado será o nível de inteligência e coordenação militar. Isso não significa que os países dos anéis externos não estejam ligados aos sistemas do núcleo interno, mas apenas que eles não são convidados a entrar no santuário interno dos sistemas de informações e armas. A estrutura dos quatro anéis se reflete nas redes globais de inteligência, como exemplificado pelas distinções entre as redes de inteligência Five, Nine e Fourteen Eyes. A rede de inteligência Five Eyes (composta por cinco dos seis países do núcleo interno, Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Reino Unido e Estados Unidos – com Israel como um “sexto olho” de fato) trabalha em estreita colaboração, mas mantém uma distinção dos países Nine Eyes (Dinamarca, França, Holanda e Noruega, adicionados aos Five Eyes) e, finalmente, com os países Fourteen Eyes (Bélgica, Alemanha, Itália, Espanha e Suécia, adicionados aos Nine Eyes), que têm acesso a um nível de compartilhamento de inteligência cada vez mais reduzido quanto mais se afastam do núcleo interno.

O Sul Global

Ao contrário do Norte Global, o Sul Global não é um bloco integrado. Os países do Sul Global têm diferentes realidades econômicas, capacidades militares, sistemas políticos e governos, muitas vezes com tradições políticas conflitantes. Embora vários desses países compartilhem certas características e interesses, o conceito de Sul Global não é definido por seus pontos em comum, mas por um conjunto de outros fatores. No entanto, esses países compartilham o fato de que:

  • são ex-colônias e semicolônias que foram submetidas a 500 anos de humilhação;
  • em alguns casos, têm e buscam projetos socialistas, pelos quais foram punidos pelo bloco imperialista;
  • eles são, por diversos motivos, vítimas da invasão imperialista por meio de força extraeconômica, como golpes e sanções;
  • muitas vezes, uniram-se em torno de vários interesses comuns, como buscar o alívio da dívida, estabelecer seu direito de construir uma democracia econômica e acessar medidas globais de saúde, incluindo vacinas durante a pandemia da Covid-19.

Apesar desses pontos em comum, seria um exagero chamá-los – como fizemos com o Norte Global – de bloco. Em vez disso, pensamos no Sul Global como sendo composto por seis grupos com relações interligadas (bem como disputas antagônicas entre alguns deles). Esses agrupamentos são:

  1.  Estados socialistas independentes. Esse grupo inclui seis países (China, Vietnã, Venezuela, Laos, República Democrática da Coreia e Cuba) que continuam comprometidos com a trajetória socialista, com todos os seus complexos ziguezagues. Desde 2016, a China, um dos principais membros do grupo, tem o maior PIB (PPC) do mundo e uma economia quase três vezes maior do que a da Índia (um país com uma população comparável).4 O povo chinês realizou a maior façanha dos tempos modernos em termos de desenvolvimento humano, tirando 800 milhões de pessoas da pobreza (Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2021).
  2. Estados em busca de soberania. Esse grupo é definido por Estados que, mais recentemente e apesar das muitas diferenças internas entre eles, tomaram medidas para afirmar sua soberania, mas não estabeleceram um processo socialista formal. Muitos desses países, como a Eritreia e o Mali, fazem parte do Grupo de Amigos em Defesa da Carta da ONU, formado em julho de 2021 sob a liderança do governo venezuelano. O Ocidente, por sua vez, puniu essa postura por meio de uma guerra híbrida extrema.5 A Rússia, um caso especial nesse grupo, é o principal alvo da mudança de regime e de medidas coercitivas que buscam desmembrá-la e desnuclearizá-la.
  3. Estados atualmente progressistas. As sociedades desses países foram moldadas por movimentos de libertação nacional – como a luta contra o apartheid na África do Sul – e por movimentos contra ditaduras – como no Brasil – cujo impacto marcou profundamente suas culturas políticas. Apesar das limitações dos governos desse grupo, de suas graves contradições internas e das dificuldades de se emanciparem do sistema capitalista global, eles não se acovardaram diante da interferência dos EUA. No entanto, nenhum desses países se beneficiou de uma revolução socialista que poderia ter enfraquecido sua burguesia nacional por meio de uma reforma agrária substancial ou da socialização de setores avançados da economia, por exemplo.
  4. Novos Estados não alinhados. Esses países, com PIBs crescentes, estão superando sua dependência do Ocidente. O tamanho e a escala de suas economias lhes deram certa independência para buscar interesses econômicos nacionais sem avançar ativamente na soberania política. Eles perceberam que o confisco de reservas estrangeiras pelos EUA e o uso de sanções contra pelo menos 31,5% da população mundial se tornaram ameaças graves para a maioria global e que os Estados Unidos não são mais um mercado de último recurso nem um importante fornecedor de investimento estrangeiro direto.6
  5. O Sul Global Diverso. Esse grupo inclui os 111 países que não possuem uma unidade política, econômica ou militar clara. Eles variam no grau de alinhamento com o Norte Global.
  6. Estados fortemente militarizados pelos EUA. Os dois países que compõem esse grupo – República da Coreia e Filipinas – são efetivamente colônias militares dos Estados Unidos, embora suas populações se esforcem contra as limitações de estarem subordinadas às necessidades militares e de segurança estadunidenses.

Juntos, esses 145 países (incluindo a Palestina como Estado observador) representam 85,8% da população mundial e 59,4% do PIB mundial (PPC).7 Como veremos na seção final deste dossiê, esses seis grupos fazem parte de grandes projetos regionais e internacionais (como a Organização de Cooperação de Xangai, a Unasul, o BRICS10 e o G77, respectivamente) que refletem o novo clima no Sul Global – um clima que está mudando em direção ao regionalismo e ao multilateralismo e se afastando do domínio único criado pelo bloco imperialista.

Sobre a ideia dos cinco controles

A avaliação marxista do imperialismo ao longo do século passado foi moldada pelas contribuições teóricas e práticas de Vladimir Lenin, com base na experiência da Revolução Russa. Na obra clássica de Lenin, Imperialismo: estágio superior do capitalismo (1916), ele argumenta que, em seu estágio mais competitivo, o capitalismo avançou para produzir oligopólios em setores importantes – como o financeiro – que entraram em contradição uns com os outros, levando seus Estados a um conflito sobre os mercados das colônias e a confrontos militares diretos entre si. A onda de descolonização formal iniciada após o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945 – que tinha uma história anterior na América Latina nos anos 1800, mas foi reiniciada com a Revolução Cubana (1959) – criou novas condições para o imperialismo. O recuo territorial das potências imperialistas não foi acompanhado de forma alguma pela perda de seu controle sobre a economia mundial. Ao contrário, eles criaram o que Kwame Nkrumah chamou de neocolonialismo.

Nos últimos anos, no entanto, testemunhamos o lento desgaste do controle do Ocidente sobre a economia mundial, bem como a deslegitimação gradual de toda a estrutura neocolonial. Para entender melhor esse desgate, adotamos um método que Samir Amin desenvolveu há quase 30 anos para avaliar a natureza do poder imperialista (Amin, 1996).8 Ele argumentou que a estrutura neocolonial não exigia que as corporações transnacionais baseadas no Ocidente possuíssem a maior parte dos ativos do mundo. Em vez disso, ele explicou, o que era necessário era que tivessem controle monopolista sobre muitos dos ativos em setores-chave e garantissem que o beneficiário final desses ativos fosse a Tríade, ou o Norte Global, e suas classes dominantes. Amin identificou cinco formas de controle que estão no centro da estrutura neocolonial:

  • Controle sobre os recursos naturais
  • Controle sobre os fluxos financeiros
  • Controle sobre ciência e tecnologia
  • Controle sobre o poder militar
  • Controle sobre as informações

Em O mundo precisa de uma nova teoria socialista do desenvolvimento (jul. 2023), argumentamos que o controle do Ocidente sobre os recursos naturais, os fluxos financeiros e a ciência e tecnologia está sendo contestado pela emergência das principais economias do Sul Global: China, Índia, Indonésia, Brasil, Turquia e México, que estavam entre as treze maiores economias do mundo em termos de PIB (PPC) em 2022.9 A impressionante ascensão da China, que saiu da pobreza extrema, foi fundamental para enfraquecer o domínio do Norte Global sobre esses três primeiros controles.

Dois exageros dos Estados Unidos e do bloco imperialista, de meados da década de 1990 até a década de 2010, também contribuíram para enfraquecer esse controle:

  1. As guerras dos EUA, da guerra global contra o terrorismo até as guerras no Afeganistão, Iraque e Líbia.
  2. A superextensão econômica dos EUA, do excesso de crédito no mercado imobiliário dos EUA até a regulamentação frouxa do sistema bancário ocidental.

Essas guerras dos EUA e a Grande Depressão de 2007-2008 provocaram uma crise na liderança do Norte Global no sistema mundial. Foi nesse contexto que o presidente russo, Vladimir Putin, disse na Conferência de Segurança de Munique de 2007 que o mundo não precisa de “um senhor”.10 Começaram a surgir grandes dúvidas em grande parte do Sul Global sobre o papel dos EUA como o comprador de última instância, a âncora do sistema monetário mundial e o estabilizador político da ordem mundial.

Novos desenvolvimentos na China e na Rússia, que estavam ocorrendo ao mesmo tempo que essas guerras dos EUA e o caos no sistema capitalista mundial, começaram a acelerar novas mudanças:

  1. China. Nos últimos anos do governo de Hu Jintao (2003-2013), a liderança da China começou a reavaliar sua dependência do mercado e da liderança política dos EUA. A formação do BRICS em 2009 foi parte dessa nova postura. Essa reavaliação foi então traduzida em uma nova estrutura de políticas sob a liderança de Xi Jinping. Isso incluiu o estabelecimento de alternativas ao mercado e à liderança dos EUA, como a criação de um mercado interno por meio de investimentos de capital em larga escala, a erradicação da pobreza extrema e a construção da Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota (mais tarde, Iniciativa do Cinturão e Rota). Além disso, a China começou a usar o processo do BRICS para incentivar a formação de novos sistemas monetários e novas lideranças políticas.
  2. Rússia. No final da primeira década dos anos 2000, o governo russo começou a desfazer os danos que a destruição da União Soviética havia causado ao seu povo. Em primeiro lugar, o governo, liderado por Putin, começou a recuperar o setor de energia dos “oligarcas” e a organizar a base da economia em torno de princípios de autossuficiência, incluindo a manutenção do capital no país e a não permissão de retirada de lucros para o sistema bancário controlado pelo Ocidente. Em segundo lugar, o governo começou a aumentar o papel da Rússia na Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep+, que inclui outros 10 países não membros) e a construir seu setor de energia para vender petróleo e gás natural para a Europa em um contexto em que as guerras do Norte Global contra o Iraque e a Líbia e a guerra híbrida contra o Irã, impulsionada por sanções, interferiam nas principais fontes de energia da Europa.

O magnetismo econômico da China e da Rússia – no contexto de uma crise econômica de longo prazo no Norte Global – levou os países da União Europeia a se integrarem mais à Eurásia. Isso ocorreu em dois níveis: os países europeus começaram a depender cada vez mais da energia russa (um terço das necessidades energéticas da Alemanha era atendido pela Rússia, por exemplo) e do investimento e da tecnologia da China (18 países da União Europeia aderiram à Iniciativa do Cinturão e Rota), incluindo Itália, Polônia, Portugal e República Tcheca (Nedopil, 2022). A integração da Europa com a Ásia foi historicamente lógica e necessária e, combinada com a ascensão da China, ameaçou a estrutura unipolar geral do Norte Global, bem como a estrutura neocolonial da economia mundial. Incapazes de reverter essa integração e a ascensão da China, os EUA, ao lado de seus aliados no Norte Global, aceleraram uma guerra híbrida contra a China e a Rússia. As linhas de frente dessa guerra eram inicialmente econômicas (por meio de uma guerra comercial, por exemplo), mas rapidamente começaram a se concentrar em duas áreas: Ucrânia e Taiwan. A guerra na Ucrânia teve duas consequências importantes na ordem mundial: em primeiro lugar, aumentou o custo dos alimentos e do combustível em todo o mundo e, em segundo lugar, houve uma recusa de muitos países em desenvolvimento em se curvar ao Ocidente e à sua postura em relação à guerra. Juntas, essas consequências geraram um novo clima no mundo em desenvolvimento e o surgimento de um novo não alinhamento.

O controle do Norte Global sobre o poder militar e as informações, no entanto, não diminuiu. Em um momento de apatia econômica e fragilidade política, o Norte Global – liderado pelos Estados Unidos – está exercendo o restante de seu poder com grande força e, ao fazê-lo, coloca em risco a existência do planeta. Como mostra nossa pesquisa, os países do Norte Global – especialmente os Estados Unidos – gastam quantias significativas de seus orçamentos com as Forças Armadas, sistemas de construção que ameaçam todos os aspectos da vida humana e desperdiçam a engenhosidade humana para destruir a vida em vez de afirmá-la.

O controle de armas

Incapazes e relutantes em construir um projeto social e político para lidar com os dilemas da humanidade em escala global, os Estados Unidos e seu bloco buscaram uma estratégia para manter seu domínio sobre o planeta. Esse domínio teve início com o colapso da União Soviética e do sistema estatal comunista na Europa Oriental em 1991, bem como com o enfraquecimento do Terceiro Mundo por meio da crise da dívida, que começou a se agravar com a inadimplência do México em 1982. Os intelectuais dos Estados Unidos começaram a falar como se esse domínio fosse eterno, com o “fim da história” pronunciado contra qualquer enfrentamento à ordem dos EUA. No entanto, as rachaduras nessa narrativa começaram a se ampliar à medida que o domínio do G7, com os EUA à frente, foi profundamente abalado por seu exagero militar na guerra global contra o terrorismo (especialmente a invasão ilegal do Iraque em 2003) e pela Terceira Grande Depressão, de 2007-2008 (desencadeada pelo colapso dos mercados imobiliários ocidentais).

Na segunda década do século XXI, os Estados Unidos e seus aliados fizeram todos os esforços para reafirmar seu controle sobre o planeta. A guerra da Otan contra a Líbia em 2011 foi uma importante sinalização da política ocidental, que foi um prelúdio para as discussões sobre o uso de uma Otan global como plataforma para avançar a agressão militar ocidental, do Mar do Sul da China ao Caribe. As sanções tentaram disciplinar qualquer um que cruzasse as linhas traçadas pelos Estados Unidos e por seus aliados, bloqueando países do sistema financeiro internacional e, assim, privando populações inteiras do acesso a medicamentos, alimentos e outros bens básicos. (Vale a pena observar que as sanções, que aumentaram 933% nos últimos 20 anos, tornaram-se a forma favorita de intervenção liderada pelos EUA) (Rodrigues, 2023; Departamento do Tesouro dos EUA, 2021). Por fim, o Fundo Monetário Internacional (FMI) retornou com uma agenda de austeridade renovada, que foi aprofundada mesmo durante a pandemia, forçando dezenas de países pobres a pagarem mais aos ricos detentores de títulos do que aos seus próprios sistemas de saúde e educação (Unctad, 2023).11

Em 2018, os Estados Unidos declararam o fim da guerra contra o terrorismo e afirmaram claramente em sua Estratégia Nacional de Defesa que seus principais problemas eram a ascensão da China e da Rússia. O Secretário de Defesa dos EUA, Jim Mattis, falou abertamente sobre a necessidade de impedir a ascensão de “rivais próximos” – China e Rússia – e sugeriu que toda a panóplia de poder dos EUA fosse usada para colocá-los de joelhos (Mattis, 2018).

Os Estados Unidos não só têm centenas de bases militares que circundam a Eurásia, como também têm aliados, da Alemanha ao Japão, que lhes fornecem posições avançadas contra a Rússia e a China. Em 2015 e 2019, respectivamente, a frota naval dos EUA e seus aliados iniciaram exercícios agressivos de “liberdade de navegação” contra a integridade territorial da China (no Mar do Sul da China) e da Rússia (principalmente no Ártico). Essas manobras, bem como a intervenção política dos EUA na Ucrânia em 2014 e o grande acordo de armas dos EUA com Taiwan em 2015, ameaçaram ainda mais a soberania da Rússia e da China. Então, em 2018, os Estados Unidos se retiraram unilateralmente do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (conhecido pela sigla INF), o que abalou o mapa do controle de armas nucleares. Essa retirada, juntamente com os objetivos declarados dos EUA na Estratégia de Defesa Nacional de 2018, mostrou que os EUA estavam contemplando o uso de “armas nucleares táticas” contra a Rússia e a China.

Até o momento, os aliados dos EUA na região da Ásia-Pacífico, como a Austrália e a República da Coreia, não estão ansiosos para permitir a entrada de armas nucleares intermediárias em seu território, embora essas armas possam ser posicionadas em bases dos EUA em outros lugares, de Guam a Okinawa. É impossível entender a intervenção da Rússia na Ucrânia sem entender esse histórico mais longo de ameaças sofridas por Moscou. Não é despropositado se preocupar com a possibilidade de os Estados Unidos posicionarem suas armas nucleares intermediárias na Ucrânia, independentemente de a Ucrânia entrar ou não para a Otan.12

Para afirmar sua posição de domínio sobre a ordem mundial, os Estados Unidos e seus aliados aumentaram os gastos militares de forma inacreditável. O Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Sipri, na sigla em inglês) calculou que, em 2022, os gastos militares dos EUA foram de aproximadamente 877 bilhões de dólares, cerca de 39% dos gastos militares globais estimados (Sipri, 2023). No entanto, como mostra um relatório recente publicado na Monthly Review, esse número está muito subestimado: os gastos militares reais dos EUA estão mais próximos de 1,537 trilhão de dólares – quase o dobro do cálculo do Sipri e dos números oficiais dos EUA (Cernadas, Bellamy-Foster, 2023). Somando-se os gastos estimados para 2022 de outros países da Otan (360 bilhões de dólares) e de todos os aliados militares não pertencentes à Otan, dominados pelos EUA (234 bilhões de dólares), com base em números oficiais, o total de gastos militares do bloco militar liderado pelos EUA chega a 2,13 trilhões de dólares, embora esse valor possa estar abaixo dos gastos reais. Esse cálculo eleva os gastos militares globais em 2022 para 2,87 trilhões de dólares. Em outras palavras, o bloco militar liderado pelos EUA é responsável por 74,3% dos gastos militares mundiais, e os EUA gastam 12,6 vezes mais per capita do que a média mundial (Israel, em segundo lugar, gasta 7,2 vezes mais do que a média mundial per capita, e as outras potências imperialistas gastam de duas a três vezes mais do que a média mundial).13

A China, por sua vez, é responsável por 10% dos gastos militares mundiais (292 bilhões de dólares), e seus gastos militares per capita são 22 vezes menores do que os dos Estados Unidos.14 O medo que se instala sobre os gastos militares chineses não é fundamentado pelos fatos. O que está comprovado por fatos é que a China gasta mais de sua riqueza social em infraestrutura e indústria do que no setor militar. Enquanto isso, os EUA gastam apenas 252 bilhões de dólares em educação, por exemplo, de acordo com o Centre on Budget and Policies Priorities, mas gastam 1,537 trilhão com as Forças Armadas, parte do qual é destinado ao pagamento de suas cerca de 902 bases militares em todo o mundo (Centre on Budget and Policy Priorities, 2023; World Beyond War, 2023).

A única área do mundo que está livre do aparato militar dos EUA é grande parte da Eurásia: China, Índia, Irã e Rússia. Desde 1992, os Estados Unidos sonham em conquistar essa região, inclusive com o uso de poder militar. Em 1997, Zbigniew Brzezinski, ex-conselheiro de segurança nacional do presidente dos EUA, Jimmy Carter, advertiu que “potencialmente, o cenário mais perigoso seria uma grande coalizão da China, Rússia e talvez do Irã, uma coalizão “anti hegemônica” unida não por ideologia, mas por queixas complementares”. “Para os Estados Unidos”, escreveu Brzezinski, “o principal prêmio geopolítico é a Eurásia”, que, segundo ele, é “o tabuleiro de xadrez no qual a luta pela primazia global continua a ser jogada” (Brzezinski, 1997). Para evitar esse cenário, Brzezinski e outros alertaram que os EUA deveriam tentar conquistar a China ou a Rússia para isolar a outra e, assim, dominar o “tabuleiro de xadrez” da Eurásia. No entanto, nas últimas décadas, os Estados Unidos fizeram exatamente o oposto, optando por pressionar a China e a Rússia por meio de sua Nova Guerra Fria que, como Brzezinski previu, uniu esses dois países em uma aliança estratégica bilateral e multilateral. Além disso, os dados do Serviço de Pesquisa do Congresso dos EUA informam que as Forças Armadas dos EUA foram mobilizadas para 101 países entre 1798 e 2023 (Serviço de Pesquisa do Congresso, 2023). De acordo com o Projeto de Intervenção Militar, entre 1776 e 2019, os EUA realizaram pelo menos 392 intervenções militares em todo o mundo. Metade dessas operações foi realizada entre 1950 e 2019, e 25% delas ocorreram no período pós-Guerra Fria (Kushi; Toft, 2023). Somente em 2022, 317 forças imperialistas foram deslocadas para países do Sul Global e 137 para aliados do Norte Global, em um total de 454 deslocamentos (IISS, 2023).

Talvez a melhor evidência dos planos raciais, políticos, militares e econômicos das potências ocidentais que se manifestaram por meio da Nova Guerra Fria possa ser resumida por uma declaração recente da Otan e da UE:

A Otan e a UE desempenham papéis complementares, coerentes e que se reforçam mutuamente no apoio à paz e à segurança internacionais. Mobilizaremos ainda mais o conjunto coordenado de instrumentos à nossa disposição, sejam eles políticos, econômicos ou militares, para buscar nossos objetivos comuns em benefício de nosso bilhão de cidadãos.

Sobre o surgimento de novas organizações

No último dia da cúpula do BRICS15 em Joanesburgo, África do Sul, os cinco Estados fundadores (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul)16 deram as boas-vindas a seis novos membros: Argentina, Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos (EAU). Embora o novo governo de direita da Argentina, liderado por Javier Milei, tenha se retirado oficialmente da adesão ao BRICS em 29 de dezembro de 2023, os dez países do bloco abrangem agora 45,5% da população mundial, com um PIB global combinado (PPC) de 35,6%. Em comparação, embora os Estados do G7 (Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido e Estados Unidos) representem apenas 10% da população mundial, sua participação no PIB global (PPC) é de 30,3%. Enquanto os países que hoje formam o BRICS10 são responsáveis por 44,6% da produção industrial global, seus pares do G7 respondem por apenas 21,6%.17 Todos os indicadores disponíveis, incluindo as safras e o volume total de produção de metal, mostram o imenso poder desse novo grupo. Celso Amorim, conselheiro do governo brasileiro e um dos arquitetos do BRICS durante seu mandato anterior como ministro das Relações Exteriores, disse sobre o novo desenvolvimento que “o mundo não pode mais ser ditado pelo G7” (Tass, 2023).

Certamente, as nações do BRICS, apesar de todas as suas hierarquias e desafios internos, agora representam uma parcela maior do PIB global do que o G7, que continua a se comportar como o poder executivo do mundo. Vinte e três países solicitaram sua adesão antes da reunião da África do Sul (incluindo sete dos 13 países da Opep), embora mais de 40 tenham expressado interesse em participar do BRICS10, incluindo a Indonésia, o sétimo maior país do mundo em termos de PIB (PPC).

É importante mencionar que o BRICS não opera de forma independente das novas formações regionais que visam construir plataformas fora do controle do Ocidente, como a Comunidade dos Estados da América Latina e do Caribe (Celac) e a Organização de Cooperação de Xangai (OCX, na sigla em inglês). Em vez disso, a participação no BRICS10 tem o potencial de aprimorar o regionalismo para aqueles que já fazem parte desses fóruns regionais.

Por que o BRICS acolheu um grupo de países tão díspares, incluindo duas monarquias? Quando solicitado a refletir sobre o caráter dos novos Estados membros plenos, o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva disse: “o que importa não é a pessoa que governa, mas a relevância do país. Não podemos negar a relevância geopolítica do Irã e de outros países que se juntarão ao BRICS”. Essa é a medida de como os países fundadores tomaram a decisão de expandir sua aliança (Boadle, 2023).

No centro do crescimento do BRICS estão pelo menos três questões: controle sobre o fornecimento e as rotas de energia, controle sobre os sistemas financeiros e de desenvolvimento globais e controle sobre as instituições de paz e segurança.

Controle sobre suprimentos e vias de energia

Um BRICS maior criou agora um grupo energético importante. O Irã, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos também são membros da Opep, que, ao lado da Rússia, um dos principais membros da Opep+, responde atualmente por 26,3 milhões de barris de petróleo por dia, pouco menos de 30% da produção diária global de petróleo (Hill; Comstock, 2023). O papel da China na intermediação de um acordo entre o Irã e a Arábia Saudita em abril permitiu a entrada desses dois países produtores de petróleo no BRICS. O Egito, outro novo país no BRICS10, embora não seja membro da Opep, é, no entanto, um dos maiores produtores de petróleo da África, com uma produção que representa mais de um quarto da produção mundial de petróleo (The Global Economy, 2023). A questão aqui não é apenas a produção de petróleo, mas o estabelecimento de novas rotas globais de energia.

A Iniciativa de Cinturão e Rota, liderada pela China, combinada com o desenvolvimento da Visão 2030 da Arábia Saudita, já criou uma rede de plataformas de petróleo e gás natural no Sul Global, integrada à expansão do Porto Khalifa e às instalações de gás natural em Fujairah e Ruwais (nos Emirados Árabes Unidos). Há uma grande expectativa de que o BRICS10 comece a coordenar sua infraestrutura de energia com outros produtores de energia. Por exemplo, as tensões entre a Rússia e a Arábia Saudita sobre os volumes de petróleo aumentaram este ano, pois a Rússia excedeu sua cota em uma tentativa de compensar as sanções ocidentais impostas a ela como resultado da guerra na Ucrânia. Agora, esses dois países terão outro fórum, fora da Opep+ e com a China na mesa, para criar uma agenda comum sobre energia. Essa plataforma em expansão também ameaça minar o sistema de petrodólares, com mais países – como a Arábia Saudita – planejando vender petróleo para a China em renminbi, ou RMB (os outros dois principais fornecedores de petróleo da China, Iraque e Rússia, já recebem pagamento em RMB).

Controle sobre os sistemas financeiros e de desenvolvimento globais

Tanto as discussões na cúpula do BRICS quanto seu comunicado final destacaram a necessidade de fortalecer uma arquitetura financeira e de desenvolvimento para o mundo que não seja governada pelo triunvirato do Fundo Monetário Internacional (FMI), Wall Street e o dólar estadunidense. Entretanto, o BRICS não busca evitar as instituições de comércio e desenvolvimento globais estabelecidas, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Banco Mundial e o FMI. Por exemplo, na declaração final da cúpula, o BRICS reafirmou a importância do “sistema de comércio multilateral baseado em regras com a Organização Mundial do Comércio em seu núcleo” e pediu “uma Rede de Segurança Financeira Global robusta com um [FMI] baseado em cotas e com recursos adequados em seu centro” (BRICS, 2023). Suas propostas não rompem fundamentalmente com o FMI ou a OMC; em vez disso, oferecem um caminho duplo: primeiro, para que os BRICS exerçam mais controle e direção sobre essas organizações, das quais são membros, mas que foram subornadas a uma agenda ocidental; e, segundo, para que os Estados dos BRICS realizem suas aspirações de construir suas próprias instituições paralelas (como o Novo Banco de Desenvolvimento, ou NBD). O enorme fundo de investimento da Arábia Saudita vale cerca de 1 trilhão de dólares, o que poderia financiar parcialmente o NBD.

Para Cyril Ramaphosa (2023), atual presidente dos BRICS, a agenda do bloco para melhorar “a estabilidade, a confiabilidade e a justiça da arquitetura financeira global” está sendo levada adiante principalmente pelo “uso de moedas locais, acordos financeiros alternativos e sistemas de pagamento alternativos”. O conceito de “moedas locais” refere-se à prática crescente de os países usarem suas próprias moedas para o comércio internacional, em vez de dependerem do dólar. Embora aproximadamente 150 moedas no mundo sejam consideradas de curso legal, os pagamentos internacionais quase sempre dependem do dólar (que, a partir de 2021, passou a representar 40% dos fluxos na rede da Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunications, ou Swift) (Perez-Saiz, 2023).

Outras moedas desempenham um papel limitado, com o renminbi chinês representando 2,5% dos pagamentos internacionais. No entanto, o surgimento de novas plataformas globais de mensagens, como o Sistema Interbancário de Pagamentos Transfronteiriços da China, Interface Unificada de Pagamentos da Índia, e o Sistema de Mensagens Financeiras (SPFS) da Rússia, bem como os sistemas regionais de moeda digital, prometem aumentar o uso de moedas alternativas. Por exemplo, ativos de criptomoeda forneceram brevemente um caminho em potencial para novos sistemas de negociação antes que suas avaliações de ativos diminuíssem, e o BRICS expandido recentemente aprovou a criação de um grupo de trabalho para estudar uma moeda de referência do bloco.

Após a expansão do BRICS, o NBD disse que também expandirá seus membros e que, como sua Estratégia Geral, 2022-2026 30% de todo o seu financiamento será em moedas locais. Como parte de sua estrutura para um novo sistema de desenvolvimento, sua presidenta, Dilma Rousseff, disse que o NBD não seguirá a política do FMI de impor condições aos países tomadores de empréstimos. “Repudiamos qualquer tipo de condicionalidade”, disse Dilma. “Muitas vezes, um empréstimo é concedido sob a condição de que determinadas políticas sejam executadas. Nós não fazemos isso. Respeitamos as políticas de cada país”.

A entrada da Etiópia e do Irã no BRICS mostra como esses grandes países do Sul Global estão reagindo à política de sanções do Ocidente contra dezenas de países, incluindo dois membros fundadores do BRICS (China e Rússia). Há muito tempo a China mantém relações comerciais com a Etiópia, cuja capital, Adis Abeba, é a sede da União Africana. A inclusão da Etiópia no BRICS garante que esse grande país (com uma população considerável e importantes terras agrícolas) não voltará para a órbita ocidental.

Controle sobre instituições de paz e segurança

Em seu comunicado, as nações do BRICS escrevem sobre a importância de uma “reforma abrangente da ONU, incluindo seu Conselho de Segurança”. Atualmente, o Conselho de Segurança da ONU tem 15 membros, cinco dos quais são permanentes (China, França, Rússia, Reino Unido e EUA). Não há membros permanentes da África, da América Latina ou do país mais populoso do mundo, a Índia. Para reparar essas desigualdades, o BRICS oferece seu apoio às “aspirações legítimas dos países emergentes e em desenvolvimento da África, Ásia e América Latina, incluindo o Brasil, a Índia e a África do Sul, de desempenhar um papel mais importante nos assuntos internacionais” (BRICS, 2023, p. 3). A recusa do Ocidente em permitir que esses países tenham um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU apenas fortaleceu seu compromisso com o processo do BRICS e com o aprimoramento de seu papel no G20.

Três grandes plataformas inter-regionais, ainda em estágio embrionário, definem o novo regionalismo e multilateralismo:

  1. O BRICS10 (uma expansão da formação do BRIC em 2009), que é em grande parte estratégico, mas também uma potência econômica, tem 17 membros oficiais e vários parceiros não oficiais.
  2. A Organização de Cooperação de Xangai (2001), que foi formada principalmente em torno de questões de segurança na Ásia Central, avançou para conversas sobre desenvolvimento e comércio.
  3. O Group of Friends in Defence of the UN Charter (Grupo de Amigos em Defesa da Carta da ONU) (2021), que é sobretudo uma plataforma política, reúne 20 estados membros da ONU que estão enfrentando o peso das sanções ilegais dos EUA, da Argélia ao Zimbábue. Muitos desses países participaram da cúpula do BRICS como convidados e estão ansiosos para participar do bloco expandido como membros plenos.

Não é por acaso que há três países, todos alvos principais de campanhas de pressão do bloco imperialista, que estão em todas essas três organizações: China, Irã e Rússia.

Há vários desafios e oportunidades compartilhados que surgiram no Sul Global e que reuniram muitos de seus países em torno da necessidade de uma estrutura comum para discussão e colaboração. Esses interesses comuns incluem a necessidade de:

  • Multilateralismo e regionalismo centrados na criação de uma cooperação ancorada no Sul Global.
  • Nova modernização que se concentra na construção de economias regionais e continentais que usam moedas locais em vez do dólar para comércio e reservas.
  • Soberania, que cria barreiras à intervenção ocidental. Isso inclui envolvimentos militares e colonialismo digital, que facilitam as intervenções da inteligência dos EUA.
  • Reparações, que implica em negociação coletiva para compensar as armadilhas de dívidas centenárias do Ocidente e o abuso do excesso de orçamento de carbono, bem como seu legado de colonialismo de alcance muito maior.

Mudanças profundas estão ocorrendo no mundo, aceleradas pelas guerras na Ucrânia e pelo genocídio em rápida escalada na Palestina. Essas mudanças são moldadas, por um lado, pela perda de poder econômico do Norte Global ao lado do aumento da militarização e, por outro, pela nova disposição do Sul Global em relação à soberania e ao desenvolvimento econômico. Este dossiê é um exercício preliminar, baseado em pesquisas e análises originais, para dar sentido a essas mudanças e, consequentemente, ao novo clima no Sul Global.


Notas

1 Leia nosso relatório completo: Hiper-Imperialismo: uma nova fase perigosa e decadente. Estudos sobre dilemas contemporâneos n. 4, 23 January 2024: https://thetricontinental.org/pt-pt/estudos-sobre-dilemas-contemporaneos-4-hiper-imperialismo.

2 No entanto, há evidências de que, até 1600, pelo menos 56 milhões de indígenas nas Américas pereceram devido à violência colonial e à introdução de patógenos mortais; pelo menos 15,5 milhões de africanos foram capturados e vendidos no tráfico atlântico de escravos; pelo menos 10 milhões de pessoas morreram no Congo entre 1515 e 1865 devido à ganância do colonialismo belga; e, somente entre 1880 e 1920 (uma pequena parte do colonialismo britânico na Índia), pelo menos 165 milhões de indianos morreram em decorrência da violência colonial britânica. Consultar Alexander Koch et al. (2019); Steven J. Micheletti et al. (2020); Adam Hochschild (1999); Fritz Blackwell (2008), Dylan Sullivan; Jason Hickel (2023).

3 Elaboração própria do Global South Insights com base em dados do World Development Indicators (2022) e World Economic Outlook (2022). https://www.imf.org/en/Publications/WEO/weo-database/2029/October.

4 Elaboração própria da Global South Insights com base no WEO do FMI.

5 Para saber mais sobre guerra híbrida, ver Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Crepúsculo: a erosão do controle dos EUA e o futuro multipolar, dossiê n. 36, 4 jan. 2021, https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-35-crepusculo/ e Venezuela e as guerras híbridas na América Latina, dossiê n. 17, 3 de jun. 2019, https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-17-venezuela-e-as-guerras-hibridas-na-america-latina/.

6 Elaboração própria da Global South Insights com base em World Population Prospects 2022, Departamento de Economia e Assuntos Sociais, Nações Unidas, 1 jul. 2022, https://population.un.org/wpp/ e What are Sanctions?, Campanha SanctionsKill, set. 2022, https://sanctionskill.org.

7 Elaboração própria da Global South Insights com base no WEO do FMI.

8 Ver também Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Globalização e sua alternativa: uma entrevista com Samir Amin, caderno n. 1, 29 out. 2018, https://thetricontinental.org/pt-pt/globalizacao-e-sua-alternativa/.

9 Elaboração própria da Global South Insights com base no WEO do FMI; Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, O mundo precisa de uma nova teoria socialista do desenvolvimento, dossiê n. 66, 4 jul. 2023, https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-66-teoria-do-desenvolvimento/.

10 Vladimir Putin, discurso na Conferência de Munique sobre Política de Segurança: Conferência de Segurança de Munique, Munique, Alemanha, 10 de fevereiro de 2007, http://en.kremlin.ru/events/president/transcripts/24034.

11 Para saber mais sobre a crise da dívida, ler  Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Vida ou dívida: o limiar estrangulador do neocolonialismo e a busca por alternativas na África,  dossiê n. 63, 11 abr. 2023, https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-63-crise-da-divida-africana/.

12 Para saber mais sobre a Ucrânia, ver: Instituto Tricontinental  de Pesquisa Social, Esta não é uma era de certezas, mas de contradições, carta semanal n. 14. 7 abr. 2022, https://thetricontinental.org/pt-pt/newsletterissue/cartasemanal-ucrania-2/; Estamos em um período de grandes mudanças tectônicas), carta semanal n. 11, 17 mar. 2022, https://thetricontinental.org/pt-pt/newsletterissue/cartasemanal-mudanca-ordem-mundial/; Nestes dias de grande tensão, a paz é a prioridade, carta semanal n. 9, 3 mar. 2022, https://thetricontinental.org/pt-pt/newsletterissue/cartasemanal-ucrania/.

13 Elaboração própria do Global South Insights com base em números ajustados do “SIPRI Military Expenditure Database”, Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Sipri), acesso em: out. 2023, https://www.sipri.org/databases/milex; e Monthly Review.

14Elaboração própria da Global South Insights com base em números ajustados do Sipri e da Monthly Review.

15 Para saber mais sobre a Ucrânia, ver: Instituto Tricontinental  de Pesquisa Social BRICS, ver: BRICS, uma alternativa ao imperialismo? , https://thetricontinental.org/pt-pt/brasil/brics-uma-alternativa-ao-imperialismo/.

16 Para saber mais sobre os BRICS, ver: Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. BRICS: Uma alternativa ao imperialismo? 31 ago. 2023. Disponível em: https://thetricontinental.org/pt-pt/brasil/brics-uma-alternativa-ao-imperialismo/.

17 Elaboração própria do Global South Insights com base no WPP da ONU, WDI do Banco Mundial e WEO do FMI.

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A pesquisa realizada para a produção deste documento foi conduzida de forma coletiva durante mais de um ano e recebeu contribuições de diversos acadêmicos e ativistas socialistas. Foram compilados dados e gráficos fornecidos pela Sul Global Insights (GSI), com edição e coordenação de Gisela Cernadas, Mikaela Nhondo Erskog, Tica Moreno e Deborah Veneziale. Grande parte dos dados e gráficos da Parte IV se baseiam em pesquisas publicadas pelo economista John Ross.

Introdução

Faz apenas 30 anos que ideólogos burgueses declararam o “fim da história” em pantomimas de satisfação de desejos, por sentirem a inviolabilidade do imperialismo dos Estados Unidos.1 Mas para as lutas e os movimentos populares que sentiam a bota do imperialismo no pescoço, esse fim não estava à vista.

Diante da violência da repressão, como a ocorrida no Massacre de Eldorado do Carajás em 1996 no Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra liderou a reivindicação de terras para a reforma agrária popular por meio da ocupação e da produção, desafiando gigantes do agronegócio, como a multinacional estadunidense Monsanto.2 Hugo Chávez, um “soldado que abalou o continente”, venceu no voto popular em 1999, em uma forte guinada à esquerda que foi depois seguida por outros lugares da América Latina. Essa guinada incluiu uma onda de mobilizações em massa de milhões de pessoas trabalhadoras, camponesas, indígenas, mulheres e estudantes, que, em 2005, derrotaram a Área de Livre Comércio das Américas proposta pelos EUA, em um enfrentamento direto a quase 200 anos de Doutrina Monroe dos EUA.3

Em 2002, as mulheres nigerianas se reuniram em frente aos portões da Shell e da Chevron para protestar contra a destruição e a exploração ambiental no Delta do Níger. Os haitianos rejeitaram séculos de abuso em manifestações em massa após a destituição de Jean-Bertrand Aristide pelos EUA e a ocupação estadunidense em 2004. Milhões de nepaleses e nepalesas comemoraram a derrubada da monarquia por meio da resistência armada liderada por comunistas em 2006. Quando Mohamed Bouazizi ateou fogo em si mesmo em 2010, o povo tunisiano se rebelou contra o sistema neoliberal que levou o vendedor de frutas a tomar uma medida tão drástica.

Nos anos seguintes, ocorreram transformações, por vezes pequenas e imperceptíveis, por outras, voláteis e explosivas. Essas mudanças envolveram tanto movimentos populares quanto atores estatais, em alguns casos extremamente poderosos. Os EUA foram confrontados por uma potência econômica em ascensão, a China, por economias em crescimento no Sul Global (que ultrapassaram o PIB do Norte Global em termos de PPC em 2007), por anos de negligência no investimento de capital doméstico, pela financeirização da economia e a perda da superioridade na indústria.

A ascensão do Tea Party em 2009 sinalizou uma fratura na política interna dos EUA. No âmbito internacional, o país não conseguiu promover uma ruptura branda do regime na China nem uma desnuclearização ou mudança de regime na Rússia. Após uma redução temporária dos gastos militares com o fim da desastrosa guerra contra o Iraque (2003-2011), o uso efetivo do poder militar ou a ameaça de seu uso passou a ser um pilar central da resposta dos EUA a essas transformações.

Historicamente, a perda da hegemonia acontece em três estágios: produtivo, financeiro e militar.4 Os Estados Unidos perderam a hegemonia na produção, embora ainda tenham algumas áreas remanescentes de hegemonia tecnológica, inclusive naquelas relacionadas às forças armadas. O país está vendo sua hegemonia financeira ser desafiada, mesmo que isso ainda esteja nos estágios iniciais e se relacione ao status do dólar estadunidense. Ainda que os aspectos econômicos e políticos de seu declínio possam estar se acelerando, os EUA ainda detêm poder militar, o que cria para o país a tentação de tentar superar as consequências de seu declínio econômico por meios militares ou afins.

Os EUA definiram a China como concorrente estratégica. Seu programa mínimo é a contenção e o enfraquecimento econômico do país asiático em medida suficiente para garantir a hegemonia econômica perpétua dos EUA no futuro.

De seu próprio ponto de vista, o capitalismo dos EUA é racional em suas tentativas de limitar a ascensão da China. Sem isso, haveria uma corrosão de sua vantagem relativa no controle dos níveis mais altos das forças produtivas e nos privilégios monopolistas resultantes desse controle. Há um alinhamento quase completo entre os atores estatais dos EUA para continuar conduzindo uma dissociação da China (apesar da quase impossibilidade de remodernizar totalmente as forças produtivas dentro dos EUA) e avançar nos preparativos militares contra a China.

O movimento de tropas russas para a Ucrânia em fevereiro de 2022 – resultado das violações contínuas das garantias dos EUA sobre a não expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e da guerra civil permanente entre Kiev e Donbas – marcou, para os EUA, uma nova fase explícita de alinhamento militar mundial. Em uma série de movimentos rápidos, os EUA subordinaram abertamente todos os países do Norte Global e, nesse processo, subordinaram ainda mais o aparato militar desses Estados. Estabeleceram-se como potência militar hegemônica óbvia daquilo que recebe o eufemismo de Otan+, que inclui todos os membros do antigo Bloco do Leste, com exceção de três. Aqueles que participaram como membros ou observadores da cúpula da Otan em 2023 em Vilnius, na Lituânia – incluindo Austrália, Nova Zelândia, Japão e República da Coreia5 –, são membros de facto da Otan+. Apenas Israel (dispensado de comparecer por conveniência política) e alguns países menores do Norte Global não compareceram.

A partir de outubro de 2023, Israel iniciou uma campanha de expulsão, limpeza étnica, punição coletiva e genocídio da população palestina com o apoio total e descarado do governo dos Estados Unidos. Os acontecimentos na Ucrânia, seguidos pelas recentes escaladas em Gaza, são marcos significativos que refletem uma mudança qualitativa no sistema imperialista. Os EUA já concluíram sua subordinação econômica, política e militar de todos os outros países imperialistas. Isso consolidou um bloco imperialista integrado e militarmente focado. Seu objetivo é manter suas garras sobre o Sul Global como um todo e as atenções se voltaram para o domínio da Eurásia, última região do mundo que escapou de seu controle.

Não é exagero dizer que o Norte Global declarou um estado de guerra e hostilidade aberta contra qualquer parte do Sul Global que não esteja de acordo com suas políticas. Isso pode ser visto na declaração conjunta sobre a Cooperação UE-Otan publicada no dia 9 de janeiro de 2023:

Mobilizaremos ainda mais o conjunto de instrumentos a nossa disposição, sejam eles políticos, econômicos ou militares, para alcançar nossos objetivos comuns em benefício do nosso bilhão de cidadãos.6

É certo que o povo palestino em Gaza está sentindo a barbárie palpável da Otan+ e o “consenso de massa” forçado que o Norte Global é capaz de promover. Como afirmou recentemente a liderança da luta pela libertação palestina Leila Khaled:

Sabemos que eles falam em terrorismo, mas eles são os heróis do terrorismo. A força imperialista ao redor do mundo, no Iraque, na Síria, em diferentes países… está se preparando para atacar a China. Tudo o que dizem sobre terrorismo acaba sendo sobre eles mesmos. As pessoas têm o direito de resistir a isso com todos os meios, incluindo com a luta armada. Isso está na Carta das Nações Unidas. Então eles estão violando os direitos de resistência das pessoas, porque é direito delas recuperar sua liberdade. E essa é — como sempre digo — uma lei fundamental: onde há repressão, há resistência. As pessoas não querem viver sob ocupação e repressão. A história nos ensinou que, quando um povo resiste, ele consegue manter sua dignidade e sua terra.7

***

O imperialismo começou sua transformação para um novo estágio: o hiperimperialismo.8 Trata-se de um imperialismo conduzido de forma exagerada e dinâmica, embora também sujeita às restrições que o império em declínio impôs a si mesmo. A qualidade espasmódica de seu esforço é sentida pelas milhões de pessoas congolesas, palestinas, somalis, sírias e iemenitas que vivem sob o militarismo dos EUA e têm a reação instintiva de proteger o corpo diante de sons repentinos.

No entanto, essa não é a marcha vigorosa que a Guerra Fria iniciou pelo mundo, travada em batalhas por procuração seguidas de um imperialismo econômico por meio do Banco Mundial e de outras instituições de desenvolvimento. Trata-se do imperialismo de um bilionário que está se afogando e tem a firme convicção de que deveria estar de volta ao seu iate. Um imperialismo que flexiona os músculos do poder que ainda estão fortes – os militares. Entretanto, na ausência de poder produtivo e sabendo que o poder financeiro está em um ponto de inflexão, o conjunto completo de tecnologias imperiais de controle que os EUA já tiveram não está mais à disposição. Desse modo, o país canaliza seus esforços por meio dos mecanismos de que mais dispõe: cultura (controle da verdade) e guerra.

As táticas do hiperimperialismo são moldadas, em parte, pela modernização da guerra híbrida, que inclui guerra jurídica (lawfare), hipersanções, tomada de reservas e ativos nacionais e outras formas de guerra não militar. Novas ferramentas tecnológicas de vigilância e comunicação direcionada que caracterizam a era digital são utilizadas para exercer o controle imperialista na batalha de ideias, incluindo a implementação de métodos mais perversos e secretos contra a verdade, como a prisão política do editor da WikiLeaks, Julian Assange, que expôs inúmeros crimes cometidos contra o Sul Global.9

O Norte Global é um bloco militar, político e econômico integrado composto por 49 países. Entre eles estão os EUA, o Reino Unido, o Canadá, a Austrália, a Nova Zelândia, Israel, o Japão e países secundários da Europa Ocidental e Oriental. Na arena militar, a Turquia (como membro da Otan), as Filipinas e a República da Coreia (estas duas, efetivamente colônias militarizadas dos EUA) estão incluídas em nossa definição de “bloco militar liderado pelos EUA”, embora façam parte do Sul Global.

Nos últimos vinte anos, o Norte Global passou por um significativo declínio econômico relativo, juntamente com um declínio político, social e moral. Suas falsas reivindicações “morais” de direitos civis e “liberdade de imprensa” já se tornaram um completo escárnio, pois buscam tornar ilegal o apoio público (inclusive pela internet) aos direitos da população palestina. Esse apoio total à humilhação e à destruição dos povos de pele mais escura do mundo é reminiscência de séculos passados, expondo o que pode ser descrito como “fragilidade branca” coletiva.

Os países do Sul Global compreendem ex-colônias e semicolônias, alguns Estados independentes fora da Europa e projetos socialistas atuais e antigos. Na maior parte do Sul Global, as lutas por libertação nacional, independência, desenvolvimento e soberania econômica e política total ainda precisam ser concluídas.

Apesar das limitações da terminologia, falaremos em “Norte Global” e, ocasionalmente, em “Ocidente” (expressão vazia de uso frequente) de forma intercambiável com o termo mais preciso “campo imperialista liderado pelos EUA”. Analisaremos o Norte Global em quatro “anéis”. O restante do mundo é hoje conhecido como “Sul Global”, sendo que grande parte era chamada, no passado, de “Terceiro Mundo”. Analisaremos o Sul Global em seis “grupos”, determinados a partir da medida relativa com que um país é alvo de mudança de regime e pelo papel que seu governo desempenha na promoção pública de posições internacionais e anti-imperialistas (conforme Figura 1). O Norte Global está envolvido em níveis muito mais altos de conflito generalizado com o restante do mundo, o Sul Global.

PARTE I: A ascensão de um bloco militar do Norte Global totalmente liderado pelos EUA

Mudanças e consolidação

O bloco militar liderado pelos EUA
passou por duas transformações internas nas últimas três décadas:

  1. A maior expansão do bloco para incluir todos os países do Leste Europeu (faltando apenas Belarus).
  2. O desafio de manter a total subordinação dos Estados capitalistas da Europa Ocidental, que abandonaram qualquer independência fundamental e, em muitos casos, até mesmo a falsa aparência de independência.

Esta última transformação ficou evidente em 2018 pela genuflexão dos Estados da Europa Ocidental à retirada de Donald Trump do acordo nuclear com o Irã, de 2015 – um golpe significativo contra seus interesses econômicos. Mais adiante, discutiremos o histórico desse processo.10

A Otan é o centro do “bloco militar liderado pelos EUA”, como o chamamos, que inclui também Japão, Austrália, Israel, Nova Zelândia, três países do Sul Global e alguns outros países europeus que não são membros da Otan.

O bloco militar liderado pelos EUA é o único bloco do mundo, uma aliança militar de fato e de direito com um comando central. Não existe nenhum outro bloco desse tipo. Sua clareza e unidade de propósito são evidentes. Nos últimos dez anos, os EUA abandonaram muitos tratados importantes de não proliferação de armas nucleares (Tratado sobre Mísseis Antibalísticos em 2002, Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário em 2019 e Tratado de Céus Abertos em 2020).11 Isso permitiu que os responsáveis por planejamentos militares tivessem o potencial de se preparar para posicionar mísseis nucleares de alcance intermediário de modo que fossem capazes de obliterar Moscou em questão de minutos.

Gastos militares

Em artigo publicado na edição de novembro de 2023 da Monthly Review, uma pesquisa bem conduzida por Gisela Cernadas e John Bellamy Foster, utilizando apenas estatísticas econômicas oficiais dos EUA consultadas junto ao Escritório de Análise Econômica (Bureau of Economic Analysis) e ao Escritório de Administração e Orçamento (Office of Management and Budget – OMB), revelou que o gasto militar real dos EUA é mais do que o dobro do que é reconhecido pelo governo estadunidense ou mesmo pelo Instituto Internacional de Estocolmo de Pesquisa para a Paz (Sipri na sigla em inglês).12

O gasto militar real dos EUA em 2022 foi de US$ 1,537 trilhões.13

Para calcular o gasto militar mundial total, selecionamos os números publicados pelo Sipri como nossa principal fonte de dados sobre todos os países, exceto para os EUA.14 Apenas no caso dos EUA, utilizamos os números da Monthly Review. Em 2022, o Sipri ajustou a cifra do orçamento de defesa nacional divulgado pelo governo chinês, de US$ 229 bilhões para US$ 292 bilhões, um aumento de 27,5%.15 A partir de 2021, o Sipri adotou uma nova metodologia para revisar os gastos militares da China.16 O Sipri alterou, assim, os cálculos sobre os gastos militares da China, tanto para os anos anteriores quanto para os atuais.17

O Sipri ajustou em 14,5% para mais o orçamento militar anual dos EUA informado pelo OMB a respeito do ano de 2022, passando de US$ 765,8 bilhões para US$ 876,9 bilhões.18 Esse número corresponde a cerca de metade do aumento percentual adicionado à China.

O tratamento dado pelo Sipri aos gastos militares da China é bem diferente daquele dispensado aos EUA, pois o instituto adota uma abordagem muito mais cautelosa em relação aos cálculos dos EUA.

Mesmo que o Sipri dobrasse o número informado pela China a respeito de seu gasto militar, chegando a US$ 458 bilhões, essa soma representaria 2,6% do PIB do país. A cifra é significativamente inferior aos 6% realmente gastos pelos EUA em relação a seu PIB. Ainda assim, o gasto militar da China representaria apenas 29,8% do gasto dos EUA, com uma população quatro vezes maior que a estadunidense.19

Além disso, ao contrário dos EUA, a China não tem 902 bases militares no exterior.20 As bases e intervenções dos EUA criam um dreno não apenas no orçamento anual, mas também na dívida econômica de longo prazo. Mais detalhes podem ser encontrados na nota de fim.21

Nossa análise encontrou uma série de descobertas patentes. A primeira é que os EUA controlam, pela Otan e por outros meios, surpreendentes 74,3% de todo o gasto militar do mundo (Figura 2). Isso equivale a mais de US$ 2 trilhões.22

A Figura 3 mostra que os países imperialistas são responsáveis por 12 dos 16 maiores orçamentos militares do mundo.

A Figura 4 mostra os 16 países com maiores gastos militares per capita do Norte Global em comparação com os três países do Sul Global que mais gastam nessa área. Per capita, os Estados Unidos gastam 21 vezes mais nas forças armadas do que a China.23 Não ficam dúvidas quanto à relevância desses números.

Figura 5

Países com gasto militar superior a US$ 20 bilhões

Norte Global e Sul Global, 2022

Nome do país (GSI) Gasto militar
dólares
(mi)
Porcentagem do PIB
(TCC)
Per Capita>média mundial
(vezes)
Bloco militar liderado pelos EUA
Estados Unidos 1.536.859 6,0% 12,6
Reino Unido 68.463 2,2% 2,8
Alemanha 55.760 1,4% 1,9
França 53.639 1,9% 2,3
Rep. da Coreia 46.365 2,8% 2,5
Japão 45.992 1,1% 1,0
Ucrânia 43.998 27,4% 3,1
Itália 33.490 1,7% 1,6
Austrália 32.299 1,9% 3,4
Canadá 26.896 1,3% 1,9
Israel 23.406 4,5% 7,2
Espanha 20.307 1,4% 1,2
Sul Global
China 291.958 1,6% 0,6
Rússia 86.373 3,8% 1,7
Índia 81.363 2,4% 0,2
Arábia Saudita 75.013 6,8% 5,7
Brasil 20.211 1,1% 0,3
Fonte: Elaboração de Sul Global Insights com base em dados do FMI, ONU, SIPRI e Monthly Review

A Figura 5 lista todos os países com orçamentos militares superiores a US$ 20 bilhões, sendo que 11 estão no Norte Global em comparação com seis (de 145) países no Sul Global. Nesta tabela, a República da Coreia foi incluída no bloco militar liderado pelos EUA.

É nítido que o Sul Global, ao contrário do Norte Global, não constitui um bloco nem, definitivamente, um bloco militar. O Sul Global enfrenta, desse modo, o monopólio extremo dos gastos militares do bloco militar liderado pelos EUA. Isso representa um perigo evidente e presente para todos os países do Sul Global – e um perigo iminente para a continuação da existência da humanidade e do planeta.

Por sua vez, o aspecto mais importante do poder do Estado – ou seja, o poder militar –, o perigo central absoluto para as classes trabalhadoras de todos os países, sobretudo das nações de pele mais escura do mundo, está no campo imperialista liderado pelos EUA. Objetivamente, não existe subimperialismo nem potências imperialistas não ocidentais (esses conceitos são enganações subjetivas que ofuscam as realidades factuais).

Bases militares dos EUA e do Reino Unido

Em março de 2002, a Monthly Review publicou um artigo com uma relação e um mapa de países onde é sabido haver bases militares dos EUA, argumentando que a extensão do império estunidense poderia ser descrita por suas bases.24 Isso criou uma tempestade em alguns círculos militares dos EUA. Outros ampliaram esse trabalho nos anos seguintes, incluindo David Vine e a World Beyond War (que disponibilizou um mapa interativo ao público).25

As informações sobre a localização dessas bases permitiu vislumbrar a natureza absolutamente alastrada da hegemonia militar dos EUA. A localização e o número de bases são elementos valiosos para se compreender a forma e a trajetória do imperialismo, evidenciando suas fronteiras e mostrando seu papel no patrulhamento delas.

Existem 902 bases militares dos EUA conhecidas e 145 bases militares do Reino Unido conhecidas, descritas abaixo.26

Devido ao sigilo imposto pelas forças armadas e pelo governo dos EUA, faltam dados sobre o que ocorre dentro dessas bases e sobre as ações lançadas a partir das forças militares dos EUA localizadas nelas. Isso torna incompleta a análise qualitativa das atividades militares dos EUA no exterior. Entre as deficiências analíticas estão:

  • As bases listadas não incluem as instalações e os locais das muitas operações militares privatizadas que os EUA criaram nos últimos 40 anos. Empresas como DynCorp International, Fluor Corporation, AECOM e KBR, Inc. realizam operações em todo o mundo, inclusive no Kuwait, na Arábia Saudita e na Indonésia.27
  • Não estão incluídos projetos “não oficiais” das forças armadas dos EUA, como o controle do Terminal 1 do Aeroporto Internacional Kotoka, na capital de Gana, no qual os soldados dos EUA não precisam de passaporte nem visto para entrar (apenas a identificação militar) e as aeronaves militares estadunidenses têm “passe livre no embarque e na inspeção”.28 Desse modo, o Terminal 1 é efetivamente uma base militar estadunidense. Gana cedeu a soberania nacional aos EUA.29
  • Não estão incluídos projetos essenciais para o complexo militar-industrial-digital dos EUA. Muitos pontos terminais de cabos submarinos são controlados apenas por funcionários autorizados pela inteligência dos EUA. O controle da comunicação mundial por cabos submarinos é uma das principais prioridades da inteligência dos EUA.30 Isso faz parte do programa da NSA de “coleta total” para reunir todas as comunicações do mundo e armazená-las em locais como o Centro de Processamento de Dados de Utah, em Bluffdale (codinome “Bumblehive”), primeiro centro desse tipo da Iniciativa Nacional de Segurança Cibernética Abrangente da Comunidade de Inteligência.31
  • Excluem-se projetos e locais militares secretos (incluindo instalações da nação anfitriã conhecidas como “lily pads“), embora alguns tenham sido expostos e incluídos.32
  • Há poucas informações sobre os movimentos militares dos EUA entre diferentes locais, a natureza das atividades realizadas (como movimentos de tropas ou assassinatos direcionados) e o volume de bens, aviões e embarcações.
  • Nem todas as bases são iguais em escala ou função, e é quase impossível avaliar a importância relativa de cada uma. Às vezes, um único edifício é classificado como uma base por estar desconectado de outros edifícios a um quilômetro de distância. Algumas bases são imensas e destroem tudo pelo caminho, como as instalações militares em Guam, que assolam o meio ambiente natural e a vida das pessoas que lá vivem. Outras são conhecidas como pequenas instalações de redes de espionagem.

Essas limitações têm como resultado uma tendência a se relatar o que é mensurável, e não o que é desconhecido, mas estratégico.

Primeiro, apresentamos um mapa com dados do World Beyond War que mostra quais países têm bases, sem detalhar o número exato em cada país. Isso ajuda a reduzir possíveis comparações incorretas. Mesmo a existência de uma única base dos EUA significa que o país já cedeu alguma soberania nacional. Em segundo lugar, para fins de completude, incluímos abaixo dois quadros (um para o Norte Global e outro para o Sul Global) com a relação de países com bases conhecidas de acordo com o World Beyond War.

A Figura 6 mostra que os EUA têm, pelo menos, 902 bases militares no exterior. São bases em grande medida concentradas em regiões de fronteira e zonas-tampão ao redor da China e que representam um grave abalo à soberania dos países do Sul Global.33

Figura 7

Bases militares dos Estados Unidos em países e territórios do Norte Global

2023

Número de bases País/território
50+ Alemanha (171), Japão (98)
20-49 Itália (45), Reino Unido (25)
5-19 Austrália (17), Bélgica (12), Portugal (9), Romênia (9), Noruega (8), Israel (7), Países Baixos (7), Grécia (5), Polônia (5)
1-4 Bulgária (4), Espanha (3), Islândia (3), Canadá (2), Geórgia (2), Hungria (2), Letônia (2), Eslovaquia (2), Dinamarca (1), Chipre (1), Irlanda (1), Luxemburgo (1), Estônia (1), Groenlândia (1), Kosovo (1)
Total 445
Fonte: Elaboração de Sul Global Insights com base em World Beyond War

As bases militares dos EUA no exterior não existem apenas no Sul Global, mas também têm uma presença significativa no Norte Global (Figura 7). Mais de dois terços das bases conhecidas estão concentradas nos dois países derrotados na Segunda Guerra Mundial: Alemanha e Japão.

Figura 8

Bases militares dos Estados Unidos em países e territórios do Sul Global

2023

Número de bases País/território
50+ Rep. da Coreia (62)
20-49 Guam (45), Porto Rico (34), Síria (28), Arábia Saudita (21)
5-19 Panamá (15), Turquia (12), Filipinas (11), Bahrein (10), Ilhas Marshall (10), Iraque (10), Bahamas (9), Belize (9), Honduras (9), Níger (9), Guatemala (8), Jordânia (8), Kuwait (8), Omã (8), Paquistão (8), Egito (7), Colômbia (6), El Salvador (6), Somália (6), Catar (5), Ilhas Marianas do Norte (5), Peru (5)
1-4 Camarões (4), Costa Rica (4), Ilhas Virgens (EUA) (4), Argentina (3), Chade (3), Emirados Árabes Unidos (3), Mauritânia (3), Nicarágua (3), Palau (3), Quênia (3), República Centro-Africana (3), Tailândia (3), Brasil (2), Diego Garcia (2), Djibuti (2), Gabão (2), Gana (2), Iêmen (2), Mali (2), República Dominicana (2), Samoa Americana (2), Singapura (2), Suriname (2), Tunísia (2), Uganda (2), Antártica (1), Antilhas Holandesas (1), Aruba (1), Botsuana (1), Burkina Faso (1), Burundi (1), Camboja (1), Chile (1), Cuba (1), Ilha de Ascensão (1), Ilha Wake (1), Indonésia (1), RD Congo (1), Samoa (1), Seicheles (1), Senegal (1), Sudão do Sul (1), Uruguai (1)
Total 457
Fonte: Elaboração de Sul Global Insights com base em World Beyond War

A Figura 8 lista os locais das bases militares dos EUA nos países e territórios do Sul Global. A República da Coreia abriga 62 dessas bases permanentes.

Figura 9

Estruturas militares dos Estados Unidos no exterior

Número de construções, área construída, área total e número de bases

2023

País/território Área construídam2 Construçõesnúmero total Áreahectares Bases militaresnúmero total
Japão 10.339.000 12.079 41.715 76
Alemanha 9.135.000 12.537 2.682 93
Rep. da Coreia 5.631.000 5.832 12.262 62
Itália 2.011.000 2.032 945 31
Guam 1.382.000 2.807 25.322 45
Reino Unido 1.364.000 2.883 3.253 14
Kuwait 676.000 1.503 2.549 6
Catar 661.000 663 2
Cuba 588.000 1.540 11.662 1
Turquia 478.000 817 1.356 8
Espanha 419.000 889 3.802 2
Porto Rico 411.000 794 7.042 29
Bahrein 390.000 468 83 9
Bélgica 362.000 479 10
Ilhas Marshall 286.000 633 551 6
Groenlândia 220.000 197 94.306 1
Djibuti 171.000 379 459 2
Países Baixos 151.000 150 5
Emirados Árabes Unidos 128.000 400 5.059 3
Portugal 114.000 170 532 6
Honduras 92.000 336 1
Singapura 86.000 120 3
Romênia 70.000 179 177 4
Bahamas 62.000 179 219 6
Grécia 61.000 85 41 4
Santa Helena 43.000 124 1.402 1
Austrália 41.000 83 8.124 5
Bulgária 39.000 93 2
Ilhas Virgens (EUA) 26.000 29 5.964 5
Jordânia 17.000 31 3.978 1
Chipre 16.000 38 1
Israel 13.000 19 2
Samoa Americana 11.000 10 2 1
Níger 11.000 45 1
Polônia 11.000 20 3
Curaçau 9.000 15 17 1
El Salvador 6.000 14 14 1
Ilhas Marianas do Norte 5.000 17 6.499 10
Peru 5.000 7 1
Noruega 3.000 4 1
Islândia 2.000 7 425 1
Quênia 2.000 5 1
Canadá 91 1
Total 35.548.000 48.712 240.533 468
Fonte: Elaboração de Sul Global Insights com base em dados do Departamento de Defesa dos EUA

A Figura 9 mostra a escala da presença militar dos EUA: quase 36 milhões de metros quadrados em 49 mil construções que cobrem 245 mil hectares. Na classificação por número de construções, as três potências do Eixo estão entre as quatro primeiras.

Embora hoje o sol se ponha sem se preocupar com o Império Britânico, a Figura 10 mostra o tamanho que a rede de bases do Reino Unido ainda tem, com foco na Ásia Ocidental e na África.

Invasões, intervenções e “destacamentos” militares dos EUA e do Reino Unido

Os países da Otan conduzem amplos destacamentos e intervenções militares em todo o mundo, apoiados por uma vasta rede de bases.

As figuras 11 e 12 referem-se apenas ao ano de 2022. As forças imperialistas realizaram 317 operações militares em países do Sul Global e 137 em nações aliadas do Norte Global, totalizando 454 (sendo que 45 ocorreram em nações que não são membros da ONU). Entre os países imperialistas que conduziram o maior número de destacamentos militares estão EUA (56), Reino Unido (32), França (31), Itália (20), Alemanha (17), Espanha (15), Canadá (13) e Países Baixos (13) (Figura 11).34

A Figura 12 mostra como África e Ásia Ocidental continuam a ser os pontos focais dos esquemas ocidentais, tendo as cinco nações a seguir sofrido o maior número de destacamentos militares somente em 2022: Mali (31), Iraque (30), Líbano (18), República Centro-Africana (13) e Sudão do Sul (13).35

Observando a geografia das bases dos EUA e do Reino Unido e os destacamentos do Norte Global, é nítido onde se encontram as fronteiras do patrulhamento dos EUA e como os campos de batalha do nosso tempo são a Eurásia e as regiões que funcionam como zona tampão.

Durante séculos os EUA e seus aliados do Norte Global, sobretudo o Reino Unido, realizaram intervenções militares no mundo, conforme indicado nas Figuras 13 e 14. Por ser uma publicação oficial do governo dos EUA, o Serviço de Pesquisa do Congresso (Congressional Research Services – CRS) serve como fonte primária de dados sobre intervenções militares dos EUA e é utilizado para demonstrar sua magnitude e longa duração histórica. Entretanto, é preciso observar que o CRS não inclui missões secretas e não agrega dados para diferenciar os diferentes tipos de intervenções das forças armadas dos EUA no exterior. Os dados não são organizados com base na natureza qualitativa e quantitativa nem na escala de cada caso. Os casos relacionados (mais de 480) variam muito em tamanho, duração, autorização legal e relevância.36

O Projeto sobre Intervenção Militar (Military Intervention Project – MIP) utiliza uma definição mais abrangente de intervenção militar que engloba “casos combinados de conflito internacional ou conflito potencial fora das atividades normais de tempos de paz em que a ameaça, demonstração ou uso intencional de força militar pelos canais oficiais do governo dos EUA são explicitamente direcionados ao governo, a representantes oficiais, a forças oficiais, a propriedades ou a territórios de outro ator estatal”.37 O MIP não divulgou seu banco de dados na íntegra, portanto, os casos exatos de todas as intervenções militares identificadas ainda não estão disponíveis ao público. Dessa forma, este relatório acessou apenas dados resumidos da publicação “Introducing the Military Intervention Project” (2023) e não pôde produzir um mapa com base no MIP.

Como visto na Figura 13, em junho de 2023, os dados do Serviço de Pesquisa do Congresso dos EUA mostram que as forças armadas dos EUA foram destacadas, assumidamente, para 101 países e territórios entre 1798 e 2023.38 A Figura 14 expõe o Reino Unido, que invadiu militarmente mais de 170 países e territórios entre 1169 e 2012.

De acordo com o MIP, entre 1776 e 2019, os EUA realizaram mais de 392 intervenções militares em todo o mundo.39 Metade dessas operações foi realizada entre 1950 e 2019, e 25% delas ocorreram no período pós-Guerra Fria.40 O ritmo das intervenções militares dos EUA se acelerou nitidamente desde 1991.

Em 1950, no Dia Internacional das Mulheres Trabalhadoras, Claudia Jones, mulher negra comunista e imigrante, discursou em um ato de militantes nos EUA. Em circunstâncias diferentes, mas com o mesmo espírito, compartilhamos esse relato com o objetivo de – para Jones – “ampliar [nossa] consciência sobre a necessidade de se promover campanhas militantes de frente única em torno das demandas urgentes do dia, contra a opressão monopolista, contra a guerra e o fascismo”.41

PARTE II: Evolução do imperialismo

O novo estágio do imperialismo

O monopólio do dólar estadunidense e a mudança de nação credora para devedora, iniciados na década de 1970, seguidos pela queda da União Soviética em 1991, deram início a um período em que os Estados Unidos tentaram criar sua própria ordem mundial unipolar. Não foi possível estabelecer uma unipolaridade total porque alguns Estados – que os EUA chamaram de “vilões” – recusaram a submissão a esse novo sistema.42

Nos últimos quinze anos, o projeto de unipolaridade dos EUA se enfraqueceu consideravelmente. O período entre a “grande recessão financeira”, de 2008, e o conflito entre a Otan e a Rússia, de fevereiro de 2022, consolidou uma mudança quantitativa e qualitativa no imperialismo global.

Uma questão histórica fundamental decorrente disso foi a magnitude e as consequências das rivalidades interimperialistas, que acarretam profundas implicações estratégicas e políticas: outras potências imperialistas irão romper com os EUA em questões fundamentais ou subordinarão seus próprios interesses aos dos EUA?

Atualmente, os fatos mostram que essas diferenças não são mais estratégicas. O imperialismo consolidou um novo estágio de existência, melhor descrito como hiperimperialismo. Mais adiante, explicaremos por que escolhemos esse termo.

Entre as características desse novo estágio estão o seguinte:

  • A China emergiu como maior e mais dinâmica economia do mundo. O crescimento do Sul Global excede o do Norte Global. O crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) na Ásia é significativamente maior do que nos países do G7.
  • Apesar da força econômica que ainda mantêm, os EUA enfrentam um crescimento escasso e um declínio em relação à ascensão do Sul Global (que tem o crescimento da China como uma locomotiva importante). Isso é evidenciado por indicadores de PIB total, indústria, comércio, infraestrutura e comunicações 5G. Os EUA estão fazendo tentativas agressivas de restringir o crescimento econômico da China e seu papel em iniciativas globais como o Brics 10. Os EUA estão levando o mundo a um maior protecionismo.
  • Os EUA avançaram rapidamente na guerra híbrida, incluindo o uso de sanções (impostas a mais de um em cada quatro países do mundo).43 O ataque a reservas nacionais (da Rússia, da Venezuela, do Irã e do Afeganistão) abriu os olhos de muitos no Sul Global.
  • Os EUA agora estão de olho na dominação da Eurásia, onde o Ocidente enfrenta a Rússia e a China, dois países poderosos com uma forte capacidade combinada: econômica, tecnológica, militar, energética e alimentar. A desmilitarização completa da longa fronteira entre a China e a Rússia e o anúncio da parceria “sem limites” entre as duas nações são prova de seus interesses comuns em termos de paz e segurança.
  • Há um perigo evidente e presente de que o imperialismo continue a trilhar um caminho militarista e dependa de seu domínio militar para compensar o crescente declínio econômico e político relativo que enfrenta. Os interesses políticos e militares dos imperialistas se tornam, agora, fundamentais. Perdas econômicas de curto prazo estão ocorrendo.44 Os interesses de capitalistas individuais ou de grupos se tornam secundários.
  • A hegemonia do dólar estadunidense, a financeirização e a capacidade tecnológica permitem que o setor financeiro movimente trilhões de dólares em negociações em milissegundos, o que mudou a mecânica da acumulação capitalista e sua propriedade. Os capitalistas europeus e japoneses investem capital nas mesmas estruturas que seus pares de classe dos EUA, embora sob o controle destes últimos.
  • Os EUA aprimoraram sua já vasta infraestrutura de “soft power” sustentada pelo surgimento de uma nova geração de serviços avançados de redes sociais e streaming de vídeo, sob o controle total dos monopólios estadunidenses, todos explicitamente integrados ao complexo militar industrial digital dos EUA.
  • As contradições entre os países imperialistas deixaram de ser antagônicas e passaram a ser secundárias. A Alemanha, o Japão, a França e todas as outras potências imperialistas devem subordinar seus interesses de curto e médio prazo aos interesses fundamentais dos Estados Unidos. Seu trabalho é coordenado na Otan+. Os documentos oficiais de políticas afirmam que a estratégia em relação à China é reduzir o risco. No entanto, os parlamentares do Bundestag da Alemanha, por exemplo, estão liderando os pedidos de isolamento da China, mesmo que isso implique uma perda considerável de mercados para os fabricantes “alemães”.45 Há também um ímpeto interno simultâneo de remilitarizar a Alemanha.
  • Novas instituições multilaterais e modelos alternativos de financiamento do desenvolvimento que vêm surgindo no Sul Global estão ganhando impulso. Isso fica evidente pela amplitude do apoio à Nova Rota da Seda (NRS) e pelo crescente interesse de participação no Brics, agora Brics 10. Quase 80% dos Estados-membros da ONU participam da NRS, compreendendo cerca de 64% da população global, enquanto suas economias combinadas representam 52% do PIB mundial (paridade do poder de compra – PPC) em 2022.46 Os países do Brics 10 compreendem hoje 45,5% da população mundial e 35,6% do PIB global (PPC). Em comparação, embora os países do G7 (Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido e Estados Unidos) representem apenas 10% da população mundial, sua participação no PIB global (PPC) é de 30,4%.47
  • O Sul Global está perdendo a confiança na liderança econômica, política e moral dos EUA e da Europa. Foi China, e não os EUA, quem facilitou o acordo diplomático histórico entre a Arábia Saudita e o Irã. A Rússia e a China agora realizam a maior parte do comércio entre os dois países em suas próprias moedas. O Brics 10 está criando um grupo de trabalho para explorar alternativas ao uso do dólar estadunidense, incluindo sistemas de pagamentos internacionais e uma possível nova moeda de reserva. Na votação da resolução da ONU sobre um cessar-fogo em Gaza (A/ES-10/L.25), o Norte Global foi superado numericamente, com 14 votos contrários e 120 favoráveis à aprovação.
  • É a primeira vez em mais de 600 anos que existe uma alternativa econômica e política plausível ao domínio das relações mundiais pelos europeus e seus Estados coloniais de descendentes de colonizadores brancos. Em primeiro lugar, há o grupo socialista liderado pela China. Em segundo, as crescentes aspirações por soberania nacional, modernização econômica e multilateralismo que emergem do Sul Global.

Diante dessas movimentações, os líderes da classe política dominante dos EUA no Centro para uma Nova Segurança Americana (Center for a New American Security –CNAS) – think tank com sede em Washington e núcleo intelectual do governo estadunidense – definiram como geoestratégia dos EUA a derrota dupla da Rússia e da China, o que significaria que o Norte Global ganharia o controle da Eurásia. As dimensões, a quantidade de recursos naturais, o poder militar, a proximidade geográfica e a independência da dominação imperialista da China e da Rússia são os principais fatores de suas respectivas perspectivas globais e parcerias estratégicas.

Esses fatores objetivos são muito mais dominantes do que os ideológicos. Os EUA querem terminar a missão inacabada de desnuclearizar a Rússia. Nas paredes de Washington, estão pendurados mapas que foram desenhados para mostrar os dois países divididos em pequenos pedaços, Estados vassalos do Ocidente, sem independência e, certamente, sem armas nucleares.

Conforme ilustrado na Figura 15, China, Rússia, República Popular Democrática da Coreia e Irã são as quatro potências nucleares (ou potencialmente nucleares) que estão no centro da linha de frente de ataque do imperialismo. A China e a Rússia são os dois principais alvos, a primeira devido a sua força econômica e a segunda, ao seu arsenal nuclear. Síria, Venezuela, Cuba e Belarus também são alvos imediatos para uma mudança de regime.

O mundo está enfrentando um momento muito difícil e perigoso. Os países do Sul Global são extremamente diversos e heterogêneos, não formam um bloco e não têm um alinhamento ideológico. Certamente não têm alianças militares. Alguns – República da Coreia e Filipinas – se emaranharam na esfera militar dos EUA.

O que os países do Sul Global têm é uma história compartilhada. Sofreram durante centenas de anos o abuso colonial e semicolonial cometido pelo Norte Global. As nações mais brancas passaram os últimos cinquenta anos tentando apagar da história o terror que desencadearam sobre os povos de pele mais escura do mundo, inclusive aqueles que vivem dentro de suas próprias fronteiras.

A mídia ocidental se refestela com as grandes diferenças dentro do Sul Global. O Grupo dos 77 e o Movimento dos Não Alinhados, apesar de mais fracos, continuam existindo. Não é possível desconsiderar os avanços senso mais forte de identidade compartilhada entre os países do Sul Global. A demanda por soberania nacional é profundamente democrática e continua sendo uma questão crucial para melhorar a vida das classes populares no Sul Global, além de ser também uma etapa necessária no caminho para o socialismo.

A Primeira Guerra Mundial marcou o início da Revolução Russa (1917), seguida pela criação da União Soviética, primeiro Estado operário plenamente funcional do mundo, e por uma onda de lutas revolucionárias de libertação nacional. A Segunda Guerra Mundial terminou com a criação da República Popular Democrática da Coreia, em 1948, e da República Popular da China, em 1949, seguidas por mais uma onda de lutas de libertação nacional que incluiu importantes vitórias socialistas, como no Vietnã, em 1945 e 1975, e em Cuba, em 1959.

Hoje, não estamos vivendo um período comparável de revoluções. No entanto, é nítido que há novo ânimo e um despertar do espírito para levar adiante os projetos incompletos de libertação nacional que começaram nos dois períodos anteriores. A dominação do sistema neocolonial ocidental está sendo questionada. Estamos testemunhando “mudanças não vistas em 100 anos” e entrando em um novo período da história.

Em resumo, pode-se dizer que oito contradições principais são evidentes no mundo:48

  • Imperialismo moribundo liderado pelos EUA x socialismo emergente liderado pela China.
  • Capital parasitário em busca de renda x exigências das sociedades por desenvolvimento ambientalmente sustentável, indústria, agricultura e emprego.
  • Imperialismo liderado pelos EUA x necessidade urgente de soberania nacional dos países socialistas e capitalistas do Sul Global.
  • Classes dominantes do Norte Global x burguesia dos países capitalistas do Sul Global.
  • Classe dominante supremacista branca do G7 (e do restante do Norte Global) x classes populares (pessoas trabalhadoras, camponesas e da baixa pequena burguesia) nas nações de pele mais escura do Sul Global
  • Burguesia e estratos superiores dos países capitalistas do Sul Global x classes populares do Sul Global.
  • Imperialismo ocidental x futuro do planeta e da vida humana.
  • Contradição interna entre a burguesia do Norte Global x milhões da classe trabalhadora (pobres e parcelas cada vez mais numerosas das pessoas com trabalho qualificado e semiqualificada) no Norte Global.

Assim como já começamos a fazer com o setor militar, buscamos aqui analisar esse novo estágio do imperialismo, o funcionamento interno do campo imperialista, e examinar a composição e as conotações do Sul Global para compreender as principais contradições do mundo atual.

Conquista, racismo e genocídio: A história comum do campo imperialista

A riqueza do Norte Global teve origem no roubo histórico por meio de expropriações violentas promovidas ao longo de séculos (Figura 16). 49 A estagnação econômica e as demandas por crescimento estimularam o saque de recursos de outras regiões. Isso começou já nas invasões militares das Cruzadas contra as regiões árabes e muçulmanas da Ásia Ocidental (1050-1291).

O fim do Período Quente Medieval na Europa (que durou entre cerca de 950 e 1250 d.C.) e a catástrofe da Peste Negra (1346-1353) fizeram com que a situação pendesse a favor do campesinato, afastando-o da aristocracia. Em toda a Europa, as rebeliões camponesas e as cartas da floresta (charters of the forest) sinalizaram que o futuro do capitalismo estava longe de ser garantido.

A Europa iniciou, então, uma trajetória como poder hegemônico mundial por meio de suas potências marítimas militarizadas, começando com a invasão e captura de Ceuta, porto marroquino fortificado, por Portugal já em 1415 – data que utilizamos para marcar os mais de 600 anos de dominação ocidental. A primeira potência colonial europeia, Portugal, usou o capital genovês para financiar suas expedições, e o resto da Europa seguiu o exemplo nos anos 1400.

As conquistas das nações de pele mais escura do mundo, a subsequente expropriação de povos de suas terras e a subordinação de sua mão de obra fizeram surgir ideologias raciais. Essa camada ideológica se infiltrou na base e na superestrutura tanto das sociedades europeias quanto dos povos conquistados, e é mais pronunciada nos Estados coloniais de ocupação branca, que se estabeleceram como projetos raciais desde o início de sua existência. Dentro desses Estados coloniais de ocupação branca, os EUA e Israel representam agora a história mais aguda, permanente e profundamente arraigada de projetos raciais e religiosos.

A análise econômica mostra que o aumento real do investimento capitalista no Reino Unido começou quando os lucros da escravização e a pilhagem de países como a Índia possibilitaram o aumento histórico do investimento em capital fixo, sendo decisivos para a chamada acumulação primitiva capitalista e o financiamento da “revolução industrial”. Em um estudo de 2022, Utsa Patnaik indicou que o Reino Unido extraiu da Índia, entre 1765 e 1939, US$ 45 trilhões (a economista usou uma fórmula de taxa de juros composta, uma vez que ainda não foram reembolsados).50 A maior parte das principais instituições britânicas lucrou com o comércio transatlântico de pessoas escravizadas. A base ideológica racial, por sua vez, moldou o desenvolvimento posterior do capitalismo e do imperialismo.

Ao longo dos séculos, a Europa criou diversos outros projetos coloniais de ocupação branca fora de seu centro histórico nas Américas e na Australásia, inclusive no Quênia, na África do Sul e no Zimbábue. Os “bem-sucedidos” não se estabeleceram em terras desabitadas – o mito da terra nullius –, mas sim promovendo genocídio e conquista militar, criando populações e Estados de população majoritariamente branca. A Alemanha foi o primeiro país a promover um genocídio colonial, assassinando aproximadamente 80 mil pessoas dos povos Herero e Nama, na Namíbia, entre 1904 e 1908.

Cinco desses projetos coloniais permanecem até hoje: Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Israel, todos projetos britânicos. O Reino Unido iniciou suas conquistas coloniais em meados no século XV, na Irlanda, e, nas Américas, seu papel resultou na criação dos Estados Unidos da América. A infame Declaração Balfour (1917) foi fundamental para a formação de Israel às custas da Palestina, então colônia britânica. A missão sionista precisava criar em Israel uma barreira para as “hordas bárbaras” da Ásia. Nenhuma outra nação é tão influente nos EUA quanto Israel. Os EUA, graças a seu tamanho e papel, continuam a ser a força dominante do terrorismo mundial, mas Israel tem um papel desproporcional em termos de violência e gastos militares, com armas nucleares que a mídia ocidental convenientemente minimiza.

Desde sua criação até os tempos modernos, os EUA têm sido definidos como um projeto racial. Em American Holocaust: The Conquest of the New World (1992), David E. Stannard estimou que, nos primeiros 150 anos da conquista europeia das Américas, cerca de 100 milhões de pessoas indígenas podem ter morrido devido à conquista e suas consequências, incluindo doenças, guerras e escravização.

Em 1860, quase quatro milhões de pessoas negras eram escravizadas somente nos EUA.51 Em 2022, mais de 720 mil pessoas negras estavam encarceradas em presídios e cadeias dos EUA, representando 38% da população carcerária, apesar de corresponderem a apenas 12% da população dos EUA. Os EUA têm quase 20% de todos os prisioneiros do mundo, apesar de terem apenas 5% da população mundial.52 Mais de 500 anos após o início da escravização (com a primeira chegada registrada de um navio negreiro em 1519), os EUA ainda colocam dezenas de milhares de pessoas negras em confinamento solitário, apesar da prática ser considerada uma forma de tortura pelas Nações Unidas.53 Foi somente em 2013 que o estado do Mississippi ratificou oficialmente a 13.ª emenda que aboliu a escravidão no país – registrada oficialmente pela primeira vez na Constituição em 6 de dezembro de 1865.54 Só é possível entender a ideologia da classe dominante dos EUA reconhecendo o caráter racializado de sua estrutura de classes.

A declaração de 2023 da Otan e o apoio unificado ao genocídio israelense contra o povo palestino são prova cabal de que o imperialismo não pode ser separado de aspectos raciais históricos. Durante mais de 600 anos, os Estados europeus e de ocupação branca buscaram e conseguiram dominar o mundo inteiro.

Desde a Segunda Guerra Mundial, os EUA têm buscado estender essa regra por pelo menos um milênio. Inicialmente, todos os Estados do campo imperialista eram brancos. Com a derrota absoluta na Segunda Guerra Mundial, inclusive com o uso de bombas atômicas, o Japão foi assimilado ao campo imperialista, acabando por alcançar o que os sul-africanos chamaram de status de “branco honorário”. Esse movimento foi possível sobretudo porque o Japão havia sido uma potência fascista que também vinculava sua expansão imperialista a práticas racializadas.

O imperialismo também tem bases patriarcais racializadas, que remontam à forma como a divisão sexual do trabalho, o controle das capacidades reprodutivas das mulheres e a exploração do trabalho não remunerado das mulheres foram reformulados na colonização ocidental, como pré-condições para a expansão internacional da acumulação de capital.55 Desde então, a subordinação e a violência de gênero têm sido amplamente utilizadas na guerra e na conquista, desde a escravização sexual de dezenas de milhares de “mulheres de conforto” durante a ocupação militar do Japão na China e na Indonésia, até a atual exploração sexual que ocorre no entorno das bases militares dos EUA nas Filipinas.56

Não é por acaso que os Estados Unidos aparecem em sete das oito categorias de violência histórica na Figura 16. Esse processo não começou na década de 1890 com o desenvolvimento do imperialismo moderno: é possível identificá-lo desde 1492, com a primeira invasão europeia das Américas.

Em outubro de 2023, dos 193 membros da ONU, apenas os Estados Unidos e Israel votaram contra o fim do embargo e do bloqueio ilegais contra a heroica Cuba. Quando um projeto de resolução que pedia um cessar-fogo em Gaza foi redigido, em 16 de outubro de 2023, nenhum membro branco da Câmara dos Representantes dos EUA o assinou inicialmente.57 Há uma linha direta entre os comerciantes portugueses de pessoas escravizadas na África Ocidental e os genocidas israelenses e estadunidenses na Palestina.

História e definição de “hiperimperialismo”

Antecedentes

A pré-história do imperialismo moderno começou em 1415 com o advento da expansão marítima europeia. A África foi a primeira vítima, seguida da colonização das Américas e do genocídio de milhões de povos indígenas. Em seguida, a Europa (e seus Estados colonizadores) passaram rapidamente a depender do capital ensanguentado da escravização humana, que durou 400 anos.

A existência do Reino Unido como potência moderna começou com a dependência vampírica do sangue de pessoas escravizadas e trabalhadoras coloniais. Os britânicos foram responsáveis por milhões de mortes no comércio atlântico de escravizados e em suas conquistas coloniais. A mão de obra escravizada nas Américas – bem como a captura britânica de boa parte do excedente das colônias espanholas e portuguesas – forneceu o ingrediente “especial” da chamada acumulação primitiva ou originária (“ursprüngliche Akkumulation”, termo utilizado por Marx em O capital).58

Além de começar como um projeto racial, o imperialismo dos EUA tem uma trajetória singular de desenvolvimento capitalista, que inclui o seguinte:

  • Uma forma de escravização capitalista altamente lucrativa.
  • Um Estado em expansão desenfreada em um grande território, sem nenhum resquício do feudalismo.
  • O único grande país imperialista cujo território não foi atacado militarmente por outros imperialistas.
  • Uma potência imperial que começou depois que a Europa já havia dividido o mundo.
  • Um poder ilimitado autodefinido por meio da Doutrina Monroe (1823), além de conceitos como o Destino Manifesto e o excepcionalismo estadunidense.

Desde o advento da indústria moderna, o sistema-mundo capitalista consistiu em dois períodos sucessivos com o domínio de uma única potência capitalista: primeiro o Reino Unido, depois os EUA. Do final do século XVIII até a Segunda Guerra Mundial, o Reino Unido foi considerado a força dominante no setor financeiro internacional. No entanto, houve um franco colapso dessa dominação quando os britânicos abandonaram a conversibilidade da libra em ouro e encerraram o padrão ouro-libra em 1931. Na realidade, o domínio dos EUA ficou evidente a partir da Primeira Guerra Mundial e a hegemonia reconhecida do país começou em 1945, quando a Europa estava em frangalhos. No centro do sistema imperialista, portanto, está o que se pode chamar de projeto anglo-americano.

A economia dos EUA ultrapassou a britânica em tamanho na década de 1870, mas o PIB per capita (PPC) dos EUA só se igualou ao do Reino Unido no século XX. Em 1913, a economia estadunidense já tinha o dobro do tamanho do PIB (PPC) britânico.59 Entretanto, foi somente em 1945 (com a economia dos EUA sendo cinco vezes maior que a do Reino Unido) que a hegemonia estadunidense foi completa e formalmente estabelecida. Naquele momento, os EUA estavam fabricando mais da metade dos produtos do mundo.

Histórico

A obra de Vladimir Lênin Imperialismo, estágio superior do capitalismo (1916), que se valeu muito do livro O capital financeiro, de 1910, escrito por Rudolf Hilferding, explicou a ascensão do capital financeiro durante o último período do século XIX, marcando a transição do capitalismo liberal clássico para o imperialismo de orientação financeira.60 Com o aumento da composição orgânica do capital, eram necessários desembolsos cada vez maiores de capital para expandir a produção. Isso foi além da capacidade da maioria dos capitalistas individuais envolvidos na concorrência clássica, levando à dominação por oligopólios e monopólios, com a reorganização do sistema financeiro para atender às suas exigências.

Paralelamente a isso, ocorreram transformações tecnológicas. A transição da energia a vapor para a energia elétrica na década de 1890 provocou um salto nas forças produtivas e na produção fabril: maior eficiência energética, menor manutenção, descentralização, reconfiguração do desenho do chão de fábrica, produção em massa e um aumento maciço na divisão e socialização do trabalho. Esse tipo de transformação rápida das forças produtivas ocorreu novamente, mais tarde, com a invenção do transistor e o surgimento dos computadores.

Lênin observou cinco características desse novo estágio: o surgimento do capital financeiro e da oligarquia financeira; a concentração da produção e dos monopólios; a exportação de capital; o surgimento de cartéis monopolistas, que “dividiram” o mundo entre si; e a conclusão da divisão territorial do mundo inteiro entre as maiores potências capitalistas, juntamente com o crescente conflito entre os Estados imperialistas.

Com esses desdobramentos, começava um novo e último estágio superior do capitalismo, ou seja, o estágio do imperialismo moderno. Não é possível haver outro novo estágio do capitalismo (pois um sistema sem concorrência não seria capitalismo).

O livro de Lênin foi escrito às vésperas da Revolução Soviética. Após a formação da União Soviética, o conflito entre trabalho e capital mudou qualitativamente, deixando de ser apenas uma contradição interna dos países e passando a incluir contradições entre Estados com diferentes bases de classe.

O imperialismo moderno herda totalmente a história de dominação e exploração do mundo pelo projeto europeu. Lênin define os superlucros, resultado do imperialismo moderno, como “um excedente de lucros além dos lucros capitalistas que são normais e costumeiros em todo o mundo”.61

Após a Segunda Guerra Mundial, as divisões capitalistas internacionais se intensificaram mais uma vez durante a Grande Depressão (1929-1939), quando várias potências imperialistas trancaram suas economias com tarifas e outras barreiras. Antes do final da Segunda Guerra Mundial, a reorganização do sistema financeiro global, liderada pelos EUA, foi acordada em Bretton Woods em julho de 1944. A conversibilidade das principais moedas em dólar estadunidense e do dólar estadunidense em ouro estabeleceu a supremacia do novo “ouro verde”. Para garantir que suas normas fossem implementadas e seguidas, foram criados o Fundo Monetário Internacional e o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird), que mais tarde se tornaria o Banco Mundial. Desde então, essas duas instituições têm sido os principais pilares da dominação dos EUA sobre o Sul Global.

Pós-Segunda Guerra Mundial

Em 1945, os Estados Unidos obtiveram uma vitória decisiva entre as potências capitalistas, e deu-se início à dominação do dólar estadunidense. Entre 1945 e 1971, houve uma fase de expansão de seu imperialismo. Com efeito, o país sofreu perdas significativas nesse período, inclusive com uma série de novos projetos socialistas. No entanto, após a Segunda Guerra Mundial, confiantes em sua própria supremacia produtiva, os EUA iniciaram uma reorganização radical do sistema capitalista global e desmantelaram as tarifas e outras medidas protecionistas que consideravam desnecessárias para seu próprio avanço (mas mantiveram medidas de subsídio que favoreciam suas próprias empresas capitalistas). A nova organização “globalizada” do capitalismo mundial pós-Segunda Guerra Mundial diferia significativamente, em sua estrutura internacional, do sistema capitalista anterior a 1945. O desenvolvimento das forças produtivas se acelerou em relação à era dos impérios coloniais anteriores. Ao longo dos séculos XIX e XX, por trás do verniz do livre comércio, sempre houve monopólios, como afirmou Karl Marx com relação ao Reino Unido. Os EUA avançaram ainda mais nessa dominação por meio de monopólios imperialistas protegidos por um aparato militar internacional.

Criada em 1949, a Otan tinha inicialmente três objetivos: primeiro, impedir a disseminação do espectro comunista na Europa Ocidental; segundo, garantir a subordinação militar de todos os outros países imperialistas aos EUA; e terceiro, criar um bloco militar para conter e, por fim, derrotar os países do bloco socialista. Os EUA também iniciaram a domesticação da elite europeia e angariaram apoio para o projeto do Atlântico Norte por meio da integração e da dependência econômica (simbolizada pelo Plano Marshall, iniciado em 1948) e da subordinação política (por meio de instituições como o Clube de Bilderberg, a partir de 1954).62

Os EUA tinham três objetivos no mundo colonial. Primeiro, finalizar a derrota do controle europeu e remover as barreiras a seus interesses econômicos. Segundo, proibir o alinhamento da Europa com o bloco socialista. Terceiro, derrotar qualquer projeto revolucionário de inspiração ou liderança comunista.

Com algumas exceções, como Cuba e Filipinas na virada do século XX, os EUA nunca tiveram o objetivo ou o desejo de governar ou administrar todo o escopo das relações políticas, econômicas e sociais locais do que era, então, chamado de Terceiro Mundo. Utilizando poder militar, operações secretas, incentivos econômicos e “soft power“, os EUA desenvolveram uma estratégia de neocolonialismo: independência política nominal e subordinação econômica quase total. O Bird, primeira instituição responsável pelo alistamento de europeus para o projeto hegemônico dos EUA após a Segunda Guerra Mundial, voltou-se para seu trabalho no Sul Global assim que o Plano Marshall entrou em vigor.

Neoliberalismo

A próxima fase do imperialismo é geralmente chamada de neoliberalismo. Surgiu como uma resposta à estagnação econômica iniciada na década de 1960 (que se agravou com a crise de 1974) e à ameaça política dos projetos de esquerda do Terceiro Mundo.63 O neoliberalismo foi experimentado pela primeira vez no Chile (1973) e na Argentina (1976) pelos “Chicago Boys” de Milton Friedman. Nos dois casos, sua implementação se deu por meio de golpes de Estado sangrentos que mataram dezenas de milhares de pessoas para erradicar o apoio a projetos de esquerda, com o apoio dos EUA. As eleições de Margaret Thatcher (1979), no Reino Unido, e Ronald Reagan (1980), nos EUA, abriram caminho para sua ascensão global.

Em 1981, os EUA se tornaram, em termos correntes, uma nação devedora. A queda da União Soviética, em 1991, permitiu que os EUA se engajassem em uma projeção imperialista mais despojada, sobretudo no âmbito militar. As principais características do neoliberalismo incluem o seguinte:

  • O mundo vivenciou a globalização econômica e a financeirização do capitalismo monopolista, com privilégios de monopólio financeiro “superimperialista” criados pelos EUA para sustentar a retirada do dólar estadunidense do padrão ouro.
  • Os EUA ampliaram de forma agressiva seus direitos de propriedade intelectual em todo o mundo e obtiveram monopólios globais quase perpétuos. A economia de bens tangíveis foi subordinada à economia virtualizada. Grandes áreas de pequena produção foram impiedosamente destruídas.
  • O Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial adotaram consistentemente políticas de austeridade que empobreceram e sobrecarregaram o Sul Global com grandes níveis de endividamento. Essa dívida só poderia ser paga por meio da exportação de produtos que o Norte Global pagaria em dólares estadunidenses. Diferentemente de qualquer outro banco, o Banco Mundial pode formular a política econômica de seus credores, encolhendo o Estado e esvaziando a moeda local para garantir a primazia do dólar estadunidense. A privatização, o cercamento do setor público, a redução do papel do Estado na economia e na sociedade (sobretudo no Sul Global) e o aumento da precarização do trabalho foram as principais demandas de suas políticas, o que resultou no aumento da pobreza e da desigualdade, assim como a intensificação do trabalho reprodutivo não remunerado das mulheres.64
  • A desarticulação da produção fabril e das cadeias de suprimentos (auxiliada por enormes transformações tecnológicas e pelos preços do petróleo subsidiados pelos EUA) criou não apenas aumentos maciços na produtividade, mas também enormes vantagens para o capital global e suas corporações multinacionais às custas da classe trabalhadora. O capital conseguiu transferir, com facilidade, partes da produção entre diversos países pequenos e fracos do Sul Global, e os países de industrialização tardia do Sul Global, como o Brasil e a África do Sul, sofreram desindustrialização. O socialismo e o tamanho da China a protegeram desse destino.
  • Houve uma mudança da produção para a especulação financeira e o capital monopolista e rentista. Em todo o mundo, uma forte desregulamentação dos mercados financeiros e uma revolução nas tecnologias de comunicação possibilitaram enormes fluxos de capital financeiro especulativo em tempo real.
  • Uma nova forma avançada de produção e circulação monopolista tornou-se evidente em vários setores da economia. Notadamente, com a ascensão do capital digital monopolista, alguns monopólios e oligopólios, como o Google, dominam o mundo inteiro (com exceção de China, Rússia, Irã, República Popular Democrática da Coreia, Cuba e alguns outros).
  • Houve um crescimento do Estado coercitivo, níveis cada vez mais altos de desigualdade e um aumento do populismo neofascista.
  • A ascensão da hegemonia cultural, política e de política externa do Ocidente foi possível devido à onipresença e ao status de monopólio econômico das tecnologias estadunidenses, incluindo Google, Facebook, WhatsApp, Instagram e Twitter.65

A obra de Michael Hudson Super Imperialism (1972) descreve a grande derrota enfrentada pelo resto do mundo quando os EUA abandonaram o padrão ouro.66 Em vez de comprar ouro para manter suas moedas, os EUA obrigaram outros bancos centrais a reciclar seus excedentes de dólares para comprar títulos do Tesouro dos EUA. Isso permitiu que os EUA forçassem o resto do mundo a pagar suas dívidas, inclusive aquelas contraídas com a guerra contra o povo do Vietnã. Os EUA se tornaram uma nação devedora, mas conseguiram terceirizar sua dívida por meio do instrumento do complexo dólar-Wall Street.

Tecnologia e soft power

Imensas transformações na tecnologia e no desenvolvimento das forças produtivas acompanharam esse processo. Os semicondutores, por exemplo, tiveram um aumento de 100 bilhões de vezes na densidade de transistores entre 1954, quando foi criado o primeiro dispositivo de silício funcional, e junho de 2023, com o lançamento do chip Apple M2 Ultra, com 134 bilhões de transistores.67

O poder do setor de tecnologia dos EUA surgiu, em primeiro lugar, devido à importância do avanço tecnológico para o complexo militar-industrial e, em segundo lugar, porque o domínio do comércio mundial pelos EUA lhes permitiu mover seus braços comerciais para reforçar a centralidade do Vale do Silício. Assim, o Vale do Silício é, ao mesmo tempo, um facilitador das principais funções de inteligência militar dos EUA e um dos beneficiários delas.

A natureza por trás do que é chamado de “efeito de rede” permitiu o rápido estabelecimento de monopólios e oligopólios “naturais” em muitas áreas da tecnologia. Assim como as centrais telefônicas de cem anos atrás, quando uma empresa como o Google ultrapassa um limite de participação de mercado em operações de busca e o monetizou, ela se torna um oligopólio. Tecnologias como a computação em nuvem permitiram que a Amazon deixasse de ser apenas um monopólio do setor de varejo e passasse a desafiar Google e Microsoft em novos mercados.

O termo “soft power” foi desenvolvido por Joseph Nye no final da década de 1980, mas é apenas um novo nome para a extensão adquirida pelos conceitos de hegemonia de Gramsci quando se trata do imperialismo dos EUA. Os seguintes “setores” fazem parte da hegemonia global dos EUA: cultura, informação, entretenimento, organizações sem fins lucrativos (ONGs), academia e think tanks. Todos dependem de um setor de comunicação centralizado comum, que abrange cabos submarinos de fibra óptica, satélites, redes de telecomunicações, imensos centros de dados e empresas de comunicação digital como Twitter (X), Facebook e Google.

No último século, foram aproximadamente cinco os estágios das tecnologias da comunicação:

  1. Rádio como meio de comunicação de massa, telefone e cinema “falado” (1920-1950).
  2. Televisão e a ascensão da publicidade da Madison Avenue (1950-1970).
  3. Revolução digital, crescimento em larga escala da internet (que, na verdade, começou como um projeto militar dos EUA em 1969) (1980-2000).
  4. Celular e redes sociais de primeira geração (2000-2005).
  5. Dispositivos móveis e inteligentes onipresentes e monopólios de serviços OTT de streaming de vídeo, como Netflix, Amazon Prime, Disney+, CGI, realidade aumentada e virtual e, em breve, mídia influenciada pela IA (2005 até o presente).

Cada uma dessas cinco gerações de tecnologias foi comercializada e depois “transformada em arma” sob o olhar atento das agências militares e de inteligência dos EUA. Hollywood é famosa por esses vínculos. A quinta geração de tecnologias representa um salto quantitativo e qualitativo de capacidade. As empresas de tecnologia e mídia dos EUA, representantes da hegemonia norte-americana, hoje controlam efetivamente a maior parte das vozes que os jovens do Sul Global ouvem. Ainda que o X possa estar em declínio e tenha sido principalmente um espaço para as classes médias ilustradas e engajadas dos centros urbanos, o Facebook, o Instagram e serviços de streaming, como Netflix, penetram na vida de bilhões de pessoas da classe trabalhadora.

Vejamos o caso da Índia. Nos primeiros dez meses de 2023, 510 milhões de usuários únicos de internet no país passaram um total de 371 bilhões de horas online, registrando 2,9 trilhões de visualizações. Dessas horas, 105 bi foram gastas em redes sociais, 74 bi em entretenimento, 10,5 bi em notícias, 10 bi em varejo e 12,8 bi em outras atividades (principalmente relacionadas ao setor financeiro). Durante o mês de outubro de 2023, as pessoas com idade entre 18 e 24 anos passaram, em média, 940 minutos no Instagram, 708 no YouTube, 387 no Facebook e 117 no X. Entre todas as idades, o tempo gasto no Facebook, Instagram e X mais do que dobrou desde janeiro de 2020. Em outubro de 2023, os seguintes serviços OTT de streaming de vídeo lideraram em milhões de espectadores: 170 mi na Disney, 99 mi na MX Player (empresa indiana supostamente em negociações com a Amazon), 92 mi na JioCinema (Reliance, Paramount e James Murdoch) e outros como ZEE5, Netflix e Sony. Apesar da ascensão de Bollywood, Hollywood continua presente na Índia.68

Globalmente, a mídia ocidental tem utilizado quatro tipos de censura nas redes sociais: Shadow banning ou ghosting (supressão secreta de usuários), listas de nomes favorecidos e desfavorecidos (priorização de conteúdo desejável; depreciação ou eliminação de conteúdo indesejado), manipulação algorítmica privada não visível e, agora, até mesmo remoção direta e supressão de conteúdo e/ou usuários.

Estima-se que 73% do tráfego da internet seja conduzido pelos chamados “bad bots“, incluindo contas falsas controladas pelo Estado, sobretudo pelos Estados Unidos e Israel.69 Mais da metade desse tráfego utiliza técnicas de evasão para imitar o comportamento humano. Essas técnicas são mobilizadas sistematicamente em uma série de campanhas de soft power dos EUA, inclusive em eleições e para influenciar a opinião pública.

Observando a “supremacia cultural dos Estados Unidos”, o jornal The Financial Times demonstra preocupação com o império da seguinte forma: “Manter um imenso alcance cultural é uma excelente salvaguarda para uma superpotência após um pico. O truque é não se acomodar e relaxar demais”.70

No entanto, o nível de detalhe do controle exercido pela inteligência dos EUA sobre cada chamada telefônica, mensagem e toque de tecla resulta em riscos muito altos para o Sul Global. É necessário dar muita atenção e não menosprezar a soberania digital.

Capital fictício

Karl Marx analisou criticamente o aumento do capital fictício no Volume III de O Capital.71 O último relatório do Banco de Compensações Internacionais apontou que o valor nocional total dos derivativos em circulação (sendo os três tipos taxa de juros, câmbio e ações) atingiu US$ 715 trilhões no final de junho de 2023, um aumento de 16% em seis meses, mais de quatro vezes o PIB mundial (PPC) e mais de sete vezes o PIB mundial em termos de taxa de câmbio corrente (TCC).72 O valor bruto de mercado desses derivativos estava em quase US$ 20 trilhões.

Os fundos de hedge, como a Bridgewater Associates, e as empresas de participações privadas, como a BlackRock, participam dessa hiperespeculação. Uma analogia utilizada para ajudar a explicar os derivativos é que, se você se colocar entre dois espelhos posicionados com um ligeiro ângulo entre si, verá uma longa série de imagens suas. Você continua sendo de verdade, mas as imagens são efêmeras.

Embora o capital seja fictício, os resultados não são. A expropriação dos bens naturais e das empresas do Sul Global acontece agora em uma escala de trilhões de dólares estadunidenses a uma velocidade de milissegundos.73

2008-2022: Uma transição

A derrota da União Soviética, em 1991, levou o capital estadunidense a um novo sentimento de confiança eterna no imperialismo. Agora seria possível expropriar os mercados da antiga União Soviética e ter a sensação de ter alcançado o destino manifesto. A ideia de “fim da história” e o surgimento do sentimento de unilateralismo dominaram o pensamento do Conselho de Relações Exteriores (Council on Foreign Relations) e de outras instituições estratégicas dos EUA.

Diante de um declínio na taxa de criação de capital em suas economias, e como a financeirização e os direitos de propriedade intelectual aumentaram a prevalência de monopólios, uma proporção maior de capital evitou investimentos produtivos e passou a buscar cada vez mais ganhos de curto prazo, tornando-se ainda mais especulativa.

Com a crise financeira de 2007-2008 – no que chamamos de início da Terceira Grande Depressão –, as ferramentas anteriores de combate à estagnação se mostraram cada vez mais ineficazes. A impermeabilidade da China a essa crise aumentou o sinal de alerta do Norte Global. Nos 14 anos seguintes, um período de transição marcou o fim da fase do neoliberalismo. Do início dos anos 2000 até 2022, começaram a ocorrer grandes transformações. Algumas aceleraram a consolidação do capital, enquanto outras sinalizaram o início de uma crise existencial do capital:

  1. A mudança mais importante foi a ascensão da China como maior economia do mundo quando medida pela paridade do poder de compra (PPC).
  2. O Sul Global passou de 40% do PIB mundial para 60% quando medido em PPC.
  3. A Terceira Grande Depressão levou a uma queda ainda maior nas taxas de crescimento do PIB. Em 2022, as taxas de crescimento per capita médias em 10 anos registravam patamares inferiores a 1% na Europa e de 1,5% nos EUA.
  4. O processo de “desnacionalização” do capital europeu e japonês foi acelerado pelas rápidas transformações nos mercados de capitais. Agora estão totalmente integrados, dependentes e subordinados aos EUA em questões fundamentais.
  5. A China se consolidou como um projeto socialista e a esperança ocidental de um novo “Gorbatchov chinês” fracassou completamente.
  6. Os países da Otan aumentaram o número de intervenções militares globais, mas foram confrontados com uma série de derrotas, como no Afeganistão, no Iraque e até mesmo, em certa medida, na Síria.
  7. A decisão dos EUA de expandir a Otan para a Europa Oriental e usar a Ucrânia em uma batalha por procuração no centro da movimentação para controlar a Rússia resultou em um importante conflito militar entre potências nucleares.
  8. Os EUA, diante de uma relativa hegemonia econômica e política, começaram a expandir maciçamente o uso de sanções, batalhas juríricas (lawfare), tarifas e apreensão de reservas em moeda estrangeira.
  9. Para tentar impedir o avanço tecnológico da China, os EUA começaram a adotar tarifas e medidas protecionistas. Iniciaram um imenso ataque de soft power contra a China e começaram uma nova Guerra Fria.
  10. As principais vozes da classe dominante dos EUA falam abertamente sobre a possibilidade de usar sua hegemonia militar para bloquear a China. Como também “perderam” a Rússia, pelo menos com Vladimir Putin no poder, os EUA estão concentrados em planejar a forma de concluir sua missão histórica de subordinar a Eurásia de uma vez por todas. Em última análise, isso implicaria a desnuclearização e o possível desmembramento da Rússia e da China.

Periodização do imperialismo

O imperialismo mudou nos últimos 100 anos. Grosso modo, podemos descrever alguns de seus principais períodos da seguinte forma:

  • 1890 – 1916: A ascensão do imperialismo moderno.
  • 1917–1939: Nascimento da União Soviética, declínio da hegemonia britânica, continuação da extrema rivalidade interimperialista, ascensão do fascismo, disseminação de ideias socialistas pelo mundo e Grande Depressão.
  • 1940–1945: Batalha do mundo contra o fascismo, agressão alemã e japonesa.
  • 1945–2008: Estabelecimento da República Popular da China, era da hegemonia dos EUA dentro do campo imperialista, avanço das lutas de libertação nacional no Sul Global e fim do colonialismo direto, aumento da importância de projetos socialistas como Cuba e Vietnã, mudanças drásticas nas forças produtivas e inúmeras guerras nas quais os EUA assassinaram dezenas de milhões de pessoas. Esse período pode ser subdividido em duas partes: a chamada era de ouro do imperialismo estadunidense durante as décadas de 1950 e 1960, seguida pela década de 1970 e a virada para a estagnação e o neoliberalismo.
  • 2008–2023: A falsa esperança do unilateralismo dos EUA foi substituída pela consciência de que um poderoso projeto socialista não branco poderia, em pouco tempo, superar os EUA economicamente. Em 1918, no 73.o dia da República Socialista Federativa Soviética Russa, Vladimir Lênin deixou seu escritório no Instituto Smolny (Petrogrado) e dançou na neve. Ele comemorou o fato de que a experiência soviética havia superado a duração da Comuna de Paris. Em 18 de novembro de 2023, a República Popular da China completou 27.077 dias de existência, superando a duração do projeto socialista soviético. Conforme observado pelo Presidente Xi Jinping, estamos entrando em um período que não se viu em 100 anos.

Em suma, essas mudanças configuram uma transição para o que seria melhor descrito como um novo estágio do imperialismo: o hiperimperialismo.

PARTE III: Definindo o mundo

Definindo o Norte Global

O Norte Global é um bloco militar, político e econômico integrado, atualmente composto por 49 países, conforme ilustrado na Figura 17. Entre eles estão os EUA, o Reino Unido, o Canadá, a Austrália, a Nova Zelândia, Israel, o Japão e países secundários da Europa Ocidental e Oriental. Esse bloco liderado pelos EUA é o campo imperialista no mundo atual.

Conforme ilustrado na Figura 18, o Norte Global é fundamentalmente um projeto do Atlântico Norte, com três países periféricos, Austrália, Japão e Nova Zelândia.

Inspirada no conceito de tríade de Samir Amin, mas expandindo-o e modificando-o para se adequar às realidades atuais, a organização do bloco do Norte Global pode ser melhor compreendida em camadas de quatro anéis concêntricos.74 A posição de cada país dentro de cada anel depende de sua ligação com os Estados Unidos e da proximidade entre seus serviços de inteligência e os dos EUA, conforme explicado abaixo.

Anel 1 do Norte Global: Seis países imperialistas no núcleo anglo-americano liderado pelos EUA

Figura 19

Anel 1: Núcleo anglo-americano liderado pelos EUA

Informações selecionadas, países classificados pelo PIB (PPC), 2022

Parte 1

País Geral Relação com Inteligência dos EUA
ONU
ano de entrada
População
(mi)
PIB (PPC)
(bi)
Taxa de crescimento
10 anos
média movel anual
PIB (PPC)
per capita
5 olhos 9 olhos 14 olhos
Estados Unidos 1945 338 25.463 2,1% 76.343 S S S
Reino Unido 1945 68 3.717 1,5% 54.824 S S S
Canadá 1945 38 2.265 1,8% 58.316 S S S
Austrália 1945 26 1.629 2,4% 62.026 S S S
Israel 1949 9 502 4,1% 51.990
Nova Zelândia 1945 5 266 3,1% 51.962 S S S
Total 6 países 485 33.843 70.326
Porcentagem do mundo 6,1% 20,7%
Fonte: Elaboração de Sul Global Insights com base em dados da ONU, FMI
Figura 19

Anel 1: Núcleo anglo-americano liderado pelos EUA

Informações selecionadas, países classificados pelo PIB (PPC), 2022

Parte 2

País Militar
OTAN
ano de entrada
OTAN+ Gasto militar
aj. (mi)
Gasto militar
ajust. per capita
>média mundial
(vezes)
Bases EUA
excl. EUA
Operações
Intra-imperialistas
Operações
militares
no Sul Global
Potência
nuclear
Estados Unidos 1949 S 1.536.859 12,6 22 34 S
Reino Unido 1949 S 68.463 2,8 25 8 24 S
Canadá 1949 S 26.896 1,9 2 6 7
Austrália S 32.299 3,4 17 8
Israel 23.406 7,2 7 S
Nova Zelândia S 2.829 1,5 4
Total 1.690.752 51 36 77
Porcentagem do mundo 58,9%
Fonte: Elaboração do Sul Global Insights com base em dados de SIPRI e Monthly Review, ONU, World Beyond War, IISS

O Anel 1 (apresentado na Figura 19) representa o núcleo interno do imperialismo. Os vencedores brancos anglófonos da Segunda Guerra Mundial, que integram os Cinco Olhos (EUA, Reino Unido em 1946, Canadá em 1948, Austrália e Nova Zelândia em 1956), se estabeleceram como guarda pretoriana do que pode ser chamado de projeto anglo-americano, composto pelo Reino Unido e pelos Estados colonizadores de ocupação branca derivados dele. Israel, tratado pelos EUA como o sexto olho, não oficialmente, faz parte do núcleo interno. A coesão dos países nesse anel permanece; um exemplo é a aliança de segurança trilateral Aukus, criada em setembro de 2021.

A relação especial entre os Estados Unidos e Israel é uma chave fundamental para entender o Norte Global. São Estados colonizadores de ocupação branca, fundados e justificados nas bases da supremacia branca e do fanatismo religioso, e constituem o núcleo do Anel 1 do Norte Global. Os EUA foram fundados por extremistas religiosos brancos que, em 1690, conceberam e estabeleceram seus assentamentos coloniais como “plantations de religião”.75 Eles acreditavam que somente eles, puritanos brancos, poderiam realizar o plano divino na “vastidão selvagem americana”. O genocídio promovido contra as populações indígenas americanas e a escravização de povos africanos eram vistos como resultado óbvio e inevitável de sua superioridade racial e religiosa.

Israel foi uma criação do imperialismo britânico e estadunidense, organizada pelos líderes do movimento sionista. Foi descrito pelo especialista militar do jornal The Guardian, Herbert Sidebotham, durante a Primeira Guerra Mundial, da seguinte forma: Os únicos colonizadores possíveis da Palestina são os judeus… representam, ao mesmo tempo, uma proteção contra o Oriente exótico e uma mediação entre ele e nós, uma civilização distinta da nossa, mas imbuída de nossas ideias políticas”.76 Para os imperialistas, a “liberdade contra a discriminação” foi apenas o pretexto para a formação do Estado judaico e supremacista branco de Israel.

Conforme indicado anteriormente, entre 1776, ano da independência dos britânicos, e 2019, os EUA passaram 228 dos 245 anos desse período em guerra/conflito e apenas 17 anos em “paz”.

Durante sua história, as forças do Reino Unido (ou forças com mandato britânico) invadiram, tiveram algum controle ou travaram conflitos em 171 dos 193 países do mundo que são hoje membros da ONU – ou seja, nove em cada dez países.77

Em seus 72 anos de existência, Israel iniciou “oficialmente” 16 conflitos militares com a população palestina e outras nações árabes. Um quarto deles ocorreu sob o comando de Benjamin Netanyahu (1996-1999; 2009-2023). Obviamente, não estão incluídas nessas estatísticas “oficiais” as diversas incursões dos colonos sionistas e de seus pares militares contra o povo palestino.

O racismo branco israelense e a demagogia religiosa passaram de justificativas ideológicas para forças materiais que contribuíram para a transformação qualitativa do imperialismo na atualidade. Um exemplo disso, entre outras coisas, é o gasto militar per capita dos EUA, que é 12,6 vezes maior do que a média mundial, e de Israel, que é 7,2 vezes maior. São os dois maiores gastos militares per capita no Norte Global. Apenas no primeiro mês após 7 de outubro de 2023, o número de civis mortos por Israel na Palestina superou aquele registrado na Ucrânia desde 2022. Além disso, Israel detonou mais toneladas de explosivos do que o peso combinado das duas bombas nucleares lançadas em Hiroshima e Nagasaki.78

Segundo o Serviço de Pesquisa do Congresso dos EUA, “Israel é o maior beneficiário cumulativo de assistência externa dos EUA desde a Segunda Guerra Mundial… Israel é o primeiro operador internacional do F-35 Joint Strike Fighter, aeronave furtiva de quinta geração do Departamento de Defesa, considerada o caça mais avançado tecnologicamente já fabricado”.79 Ajustando os valores pela inflação, a ajuda dos EUA a Israel entre 1951 e 2022 totalizou US$ 317,9 bilhões.80

No entanto, são os Estados Unidos que estão dirigindo a agenda na região após 7 de outubro de 2023, e não Israel. A “diplomacia de vaivém” de Blinken estabelece as regras e os tons das operações militares de Israel e as ações “proporcionais” contra a resistência palestina e as potências regionais. Os EUA fornecem o apoio político e militar necessário para que Israel elimine “permanentemente” a resistência palestina e promova a normalização com os países árabes vizinhos.

Todas essas intervenções dos EUA buscam preparar o terreno para a construção do planejado Corredor Econômico Índia-Oriente Médio-Europa (IMEC), que não se trata apenas de um mero corredor econômico, mas, essencialmente, de um plano ideológico e político para bloquear a crescente influência chinesa na região. Portanto, Israel constitui um “entroncamento central” para o IMEC, planejado pelos EUA e desenhado dentro da estrutura da Parceria do G7 para o Investimento em Infraestrutura Global, um plano do Norte Global que visa, essencialmente, combater a Nova Rota da Seda da China e qualquer forma de cooperação duradoura do Sul Global.

Anel 2 do Norte Global: Nove principais potências imperialistas europeias

Figura 20

Anel 2: Núcleo europeu

Informações selecionadas, países classificados pelo PIB (PPC), 2022

Parte 1

País Geral Relação com Inteligência dos EUA
ONU
ano de entrada
População
(mi)
PIB (PPC)
(bi)
Taxa de crescimento
10 anos
média movel anual
PIB (PPC)
per capita
5 olhos 9 olhos 14 olhos
Alemanha 1973 83 5.370 1,2% 64.086 S
França 1945 65 3.696 1,1% 56.305 S S
Itália 1955 59 3.059 0,4% 51.827 S
Espanha 1955 48 2.272 1,4% 47.711 S
Países Baixos 1945 18 1.244 1,9% 70.728 S S
Bélgica 1945 12 735 1,5% 63.268 S
Suécia 1946 11 695 2,4% 66.091 S
Noruega 1945 5 427 1,6% 78.014 S S
Dinamarca 1945 6 419 2,1% 71.332 S S
Total 9 países 306 17.918 58.334
Porcentagem do mundo 3,8% 10,9%
Fonte: Elaboração de Sul Global Insights com base em dados da ONU, FMI
Figura 20

Anel 2: Núcleo europeu

Informações selecionadas, países classificados pelo PIB (PPC), 2022

Parte 2

País Militar
OTAN
ano de entrada
OTAN+ Gasto militar
aj. (mi)
Gasto militar
ajust. per capita
>média mundial
(vezes)
Bases EUA
excl. EUA
Operações
Intra-imperialistas
Operações
militares
no Sul Global
Potência
nuclear
Alemanha 1955 S 55.760 1,9 171 8 9
França 1949 S 53.639 2,3 5 26 S
Itália 1949 S 33.490 1,6 45 5 15
Espanha 1982 S 20.307 1,2 3 3 12
Países Baixos 1949 S 15.607 2,5 7 6 7
Bélgica 1949 S 6.867 1,6 12 2 6
Suécia S 7.722 2,0 2 7
Noruega 1949 S 8.388 4,3 8 2 7
Dinamarca 1949 S 5.468 2,6 1 4 4
Total 207.247 247 37 93
Porcentagem do mundo 7,2%
Fonte: Elaboração do Sul Global Insights com base em dados de SIPRI e Monthly Review, ONU, World Beyond War, IISS

Conforme apresentado na Figura 20, os países do Anel 2 são os mais próximos do núcleo interno liderado pelos EUA, a saber, Alemanha, França, Itália, Espanha, Países Baixos, Bélgica, Suécia, Noruega e Dinamarca. O Anel 2 é definido pela proximidade e afinidade de cada país e pela confiabilidade de suas atividades de inteligência em relação às dos Estados Unidos.

“A política é uma expressão concentrada da economia”, explicou Lênin.81 A atividade militar é a expressão essencial dessa concentração política. Após a Segunda Guerra Mundial, e com o advento da internet e das redes sociais, o controle das comunicações e de todas as suas atividades relacionadas se tornou um ativo estratégico de inteligência do Estado, qualitativamente novo, e fez avançar ainda mais o controle hegemônico dominante dos EUA sobre vastas partes do mundo.

Graças ao trabalho do Wikileaks e à coragem de Julian Assange e Edward Snowden, pela primeira vez, o mundo secreto das relações de inteligência entre as forças imperialistas foi exposto mundialmente.82

De forma pedagógica, os EUA priorizaram seu nível de confiança além dos Cinco Olhos e do relacionamento especial oculto com Israel. Posteriormente, de forma secreta, mas formal, os EUA criaram a aliança Nove Olhos, que incluiu a Dinamarca, a Noruega, a França e os Países Baixos. Os europeus não queriam que se soubesse, mesmo em particular, que Israel era um membro formal. Além disso, Israel não confiava totalmente na inteligência de muitas potências europeias. Portanto, todas as partes permitiram que os EUA continuassem a ter seu relacionamento especial com Israel.

Cinquenta anos após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos continuaram a excluir as antigas potências fascistas europeias (Alemanha, Itália e Espanha) das alianças Cinco e Nove Olhos. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, os EUA construíram um sistema internacional que tinha como premissa a subordinação e a integração das antigas potências fascistas e do restante da Europa. Esse processo de subordinação e integração ficou evidente no aparato militar construído pelos Estados Unidos, tendo a Otan como um de seus pilares. O estabelecimento de um sistema de bases militares estadunidenses nas potências derrotadas – Alemanha, Itália e Japão – permitiu que Washington deixasse de lado qualquer conversa sobre um projeto militar ou diplomático soberano para os derrotados.

Em 2011, outros cinco países (Alemanha, Bélgica, Itália, Espanha e Suécia) foram incluídos aos nove anteriores e se tornaram os Quatorze Olhos.83 Entre 2005 e 2009, os EUA ficaram cada vez mais alarmados com a Rússia e a China. Começava, de forma não oficial, a “reorientação para a Ásia” (Pivot to Asia), cujo lançamento oficial foi adiado até a posse de Obama em 2012.84

Anel 3 do Norte Global: Japão e quatorze potências imperialistas europeias menores

Figura 21

Anel 3: Japão + potências européias secundárias

Informações selecionadas, países classificados pelo PIB (PPC), 2022

Parte 1

País Geral Relação com Inteligência dos EUA
ONU
ano de entrada
População
(mi)
PIB (PPC)
(bi)
Taxa de crescimento
10 anos
média movel anual
PIB (PPC)
per capita
5 olhos 9 olhos 14 olhos
Japão 1956 124 6.145 0,5% 49.090
Suíça 2002 9 754 1,9% 86.262
Irlanda 1955 5 684 8,9% 132.359
Áustria 1955 9 604 1,2% 66.889
Portugal 1955 10 439 1,6% 42.692
Grécia 1945 10 393 0,6% 37.526
Finlândia 1955 6 324 1,0% 58.445
Luxemburgo 1945 1 91 2,6% 141.333
Chipre 1960 1 47 2,5% 51.774
Malta 1964 1 31 6,1% 59.408
Islândia 1946 < 1 25 3,2% 67.176
Andorra 1993 < 1 5 1,3% 66.155
San Marino 1992 < 1 3 1,8% 79.633
Liechtenstein 1990 < 1
Mônaco 1993 < 1
Total 15 países 176 9.543 53.935
Porcentagem do mundo 2,2% 5,8%
Fonte: Elaboração de Sul Global Insights com base em dados da ONU, FMI
Figura 21

Anel 3: Japão + potências européias secundárias

Informações selecionadas, países classificados pelo PIB (PPC), 2022

Parte 2

País Militar
OTAN
ano de entrada
OTAN+ Gasto militar
aj. (mi)
Gasto militar
ajust. per capita
>média mundial
(vezes)
Bases EUA
excl. EUA
Operações
Intra-imperialistas
Operações
militares
no Sul Global
Potência
nuclear
Japão S 45.992 1,0 98 3
Suíça 6.145 2,0 2 8
Irlanda 1.164 0,6 1 3 4
Áustria S 3.626 1,1 3 3
Portugal 1949 S 3.500 0,9 9 1 6
Grécia 1952 S 8.105 2,2 5 4 5
Finlândia 2023 S 4.823 2,4 1 6
Luxemburgo 1949 S 565 2,4 1 1 3
Chipre 494 1,1 1 1
Malta 87 0,5 1
Islândia 1949 S 3
Andorra
San Marino
Liechtenstein
Mônaco
Total 74.501 118 15 40
Porcentagem do mundo 2,6%
Fonte: Elaboração do Sul Global Insights com base em dados de SIPRI e Monthly Review, ONU, World Beyond War, IISS

Embora seja composto por 15 países, o Anel 3 (apresentado na Figura 21) se concentra especialmente no Japão, que se tornou um ativo decisivo na linha de frente do esforço para limitar e suprimir a China e a Rússia. Entretanto, acrescentamos no Anel 3 outras potências secundárias da Europa Ocidental, que, embora leais aos Estados Unidos, são menos estratégicas do que outras. Algumas, como Portugal, Finlândia e Islândia, fazem parte da Otan. Portugal é a única ex-potência colonial fascista não incluída no Anel 2, em função de sua pouca relevância para a inteligência militar dos EUA (o país não faz parte dos Quatorze Olhos) e de seu PIB menor.

Portanto, o terceiro anel do campo imperialista inclui o Japão e outros 14 países europeus (Suíça, Irlanda, Áustria, Portugal, Grécia, Finlândia, Luxemburgo, Chipre, Malta, Islândia, Andorra, San Marino, Liechtenstein e Mônaco).

Nos últimos séculos, os países dos três primeiros anéis do campo imperialista, com exceção da Irlanda, provocaram enormes desastres humanos (Figura 16). O Reino Unido, os EUA e os Países Baixos se apropriaram de riquezas por meio do comércio de pessoas africanas escravizadas. Os europeus implementaram o colonialismo em todo o mundo; a totalidade do continente americano, quase toda a África e mais da metade da Ásia foram dominados por colonizadores. Os imigrantes brancos anglo-saxões expulsaram e assassinaram à força os povos indígenas das Américas, da Austrália e da Nova Zelândia. Diversas foram as tentativas imperialistas de desmembrar a China, inclusive a Primeira Guerra do Ópio, quando Hong Kong foi cedida, em 1842, e depois Taiwan, no final da Primeira Guerra Sino-Japonesa, em 1895. Em 1884-1885, os colonizadores europeus dividiram arbitrariamente a África na Conferência de Berlim. Essa metodologia violenta de divisão continua inabalável até hoje, como evidenciado pela divisão do Sudão em 2011 e pela destruição que continua afetando o país e seu povo. Em 1919, os impérios austro-húngaro e alemão foram desmantelados por meio do Tratado de Versalhes, os direitos de algumas áreas da China (Shandong) foram transferidos para o Japão, as colônias alemãs na África foram entregues às potências europeias vitoriosas e uma ordem mundial liderada pelas forças anglo-americanas foi restabelecida. Como resultado de crises internas e rivalidades imperialistas, surgiram Estados fascistas dentro desse campo, desencadeando a Segunda Guerra Mundial e provocando a morte de pelo menos 50 milhões de pessoas soviéticas e chinesas. Nos estágios finais da Segunda Guerra Mundial, os EUA lançaram bombas atômicas contra civis. Até hoje, o país se recusa a renunciar ao primeiro uso de armas nucleares e se retirou unilateralmente dos principais tratados sobre armas nucleares e mísseis.

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o Japão se tornou um aliado estratégico dos EUA. Em 1951, com a assinatura do tratado de segurança entre os dois países, o primeiro-ministro japonês, Shigeru Yoshida, aceitou o domínio das forças armadas estadunidenses sobre seu país. Durante a Guerra Fria, o Japão desempenhou um papel significativo na contenção da União Soviética e da China na frente oriental, e esse papel continua sendo desempenhado até hoje. Em julho de 2023, o Japão era o segundo país com o maior número de bases militares dos EUA (98), atrás apenas da Alemanha (171). Até hoje, nenhuma dessas bases está localizada na antiga República Democrática Alemã85.

Embora não seja oficialmente membro da Otan, o Japão tem cooperado com a organização de modo individual desde 2014. Mais recentemente, em julho de 2023, aceitou aderir ao Programa de Parceria Individual Sob Medida e participou das duas últimas cúpulas da Otan. O país também participa regularmente de reuniões realizadas na sede da organização, em Bruxelas, envolvendo seus aliados e os quatro parceiros da região do Indo-Pacífico no nível de embaixadores. Essa incorporação prática pode ser explicada pelo Conceito Estratégico da Otan 2022, que afirma que “a cooperação com os parceiros dessa região é fundamental para enfrentar o ambiente de segurança global cada vez mais complexo, incluindo a guerra da Rússia contra a Ucrânia, a mudança no equilíbrio de poder global e a ascensão da China, além da situação de segurança na península da Coreia”.

Além disso, o Japão é o único membro do G7 que não faz parte da Otan. Em 2022, a China foi rotulada pelo governo japonês como “o maior desafio estratégico de todos os tempos para a garantia da paz e da estabilidade do Japão”, que anunciou, ainda, planos para dobrar os gastos militares oficiais para 2% do PIB (mesmo nível dos países da Otan) até 2027. O governo japonês derruba, assim, o limite de 1% do PIB para os gastos militares do país, que havia sido estabelecido após a Segunda Guerra Mundial.86

Anel 4 do Norte Global: Dezenove países europeus do antigo Bloco do Leste integrados à Otan

Figura 22

Anel 4: Antigo Bloco do Leste Europeu

Informações selecionadas, países classificados pelo PIB (PPC), 2022

Parte 1

País Geral Relação com Inteligência dos EUA
ONU
ano de entrada
População
(mi)
PIB (PPC)
(bi)
Taxa de crescimento
10 anos
média movel anual
PIB (PPC)
per capita
5 olhos 9 olhos 14 olhos
Polônia 1945 40 1.643 3,7% 43.624
Romênia 1955 20 737 3,5% 38.703
Chéquia 1993 10 519 2,2% 47.955
Ucrânia 1945 40 449 -4,0% 12.886
Hungria 1955 10 408 3,3% 42.121
Eslovaquia 1993 6 219 2,3% 40.211
Bulgária 1955 7 205 2,3% 31.857
Sérvia 2000 7 164 2,6% 24.564
Croácia 1992 4 155 2,4% 40.128
Lituânia 1991 3 133 3,2% 47.107
Eslovênia 1992 2 103 2,6% 48.757
Geórgia 1992 4 75 4,2% 20.243
Letônia 1991 2 73 2,5% 39.167
Bósnia e Herzegovina 1992 3 64 2,9% 18.518
Estônia 1991 1 60 2,9% 44.630
Albânia 1955 3 52 2,8% 18.164
Macedônia do Norte 1993 2 41 2,2% 20.129
Moldova 1992 3 40 2,9% 15.710
Montenegro 2006 1 16 2,7% 25.862
Total 19 países 167 5.156 32.662
Porcentagem do mundo 2,1% 3,1%
Fonte: Elaboração de Sul Global Insights com base em dados da ONU, FMI
Figura 22

Anel 4: Antigo Bloco do Leste Europeu

Informações selecionadas, países classificados pelo PIB (PPC), 2022

Parte 2

País Militar
OTAN
ano de entrada
OTAN+ Gasto militar
aj. (mi)
Gasto militar
ajust. per capita
>média mundial
(vezes)
Bases EUA
excl. EUA
Operações
Intra-imperialistas
Operações
militares
no Sul Global
Potência
nuclear
Polônia 1999 S 16.573 1,2 5 4 7
Romênia 2004 S 5.187 0,7 9 2 9
Chéquia 1999 S 4.005 1,1 6 6
Ucrânia S 43.998 3,1 1
Hungria 1999 S 2.572 0,7 2 4 4
Eslovaquia 2004 S 1.994 1,0 2 3 4
Bulgária 2004 S 1.336 0,5 4 2 2
Sérvia 1.426 0,5 1 4
Croácia 2009 S 1.309 0,9 3 5
Lituânia 2004 S 1.732 1,8 2 4
Eslovênia 2004 S 735 1,0 4 4
Geórgia S 360 0,3 2 2
Letônia 2004 S 849 1,3 2 1 3
Bósnia e Herzegovina S 184 0,2
Estônia 2004 S 811 1,7 1 5
Albânia 2009 S 289 0,3 4 1
Macedônia do Norte 2020 S 225 0,3 2 4
Moldova S 48 < 0,1 1 4
Montenegro 2017 S 98 0,4 2 1
Total 83.732 27 42 69
Porcentagem do mundo 2,9%
Fonte: Elaboração do Sul Global Insights com base em dados de SIPRI e Monthly Review, ONU, World Beyond War, IISS

O Anel 4 (apresentado na Figura 22) é composto pelos membros europeus do antigo Bloco do Leste e pelos membros da Europa Oriental do antigo Conselho para Assistência Econômica Mútua (Comecon, que existiu entre 1949 e 1991). Trata-se de uma nova categoria dentro do campo imperialista e, portanto, não foi incluído por Samir Amin em seu influente trabalho sobre a tríade.

O Anel 4 do campo imperialista inclui Polônia, Romênia, Chéquia, Ucrânia, Hungria, Eslováquia, Bulgária, Sérvia, Croácia, Lituânia, Eslovênia, Letônia, Bósnia e Herzegovina, Estônia, Albânia, Macedônia do Norte, Moldávia e Montenegro (exceto Belarus). Cinco países eram repúblicas formais da União Soviética.

Esses países não faziam parte do campo imperialista anteriormente. Para expandir sua hegemonia, os EUA têm visado essa região militar, política e culturalmente. A Sérvia, parte da antiga Iugoslávia, foi submetida a um bombardeio de 78 dias pela Otan em 1999. Apesar de não ser membro da organização até hoje, o país foi obrigado a participar de exercícios militares conjuntos com países da Otan em junho de 2023.

A entrada da Romênia na Otan não envolveu a realização de um referendo. Em vez disso, o governo no poder modificou a Constituição, permitindo que os senadores tomassem a decisão sem consultar o povo romeno.

A expansão dos EUA e da Europa Ocidental aconteceu principalmente por meio da subordinação econômica e da expansão oriental da Otan. Quatorze são membros da Otan, enquanto quatro (Bósnia e Herzegovina, Geórgia, Moldávia e Ucrânia) participaram da reunião da Otan em Vilnius em junho de 2023. Alguns desses países são governados por regimes de direita pró-Otan (entre os exemplos estão Polônia, Ucrânia e Estônia) e desempenham um papel ativo como tropas de linha de frente contra a Rússia.

Definindo o Sul Global

Para além dos 49 países do campo imperialista do Norte Global, há 145 países que constituem o Sul Global e compõem a grande maioria da população mundial (Figura 23).

O termo “Sul Global” tem sido comumente utilizado como uma referência vaga e imprecisa. No entanto, as ações promovidas nos últimos quatro anos pelo bloco militar liderado pelos EUA, agora totalmente alinhado e integrado, criaram um grande grupo de países que são o “resto do mundo”. O “resto do mundo” está, portanto, alinhado inicialmente pela “unidade negativa”, ou seja, todos os seus membros são excluídos. Consequentemente, eles se tornaram uma negação do campo imperialista. Esses países incluem a Rússia e a Belarus, que não são países em desenvolvimento, mas são em grande medida alvos para a promoção de mudanças de regime e subjugação.

O Sul Global inclui sobretudo os chamados países “menos desenvolvidos” ou “em desenvolvimento”, geograficamente associados a países da América Latina, Ásia, África e Oceania. Trata-se de uma referência implícita a países que foram historicamente marginalizados no sistema econômico global e que estão lutando contra os legados do colonialismo e do imperialismo. Era comum chamar esses países de Terceiro Mundo.

O Sul Global carece de coesão, de uma identidade coletiva consensual e de organização e ação unificadas. Ao contrário do bloco integrado do Norte Global, o Sul Global não é um bloco unificado. Cada um desses 145 países tem ideologias e agendas políticas distintas, com diferenças de proximidade e orientação entre si e com os países do Norte Global. São diversas as disputas entre alguns deles, que vão desde disputas territoriais (como o caso da Eritreia e da Etiópia) até lutas pelo poder político intrarregional (como o caso histórico da Arábia Saudita e do Irã).

Grande parte do Sul Global busca a soberania, a paz e o desenvolvimento, mas esses países raramente chegam a um consenso global sobre qualquer questão. Muitas vezes, isso aponta para diferenças no grau de proximidade de um determinado país com o núcleo interno do Norte Global. Dessa forma, organizamos esses países em “grupos” com base em alguns atributos comuns, em vez de colocá-los em camadas de anéis integrados ou blocos distintos.

No entanto, isso não significa que o Sul Global seja – como algumas perspectivas ocidentais gostariam – um conceito fabricado e desprovido de substância. O Sul Global (Figura 24) são ex-colônias ou semicolônias do campo imperialista do Norte Global, que sofreram séculos de opressão e humilhação sob o imperialismo. Alguns desses países compartilham, em graus variados de compromisso e percepção, uma orientação política socialista. Objetivamente, com a renda per capita atual registrada em 2022 (US$ 12.850), a China é um país em desenvolvimento.87 Foi também por causa desse contexto histórico comum que Xi Jinping declarou, em seu discurso no Fórum Empresarial do Brics de 2023 (lido por Wang Wentao): “Como país em desenvolvimento e membro do Sul Global, a China respira o mesmo fôlego que outros países em desenvolvimento e busca um futuro compartilhado com eles”.88

É possível encontrar as raízes genealógicas do Sul Global no projeto do Terceiro Mundo, que tentou alterar o equilíbrio internacional de forças em favor dos interesses dos países que haviam conquistado independência política em meados do século XX, mas mantinham uma relação de servidão econômica com o Norte Global. Isso incluiu os esforços da Conferência de Bandung (1955), o Movimento dos Não Alinhados (1961), a Organização de Solidariedade com os Povos da Ásia, África e América Latina – OSPAAL (1966) e a busca por uma nova ordem econômica internacional (1974) por meio da formação da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (1964) por parte dos países em desenvolvimento.89

Em comum, esses países têm a marginalização histórica e contemporânea na ordem econômica e política global. Um dos exemplos mais pungentes e devastadores desse aspecto é o dano ambiental e ecológico que o Norte Global vem causando a países do Sul Global. A extração de recursos e a especulação financeira sobre a terra e as plantações levaram ao desmatamento, à destruição de habitats, à degradação do solo e à poluição da água. Isso vem resultando em fome generalizada e tem provocado uma perda significativa de biodiversidade e grandes extensões de terras agrícolas não cultiváveis, destruindo ecossistemas e espécies locais.

Além disso, as empresas multinacionais do Norte Global são responsáveis pela poluição do ar, da água e do solo com seus métodos perversos, enquanto o neoliberalismo garante que não haja regulamentações para evitar essas práticas. Proibidos no Norte Global, mas amplamente utilizados no Sul Global, os agrotóxicos e a geração de materiais perigosos e outros resíduos aumentaram os riscos à saúde, especialmente para povos indígenas, mulheres, crianças e pessoas idosas.90 Empresas de manufatura, mineração, energia e transporte seguem emitindo gases do efeito estufa, o que mais contribui para as mudanças climáticas, colocando o Sul Global no perigo iminente de sofrer uma catástrofe. O investimento estrangeiro direto das corporações multinacionais do Norte Global devasta o meio ambiente, destrói terras agrícolas e aumenta a precariedade de todos os povos trabalhadores. Ao mesmo tempo, o Norte Global usa a crise climática para promover mais acaparamento de terras e privatização da biodiversidade por meio da financeirização da natureza.91

Todos esses 145 países estão agora sofrendo a imensa pressão da superexpansão imperialista. Entre os desafios comuns que continuam enfrentando estão o subdesenvolvimento histórico, a dependência do setor primário, a industrialização limitada, a dívida externa, os desequilíbrios comerciais, as lacunas tecnológicas, o déficit de infraestrutura e a crise ambiental desproporcional.

Desiludidos com os desafios mencionados acima, setores cada vez maiores da nova burguesia dos países do Sul Global – que surgiram com o rápido crescimento econômico registrado nas últimas duas décadas, sobretudo na Ásia – estão aos poucos perdendo a confiança na liderança política, econômica e moral dos Estados Unidos e da Europa. Novos centros de poder econômico, como a China, oferecem modelos alternativos de desenvolvimento e investimento (por exemplo, por meio de iniciativas como a Nova Rota da Seda) e se tornam mais atraentes para a burguesia do Sul Global.

Entre os 145 países do Sul Global, identificamos seis grupos. Ainda que haja traços comuns entre cada um deles, o número atribuído a cada grupo está correlacionado à ordem decrescente de países considerados uma ameaça ao bloco imperialista anglo-americano liderado pelos EUA. O pertencimento dos países aos grupos é dinâmico e pode mudar de acordo com a conjuntura política e econômica.

Grupo 1 do Sul Global: Seis países socialistas independentes

Figura 25

Grupo 1: Socialistas independentes

Informações selecionadas, países classificados pelo PIB (PPC), 2022

Parte 1

País Geral História colonial
ONU
ano de entrada
População
(mi)
PIB (PPC)
(bi)
Taxa de crescimento
10 anos
média movel anual
PIB (PPC)
per capita
Situação
colonial
Principais
colonizadores
Ano de
independência
China 1945 1.426 30.217 6,2% 21.404 Semi-colônia Reino Unido, Japão, EUA 1949
Vietnã 1977 98 1.321 6,1% 13.284 Colônia França, Japão 1945
Venezuela 1945 28 197 -11,8% 7.302 Colônia Espanha 1811
Laos 1955 8 69 5,1% 9.207 Colônia França 1953
RPD Coreia 1991 26 Colônia Japão 1945
Cuba 1945 11 Colônia Espanha 1959
Total 1.597 31.804 20.577 6 Col+SemiCol
Porcentagem do mundo 20,0% 19,4%
Fonte: Elaboração de Sul Global Insights com base em dados da ONU, FMI
Figura 25

Grupo 1: Socialistas independentes

Informações selecionadas, países classificados pelo PIB (PPC), 2022

Parte 2

País Militar Alvo militar dos EUA
Gasto militar
aj. (mi)
Gasto militar
ajust. per capita
> média mundial
(vezes)
Sanções
dos EUA
lista
Intervenção
militar
dos EUA
hist.
Bases militares
EUA
China 291.958 0,6 S S
Vietnã S
Venezuela 5 < 0,1 S S
Laos S S
RPD Coreia S S
Cuba S S 1
Total 291.963 5 6 1
Porcentagem do mundo 10,2%
Fonte: Elaboração de Sul Global Insights com base em dados de SIPRI e Monthly Review, ONU, CRS, World Beyond War
Figura 25

Grupo 1: Socialistas independentes

Informações selecionadas, países classificados pelo PIB (PPC), 2022

Parte 3

País Afiliações internacionais Votos na ONU
Amigos da
Carta da ONU
Org. de
Cooperação
de Xangai
Brics10 Cessar-fogo
em Gaza
10/2023
Retirada
da Rússia
02/2023
China S Pleno Original A favor Abstenção
Vietnã A favor Abstenção
Venezuela S Não votou Não votou
Laos S A favor Abstenção
RPD Coreia S A favor Contra
Cuba S A favor Abstenção
Total 5 1 1 5 A favor 5 Contra+abstenção
Fonte: Sul Global Insights

Os seis países do Grupo 1 (Figura 25) promovem o socialismo em graus variados e, muitas vezes, adotam posições internacionais progressistas. Cinco dos seis fazem parte do Grupo de Amigos em Defesa da Carta da ONU.

A China é o membro mais importante desse grupo. Seu PIB, medido em paridade do poder de compra, está em primeiro lugar no mundo, representando quase o triplo do PIB (PPC) da Índia. Também corresponde a 119% do PIB (PPC) dos Estados Unidos.92 A China alcançou o avanço mais significativo no desenvolvimento humano, tirando 850 milhões de pessoas da pobreza extrema nas últimas quatro décadas.93 Embora não busque a hegemonia sobre o sistema-mundo, o país é visto pelos EUA e seus aliados como a principal ameaça à sua hegemonia, e foi rotulado nos últimos anos como um concorrente “quase rival” nos documentos de estratégia dos departamentos de Estado e Defesa dos EUA. A China representa não apenas uma ameaça econômica, mas, com o ressurgimento de um partido comunista mais forte sob o comando do presidente Xi Jinping, também uma grande ameaça política com sua revitalização manifesta das tradições socialistas e comunistas. A China é impelida por seus interesses nacionais e sociais e por seu apoio histórico ao Sul Global para o papel de apoio a processos e projetos contra-hegemônicos. O país continua a declarar publicamente o compromisso de “reduzir a desigualdade entre Norte e Sul”.94

Enquanto a China representa, hoje, o maior desafio econômico e político à hegemonia do Norte Global, Cuba e Venezuela representam a linha de frente da resistência socialista histórica. Cuba segue resistindo ao sofrimento causado por mais de seis décadas de embargo e bloqueio econômico liderados pelos EUA. A Venezuela enfrenta sanções pesadas. Esses dois países não tentam esconder sua aposta em uma agenda socialista. A República Popular Democrática da Coreia continua sendo o “bicho-papão” que o Ocidente teme no Leste, enquanto o Laos e o Vietnã têm partidos comunistas de longa data no comando de seus governos e estão passando por um rápido desenvolvimento econômico.

Desde a fundação da União Soviética, as forças de esquerda do mundo têm enfrentado uma contradição entre as necessidades do Estado e do povo dos projetos socialistas e as necessidades da classe trabalhadora em países e regiões específicas. É necessário que as lideranças da classe trabalhadora em todos os países tenham pensamento estratégico para evitar o antagonismo nas “contradições entre os povos” e garantir que o golpe decisivo seja direcionado ao centro do imperialismo. Seguir a máxima de que comunistas “não têm interesses separados daqueles do proletariado como um todo” exige uma investigação do concreto.95 Por exemplo, derrotas como a queda da União Soviética são catastróficas para todas as pessoas trabalhadoras. São necessárias diversas decisões táticas para tirar proveito das rachaduras no campo imperialista para proteger os projetos e movimentos socialistas, estejam eles no poder ou não.

Grupo 2 do Sul Global: Dez países em forte busca por soberania

Figura 26

Grupo 2: Em forte busca de soberania

Informações selecionadas, países classificados pelo PIB (PPC), 2022

Parte 1

País Geral História colonial
ONU
ano de entrada
População
(mi)
PIB (PPC)
(bi)
Taxa de crescimento
10 anos
média movel anual
PIB (PPC)
per capita
Situação
colonial
Principais
colonizadores
Ano de
independência
Rússia 1945 145 4.770 0,8% 33.253 Independente
Irã 1945 89 1.617 2,0% 18.865 Semi-colônia Reino Unido 1979
Belarus 1945 10 210 0,1% 22.679 Independente
Burkina Faso 1960 23 58 4,9% 2.549 Colônia França 1960
Mali 1960 23 57 4,1% 2.514 Colônia França 1960
Guiné 1958 14 44 5,8% 3.025 Colônia França 1958
Níger 1960 26 40 5,7% 1.518 Colônia França 1960
Síria 1945 22 Colônia França 1946
Afeganistão 1946 41 Semi-colônia Reino Unido, EUA 2021
Eritreia 1993 4 Colônia Itália 1993
Total 395 6.795 20.938 8 Col+SemiCol
Porcentagem do mundo 5,0% 4,1%
Fonte: Elaboração de Sul Global Insights com base em dados da ONU, FMI
Figura 26

Grupo 2: Em forte busca de soberania

Informações selecionadas, países classificados pelo PIB (PPC), 2022

Parte 2

País Militar Alvo militar dos EUA
Gasto militar
aj. (mi)
Gasto militar
ajust. per capita
> média mundial
(vezes)
Sanções
dos EUA
lista
Intervenção
militar
dos EUA
hist.
Bases militares
EUA
Rússia 86.373 1,7 S S
Irã 6.847 0,2 S S
Belarus 821 0,2 S
Burkina Faso 563 0,1 1
Mali 515 0,1 S 2
Guiné 441 0,1 S
Níger 243 < 0,1 S 9
Síria S S
Afeganistão S S
Eritreia S S 28
Total 95.802 8 6 40
Porcentagem do mundo 3,3%
Fonte: Elaboração de Sul Global Insights com base em dados de SIPRI e Monthly Review, ONU, CRS, World Beyond War
Figura 26

Grupo 2: Em forte busca de soberania

Informações selecionadas, países classificados pelo PIB (PPC), 2022

Parte 3

País Afiliações internacionais Votos na ONU
Amigos da
Carta da ONU
Org. de
Cooperação
de Xangai
Brics10 Cessar-fogo
em Gaza
10/2023
Retirada
da Rússia
02/2023
Rússia S Pleno Original A favor Contra
Irã S Pleno Novo A favor Abstenção
Belarus S Observador A favor Contra
Burkina Faso Não votou Não votou
Mali S A favor Contra
Guiné A favor Abstenção
Níger A favor A favor
Síria S A favor Contra
Afeganistão Observador A favor A favor
Eritreia S A favor Contra
Total 6 4 2 9 A favor 7 Contra+abstenção
Fonte: Sul Global Insights

Os países do grupo 2 (Figura 26) não são Estados socialistas, mas são os principais alvos de mudanças de regime lideradas pelos EUA. São países que estão defendendo aguerridamente sua soberania e a de outros (como visto por sete dos nove países do grupo que votaram contra a resolução apoiada pelos EUA para a retirada da Rússia em fevereiro de 2023 e seu total apoio ao cessar-fogo em Gaza).

Essas nações enfrentam algumas das situações mais agudas da luta por soberania nacional, embora tenham motivos diferentes para isso. Elas estão na linha de frente da luta do Sul Global contra o imperialismo. Ainda que todas tenham total ou parcial dependência econômica do Ocidente, buscam ativamente a independência política e, portanto, estão sujeitas a uma guerra híbrida extrema travada pelo imperialismo. Simplificando, esses países, em sua maioria, estão incluídos nos alvos críticos da inteligência dos EUA para a promoção de mudanças de regime.

Sobretudo desde o golpe de direita apoiado pelos EUA na Ucrânia em fevereiro de 2014, seguido pela anexação da Crimeia para a unificação, a Rússia tem sido o principal alvo de uma mudança de regime empreendida pelo campo imperialista. Os EUA e seus aliados vêm dedicando recursos consideráveis para enfraquecer, desmantelar e desnuclearizar a Rússia; os EUA forneceram mais de US$ 90 bilhões em assistência militar à Ucrânia para a campanha contra a Rússia entre fevereiro de 2014 e fevereiro de 2022.96 Belarus tem alinhamento geopolítico e econômico com a Rússia (por exemplo, por meio da Organização do Tratado de Segurança Coletiva, formada em 1992, e da União de Bielorrússia e Rússia, formada em 1996) e, portanto, permanece na mira da inteligência dos EUA.

Desde as revoluções de 1978 e 1979, que depuseram líderes alinhados aos EUA, o Afeganistão e o Irã têm sido alvos de intervenção militar e interferência política estadunidense. O Irã tem sido um obstáculo para os avanços ocidentais na região, com seu programa de energia nuclear, forte influência regional em conflitos por procuração e postura consistente contra o Ocidente (e Israel). O Afeganistão foi invadido em 2001, e os EUA gastaram duas décadas e mais de US$ 2 trilhões (US$ 300 milhões por dia) para conquistar um ponto de apoio na Ásia Central – acabando por se retirar em 2021.97 Desde 2011, a Síria tem sido um campo de batalha para as tentativas dos EUA de garantir o controle de toda a Ásia Ocidental, uma guerra que comprova a definição sobre a Síria dada em 1965 pelo jornalista Patrick Seale: “o espelho dos interesses rivais”.98

Esse grupo está crescendo, e países como Eritreia, Mali, Burkina Faso e Níger estão tomando medidas mais ousadas para proteger a própria soberania nacional. A Eritreia nutre uma hostilidade histórica contra os EUA e é alvo de intervenção dos EUA por meio da Etiópia. Burkina Faso, Mali e Níger rejeitaram a presença neocolonial da França no Sahel e depuseram seus líderes políticos alinhados ao Ocidente. Esses países criaram a Aliança Econômica do Sahel e a Aliança dos Estados do Sahel, com o intuito de promover a cooperação econômica e militar. Entretanto, a situação política ainda é instável e eles lutam para alcançar, de fato, a independência das potências imperialistas.

Grupo 3 do Sul Global: Onze países atual ou historicamente progressistas

Figura 27

Grupo 3: Atual ou historicamente progressistas

Informações selecionadas, países classificados pelo PIB (PPC), 2022

Parte 1

País Geral História colonial
ONU
ano de entrada
População
(mi)
PIB (PPC)
(bi)
Taxa de crescimento
10 anos
média movel anual
PIB (PPC)
per capita
Situação
colonial
Principais
colonizadores
Ano de
independência
Brasil 1945 215 3.837 0,5% 18.897 Colônia Portugal 1822
Colômbia 1945 52 966 3,2% 18.720 Colônia Espanha 1819
África do Sul 1945 60 953 0,9% 15.728 Colônia Reino Unido 1931
Argélia 1962 45 584 1,8% 12.900 Colônia França 1962
Nepal 1955 31 144 4,5% 4.787 Independente
Bolivia 1945 12 119 3,2% 9.936 Colônia Espanha 1825
Honduras 1945 10 70 3,1% 6.832 Colônia Espanha 1821
Nicarágua 1945 7 48 2,9% 7.229 Colônia Espanha 1821
Zimbábue 1980 16 41 1,6% 2.603 Colônia Reino Unido 1980
Palestina 5 34 1,9% 6.364 Colônia Israel, Reino Unido
Namíbia 1990 3 29 1,4% 11.080 Colônia Alemanha, África do Sul 1990
Total 456 6.826 15.397 10 Col
Porcentagem do mundo 5,7% 4,2%
Fonte: Elaboração de Sul Global Insights com base em dados da ONU, FMI
Figura 27

Grupo 3: Atual ou historicamente progressistas

Informações selecionadas, países classificados pelo PIB (PPC), 2022

Parte 2

País Militar Alvo militar dos EUA
Gasto militar
aj. (mi)
Gasto militar
ajust. per capita
> média mundial
(vezes)
Sanções
dos EUA
lista
Intervenção
militar
dos EUA
hist.
Bases militares
EUA
Brasil 20.211 0,3 S 2
Colômbia 9.938 0,5 S 6
África do Sul 2.995 0,1
Argélia 9.146 0,6 S
Nepal 428 < 0,1
Bolivia 640 0,1 S
Honduras 478 0,1 S 9
Nicarágua 84 < 0,1 S S 3
Zimbábue 182 < 0,1 S
Palestina S S
Namíbia 369 0,4
Total 44.471 3 7 20
Porcentagem do mundo 1,6%
Fonte: Elaboração de Sul Global Insights com base em dados de SIPRI e Monthly Review, ONU, CRS, World Beyond War
Figura 27

Grupo 3: Atual ou historicamente progressistas

Informações selecionadas, países classificados pelo PIB (PPC), 2022

Parte 3

País Afiliações internacionais Votos na ONU
Amigos da
Carta da ONU
Org. de
Cooperação
de Xangai
Brics10 Cessar-fogo
em Gaza
10/2023
Retirada
da Rússia
02/2023
Brasil Original A favor A favor
Colômbia A favor A favor
África do Sul Original A favor Abstenção
Argélia S A favor Abstenção
Nepal Diálogo A favor A favor
Bolivia S A favor Abstenção
Honduras A favor A favor
Nicarágua S A favor Contra
Zimbábue S A favor Abstenção
Palestina S
Namíbia A favor Abstenção
Total 5 1 2 10 A favor 6 Contra+abstenção
Fonte: Sul Global Insights

Os países relacionados na Figura 27 estão alocados no grupo 3 com base em duas preocupações essenciais: o grau relativo em que são alvos de mudança de regime e seu papel na promoção de posições anti-imperialistas, de forma pública, no âmbito internacional. Os países deste grupo ou são os próximos da fila nas tentativas de promover mudanças de regime (logo atrás do Grupo 2) ou estão desempenhando um papel nítido e aberto de enfrentar os interesses do campo imperialista.

Entre os exemplos de países que buscam promover agendas progressistas estão o Brasil sob o governo do Partido dos Trabalhadores (PT) e a África do Sul sob a aliança tripartite (que inclui o Congresso Nacional Africano, o Partido Comunista Sul-Africano e o Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos). O primeiro demonstra liderança na construção de instituições intergovernamentais alternativas, como a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) em 2008, a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) em 2011 e o Fórum de Diálogo Índia-Brasil-África do Sul (Ibas), que foi complementado pelo Brics em 2009. Já a África do Sul desempenha um papel importante na construção da União Africana. Por vezes, esses países defendem posições internacionais progressistas, como o apoio a Cuba contra as sanções dos EUA em organizações internacionais. O Nepal aboliu a monarquia em 2008, estabeleceu uma república liderada pela esquerda e alcançou avanços significativos na emancipação legal e política de comunidades historicamente marginalizadas.

A Palestina está sob ocupação e cerco há mais de sete décadas. A Argélia tem dedicado apoio firme à autodeterminação e independência palestina e, dentro da União Africana, tem sido influente na promoção de posições progressistas sobre o desenvolvimento econômico e a unidade africana. Depois do golpe popular no Níger, a Argélia foi o único Estado africano a defender, de imediato, soluções não militares para as crises políticas.

Esses países estão buscando um caminho de desenvolvimento soberano em um sistema capitalista global, mas enfrentam graves contradições internas. Por exemplo, a África do Sul foi obrigada a fazer concessões econômicas significativas na década de 1990, inclusive com desindustrialização e privatização, o que levou a consequências catastróficas. Hoje, 57% da população do país vive abaixo da linha da pobreza, 46% está desempregada, e a participação da indústria manufatureira no PIB caiu de 25% em 1981 – durante o regime do apartheid – para 12% em 2022.99

Ao contrário da China, por exemplo, essas nações tiveram seu potencial revolucionário reduzido – ou suas revoluções não culminaram no socialismo –, mas buscaram apostar em agendas progressistas nas esferas doméstica, regional e/ou internacional. São países que os EUA consideram ter posições políticas hostis à hegemonia do Norte Global. Muitos sofreram intervenções dos EUA, guerras híbridas, sanções e quedas de governos. Entre os exemplos recentes dessas intervenções estão os golpes em Honduras (2009), no Brasil (2016) e na Bolívia (2019). O Zimbábue continua sofrendo sanções dos EUA.

Grupo 4 do Sul Global: Cinco países recentemente não alinhados

Figura 28

Grupo 4: Recém não alinhados

Informações selecionadas, países classificados pelo PIB (PPC), 2022

Parte 1

País Geral História colonial
ONU
ano de entrada
População
(mi)
PIB (PPC)
(bi)
Taxa de crescimento
10 anos
média movel anual
PIB (PPC)
per capita
Situação
colonial
Principais
colonizadores
Ano de
independência
Índia 1945 1.417 11.901 5,7% 8.398 Colônia Reino Unido 1947
Indonésia 1950 276 4.037 4,2% 14.687 Colônia Países Baixos 1945
Turquia 1945 85 3.353 5,3% 39.314 Independente
México 1945 128 3.064 1,2% 23.548 Colônia Espanha 1810
Arábia Saudita 1945 36 2.150 2,5% 66.836 Independente
Total 1.942 24.505 12.634 3 Col
Porcentagem do mundo 24,3% 15,0%
Fonte: Elaboração de Sul Global Insights com base em dados da ONU, FMI
Figura 28

Grupo 4: Recém não alinhados

Informações selecionadas, países classificados pelo PIB (PPC), 2022

Parte 2

País Militar Alvo militar dos EUA
Gasto militar
aj. (mi)
Gasto militar
ajust. per capita
> média mundial
(vezes)
Sanções
dos EUA
lista
Intervenção
militar
dos EUA
hist.
Bases militares
EUA
Índia 81.363 0,2
Indonésia 8.987 0,1 S 1
Turquia 10.645 0,3 S S 12
México 8.536 0,2 S
Arábia Saudita 75.013 5,7 S 21
Total 184.543 1 4 34
Porcentagem do mundo 6,4%
Fonte: Elaboração de Sul Global Insights com base em dados de SIPRI e Monthly Review, ONU, CRS, World Beyond War
Figura 28

Grupo 4: Recém não alinhados

Informações selecionadas, países classificados pelo PIB (PPC), 2022

Parte 3

País Afiliações internacionais Votos na ONU
Amigos da
Carta da ONU
Org. de
Cooperação
de Xangai
Brics10 Cessar-fogo
em Gaza
10/2023
Retirada
da Rússia
02/2023
Índia Pleno Original Abstenção Abstenção
Indonésia A favor A favor
Turquia Diálogo A favor A favor
México A favor A favor
Arábia Saudita Diálogo Novo A favor A favor
Total 3 2 4 A favor 1 Abstenção
Fonte: Sul Global Insights

Com economias de escala consideráveis, o não alinhamento recente que caracteriza os países do grupo 4 é econômico, não político (Figura 28). Esses países não são socialistas e não estão reanimando o projeto político do Movimento dos Não Alinhados. A maioria teve 50 anos ou mais de independência dos antigos poderes coloniais e, hoje, tem relações muito diferentes com eles.

Economicamente, os cinco não alinhados têm PIBs significativos (estavam entre as 20 maiores economias em termos de PIB [PPC] em 2022) e estão tomando medidas econômicas cada vez mais independentes.

Esses países reconheceram que o acúmulo de reservas cambiais pelos EUA e as sanções contra países com 30% da população mundial representam graves ameaças globais. Atualmente, mais de um em cada quatro países está sofre sanções da ONU e de governos ocidentais, enquanto 29% do PIB global é produzido em países afetados por sanções. Na década de 1960, esse número ficava em 4%.100

Politicamente, trata-se de um grupo ambivalente. Militarmente, a Indonésia, a Turquia e a Arábia Saudita mantêm relações muito próximas com os Estados Unidos. A Arábia Saudita é um dos maiores compradores de armas avançadas dos EUA. Recep Tayyip Erdoğan, da Turquia, é um parceiro menos confiável para o Ocidente, apesar de o país ser membro da Otan.

Esse grupo apresenta comportamentos bastante contraditórios no cenário internacional. Há algum grau de lenta redução da dependência econômica e do alinhamento com o Ocidente e/ou há algum preparo para se opor a ele em algumas questões importantes.

Apesar do alinhamento da Índia com os EUA em organizações como o Quad e de suas posições reacionárias em relação a Israel na guerra contra Gaza, desde o início da guerra na Ucrânia, o país tem se recusado a atender a algumas exigências importantes dos EUA, como a implementação de sanções contra a Rússia. O ministro das Relações Exteriores, S. Jaishankar, defendeu com veemência a recusa de seu governo em ceder à pressão de Washington, afirmando em uma coletiva de imprensa, em junho de 2023: “Muitos americanos ainda têm na cabeça a construção do tratado da Otan… Fica quase parecendo que esse é o único modelo ou ponto de vista com o qual eles olham para o mundo… Esse não é um modelo que se aplica à Índia”.101 O conflito com o Canadá, e agora com os EUA, sobre supostas operações de inteligência indiana em seus países, está complicando o plano dos EUA de obter o apoio da Índia contra a China. A grande burguesia nacional indiana está começando a fazer valer seus interesses.

A Arábia Saudita discorda dos EUA quando seus interesses econômicos assim determinam, por exemplo, ao aumentar os investimentos entre o país e a China (incluindo acordos para a comercialização de petróleo em yuan chinês) e utilizar sua parceria com a Rússia na Opep+ para definir o preço global do petróleo. No entanto, ao mesmo tempo, durante os preparativos para a cúpula da Liga Árabe em novembro de 2023, a Arábia Saudita bloqueou os esforços da Argélia para fechar as bases dos EUA, bloqueou a ajuda militar proposta pelo Irã para a Palestina, impediu um boicote comercial proposto e se recusou a reduzir as remessas de petróleo para Israel. O Pentágono, a CIA e a Arábia Saudita foram aliados de primeira linha na recente guerra contra o Iêmen, que tirou dezenas de milhares de vidas. As Forças Especiais dos EUA forneceram aos pilotos sauditas as coordenadas para o bombardeio de alvos.102

A Indonésia, que abriga a maior população islâmica do mundo, teve uma taxa de crescimento média composta do PIB (PPC) de 4,2% entre 2012 e 2022.103 De acordo com as previsões do FMI, até 2030, o país poderá se tornar a quinta maior economia do mundo em termos de PIB (PPC). A participação dos ativos de suas empresas estatais no PIB aumentou de 43%, em 2014, para 54%, em 2018.104 Em 2020, a Indonésia proibiu a exportação de níquel bruto, componente essencial das baterias de lítio. O país foi responsável por 39% da produção global de níquel em 2022. Em termos correntes, suas exportações totais dispararam de US$ 183 bilhões para US$ 323 bilhões, entre 2020 e 2022.105 No dia 2 de fevereiro de 2023, durante o Mandiri Investment Forum em Jacarta, o presidente Joko Widodo advertiu: “Devemos nos lembrar das sanções impostas pelos EUA à Rússia. Visa e Mastercard podem ser um problema”, afirmando também que, “se usarmos nossas próprias plataformas e todos as usarem, desde ministérios e administrações locais até governos municipais, estaremos mais seguros”. No entanto, em novembro de 2023, os EUA (participantes ativos na tortura e no assassinato de mais de 500 mil pessoas comunistas indonésias) e a Indonésia assinaram um acordo que atualiza suas relações em uma parceria estratégica abrangente.106 A Indonésia retirou seu pedido de adesão ao Brics em 2023 e expressou interesse público em se tornar membro da OCDE.

O projeto imperial emergente dos EUA no México se consolidou efetivamente em 1846. Confrontado com uma guerra de agressão sob a lei internacional, o México foi forçado a trocar terras por paz e ceder 50% de seu território. A nova fronteira entre os dois países se tornou uma linha histórica que, internamente, constitui uma determinação inexorável e preestabelecida. Por outro lado, o México tem uma história que retorna incessantemente a suas raízes anticoloniais, à cultura indígena e à história moderna anti-imperialista. Há pouquíssima análise sobre a complexa interdependência entre os dois países, por exemplo, em termos de população, cultura e economia, mas talvez haja uma análise mais significativa em termos de segurança geopolítica para a viabilidade da hegemonia dos EUA.107 Em vários níveis, o governo de López Obrador é uma tentativa dos movimentos sociais mexicanos de lançar uma reforma contra-neoliberal de baixa intensidade. Concentra-se na recuperação da propriedade pública de todos os recursos estratégicos, no lançamento de uma nova reforma agrária e na reivindicação da terra como propriedade social. A atual reforma agrária do México garante por lei o registro de 50,6% do território como propriedade social comunitária nas mãos de comunidades camponesas e indígenas (29.803 comunas agrárias em 99,7 milhões de hectares). No entanto, o Acordo Estados Unidos-México-Canadá (USMCA, anteriormente denominado Acordo de Livre Comércio da América do Norte) de 2020 representa um impeditivo constante para a desconexão ou desvinculação da posição política do México, diante do Sul Global emergente. Em junho de 2023, os EUA iniciaram procedimentos preliminares (por meio da arbitragem do USMCA) para bloquear o decreto presidencial que tomaria uma série de medidas para proibir o milho geneticamente modificado, que representa 96% das exportações de milho dos EUA.108 Os EUA estão exibindo políticas mais agressivas e intervencionistas para minar as conquistas históricas da soberania mexicana, que foram alcançadas após longas e duras batalhas. Em 2022, o presidente mexicano López Obrador se recusou a participar da VIII Cúpula das Américas em Los Angeles, depois que veio a público a notícia de que os Estados Unidos não convidariam lideranças cubanas, venezuelanas e nicaraguenses para a reunião.

Os cinco países deste grupo têm diferentes perspectivas políticas, econômicas e militares e diferentes níveis de proximidade, com nuances diversas, com o Norte Global. No entanto, suas novas e crescentes burguesias nacionais estão aos poucos buscando relações econômicas alternativas e divergências políticas ocasionais com os EUA, embora por interesse próprio e autopreservação. A questão da nova burguesia nacional que está surgindo no Sul Global está fora do escopo deste texto; ela será abordada em nossa pesquisa de 2024 sobre formação e propriedade de capital no Sul Global.

Grupo 5 do Sul Global: Cento e onze países diversos do Sul Global

Figura 29

Grupo 5: Sul Global diverso

Informações selecionadas, 20 países principais, classificados por PIB (PPC), 2022

Parte 1

País Geral História colonial
ONU
ano de entrada
População
(mi)
PIB (PPC)
(bi)
Taxa de crescimento
10 anos
média movel anual
PIB (PPC)
per capita
Situação
colonial
Principais
colonizadores
Ano de
independência
Egito 1945 111 1.676 4,3% 16.174 Colônia Reino Unido 1922
Paquistão 1947 236 1.520 4,0% 6.695 Colônia Reino Unido 1947
Tailândia 1946 72 1.482 1,8% 21.154 Semi-colônia Reino Unido, França
Bangladesh 1974 171 1.343 6,5% 7.971 Colônia Reino Unido 1971
Nigéria 1960 219 1.281 2,2% 5.909 Colônia Reino Unido 1960
Argentina 1945 46 1.226 0,3% 26.484 Colônia Espanha, Reino Unido 1816
Malásia 1957 34 1.137 4,1% 34.834 Colônia Reino Unido 1957
Emirados Árabes Unidos 1971 9 835 3,1% 84.657 Colônia Reino Unido 1971
Singapura 1965 6 719 3,3% 127.563 Colônia Reino Unido 1965
Cazaquistão 1992 19 603 2,9% 30.523 Independente
Chile 1945 20 579 2,2% 29.221 Colônia Espanha 1818
Peru 1945 34 523 2,8% 15.310 Colônia Espanha 1821
Iraque 1945 44 505 2,7% 11.948 Colônia Reino Unido 1932
Marrocos 1956 37 363 2,4% 9.900 Colônia França, Espanha 1956
Etiópia 1945 123 358 8,4% 3.435 Independente
Uzbequistão 1992 35 340 5,9% 9.634 Independente
Sri Lanka 1955 22 320 1,8% 14.267 Colônia Reino Unido 1948
Quênia 1963 54 311 4,5% 6.151 Colônia Reino Unido 1963
Catar 1971 3 309 2,2% 109.160 Colônia Reino Unido 1971
Mianmar 1948 54 261 3,3% 4.847 Colônia Reino Unido 1948
Total 2.242 21.171 9.687 103 Col+SemiCol
Porcentagem do mundo 28,1% 12,9%
Fonte: Elaboração de Sul Global Insights com base em dados da ONU, FMI. Nota: os totais se referem aos 111 países do grupo 5, detalhados na figura 56
Figura 29

Grupo 5: Sul Global diverso

Informações selecionadas, 20 países principais, classificados por PIB (PPC), 2022

Parte 2

País Militar Alvo militar dos EUA
Gasto militar
aj. (mi)
Gasto militar
ajust. per capita
> média mundial
(vezes)
Sanções
dos EUA
lista
Intervenção
militar
dos EUA
hist.
Bases militares
EUA
Egito 4.646 0,1 S 7
Paquistão 10.337 0,1 8
Tailândia 5.724 0,2 S 3
Bangladesh 4.806 0,1
Nigéria 3.109 < 0,1
Argentina 2.578 0,2 S 3
Malásia 3.671 0,3
Emirados Árabes Unidos 3
Singapura 11.688 5,4 2
Cazaquistão 1.133 0,2
Chile 5.566 0,8 S 1
Peru 2.845 0,2 S 5
Iraque 4.683 0,3 S S 10
Marrocos 4.995 0,4 S
Etiópia 1.031 < 0,1 S S
Uzbequistão
Sri Lanka 1.053 0,1 S
Quênia 1.138 0,1 S 3
Catar 15.412 15,9 5
Mianmar 1.857 0,1 S
Total 131.182 17 63 192
Porcentagem do mundo 4,6%
Fonte: Elaboração de Sul Global Insights com base em dados de SIPRI e Monthly Review, ONU, CRS, World Beyond War. Nota: os totais se referem aos 111 países do grupo 5, detalhados na figura 56
Figura 29

Grupo 5: Sul Global diverso

Informações selecionadas, 20 países principais, classificados por PIB (PPC), 2022

Parte 3

País Afiliações internacionais Votos na ONU
Amigos da
Carta da ONU
Org. de
Cooperação
de Xangai
Brics10 Cessar-fogo
em Gaza
10/2023
Retirada
da Rússia
02/2023
Egito Diálogo Novo A favor A favor
Paquistão Pleno A favor Abstenção
Tailândia A favor A favor
Bangladesh A favor Abstenção
Nigéria A favor A favor
Argentina A favor A favor
Malásia A favor A favor
Emirados Árabes Unidos Diálogo Novo A favor A favor
Singapura A favor A favor
Cazaquistão Pleno A favor Abstenção
Chile A favor A favor
Peru A favor A favor
Iraque Abstenção A favor
Marrocos A favor A favor
Etiópia Novo Abstenção Abstenção
Uzbequistão Pleno A favor Abstenção
Sri Lanka Diálogo A favor Abstenção
Quênia A favor A favor
Catar Diálogo A favor A favor
Mianmar Diálogo A favor A favor
Total 3 17 3 77 A favor 20 Abstenção
Fonte: Sul Global Insights. Nota: os totais se referem aos 111 países do grupo 5, detalhados na figura 56

Existem 111 países que não foram incluídos nos quatro grupos anteriores do Sul Global acima, em função de múltiplas diversidades. A Figura 29 apresenta uma relação das vinte maiores economias entre eles; a lista completa está no apêndice. Esses países não compartilham as mesmas visões políticas nem os mesmos sistemas governamentais. Essuatíni, Qatar e Butão ainda são governados por monarquias, enquanto Líbia, Síria e Somália não têm uma única autoridade governamental. Alguns países abandonaram as agendas socialistas depois de serem tolhidos pelo financiamento ocidental ao desenvolvimento, como no caso de Angola e Moçambique. Por causa da intervenção política e econômica imperialista, diversos países deste grupo sofrem grave disfuncionalidade governamental (colapso da governança, da autoridade e da lei) e são quase totalmente incapazes de prover o sustento de sua população.

O desempenho econômico desses países varia significativamente. Por exemplo, apesar de a Nigéria ser a segunda maior economia da África e ter um PIB (PPC) quatorze vezes maior que o do Camboja, a primeira teve uma taxa de crescimento médio anual negativa de 0,4% entre 2012 e 2022, enquanto a segunda cresceu 5,3%.

Entre esses países, há diferentes níveis de lealdade militar ao Norte Global. O Egito tem sido um parceiro estratégico de Israel e dos Estados Unidos desde 1979, enquanto Bangladesh, Comores e Djibuti participaram da apresentação de um caso ao Tribunal Penal Internacional sobre a situação no Estado da Palestina no dia 17 de novembro de 2023.

Há neste grupo uma série de conflitos internos e disputas territoriais, como no caso da ocupação colonial do Saara Ocidental pelo Marrocos, iniciada em 1975.109 Outros, como a República Democrática do Congo e o Haiti, estão sujeitos a intervenções militares da ONU, das quais participam outros países do Sul Global.

Os países do Grupo 5 participam de diversas articulações multilaterais com nações do Sul Global e do Norte Global. O pertencimento a este grupo pode mudar caso um país desenvolva características mais distintivas. Por exemplo, embora a Argentina tenha desempenhado papéis historicamente progressistas na América Latina, a recente guinada à direita impede a inclusão do país no grupo 3 hoje. Portanto, a posição nos grupos não é estática ou permanente.

Grupo 6 do Sul Global: Duas efetivas colônias militares dos EUA

Figura 30

Grupo 6: Altamente militarizados pelos EUA

Informações selecionadas, países classificados pelo PIB (PPC), 2022

Parte 1

País Geral História colonial
ONU
ano de entrada
População
(mi)
PIB (PPC)
(bi)
Taxa de crescimento
10 anos
média movel anual
PIB (PPC)
per capita
Situação
colonial
Principais
colonizadores
Ano de
independência
Rep. da Coreia 1991 52 2.780 2,7% 53.845 Colônia Japão 1945
Filipinas 1945 116 1.171 4,9% 10.495 Colônia Espanha, EUA 1946
Total 167 3.951 24.210 2 Col
Porcentagem do mundo 2,1% 2,4%
Fonte: Elaboração de Sul Global Insights com base em dados da ONU, FMI
Figura 30

Grupo 6: Altamente militarizados pelos EUA

Informações selecionadas, países classificados pelo PIB (PPC), 2022

Parte 2

País Militar Alvo militar dos EUA
Gasto militar
aj. (mi)
Gasto militar
ajust. per capita
> média mundial
(vezes)
Sanções
dos EUA
lista
Intervenção
militar
dos EUA
hist.
Bases militares
EUA
Rep. da Coreia 46.365 2,5 S 62
Filipinas 3.965 0,1 S 11
Total 50.331 2 73
Porcentagem do mundo 1,8%
Fonte: Elaboração de Sul Global Insights com base em dados de SIPRI e Monthly Review, ONU, CRS, World Beyond War
Figura 30

Grupo 6: Altamente militarizados pelos EUA

Informações selecionadas, países classificados pelo PIB (PPC), 2022

Parte 3

País Afiliações internacionais Votos na ONU
Amigos da
Carta da ONU
Org. de
Cooperação
de Xangai
Brics10 Cessar-fogo
em Gaza
10/2023
Retirada
da Rússia
02/2023
Rep. da Coreia Abstenção A favor
Filipinas Abstenção A favor
Total 0 A favor 0 Contra+abstenção
Fonte: Sul Global Insights

Os povos dessas duas nações (Figura 30) estão em grande medida alinhados com o Sul Global. Ambos os países já tiveram tanto líderes pró-EUA quanto também líderes de inclinação mais independente. No entanto, são, do ponto de vista militar, totalmente controlados pelos EUA.

Historicamente, as duas nações foram subordinadas aos EUA por meio de conquistas militares: após a Segunda Guerra Mundial, quando os EUA ocuparam militarmente a península coreana e, mais tarde, no final da Guerra da Coreia, a República da Coreia manteve uma grande presença militar dos EUA. Sua reconstrução econômica foi financiada e dirigida quase na totalidade pelos EUA. Após a Guerra Hispano-Americana, as Filipinas passou quase cinco décadas como colônia dos EUA (1898-1946).

Essa vassalagem é evidente nos dias de hoje: após as eleições de Yoon Suk-yeol na República da Coreia e de Ferdinand Marcos Jr. nas Filipinas em 2022, ambos têm servido como posições de linha de frente na contenção da China. Em fevereiro de 2023, as Filipinas convidaram os EUA a expandir sua presença militar no país, acrescentando mais quatro bases às cinco já existentes e operadas pelos EUA – isso 30 anos depois de ter aprovado leis para encerrar permanentemente a presença militar estadunidense no país. A República da Coreia também aumentou essa expansão militar, participando, ao lado do Japão, “da inauguração de uma nova era de parceria trilateral” com os EUA.110 Além disso, o Acordo de Segurança Geral de Informações Militares entre o Japão e a República da Coreia, facilitado pelo alinhamento próximo dos EUA, expande o compartilhamento de inteligência entre os dois países para incluir “ameaças da China e da Rússia”.111 Seus gastos militares devem ser atribuídos ao bloco militar liderado pelos EUA.

Figura 31

Países do Sul Global com gasto militar per capita superior a média mundial (excl. Rússia)

2022

Nome do país Gasto militar
dólares (mi)
Percentual do PIB
(TCC)
Per Capita
>média mundial
(vezes)
Arábia Saudita 75.013 6,8% 5,7
Rep. da Coreia 46.365 2,8% 2,5
Catar 15.412 6,5% 15,9
Singapura 11.688 2,5% 5,4
Kuwait 8.244 4,7% 5,4
Omã 5.783 5,0% 3,5
Líbano 4.739 21,8% 2,4
Bahrein 1.381 3,1% 2,6
Uruguai 1.376 1,9% 1,1
Brunei 436 2,6% 2,7
Fonte: Elaboração de Sul Global Insights com base em dados do FMI, ONU, SIPRI e Monthly Review

A Figura 31 traz a relação de todos os países do Sul Global com gastos militares superiores à média mundial (exceto a Rússia, que foi apresentada anteriormente). Muitos desses países têm relações militares próximas com os Estados Unidos, mas não estão listados no Grupo 6.

PARTE IV: Ocidente em declínio

A erosão da hegemonia econômica e política dos Estados Unidos

A desaceleração do crescimento econômico dos EUA, medida pela desaceleração da taxa de crescimento do PIB, pela queda da fatia do investimento líquido no PIB, pelos níveis mais altos de capacidade produtiva não utilizada e pelo desemprego/subemprego, começou em meados da década de 1960 e se acelerou a partir da primeira metade da década de 1970. 112transição para que os EUA se tornassem um importador líquido de capital exacerbou as contradições do capital monopolista.

A conta de capital dos EUA passou a depender da importação contínua de capital em larga escala a partir da década de 1980. Essa mudança é fundamental para um processo de geração de riqueza financeirizada e um mecanismo econômico crucial do imperialismo estadunidense. Os ativos de capital do mundo estão predominantemente em dólares estadunidenses e alimentam a posição geral do capital monopolista-financeiro dos EUA.

Em 2009, os EUA começaram a planejar sua reorientação para a Ásia para coibir o crescimento econômico da China. Durante o período de Obama, os EUA começaram movimentos contra a Organização Mundial do Comércio. Esse período também marcou o aumento da adoção de tarifas, sanções, medidas protecionistas e guerras híbridas.

Como agora dependem de importações líquidas de capital em larga escala, que em 2022 atingiram US$ 1 trilhão por ano, os EUA têm pouca capacidade econômica interna de oferecer vantagens econômicas aos seus aliados do Norte Global e do Sul Global.113 Com efeito, o país precisa continuar tentando extrair ainda mais excedentes deles.

Sob o neoliberalismo, a autonomia relativa dos EUA diminuiu, e o capital privado passou a exercer um controle mais direto sobre grande parte do Estado. Hoje, no entanto, diante das crescentes ameaças econômicas internacionais à posição dos EUA e do fracasso do neoliberalismo em manter o domínio econômico do país, os interesses políticos coletivos da classe dominante estão sendo afirmados por um Estado cada vez mais autônomo (em vez de representar os interesses de grupos capitalistas individuais). Citando Lênin, “a política”, também para os capitalistas, “deve prevalecer sobre a economia”.114

A financeirização ou acumulação sob a fase do capital monopolista-financeiro é realmente um desenvolvimento parasitário que visa tirar sangue de uma esponja e marcar a crise estrutural do capital. O capital estadunidense tem uma contradição interna. À medida que busca aumentar a extração de excedente de sua própria classe trabalhadora, o capital dos EUA corre o risco de perder o apoio para suas guerras militares externas, que têm como objetivo remover obstáculos internacionais aos interesses econômicos capitalistas do país.

A classe dominante dos EUA é, portanto, forçada a atacar simultaneamente o Sul Global e sua própria classe trabalhadora – e isso exigiu o surgimento de correntes cada vez mais à direita no capitalismo estadunidense. Na década de 1930, os EUA tinham reservas suficientes para enfrentar uma crise profunda do capitalismo com um programa doméstico reformista, ao contrário do ataque aberto à classe trabalhadora promovido na Alemanha e no Japão. Diferente do que se alega popularmente, os EUA não escaparam da depressão econômica devido ao New Deal keynesiano, mas foi preciso haver a Segunda Guerra Mundial para isso. Hoje, nessa nova situação, os EUA não têm outra alternativa a não ser combinar a agressão externa com uma agenda interna cada vez mais repressiva.

Os EUA utilizam a inflação para tentar aumentar os lucros, uma tendência exacerbada pelos gastos militares e pela dívida contraída. Os juros da dívida militar dos EUA representam mais de 70% do pagamento líquido de juros do governo federal dos EUA. Na década de 1970, os EUA conseguiram administrar as consequências de sua Bonança do Vietnã em gastos militares ao se retirar do padrão ouro para empurrar o custo dessa dívida para outros países. Esse ataque bem-sucedido contra os rivais imperialistas fortaleceu o poder econômico e financeiro dos EUA em relação a eles.

É necessário adotar uma perspectiva histórica precisa, bem como das mudanças de curto prazo, ao analisar o possível declínio de um império. Na Europa, a transição da escravização para o feudalismo levou vários séculos, assim como a transição do feudalismo para o capitalismo. A França ainda lutava contra os resquícios do feudalismo no século XIX, centenas de anos depois do início do capitalismo europeu em pequena escala nas cidades-Estado italianas.

O declínio econômico relativo de um Estado imperialista pode ser identificado por sua necessidade crescente de extrair capital do exterior. O Reino Unido e os EUA seguem uma tendência histórica semelhante. O Reino Unido deixou de ser um exportador de capital no início da década de 1930 (Figura 32).

O balanço de pagamentos de um país equivale à diferença entre a criação de capital doméstico (poupança/excedente) e o investimento de capital doméstico. Se a criação de capital “doméstico” de um país for maior do que seu investimento doméstico, ele estará, portanto, exportando capital e terá um superávit no balanço de pagamentos. Se a criação de capital interno de um país for menor que seu investimento de capital “doméstico”, ele terá um déficit no balanço de pagamentos e estará importando capital, ou seja, terá um superávit em sua conta de capital.

Entre 1913 e o início da década de 1980, com raras exceções, os EUA geraram mais excedentes do que investiram “internamente”. O país tinha um excedente de capital que podia investir em outros países e estender sua hegemonia internacional não apenas por meio da violência. Após a Segunda Guerra Mundial, os beneficiários específicos desse cenário foram os países imperialistas que os EUA desejavam lograr, integrar e dominar, como visto no Plano Marshall na Europa. Outros beneficiários, como a República da Coreia, tornaram-se Estados da fronteira militar explorada para coibir Rússia e China e, por isso, receberam investimentos econômicos dos EUA.

No final da década de 1960, os EUA entenderam que a ameaça mais urgente era econômica, e não política, e não vinha do comunismo. A atenção começou a se concentrar em coibir o crescimento de outros rivais capitalistas. Algumas economias capitalistas – primeiro a Alemanha no período imediatamente após a guerra, depois o Japão até o final da década de 1970 – alcançaram taxas de investimento muito superiores às dos EUA, chegando a 30% do PIB ou mais. Isso permitiu que esses países alcançassem taxas de crescimento do PIB mais altas que as dos EUA. Esse foi um resultado histórico das imensas derrotas das classes trabalhadoras alemã e japonesa pelo fascismo, cujas consequências continuaram no período pós-guerra. Os capitalistas alemães e japoneses conseguiram aumentar as taxas de exploração, o que financiou altas taxas de investimento de capital. Ao mesmo tempo, sua “industrialização tardia” também lhes permitiu ter acesso a tecnologia de melhor qualidade, o que aumentou ainda mais a produtividade. Embora os EUA estivessem preparados para aceitar as consequências econômicas disso no período imediato do pós-guerra, a continuação desse processo começou a afetar seu crescimento econômico.

Para evitar a concorrência econômica efetiva desses países, os Estados Unidos usaram pressão política e militar para forçar a redução das taxas de investimento e, portanto, das taxas de crescimento. A desvinculação do dólar estadunidense do ouro em 1971 e, portanto, a eliminação das restrições do uso do controle dos EUA como arma contra o sistema monetário internacional, desempenhou um papel fundamental nesse processo.

Os números na Figura 33, positivos e negativos, mostram o balanço entre a poupança/criação de capital doméstico e o investimento doméstico ao longo de 120 anos. Um número positivo, por exemplo, 0,8% em 1929, significa que os EUA estão poupando/criando mais capital do que investindo internamente, ou seja, estão emprestando/exportando capital para o exterior. Um número negativo, como, por exemplo, -3,9% do Produto Nacional Bruto (PNB) em 2022, significa que o investimento interno dos EUA é maior do que a criação/poupança de capital interno dos EUA. Portanto, há um influxo de capital de 3,9% do PNB do exterior. Um número positivo representa uma saída de capital, e um número negativo indica uma entrada de capital no país.115

Mas, apesar dessa capacidade de desacelerar os rivais imperialistas, os EUA se mostraram incapazes de aumentar sua própria taxa de crescimento econômico (para alcançar uma nova taxa mais alta de investimento e exploração). Isso se deu, em parte, por causa da retirada dos capitalistas dos EUA dos investimentos produtivos de longo prazo feitos no país. Na verdade, o crescimento econômico dos EUA desacelerou ainda mais – sua média anual de crescimento econômico hoje é de apenas 2,0%, menos da metade da taxa de crescimento registrada na década de 1960 e muito atrás da taxa de crescimento da China ou mesmo de uma série de Estados asiáticos. A Figura 34 mostra que, desde 1953, os EUA vêm enfrentando um declínio geral histórico na taxa média de crescimento.

Confrontados com essa situação, os EUA passaram então a recorrer à adoção de tarifas, sanções econômicas e proibições de tecnologia, o que levou a um ambiente cada vez mais protecionista. No entanto, apesar desse declínio econômico, conforme já analisado, os EUA ainda mantêm uma liderança militar sobre todos os outros Estados. Assim, o imperialismo estadunidense agora se volta para uma crescente dependência da força.

Identificando os processos por trás disso e mostrando a incapacidade dos EUA de aumentar sua taxa de crescimento sem uma reestruturação completa da economia (algo que não está na pauta), a Linha 1 da Figura 35 mostra que, a partir de 1965, a poupança líquida/criação de capital dos EUA caiu progressivamente até atingir, em 2009, o patamar de -2,7% da RNB. A linha 2 mostra que, a partir da década de 1980, os empréstimos tomados pelos EUA do exterior – o uso de capital importado de outros países – começou a aumentar acentuadamente. Em 2002, pela primeira vez, esses empréstimos foram maiores do que a criação líquida de capital doméstico; ou seja, pela primeira vez, até mesmo o aumento imediato no estoque de capital dos EUA estava sendo financiado mais por capital de outros países do que dos próprios EUA. Isso se reverteu ligeiramente e depois flutuou até 2020, quando, novamente, uma parte maior do acréscimo ao estoque de capital dos EUA foi financiado por outros países.

Para resumir esse processo geral, os EUA estruturaram a economia mundial a seu favor. Suas corporações obtêm quantidades colossais de mais-valor por meio da arbitragem global no Sul Global, e todo o sistema imperial força a entrada de dólares estadunidenses em outros países, não só via processos econômicos, mas também por bases militares dos EUA e outros meios. O objetivo é criar um sistema em que os países não tenham escolha a não ser colocar seus dólares estadunisenses em títulos dos EUA, financiando o déficit e o investimento interno dos EUA. É assim que funciona o capital monopolista-financeiro global, que é uma forma avançada de imperialismo financeiro apoiado pelo poder militar e político.

O que está perturbando esse sistema é o fato de o capital monopolista estar relativamente estagnado em termos de produção (economia real), o que permitiu que a China e outros países do Sul Global dessem um salto na produção. O livro Super Imperialism, de Hudson, traz uma contribuição sobre quais seriam as consequências caso os EUA perdessem a hegemonia do dólar.116

A Figura 36 mostra que a China ultrapassou os EUA em formação líquida de capital fixo, enquanto os EUA registraram declínio gradual. Ainda que esta seção não abranja a ascensão da China, deve-se observar aqui que, em todos os 30 anos desde 1992, o país tem sido exportador líquido de capital. É esse excedente de capital que torna o financiamento de iniciativas internacionais, como a Nova Rota da Seda, economicamente possível.

Esse se torna um fator decisivo para entender que dois núcleos de processos internacionais estão se desenvolvendo:

  • Os EUA têm se tornado um empecilho cada vez maior para o desenvolvimento das forças produtivas em nível nacional e global.
  • A China agora está concentrada no desenvolvimento de suas forças produtivas nacionais e no trabalho com as nações em desenvolvimento como um todo. Isso apresenta um novo caminho para a modernização por meio do desenvolvimento das forças produtivas do mundo como um todo (por meio da NRS, da Iniciativa de Desenvolvimento Global e de vários projetos de industrialização em escala continental).

O ocaso da democracia liberal burguesa

Algumas pessoas de fora dos EUA têm historicamente mantido a ilusão de que a democracia estadunidense existe há séculos e que só recentemente foi desfigurada. Em 1776, as duas alas do capital do país, uma liderada por Alexander Hamilton e outra por Thomas Jefferson (que era proprietário de pessoas escravizadas), garantiram que somente homens brancos com propriedades, como eles, tivessem o direito de votar. De 1776 em diante, os direitos de propriedade foram sacralizados e subordinaram todos os outros direitos.

A “liberdade de expressão” era efetivamente restrita a quem detinha os meios de produção material, que, como apontado por Karl Marx e Friedrich Engels em A ideologia alemã (1846), era em geral quem detinha os meios de produção mental, ou seja, a mídia, a começar pela imprensa. Em alguns casos, esse direito se estendia àqueles que sabidamente tinham pouco ou nenhum apoio, ou outros que não representavam ameaça ao sistema. Quem se opunha aos interesses da classe capitalista e tinha a chance de ter algum apoio significativo ficava sujeito não só a repressão, prisão e sanções, como também ao assassinato e à morte pelo uso criminoso da pena capital. A democracia burguesa sempre foi um veículo para proteger os direitos de propriedade. Foi apenas a pressão dos EUA para se defender de projetos socialistas internacionais no século XX e que ampliou temporariamente o direito ao voto para a população negra e aumentou a aparência de liberdade de expressão e outras liberdades civis.

Há um grande mal-entendido internacional sobre os partidos políticos dos EUA. Desde o início, nem os Democratas nem os Republicanos se constituíram como partidos de massa. Os dois são sobretudo associações hierárquicas das elites proprietárias e de aliados da classe média alta, estreitamente alinhados com o status quo. Não há praticamente influência de terceiros no sistema estadunidense, um duopólio de partidos políticos. O Comitê Nacional Democrata e o Comitê Nacional Republicano, que dirigem suas respectivas legendas, são formalmente organizados como empresas sem fins lucrativos e isentas de impostos. Trata-se, na essência, de máquinas de angariar votos baseadas no dinheiro, que em intervalos periódicos atraem eleitores no contexto de disputas eleitorais. Desse modo, são bastante distintos dos partidos políticos por filiação, como são muitas das legendas europeias. Ainda que existam democratas e republicanos filiados, isso afeta sobretudo o direito de votar nas primárias. Portanto, a vinculação partidária da grande maioria da população não vai além do voto que se deposita na urna de uma eleição. Assim, cerca de metade dos eleitores dos EUA se considera politicamente independente, sem vinculação com nenhum dos principais partidos. De fato, nenhum dos dois, quando no poder, reflete os interesses da maioria da população do país.

Uma das composições mais pungentes sobre a hipocrisia da autoproclamada grandeza dos Estados Unidos está em um poema de Langston Hughes:

Que a América seja América outra vez.
Que seja o sonho que já foi um dia.
Que seja o pioneiro na planície
Em busca de um lar onde seja livre.

(A América nunca foi América para mim).

Que a América seja o sonho que os sonhadores sonharam —
Que seja aquela grande e forte terra de amor
Onde nunca os reis conspiram nem os tiranos maquinam
Para que se esmague um homem por um que está acima.

(Nunca foi América para mim.)

Ah, que minha terra seja terra onde a Liberdade
se coroe sem falsa patriótica grinalda,
Mas onde a oportunidade seja fato e a vida seja livre,
A igualdade esteja no ar que se respira.

(Nunca houve igualdade para mim,
nem liberdade nesta “pátria dos livres”).

Quem falou em livre? Não fui eu?
Decerto não fui eu? Os milhões que estão sendo socorridos hoje?
Os milhões que são abatidos quando fazemos greve?
Os milhões que não têm nada em troca de nosso salário?
Por todos os sonhos que sonhamos
e todas as músicas que cantamos
e todas as esperanças que tivemos
e todas as bandeiras que penduramos,
os milhões que não têm nada em troca de nosso salário —
exceto o sonho que hoje está quase morto.117

Grande parte da classe capitalista no Norte Global e seus seguidores se entregaram a um período de euforia causado pelo fim da União Soviética em 1991. Eles se iludiram e acreditaram no “fim da história” com aspirações de um mundo unipolar perpétuo. A campanha da Guerra ao Terror defendida pelos EUA foi uma metodologia construída com brilhantismo para obter apoio ao militarismo.

Entre 2006 e 2009, novas realidades começaram a se estabelecer:

  • O fim da União Soviética não resultou na promessa de Yeltsin de uma Rússia desnuclearizada, nem no estabelecimento permanente de um governo russo que seguisse totalmente as orientações dos EUA. Seguiram-se os gritos habituais de “quem fracassou na Rússia?”.
  • Os círculos estratégicos dos EUA começaram a anunciar a ideia (amoral e não científica) de que os EUA poderiam alcançar a capacidade de promover um ataque preventivo em uma guerra nuclear.
  • Diante da contínua expansão da Otan para o leste e das afirmações dos Estados Unidos de que o país estaria prestes a alcançar a primazia nuclear, Vladimir Putin fez um discurso em Munique em fevereiro de 2007, marcando o fim de qualquer ilusão de que a Rússia seria adotada pelo clube anglo-americano. Nesse discurso, Putin criticou o “hiperuso quase incontido da força – força militar – nas relações internacionais” e sugeriu que o mundo não deve ser governado por “um senhor, um soberano”.118
  • Em 2007, a criação do Centro para uma Nova Segurança Americana (Center for New American Security) marcou um casamento histórico de dois grupos das elites da política externa, os neoconservadores, principalmente republicanos, e os intervencionistas liberais, em grande medida, democratas. Sua estratégia conjunta era atacar imediatamente a Rússia por meio da Ucrânia.
  • Liderado por neofascistas populistas, o Tea Party surgiu em 2009 e atraiu a pequena burguesia e uma parte dos estratos superiores (sobretudo brancos, ainda que não exclusivamente) da classe trabalhadora que havia feito pouco ou nenhum progresso econômico e temia a perda de privilégios. Isso sinalizou o fim do chamado consenso bipartidário que havia dominado o sistema dos EUA durante décadas.
  • A bolha causada pela financeirização transformou-se na Terceira Grande Depressão a partir de 2008, a mais relevante crise econômica desde a década de 1930.
  • Cresciam as evidências de que não haveria Gorbatchov na China para liderar a rendição da Revolução Chinesa.
  • Concebeu-se a “reorientação para a Ásia”, que é mais precisamente a reorientação para a China e uma estratégia para o controle da Eurásia pelos EUA.

A economia da China continuou sua rápida expansão após o início da Terceira Grande Depressão, enquanto as economias ocidentais estavam anêmicas.119 Em 2016, a China ultrapassou os EUA em termos de PIB (PPC), e havia um medo palpável de que, até 2030, também ultrapassasse o PIB em termos de taxa de câmbio corrente (TCC). A classe dominante estadunidense precisava de uma resposta.

O neofascismo e as forças de extrema direita cresceram em todo o mundo. Obama, o presidente democrata, adotou medidas internas regressivas que teriam causado inveja nos governos republicanos anteriores. A eleição de Trump enfraqueceu a identidade compartilhada dos interesses da burguesia e ampliou a consciência sobre as limitações do sistema político dos EUA.

No âmbito internacional, essa situação também marcou a retomada da consciência global de que o imperialismo é o maior perigo enfrentado pela humanidade. Diante do evidente fracasso do neoliberalismo, que culminou na Terceira Grande Depressão, iniciou-se um novo movimento para reverter alguns aspectos do esvaziamento do Estado que o neoliberalismo havia produzido.

Para compreender exatamente os eventos que se seguiram ao início da Terceira Grande Depressão, é preciso avaliar os 60 anos anteriores. Em 1964, o republicano Barry Goldwater, capitalista de extrema direita, perdeu a eleição geral, mas conseguiu trazer a extrema direita para a corrente principal do Partido Republicano e do país. Os democratas perderam a eleição de 1968 para Richard Nixon, republicano de centro, que conquistou o voto da população branca do sul do país e introduziu um novo sistema institucional de encarceramento de base racista, seguido por ambos os partidos desde então. O Partido Democrata iniciou um período de racha interno e começou a abandonar qualquer posicionamento à esquerda em nome da “elegibilidade” e da “triangulação”. Em vez disso, tentou capitalizar o embalo de direita dos republicanos.

A eleição de Ronald Reagan em 1980 marcou a efetiva tomada de controle do Partido Republicano pela extrema direita. Em 1985, a formação do Democratic Leadership Council (DLC), uma empresa privada, marcou o início de uma nova fase do Partido Democrata: a ascensão dos Novos Democratas.  Na lista de alguns ex-presidentes do DLC figuram nomes como Dick Gephardt, Chuck Robb, Sam Nunn e Joe Lieberman – todos defensores do intervencionismo militar, que favoreciam a transferência de gastos sociais para as forças armadas. O DLC conseguiu derrotar a esquerda, e sua maior vitória foi a conquista da presidência pelo candidato de sua escolha, Bill Clinton, em 1992.

Do ponto de vista do DLC, a virtude de Clinton era a possibilidade de trazer o sul branco de volta para o Partido Democrata, com um discurso à esquerda e uma prática à direita. Por exemplo, o então presidente adotou políticas contrárias ao bem-estar social e favoráveis ao encarceramento (duas posições com uma marca racial), ao mesmo tempo em que alegava ter uma agenda progressista. Menos antitrabalhista que Reagan, Clinton representou a estratégia democrata de tentar permanecer no “centro” em uma dinâmica política que havia se deslocado demais à direita, defendendo uma versão mais leve e gentil do neoliberalismo.

É útil pensar que os partidos Democrata e Republicano operam como empresas privadas, com receitas provenientes sobretudo de capitalistas diversos para atender aos interesses dos acionistas e dos principais executivos da corporação. No caso do Partido Democrata, isso inclui grupos como o Comitê Nacional Democrata (Democratic National Committee – DNC) e o Centro para o Progresso Americano (Center for American Progress – CAP).120 O produto vendido são candidatos eleitos que implementam os interesses de seus financiadores. Entre as autoridades mais conhecidas estão John Podesta e Debbie Wasserman Schultz.

Uma vez eleitos, Tony Blair e Hillary Clinton se tornaram parasitas do Estado, ganharam dezenas de milhões de dólares e se juntaram aos escalões mais altos da classe capitalista. Pelo menos 85 das 154 pessoas de grupos de interesse privado que se reuniram ou tiveram conversas telefônicas agendadas com Hillary Clinton, enquanto ela liderava o Departamento de Estado sob o comando do presidente Obama, doaram um total de US$ 156 milhões para a Fundação Clinton.121

O modelo de negócios do DNC exige a montagem de um conjunto díspar de blocos eleitorais e a necessidade de manipular inúmeros estratos, grupos e movimentos sociais. Atualmente, há uma divergência aguda entre os interesses das pessoas que votam no Partido Democrata e os interesses muito diversos dos tesoureiros do partido.

O escopo deste documento não inclui uma avaliação mais abrangente dessa questão. De todo modo, a ideia de uma democracia empresarial, na qual os conceitos de concorrência entre indivíduos e grupos capitalistas e a batalha para obter votos como em um mercado, vem desde Joseph Schumpeter.122

Nos últimos vinte anos, o Partido Republicano se transformou ideologicamente. O surgimento do Tea Party em 2009 sinalizou tanto o crescimento de uma ideologia neofascista quanto a criação de um núcleo e uma base mais engajados. Embora o Partido Republicano também tenha rachas internos, o uso de grandes setores da classe média baixa como arma gerou uma direita radical que desestabiliza a democracia liberal burguesa.

Todas as contradições anteriores de raça, classe, gênero e identidade social foram transformadas em armas tanto pela extrema direita quanto pela corporação DNC para diferentes propósitos. A divisão social entre os diversos estratos dos EUA é aguda. No entanto, afirmações hiperbólicas de que os EUA estão caminhando para uma guerra civil são altamente enganosas. Não há base econômica para a Califórnia se separar dos EUA. Este não é o período pré-guerra civil nos EUA.

A partir de 1970, a classe trabalhadora estadunidense recebeu muito pouco dos vastos aumentos de riqueza criada pela dominação mundial dos EUA. Milhões de crianças sofrem com a insegurança alimentar, e o trabalho e a vida de seus pais estão precarizados. Os EUA estão passando por mudanças demográficas significativas. Algumas estimativas mostram que a população branca não hispânica se tornará minoria nos EUA até 2045, o que sugere que a trajetória do capitalismo racial do país se direciona a uma maior segregação e até mesmo ao apartheid.

O narcisismo, o pessimismo, o niilismo e o fatalismo são hoje características fundamentais de um capitalismo cada vez mais estagnado no Norte Global. As armadilhas tradicionais da democracia liberal burguesa estão se tornando grilhões para as necessidades do capital, que, ironicamente, está envolvido em um processo de autonegação.

Essas fissuras no sistema político dos EUA são importantes para a classe trabalhadora do país, que vive um desenvolvimento muito desigual de sua capacidade revolucionária. São grandes os perigos e as oportunidades. Não se pode ter a ilusão de que “quanto pior melhor”.

Simultaneamente a essa erosão da democracia liberal, milhões de jovens, de Jacarta a Istambul, de Joanesburgo a Des Moines, no estado de Iowa, passaram a participar da vida política com base em sua indignação moral, racial, religiosa e política. Isso foi recebido com severa repressão por Washington em seus papéis geopolíticos, econômicos e militares hegemônicos globais. Os Estados Unidos são uma potência hegemônica em declínio; uma potência ferida e, consequentemente, mais perigosa.

Europa e Japão derrotados e submissos

Desde o final da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos estão comprometidos com a integração militar, política e econômica dos países da Europa e do Japão em um bloco sob seu controle. Por meio da estrutura da Otan+, os EUA garantiram o domínio militar completo dentro do grupo imperialista, instalando diversas bases militares em países derrotados na Segunda Guerra Mundial, inclusive no Japão (120), na Alemanha (119) e na Itália (45). Esta última abriga mais de 12 mil militares estadunidenses.123

A partir da década de 1950, os EUA colocaram as elites políticas europeias em sua órbita. Por meio do Plano Marshall, os interesses econômicos europeus foram subordinados aos dos EUA. Ao longo dos cinquenta anos seguintes, até mesmo os líderes imperialistas que ousaram se opor parcialmente aos interesses dos EUA – como Jacques Chirac (presidente da França entre 1995 e 2007) e Gerhard Schröder (chanceler da Alemanha de 1998 a 2005), ambos contrários à invasão do Iraque – foram alvo de substituição pelos EUA.

Após a Segunda Guerra Mundial, o Japão, como Estado da linha de frente contra o comunismo soviético e chinês, foi autorizado a desenvolver rapidamente sua economia. No entanto, na década de 1980, a ascensão econômica do país começou a representar uma possível ameaça à hegemonia global dos Estados Unidos, levando ao aumento dos atritos comerciais bilaterais. Os Estados Unidos forçaram uma rápida valorização do iene japonês por meio do “Acordo de Plaza” de 1985, reduzindo as exportações e fazendo com que o Japão perdesse seu impulso econômico.124 Em seguida, após o crash de Wall Street em 1987, os EUA obrigaram o Japão a adotar políticas monetárias e econômicas extremamente frouxas. O objetivo era aumentar o fluxo de capital para os EUA para ajudar a financiar a agressão internacional contra a URSS. Nesse processo, criou-se a “economia da bolha” no Japão, cujo estouro mergulhou o país em uma estagnação econômica que durou décadas.

Nos campos da tecnologia da informação e da nova energia, entre outras áreas de alta tecnologia, o Japão também enfrentou a repressão dos Estados Unidos, o que prejudicou sua modernização industrial. A Toshiba era líder mundial na fabricação de semicondutores em 1987, até sofrer sanções dos EUA sob o pretexto de que estaria fazendo acordos com a URSS (muito semelhante ao que os Estados Unidos fizeram com a chinesa Huawei). Os principais concorrentes da Toshiba, IBM e Intel, se beneficiaram dessa política de Estado dos EUA.

Após a queda da União Soviética e a subsequente reunificação da Alemanha, a burguesia alemã cobiçou os mercados e a energia de baixo custo da Rússia. Havia um desejo de estabelecer laços econômicos com a Rússia, mas somente enquanto, ao lado dos compatriotas franceses, fosse possível manter a dominação irrestrita do projeto europeu, que essa burguesia detinha desde a Segunda Guerra Mundial. Isso significava a construção de laços econômicos com a Rússia, mas a exclusão da liderança política russa de qualquer participação igualitária nos assuntos, nas decisões e nas estruturas políticas da Europa. A estratégia dos EUA, por sua vez, era evitar qualquer relacionamento estratégico entre Rússia e Alemanha, pois sua força combinada criaria um concorrente econômico formidável na Europa.

A propriedade do capital e dos meios de produção é sempre fundamental. Nos últimos 30 anos, a capacidade do capital de se movimentar com agilidade e facilidade entre as fronteiras dos países imperialistas aumentou exponencialmente. Os investimentos de capital têm um número definido de categorias primárias, incluindo ações, títulos, patrimônio privado, títulos da dívida pública, imóveis e muitas formas de derivativos. O mercado de ações é um dos veículos fundamentais para investimentos de longo prazo para a maioria dos capitalistas. Uma empresa alemã pode abrir seu capital nas bolsas de valores dos EUA ou da Alemanha. Grandes fundos, como o Vanguard, compram esses fundos, mas não são os proprietários efetivos, e sim agentes fiduciários efetivos do grande capital. Uma pequena porcentagem desse capital é de propriedade da pequena burguesia e de setores privilegiados da classe trabalhadora por meio de fundos de pensão e outros instrumentos.

Os acionistas originais dessa empresa podem em algum momento vender suas ações, agora abertas, e assim o fazem. Eles não dependem mais da administração de seu patrimônio por meio de seus investimentos em uma única empresa. Em vez disso, contratam gestores patrimoniais, seja por meio de empresas como a Goldman Sachs ou de seus próprios consultores, que, por sua vez, investem os recursos em dinheiro obtidos com a venda das ações. Os consultores de muitos capitalistas farão com que eles invistam bem mais de 50% de sua carteira nos mercados de ações dos EUA. Desse modo, a “riqueza familiar” do capitalista alemão não desaparece quando o valor da empresa alemã da qual ele era originalmente proprietário diminui.

São imensas as consequências econômicas, políticas e sociais dessa mudança nos mercados de capital e na propriedade. Esse novo capitalista global – que antes era “alemão” – se comporta de forma muito semelhante a seus pares franceses, ingleses, suecos e estadunidenses. Esse nível de integração e desnacionalização do capital resulta em uma lealdade aos EUA muito mais robusta em termos econômicos e, no limite, a reforça em termos políticos.

Tamanho nível de integração do mercado de ações e de capital raramente ocorre nos países do Sul Global, por muitas razões históricas. Um capitalista na Turquia tem muito mais dificuldade de abrir o capital de sua empresa nos EUA. O que o capitalista turco pode fazer é abrir o capital na Turquia, vender suas ações, transformar os lucros em dólares estadunidenses e depois investir esses dólares em ações nos EUA. Esse é o caminho mais comum de entrada dos capitalistas turcos na elite global. Esse processo, no entanto, é muito mais competitivo, menos frequente e mais longo, ocorrendo em menor quantidade.

A Figura 37 mostra uma pesquisa da OCDE que indica a porcentagem de propriedade estrangeira efetiva de cada um dos principais mercados de ações do mundo.125 Percebe-se que a Europa, de modo geral, tem uma alta porcentagem de propriedade estrangeira, enquanto os EUA, a China e a Arábia Saudita têm menos de 20% de propriedade estrangeira.

Por exemplo, a situação atual da Alemanha ilustra nitidamente a eficácia desse processo de integração e consolidação econômica dos EUA, conforme mostrado na Figura 38. Segundo dados de 2020 da IHS Markit, apenas 13,3% do valor do mercado de ações alemão está nas mãos de alemães, enquanto investidores da América do Norte e do Reino Unido detêm 58,3%.126 Um estudo de 2023 realizado pela Ernst & Young revelou que, em 2022, pelo menos 52,1% do valor de mercado das 40 ações de maior liquidez que compõem o índice DAX da Alemanha eram de propriedade de fundos de fora do país. Das ações restantes, 16,5% eram de propriedade não identificada (muito provavelmente também de capital estrangeiro), e apenas 31,3% do valor de mercado estava nas mãos de alemães.127 As principais empresas da economia alemã não são, em sua maioria, de propriedade de alemães.

Nos últimos 18 anos, o valor adicionado da indústria da Alemanha caiu de 9% do mundo para pouco mais de 6%.128 É provável que a perda da energia barata russa e sua adaptação a essa dissociação, administrando-se os riscos, tenham efeitos desastrosos para a competitividade internacional do país. Além disso, o advento dos veículos elétricos (VE) levou a um enorme prejuízo com o fim da relevância do motor de combustão. Essa foi uma superioridade tecnológica centenária central desfrutada pela Alemanha.

Em 2022, o IED na Alemanha diminuiu 50,4% em relação ao ano anterior.129 Ao longo de 15 trimestres, a partir do terceiro trimestre de 2019, o PIB da Alemanha aumentou apenas 0,6% no total, em preços constantes, enquanto a China cresceu 20,2% durante o mesmo período e os EUA, 8,1%.130

Na mídia, os EUA dominam não só o Sul Global. O mercado europeu de televisão é, em grande parte, um negócio dos EUA: “Cerca de um em cada cinco (18%) canais de TV privados (excluindo a TV local) é de propriedade dos EUA e mais de um terço de todos os serviços SVOD (39%) e TVOD (33%) na Europa pertencem a alguma empresa dos EUA… Cerca de metade de todos os canais de TV infantil na Europa são de propriedade dos EUA (48%), assim como 59% dos serviços de entretenimento em vídeo sob demanda por assinatura”.131

Conforme demonstrado pela Alemanha no contexto da guerra na Ucrânia, o colapso da “vontade nacional”, da disposição de seguir um caminho que corresponda aos interesses capitalistas nacionais, mostra que o país foi derrotado pela terceira vez desde o início do século XX (as duas primeiras derrotas foram nas guerras mundiais, conforme observado por Hudson).132 Apesar do custo que representaria para si própria, a Alemanha apoiou as sanções contra a Rússia e a ajuda militar à Ucrânia. Quando a guerra de Israel contra Gaza entrou em seu centésimo dia, já tendo matado mais de 23.000 palestinos, a Alemanha – com sua violência histórica na Namíbia e o holocausto doméstico contra o povo judeu durante a Segunda Guerra Mundial – apoiou Israel na ação apresentada pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça.133

Nos últimos meses de 2023, os representantes políticos do capital alemão no Bundestag levantaram de forma privada e depois introduziram medidas para restringir o comércio com a China sob o pretexto de reduzir riscos. Trata-se de uma evidente contradição com os interesses de curto e médio prazo das empresas alemãs. Marx descreveu as relações entre os capitalistas como uma relação entre um bando de irmãos em guerra.134 Em períodos de crise, o Estado, como órgão da classe dominante, exerce seu papel político, apesar da natureza fissípara das relações intracapitalistas. Hoje, os interesses de curto prazo dos executivos de empresas nominalmente alemãs estão subordinados aos interesses do hiperimperialismo.

Com a formação do Império Alemão (1871-1918), a expansão política e econômica para a Europa Oriental não era apenas uma expansão territorial, mas uma estratégia fundamental. Após a reunificação em 1990, a Alemanha adotou uma estratégia dupla: primeiro, apoiou de forma resoluta a estratégia dos EUA de expansão da Otan com relação à Rússia. Em segundo lugar, liderou uma estratégia simultânea de “penetração de capital” na Rússia com o objetivo de garantir o controle político dos grupos mais ligados aos interesses ocidentais e alemães naquele Estado, contra aqueles que buscavam uma política mais independente. O capital alemão apoiou representantes como o bilionário russo (à época) Mikhail Khodorkovsky. Em 2001, Khodorkovsky criou a Fundação Rússia Aberta, tendo Henry Kissinger no quadro de diretores.135 Em 2004, o russo foi preso por fraude e apropriação indébita após tentar implementar políticas contra Putin.

A chanceler da Alemanha, Angela Merkel, adotou estratégias duplas de apoio aos preparativos militares contra a Rússia e de organização da oposição interna a Putin. Também orquestrou a construção do gasoduto Nord Stream 2, apesar da enorme resistência dos EUA. No entanto, esta última medida tinha o intuito de atender ao próprio interesse da Alemanha, e não de apaziguar a Rússia ou impedir a expansão da Otan. Em 2014, Merkel organizou a libertação de Khodorkovsky e permitiu uma violação calculada dos acordos de Minsk. Mas a estratégia dupla terminou em fevereiro de 2022, quando a Alemanha, como parceira disposta ao lado dos EUA, e com a ajuda da Ucrânia, decidiu lutar e derrubar a Rússia.

No entanto, a realidade da Alemanha é que, a menos que esteja preparada para romper totalmente com a política estadunidense, o que nenhum setor significativo da burguesia alemã está disposto a considerar, qualquer estratégia que adote fracassará sem o apoio dos EUA. Isso dá aos EUA a vantagem nesse relacionamento. Surge então um paradoxo no qual os EUA queriam manter a inimizade entre Alemanha e Rússia, mas sem apoiar uma vitória total da Alemanha nessa briga. Isso explica, em parte, por que parece que os EUA estão ameaçando cortar o financiamento da Ucrânia. O objetivo estadunidense de destruir as relações entre Alemanha e Rússia já foi alcançado, assim como a vassalagem da Europa e da Alemanha sob pena de desindustrialização desta última.

Os EUA continuarão privando a burguesia alemã de todas as principais opções de afirmação de posições políticas independentes. Com a ajuda das relações de propriedade de capital que descrevemos, a burguesia alemã se deparará com a subsunção absoluta de opções de ação do capital alemão sob a égide dos EUA. A hostilidade em relação à Rússia atua como um impulsionador da subordinação da Europa aos EUA e como uma perda de qualquer possibilidade de desenvolvimento independente.

A situação de contradições antagônicas entre o capital estadunidense e o europeu em questões fundamentais acabou. Existem pequenas diferenças, mas estas não são estratégicas. Pode-se ver a profundidade da subordinação da Europa aos EUA no fato de que apenas 11 dos 49 países do Norte Global não fazem parte de uma conhecida rede de espionagem dos EUA nem participaram da reunião da Otan+ em Vilnius. São eles Andorra, Bósnia e Herzegovina, Chipre, Irlanda, Liechtenstein, Malta, Moldávia, Mônaco, San Marino, Sérvia e Suíça. Coletivamente, essas nações têm 28,3 milhões de habitantes (quase o equivalente à população de Délhi) e um PIB combinado de 1,8 trilhão de dólares (1% do PIB mundial), uma pequena parcela do Norte Global.

Embora fosse membro do grupo secreto Quatorze Olhos, a impotência da Alemanha ficou evidente quando foi revelado que seus líderes eram espionados pelos EUA, e o país foi incapaz de fazer uma mínima queixa. Hoje, a burguesia da Europa se tornou bajuladora das operações de inteligência dos EUA.

Há muito a Otan pressiona a Alemanha a gastar um mínimo de 2% do PIB com as forças armadas, seguindo o que foi chamado de princípio de Cachinhos Dourados (estabelecido na década de 1950), com o objetivo de:

… incentivar as contribuições de defesa de aliados de médio porte – por exemplo, a [República da] Coreia durante a Guerra Fria e a Polônia atualmente – e, ao mesmo tempo, ter cautela com aliados maiores, como a Alemanha e o Japão. Dessa forma, busca-se maximizar as contribuições de aliados poderosos o suficiente para oferecer poder militar significativo à aliança, mas não tão poderosos que possam se dar ao luxo de rejeitar a aliança.136

Por ordem dos EUA, os governos do Japão apostaram em políticas de provocação contra a China, apesar das grandes vantagens que laços mais estreitos com a China trariam para a economia japonesa. No Reino Unido, a oposição dos EUA ao “período de ouro” das relações com a China promovidas durante o mandato de David Cameron como primeiro-ministro obrigou a reversão dessas relações nos mandatos posteriores, o que levou a consequências prejudiciais para o capital britânico.

Em 2020, o primeiro-ministro Fumio Kishida estabeleceu metas de gastos de 43 trilhões de ienes (US$ 316 bilhões) para os cinco anos seguintes.137 O país já tem o segundo maior número de aeronaves avançadas F35 do mundo (depois dos EUA) e assinou um acordo naquele ano para comprar outros 105 caças – que podem ser equipados com armas nucleares. O país revisou sua estratégia de segurança nacional para permitir o desenvolvimento de uma capacidade de ataque preventivo e de utilização de mísseis de longo alcance.138

O rearmamento das duas principais potências fascistas da Segunda Guerra Mundial deve ser considerado um crime. Um perigoso movimento revanchista está ressurgindo na Alemanha. A diferença é que, desta vez, eles fazem parte do bloco militar liderado pelos EUA.

PARTE V: Mudanças na ordem mundial

Um deslocamento da base econômica para o Sul

Enquanto os países do Norte Global vêm enfrentando um declínio prolongado do crescimento econômico, os países do Sul Global, sobretudo na Ásia, apresentam uma trajetória de crescimento econômico mais alta nos últimos trinta anos. Como pode-se observar na Figura 39, no final da Guerra Fria, em 1993, o Norte Global respondia por 57,2% do PIB global (PPC), enquanto o Sul Global respondia por apenas 42,8%. Trinta anos depois, essas proporções se inverteram definitivamente: a participação do Sul Global chegou a 59,4%, e o Norte Global detém 40,6%.

O G7 (Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, França, Alemanha, Itália e Japão) é o núcleo econômico do bloco do Norte Global. Em 1993, esses sete países representavam 45,4% da economia global. Enquanto isso, as economias mais importantes do Sul Global, que mais tarde viriam a ser conhecidas como Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), representavam apenas 16,7% da economia global naquele ano. Entre eles, a Rússia tinha acabado de emergir após a dissolução da União Soviética, e a China estava aprofundando suas reformas econômicas e estabelecendo uma economia socialista de mercado. Na época, nem a Rússia nem a China eram concorrentes do G7. Trinta anos depois, os países do Brics já representavam 31,5% da economia global, tendo ultrapassado o G7 (30,3%), conforme mostrado na Figura 40.

Em agosto de 2023, o Brics se expandiu com o convite para a inclusão de seis países: Egito, Etiópia, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Irã e Argentina (embora a Argentina tenha temporariamente recusado o convite). O Brics 10 (sem a Argentina) acrescentou quase 4% à participação do Brics no PIB mundial (PPC), conforme mostrado na Figura 41.

Nos últimos trinta anos, os Estados Unidos, líder absoluto do Norte Global, viu sua participação na economia mundial cair lentamente em termos de PPC, de 19,7% em 1993 para 15,5% em 2022. Enquanto isso, no Sul Global, a rápida ascensão da China tem sido a variável mais notável. Em 1993, a China representava apenas 5% da economia mundial (Figura 42); já em 2016, sua economia ultrapassou a dos Estados Unidos em termos de PPC e, em 2022, sua participação na economia mundial chegou a 18,4%. Isso marca a primeira vez, em mais de 600 anos, que um país não dominado por brancos rompeu economicamente a hegemonia dos países imperialistas brancos. Essa realidade econômica fez com que os EUA começassem a tentar suprimir com urgência a ascensão da China.

Entretanto, seria um equívoco considerar a China como a única fonte de crescimento do Sul Global. Mesmo sem o país, as economias do Sul Global já haviam ultrapassado as do Norte Global em 2022, sendo suas respectivas participações na economia global de 41% e 40,6% (Figura 43). O desenvolvimento econômico geral do Sul Global proporcionou objetivamente a capacidade de buscar uma ordem internacional mais justa, o que é contrário aos desejos do bloco imperialista do Norte Global.

Identificamos todos os 43 países cuja participação no PIB mundial (PPC) chega a 41,1% (Figura 44) e que fazem parte de uma ou mais das três novas organizações internacionais que não são controladas por imperialistas: Brics 10 (fundado em 2009, ampliado em 2010 e 2023), Organização para Cooperação de Xangai (fundada como “Cinco de Xangai” em 1996, ampliada em 2001, 2017 e 2023) e o Grupo de Amigos em Defesa da Carta das Nações Unidas (fundado em 2021). A lista completa é apresentada em seção posterior.

A Figura 45 mostra a taxa média de crescimento anual do PIB (PPC) per capita registrada na última década pelas 21 maiores economias do Sul Global e pelos países do G7. A taxa de crescimento da China (5,8%) continua a liderar entre os países selecionados. A taxa de crescimento da Ásia é geralmente mais alta do que a de outros países do Sul Global. Os cinco países seguintes com as maiores taxas de crescimento são Bangladesh (5,3%), Vietnã (4,9%), Índia (4,6%), Filipinas (3,3%) e Indonésia (3,1%). Com exceção dos Estados Unidos, o restante dos países do G7 tem uma taxa média de crescimento per capita inferior a 1%. Lamentavelmente, as maiores economias da África e da América Latina tiveram um crescimento per capita negativo: Nigéria e África do Sul, com -0,4%, e Brasil e Argentina, com 0% e -0,7%, respectivamente.

Obviamente, reconhecemos que as próprias taxas de crescimento podem mascarar as intensas lutas de classe travadas nos países, onde a parcela do crescimento não é de modo algum distribuída de forma equitativa entre capital e trabalho. Entretanto, seria um erro ignorar as taxas de crescimento e o que suas linhas de tendência descrevem.

Uma das mudanças mais significativas ocorrida nos últimos 20 anos na economia mundial foi uma guinada radical na geografia da produção industrial mundial.

O Banco Mundial divulga a porcentagem da indústria no PIB utilizando os preços correntes e as taxas de câmbio correntes, o que este estudo chama de método da Taxa de Câmbio Corrente (TCC). Atualmente, não temos conhecimento de nenhuma divulgação das porcentagens da indústria calculando-se o PIB (PPC).

As Figuras 46 e 47 mostram as mudanças na porcentagem do valor adicionado da indústria no PIB, tanto em termos de TCC quanto de PPC, nos últimos 18 anos. É provável que os números da participação do valor adicionado mundial da indústria estejam em algum ponto entre a TCC e a PPC. Os gráficos subsequentes desta série apresentam apenas o método PPC e têm as mesmas qualificações da primeira série.139

O que vemos é que há, de fato, uma mudança na base da economia, na qual o Sul Global abriga a parcela majoritária. Apesar de muitas previsões acerca de uma nova sociedade pós-industrial, nenhum país importante alcançou a modernização sem industrialização.

A participação do Brics 10 no valor adicionado da indústria mundial representa, em 2022, o dobro da participação do G7 (Figura 48).

Os resultados mostram o seguinte em relação ao valor adicionado da indústria como porcentagem do PIB mundial (PPC):

  • A China é o principal país industrial do mundo, com uma participação de 25,7% no valor adicionado, enquanto os EUA detêm apenas 9,7%.
  • O Sul Global tem uma participação de 69,4%, enquanto o Norte Global tem uma participação de 30,6%.
  • O Brics 10 tem uma participação de 44% e supera o G7.
  • A participação de Japão, Alemanha, França e Reino Unido também está diminuindo, enquanto a da Índia está aumentando (Figura 49).

Utilizamos a porcentagem do Banco Mundial para a indústria multiplicada pelo PIB anual (PPC) de cada país, em cada ano, para obter o valor adicionado da indústria com base em cada país. Em seguida, utilizamos esses números para calcular a porcentagem do valor adicionado total da indústria mundial, por país e categoria de grupo de países. Há algumas limitações e questões complexas relacionadas a essa metodologia.

Alguns economistas tentaram minimizar essa mudança. Há argumentos de que, com os monopólios do dólar estadunidense e a propriedade de grandes corporações multinacionais, os números do PIB exageram a mudança. No mínimo, não se pode dizer que a China tenha toda a sua produção sob o controle dos EUA. Mesmo na Índia, é um erro subestimar a importância de uma grande e crescente burguesia nacional (embora grande parte dela seja politicamente reacionária). A transferência da produção industrial para o Sul Global só poderia ter ocorrido com melhorias maciças em sua infraestrutura.

Ao se despedir do presidente russo Vladimir Putin durante sua visita de Estado em março de 2023, o presidente chinês Xi Jinping afirmou: “Neste momento, há mudanças – como não víamos há 100 anos – e somos nós que estamos conduzindo essas mudanças juntos”.140 A Eurásia é agora o palco central para determinar o futuro do próximo período da existência humana.

Estratégia dos EUA para coibir o crescimento econômico e a influência da China

Em 2007, Vladimir Putin proferiu um famoso discurso em Munique, criticando o domínio monopolista dos EUA e “o hiperuso quase incontido da força – força militar – nas relações internacionais, força que está mergulhando o mundo em um abismo de conflitos permanentes”.141 No mesmo ano, foi criado o Centro para uma Nova Segurança Americana (Center for New American Security – CNAS). Em 2009, telegramas secretos dos EUA para Washington, revelados pelo Wikileaks, afirmavam:

Xi sabe o quanto a China é corrupta e sente repulsa pela ampla comercialização da sociedade chinesa e seus consequentes novos-ricos, pela corrupção entre funcionários do governo, pela perda de valores, dignidade e respeito próprio, além dos “males morais” como drogas e prostituição… Quando Xi assumir o comando do partido, ele poderá tentar resolver esses males de forma agressiva, talvez às custas da nova classe endinheirada.142

Os alarmes estavam tocando em Langley e Foggy Bottom. O sonho do Ocidente de ver surgir um “Gorbatchov chinês” foi destruído em 2012 e ficou nítido que não havia derrota iminente à vista para uma China que ascendia economicamente. Assim, a estratégia de reorientação para a Ásia começou a integrar seus aliados para conter o país. A então secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, declarou publicamente que “o século XXI será o século do Pacífico dos Estados Unidos”.143 Em contrapartida, Xi Jinping disse ao presidente dos EUA, Barack Obama, que “o Oceano Pacífico é grande o suficiente para acomodar o desenvolvimento tanto da China quanto dos Estados Unidos”.144

Em 2016, o PIB da China, calculado pela paridade do poder de compra, já havia ultrapassado o dos Estados Unidos. Em 2020, o Centro de Pesquisa Econômica e Empresarial (Centre for Economics and Business Research) previu que, em 2028, o PIB da China, medido em dólares estadunidenses, ultrapassaria o dos EUA, uma previsão que se tornou uma “barreira demoníaca”.145 As autoridades estadunidenses definiram a China reiteradamente como a ameaça estratégica mais significativa que o país e o Norte Global enfrentam.

O declínio relativo do poder dos EUA, a ascensão da China socialista e o crescimento econômico do Sul Global são os principais motivos por trás da subordinação ativa e da subsequente integração, pelos EUA, do restante dos países imperialistas. Isso levou a um bloco militar, político e econômico completamente sob o controle dos EUA. Em 1998, o ex-conselheiro de segurança nacional dos EUA, Zbigniew Brzezinski, alertou: “O cenário mais perigoso seria uma grande coalizão entre China, Rússia e talvez Irã… não por um amor repentino entre eles, mas por uma oposição compartilhada à potência predominante (os EUA)”.146

Formado por uma combinação de neoconservadores e liberais defensores do intervencionismo, o CNAS gerou um núcleo de quadros das elites políticas dos EUA – dos dois partidos – que se concentrou no desenvolvimento de uma nova estratégia geopolítica para os EUA. Em 2021, ignorando o aviso de Brzezinski, o Centro começou a promover publicamente a preparação para guerras simultâneas. Entre as figuras importantes do CNAS estão o secretário de Estado Antony Blinken, o vice-secretário de Estado Kurt Campbell e a ex-subsecretária de Políticas de Defesa Michèle Flournoy. Ex-funcionários e consultores do CNAS têm permeado os órgãos estratégicos do Estado, inclusive o Conselho de Segurança Nacional.

O Conselheiro de Segurança Nacional Jake Sullivan, embora não seja membro do CNAS, agora desempenha um papel dominante na presidência e segue a mesma estratégia internacional. Em abril de 2023, Sullivan fez um discurso intitulado “Renovando a liderança econômica americana” no Brookings Institute.147 Esse discurso foi relevante por três motivos. Primeiro, é muito incomum que um discurso tão importante sobre a economia dos EUA seja proferido por um Conselheiro de Segurança Nacional. Historicamente, esses conselheiros, como Henry Kissinger, restringem-se ao âmbito da segurança nacional, da geopolítica e dos assuntos militares. Em segundo lugar, o discurso de Sullivan buscou criar um “novo Consenso de Washington” para restabelecer a hegemonia econômica dos EUA. Terceiro, Sullivan reconheceu a profundidade da crise estrutural dos EUA, incluindo sua estagnação econômica.

Esse plano econômico é necessário para dar suporte à expansão militar. Em julho de 2023, os EUA propuseram um projeto de lei para acrescentar US$ 345 milhões em ajuda militar a Taiwan.148 De Tel Aviv a Kiev e Taipei, os EUA estão intensificando operações militares até as portas da Eurásia.

As guerras frias, necessariamente associadas a conflitos entre potências nucleares, são sempre perigosas. Em 1988, Edward Herman e Noam Chomsky publicaram A manipulação do público: Política e poder econômico no uso da mídia, no qual criticavam o “modelo de propaganda” utilizado pela mídia corporativa dos EUA, muitas vezes em parceria com o Estado. Os autores já apontavam isso muito antes de esse sistema poder se valer das novas ferramentas tecnológicas de vigilância e comunicação direcionada que caracterizam a era digital. Graças às denúncias de Edward Snowden, o mundo pôde vislumbrar a vasta expansão do controle dos EUA sobre todas as comunicações e a forma como integraram todas as plataformas do monopólio tecnológico de TI dos EUA em adjuntos da infraestrutura de segurança nacional dos EUA.

“Colete tudo” foi como um ex-oficial sênior de inteligência descreveu a abordagem do ex-diretor da Agência de Segurança Nacional, Keith Alexander, com relação à coleta de dados. Todos os e-mails, todas as chamadas telefônicas e mensagens de texto de todos os tipos (incluindo os do WhatsApp, Telegram e Signal), cada toque de tecla e cada URL, tudo da grande maioria da população mundial é capturado (fora da China, da Rússia e de alguns outros países). Esses dados são armazenados em imensas redes de discos rígidos em locais como Bluffdale, no estado de Utah. Os EUA criaram uma rede global capaz de captar e administrar quase todos os pacotes de dados de todos os cabos submarinos de fibra óptica, todo o tráfego de celulares e o tráfego de dados via satélite.

Apesar da hegemonia militar, o capital ainda precisa de algo próximo do consentimento. Com o tempo, novas técnicas, como o aprendizado de máquina, proporcionaram um salto qualitativo na capacidade dos EUA de conduzir uma guerra psicológica secreta contra o povo, o Sul Global e suas populações.149 Os modelos econômicos de todas as empresas de mídia entraram em colapso com o advento da internet e a criação de monopólios econômicos de tecnologia, que desintermediaram todos os lucros da mídia. Começou uma nova era de total transformação de meios de comunicação em arma – um desdobramento que faz parte da estratégia geral de guerra híbrida (incluindo sanções econômicas e isolamento diplomático), utilizada pelo establishment dos EUA em todo o mundo.

A reorientação para a Ásia, que na realidade volta-se para a China, começou formalmente em 2012, sob o comando de Obama. Os EUA combinaram estratégias diplomáticas, econômicas, políticas e de propaganda para tentar conter, a princípio, o desenvolvimento econômico da China e, posteriormente, sua crescente influência em instituições como o Brics. A partir de 2016, Trump tentou evitar o conflito com a Rússia e começou a concentrar todas as energias dos EUA contra a China.

Nos últimos oito anos, os EUA utilizaram um conjunto de temas selecionados com curadoria para definir a narrativa da mídia ocidental sobre a China. Apesar dos milhões de pessoas muçulmanas mortas pelas mãos das forças da Otan no Iêmen, na Síria, no Iraque e no Afeganistão, o Ocidente conseguiu integrar seu formidável conjunto de recursos de soft power para travar uma guerra fria virulenta contra a China. Até o principal agente de propaganda nazista, Joseph Goebbels, teria se espantado com a arrogância do Ocidente ao reivindicar o manto dos direitos humanos e tentar usar Xinjiang como ponto de ataque contra a China.

Lawrence Wilkerson, ex-chefe de gabinete do secretário de Estado Colin Powell e ex-coronel do exército, observou que um importante objetivo estratégico da invasão militar dos EUA e de sua longa presença no Afeganistão era conter a Nova Rota da Seda da China (2013-atual) e criar divisões étnicas e agitação social em Xinjiang.150 Os veículos The New York Times, The Guardian e BBC se tornaram os principais apoios em uma campanha de operação psicológica característica dos EUA.

Como explicamos na análise das economias ocidentais, não é irracional que o Ocidente procure retardar o crescimento da China. O ponto central do próximo estágio de desenvolvimento chinês é a promoção de uma economia de dupla circulação, ou seja, aumentar o peso do mercado interno e, ao mesmo tempo, continuar a aumentar seu comércio internacional, passar a um desenvolvimento de alta qualidade e promover o desenvolvimento econômico das províncias do oeste do país. O ataque a Xinjiang atende simultaneamente a muitos interesses ocidentais: enfraquece as estratégias de crescimento interno da China, isola o país internacionalmente, mascara a violência dos EUA contra os países muçulmanos e mantém o apoio a grupos extremistas para desestabilizar seus adversários.

As alegações forjadas de genocídio entre a população uigur em Xinjiang, sem nenhuma comprovação pelo Departamento de Estado dos EUA, permitiram que o governo dos EUA impusesse sanções à China, com o objetivo de atingir toda a cadeia do setor têxtil chinês, que exporta mais de US$ 300 bilhões e responde por mais de um terço das exportações têxteis do mundo, ocupando o primeiro lugar no ranking global.151 Mas, apesar dessas sanções, o comércio exterior de Xinjiang aumentou 51,25% em relação ao ano anterior, atingindo US$ 30 bilhões nos três primeiros trimestres de 2023, e o comércio com cinco nações da Ásia Central cresceu 59,1%.152 A China acaba de anunciar uma zona de livre comércio em Xinjiang para promover a conectividade com os países da região da Nova Rota da Seda.

Além da guerra de “soft power“, os EUA não pouparam esforços para conter o desenvolvimento da China em setores de alta tecnologia, sobretudo para enfraquecer a capacidade chinesa de produzir ou mesmo comprar chips semicondutores de ponta. Ao impor uma competência de longo alcance sobre tecnologias como as máquinas de litografia ultravioleta extrema (EUV) fabricadas pela empresa holandesa ASML, os EUA buscam impedir que a China entre no futuro da tecnologia dos chips. O governo Biden acredita que o impacto disso vai muito além de enfraquecer os avanços militares da China, mas também ameaçará o crescimento econômico e a liderança científica do país.

Gregory C. Allen, diretor do Projeto de Governança de Inteligência Artificial e membro sênior do Programa de Tecnologia Emergente do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais em Washington, acredita que a mensagem transmitida pelos controles de exportação contra a China, emitidos pelo Escritório de Indústria e Segurança (Bureau of Industry and Security – BIS) dos EUA, em outubro de 2022, faz parte de “uma nova política dos EUA de estrangular ativamente grandes segmentos do setor de tecnologia chinês – estrangular com a intenção de matar”.153 C.J. Muse, analista da indústria nos EUA, declarou: “Se você me falasse sobre essas regras cinco anos atrás, eu teria dito que trata-se de um ato de guerra – seria necessário estar em guerra”.154

Apesar das severas restrições impostas pelos EUA, a China continua crescendo mais do que o Norte Global (Figura 50).

Por meio da Nova Rota da Seda, a China fortalece suas conexões econômicas com o Sul Global. De 2013 a 2022, o volume total de comércio da China com os países participantes da Nova Rota da Seda atingiu US$ 19,1 trilhões, com um aumento médio anual de 6,4%. O investimento bilateral acumulado ultrapassou US$ 380 bilhões, e o investimento estrangeiro direto da China ultrapassou US$ 240 bilhões. Os novos projetos contratados pelo país atingiram US$ 2 trilhões, concluindo um volume de negócios acumulado de US$ 1,3 trilhão.155

Ironicamente, a contenção dos EUA nos campos de alta tecnologia apenas fortaleceu a determinação da China de ser autossuficiente em inovação. Nos últimos anos, o país asiático fez avanços significativos em inovação independente em chips de ponta, veículos elétricos e tecnologia digital, tornando o bloqueio e a contenção dos EUA em campos da alta tecnologia cada vez mais impraticáveis.

O Norte Global empurrando o mundo para a guerra

A ascensão pacífica dos países do Sul Global, liderada pela Ásia e sobretudo pela China, representa um desafio econômico abrangente ao domínio mundial imperialista. É a primeira vez em 600 anos que as potências imperialistas do Atlântico se deparam com uma força econômica não branca capaz de se contrapor a elas.

Para conter a ascensão da China, os EUA estão intensificando a integração interna dentro do campo imperialista, permitindo e exigindo o rearmamento de dois países fascistas derrotados na Segunda Guerra Mundial, Japão e Alemanha. De forma unânime, os líderes políticos dos EUA consideram essencial conter e derrotar a China, como um inimigo estratégico central, e deram início a uma nova guerra fria. Os líderes militares estadunidenses fazem declarações alarmantes sobre a China. O objetivo geopolítico dos EUA é derrubar os regimes da China e da Rússia, desnuclearizar e, se possível, desmembrar os dois países, dividi-los em vários países pequenos e garantir que nunca mais possam desafiar sua hegemonia militar e econômica.

Na fronteira ocidental da Rússia, a expansão da Otan para o leste levou a questão da segurança da Ucrânia a um ponto crítico de ebulição. Antes da dissolução da União Soviética, os Estados Unidos haviam prometido a Gorbatchov que a Otan não se expandiria para o leste, já que sua missão original – combater a União Soviética e conter o comunismo europeu – havia terminado com o fim da Guerra Fria. No entanto, a Otan não cumpriu esse “acordo de cavalheiros” e incorporou 14 novos Estados-membros, incluindo diversas antigas repúblicas soviéticas. Em 2018, a Ucrânia alterou sua Constituição para priorizar a entrada na Otan e na União Europeia como estratégia nacional, o que representa uma ameaça significativa à segurança nacional da Rússia. Como Kiev está localizada a apenas 760 km de distância de Moscou, permitir que a Otan implante armas nucleares na Ucrânia constituiria uma ameaça militar incontrolável para a Rússia.

Ao mesmo tempo, as forças neonazistas no oeste da Ucrânia estavam em ascensão. Em janeiro de 2022, foram realizadas procissões com tochas em cidades como Kiev e Lviv, comemorando o aniversário do colaborador nazista Stepan Bandera. Em conflitos anteriores, extremistas nacionalistas da mesma região hasteavam bandeiras nazistas e ameaçavam aniquilar ucranianos do leste do país e pessoas favoráveis à Rússia. A população russa étnica do leste da Ucrânia teve que organizar a resistência e buscar ajuda russa. Nessas circunstâncias, a Rússia lançou uma “operação militar especial” na Ucrânia, essencialmente enfrentando um confronto direto com a força militar da Otan.

No Pacífico Ocidental, os Estados Unidos fazem tentativas contínuas de alimentar as tensões em torno do Mar do Sul da China e de Taiwan. Em agosto de 2022, apesar da forte oposição e das demonstrações diplomáticas de descontentamento da China, a presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, Nancy Pelosi, visitou Taiwan, cometendo uma grave violação do princípio de “Uma só China” e das disposições dos três comunicados conjuntos EUA-China, afetando seriamente a base política das relações sino-estadunidenses. É importante lembrar que, em 1972, no comunicado de Xangai, os Estados Unidos aceitaram a política de “Uma só China”, que reconhece que existe apenas uma China e que Taiwan não é um Estado soberano separado. Em agosto de 2023, a Marinha dos EUA, juntamente com as forças do Canadá e da República da Coreia, realizou exercícios militares conjuntos no Mar do Japão e no Mar Amarelo.156 No entanto, os exercícios terminaram abruptamente após, apenas cinco horas, devido às mobilizações militares direcionadas da China.157 Desde que Ferdinand Marcos Jr. assumiu a presidência das Filipinas, em junho de 2022, o país abriu diversas bases militares para os EUA, fortaleceu os laços de segurança com a Austrália e o Japão e desencadeou disputas com a China sobre questões de soberania no Mar do Sul da China. Navios de guerra dos EUA, do Canadá, da Austrália e de outros países também patrulham e fazem exercícios com frequência no Mar do Sul da China, provocando diversos contatos imediatos e atritos com a Marinha chinesa.

Até o momento, diante das contínuas provocações dos Estados Unidos e de seus aliados, a China tem mantido uma postura contida, esforçando-se para evitar conflitos militares com esses países, pois um confronto desse tipo poderia se transformar em uma guerra nuclear global. No entanto, Taiwan tem uma importância especial. Como parte da China historicamente e segundo a lei internacional, a continuação da separação de Taiwan significa que não houve fim para a guerra civil da China e até mesmo para o “século de humilhação”, que começou com as Guerras do Ópio em 1840. A divisão de Taiwan é inaceitável para a China, mesmo que isso signifique o risco de uma guerra direta contra os Estados Unidos.

Com o apoio direto de Biden e Blinken, Israel está promovendo uma limpeza étnica e o genocídio da população civil palestina em Gaza. A situação deixa evidente a verdadeira face do campo imperialista do Norte Global como um coletivo de colonizadores brancos: quando surgem conflitos entre colonos brancos e pessoas não brancas colonizadas, o campo imperialista apoia em uníssono o lado dos colonos.

As fraturas na Ucrânia e na Palestina exacerbaram a polarização dos social-democratas, sendo que alguns de seus setores se mostraram incapazes de superar o desejo de aceitabilidade e de se unir a um movimento robusto pela paz.

Voltemos à citação da Otan e da UE de que estariam “protegendo nosso bilhão de cidadãos, preservando nossa liberdade e democracia… contra todas as ameaças”. Essa frase, que aparece no primeiro parágrafo do comunicado da Otan-UE de 2023, descreve nitidamente a estrutura do mundo atual: o campo imperialista, centrado nos EUA e baseado na infraestrutura da Otan, está totalmente unido e mobilizado militar, política e economicamente, pronto para sufocar quaisquer forças emergentes que possam representar uma ameaça ao seu status hegemônico. Essa inédita e imensa pressão imperialista obrigou muitos no “resto do mundo” (aqueles que estão fora do campo imperialista) a identificar estruturas e identidades alternativas de autopreservação.

EPÍLOGO: Uma alternativa política e econômica plausível para a ordem mundial

Vinte e cinco anos após a publicação do livro O grande tabuleiro de xadrez (1997), de Zbigniew Brzezinski, identificando este como o maior perigo geopolítico para os EUA, a China, a Rússia e o Irã realmente se aproximaram em diversos campos, incluindo economia, política e segurança. Não por coincidência, são os únicos três países que fazem parte do Brics 10, da Organização de Cooperação de Xangai e do Grupo de Amigos em Defesa da Carta das Nações Unidas (Figura 51). A força motriz por trás dessa convergência – exatamente como Brzezinski previu – é a crescente pressão hegemônica do grupo imperialista liderado pelos Estados Unidos. Em comparação com a Otan, que é altamente unificada em termos de ideologia, comando militar e compartilhamento de inteligência, não há nenhuma organização internacional anti-imperialista comparável. Ainda assim, três organizações internacionais influentes surgiram no Sul Global:

  • O Brics, iniciado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, é um mecanismo de cooperação econômica que se expandiu para 17 parceiros de cooperação oficiais e não oficiais após a cúpula do Brics realizada em agosto de 2023. O Brics 10 representa 45,5% da população mundial, 35,6% do PIB (PPC) e 44% da produção industrial global. O Novo Banco de Desenvolvimento do Brics começou com US$ 100 bilhões em investimento de capital e sua estrutura de reserva de contingência também detém US$ 100 bilhões.158
  • A Organização de Cooperação de Xangai (OCX) começou com foco em questões de segurança. Reúne países do continente eurasiano – desde países com grande desempenho econômico, como China, Índia e Turquia, até os principais países da Opep, como Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, além de membros da Liga dos Estados Árabes – para enfrentar os desafios de segurança por meio de abordagens multifacetadas de desenvolvimento. A OCX representa 60% do território eurasiano, um quarto do PIB mundial e 40% da população global.159 Em julho de 2023, Xi Jinping propôs a criação de um banco de desenvolvimento da OCX.
  • O recém-criado Grupo de Amigos em Defesa da Carta das Nações Unidas (ACNU) busca defender o multilateralismo e se opor à hegemonia e ao unilateralismo dentro do marco da Carta das Nações Unidas. Atualmente, esse grupo tem 20 países-membros e foi iniciado pela Venezuela. Sobre a questão da Palestina, o grupo apoia a justa demanda pela independência nacional do povo palestino, apoia a candidatura da Palestina para se tornar um membro formal das Nações Unidas e defende o estabelecimento de um Estado palestino independente, tendo Jerusalém Oriental como capital.

Ao atingir seu marco de 10 anos, a Nova Rota da Seda também teve um impacto significativo no Sul Global. Até o momento, com um investimento que ultrapassa US$ 1 trilhão, a NRS tem sido uma força fundamental no desenvolvimento de infraestrutura no Sul Global.160

Ao contrário do campo imperialista, as principais aspirações dos países do Sul Global são a soberania, o desenvolvimento e a conquista da paz. Especificamente, eles compartilham pelo menos oito desafios e oportunidades (Figura 52), descritos a seguir:

  • Multilateralismo: Engajamento em diálogos multilaterais profundos e cooperação entre os países do Sul Global sem depender de articulações oferecidas pelos países do Norte Global.
  • Nova modernização: Construção da integração econômica regional por meio de corredores e eixos econômicos dentro do Sul Global para concretizar economias de escala em nível continental.
  • Desdolarização: Redução da dependência do dólar estadunidense (sobretudo para os países que enfrentam sanções) no comércio internacional por meio de mecanismos como transações em moeda local, swaps cambiais e moedas regionais comuns.
  • Inovação liderada pelo Sul Global: Promoção da inovação tecnológica democrática e aberta entre os países do Sul Global. Isso inclui a redução do ágio econômico proporcionado pelos monopólios de propriedade intelectual em áreas como medicina, novas energias e tecnologia da informação.
  • Reparações e resolução da dívida: Enfrentamento à armadilha do endividamento centenário imposto pelos países imperialistas, por meio de negociações coletivas para reduções e compensações.
  • Soberania alimentar: Garantia do direito dos povos e dos Estados de definir sua política agrícola e alimentar, sem qualquer dumping em relação a outros países, corporações transnacionais e acordos de livre comércio.
  • Soberania digital: Aumento da capacidade dos países do Sul Global de controlar os espaços digitais em termos de hardware, software, dados, conteúdo, padrões e regulamentações, e construção de alternativas às plataformas digitais monopolizadas pelos EUA.
  • Justiça ambiental: Formulação de planos justos de alocação de direitos de emissão e exigências aos países imperialistas para que compensem sua poluição cumulativa de longo prazo. A financeirização da natureza é um beco sem saída para o Sul Global.

A humanidade enfrenta uma potência militar perigosa e implacável. Os EUA estão em uma marcha para rearmar as duas principais potências fascistas da Segunda Guerra Mundial, enquanto se voltam mais para uma política de extrema direita e neofascismo.

Infelizmente, é bem verdade que as forças de esquerda fora do campo socialista são de fato fracas e que o aspecto subjetivo da revolução na maioria dos países não está pronto para conduzir a revolução. Mas estamos testemunhando mudanças e rupturas significativas na consciência, embora não seja uma consciência de classe plena. Milhões de pessoas estão nas ruas em revolta com a insanidade não só dos regimes genocidas dos EUA e de Israel, mas também da França e do Reino Unido. As quatro potências nucleares do imperialismo se uniram, demonstrando sua força. O custo provável disso será a criação de uma futura geração de jovens no mundo árabe e muçulmano que nunca esquecerá nem perdoará essa ostentação de brutalidade e humilhação. Mao Tsé-Tung descreveu essa dialética histórica:

O imperialismo e todos os reacionários, analisados em sua essência, de um ponto de vista de longo prazo, de um ponto de vista estratégico, devem ser vistos pelo que são: tigres de papel. Com base nisso, devemos construir nosso pensamento estratégico. Por outro lado, eles também são tigres vivos, tigres de ferro, tigres de verdade que podem devorar pessoas. Com base nisso, devemos desenvolver nosso pensamento tático.161

Sob a liderança do Presidente Xi Jinping, a China propôs recomendações visionárias para a humanidade. O modelo de modernização da China, resultado do socialismo com características chinesas, indica um caminho para os países do Sul Global que não se baseia na exploração e na opressão de outras nações. Ele equilibra a civilização material e espiritual, o desenvolvimento econômico e o meio ambiente ecológico, oferecendo uma referência essencial para o desenvolvimento do Sul Global.

Como resultado de mais de 600 anos de humilhação, violência racial e exploração econômica pelo Norte Global, chegamos a esse estágio de hiperimperialismo. No entanto, um Sul Global emergente, mesmo com suas contradições, nos lembra que os seres humanos não são obrigados a continuar sendo vítimas da história. Apesar do contexto diferente de fatores subjetivos, o apelo final do Manifesto comunista (1848) segue eloquente nos dias de hoje:

Temos um mundo a ganhar.

***

“Mulher Negra”

Pela poeta cubana
Nancy Morejón

Ainda sinto o cheiro da espuma do mar que me fizeram atravessar.
Da noite, não consigo me lembrar.
Nem mesmo o oceano poderia se lembrar.
Mas nunca me esqueci da primeira gaivota que vi.
No alto, as nuvens, como inocentes testemunhas oculares.
Talvez eu não tenha esquecido minha costa perdida nem minha língua ancestral.
Me deixaram aqui e aqui tenho vivido.
E porque trabalhei feito cão,
Foi aqui que renasci.
A quanta epopeia mandinga tentei recorrer.

Me rebelei.

Sua Graça me comprou em praça pública.
Bordei o manto de Sua Graça e um filho homem seu pari.
Meu filho não recebeu nome.
E Sua Graça morreu nas mãos de um impecável lord inglês.

Andei.

Esta é a terra onde sofri açoites de cabeça para baixo.
Remei por todos os seus rios.
Sob seu sol, plantei, colhi e as colheitas não comi.
Por casa tive uma senzala.
Eu mesma carreguei as pedras para construí-la,
mas cantei no compasso natural dos pássaros nacionais.

Me amotinei.

Nesta mesma terra toquei o sangue quente
e os ossos podres de muitos outros,
trazidos a ela, ou não, como eu fui.
Nunca mais imaginei o caminho para Guiné.
Era Guiné? Benin? Era Madagascar? Ou Cabo Verde?

Trabalhei muito mais.

Fundei melhor meu canto milenar e minha esperança.
Aqui construí meu mundo.
Fui para o monte.
Minha verdadeira independência foi o palenque
e cavalguei entre as tropas de Maceo.

Só um século depois, junto de meus descendentes,
do alto de uma montanha azul,

Desci da Sierra

para acabar com os capitalistas e usurários,
e os generais e burgueses.
Agora sou: somente agora temos e criamos.
Nada está além de nosso alcance.
Nossa a terra.
Nosso o mar e o céu.
Nossa a magia e a quimera.
Meus iguais, aqui os vejo dançar
ao redor da árvore que plantamos para o comunismo.
Sua madeira pródiga é retumbante.

APÊNDICE

Metodologia

Este relatório foi produzido com dados e gráficos da Sul Global Insights (GSI pela sigla em inglês), com base em diversas fontes, incluindo o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, a Organização das Nações Unidas, a OCDE, o Conference Board, o Instituto Internacional de Estocolmo de Pesquisa pela Paz, a Monthly Review e o World Beyond War, entre outros (veja a Figura 55). Nesta seção, apresentamos as definições e os critérios metodológicos que orientaram a elaboração do documento.

Todos os 193 Estados-membros da ONU e a Palestina como Estado observador estão incluídos nos anéis do Norte Global ou nos grupos do Sul Global.

Ao analisar o Norte Global, concluímos que, entre os fatores incluídos em nossa pesquisa – relações históricas, militares e de inteligência –, um elemento fundamental foi o relacionamento de cada país com a inteligência dos EUA. Consequentemente, dividimos o Norte Global em quatro anéis, compreendendo 49 países no campo imperialista liderado pelos EUA. Nossa análise do Sul Global indicou fatores como a independência econômica e política do país em relação ao imperialismo e as relações estratégicas entre os países do Sul Global. No entanto, um fator fundamental foi o grau relativo com que foram alvos da promoção de mudança de regime e seu papel na defesa pública e internacional de posições anti-imperialistas. Portanto, os 145 países do Sul Global estão divididos em seis grupos.

Além dos países-membros da ONU, incluímos o número de bases militares localizadas em países que não membros da ONU e nos territórios – às vezes disputados– onde as bases estrangeiras estão localizadas.

Outros cálculos comparativos deste relatório incluem todos os países e territórios de seus respectivos bancos de dados de origem.

Embora de valor inestimável, os bancos de dados internacionais, como os do FMI e do Banco Mundial, enfrentam limitações decorrentes de disparidades nos processos nacionais de produção de estatísticas, em especial nas metodologias de medição de variáveis. Isso leva à não harmonização dos dados nacionais compilados pelos bancos de dados internacionais em suas fontes. Da mesma forma, os bancos de dados internacionais podem ter limitações com relação à integralidade. A governança de dados e os rigorosos procedimentos de auditoria conduzidos pela GSI buscaram garantir a máxima consistência dos dados.

Com relação aos dados relacionados ao PIB, este relatório utiliza principalmente dados do FMI. É importante notar que esse banco de dados não inclui informações sobre quatro países: Cuba e a República Popular Democrática da Coreia, devido à decisão soberana dessas nações de não se submeter aos ditames do FMI, e também Mônaco e Liechtenstein. O campo PIB (PPC) nas tabelas que apresentam esses quatro países é deixado em branco.

Utilizamos dados econômicos do Banco Mundial somente para calcular o valor adicionado da indústria mundial. O Banco Mundial divulga a porcentagem do valor adicionado da indústria no PIB usando preços e taxas de câmbio correntes, denominados neste estudo como método da Taxa de Câmbio Corrente (TCC). Somente nesse caso são apresentados tanto valores do PIB em termos de TCC como de PPC.

Neste documento, o padrão adotado é o PIB (PPC). Essa não é uma escolha livre de controvérsias e, devido ao escopo do relatório, não nos aprofundaremos em nossas reflexões metodológicas sobre tais controvérsias. Os fatores de conversão da PPC são estimativas estatísticas baseadas em cestas de bens e serviços para anos de referência, aplicadas posteriormente ao PIB para estimativas do PIB (PPC). Embora haja argumentos de que os dados do PIB (PPC) possam superestimar os países do Sul Global, essa é uma medida mais precisa de comparação do desempenho econômico e dos padrões de vida de diferentes países, pois ajusta as diferenças nos níveis de preços e fornece uma métrica mais estável para comparações internacionais. Ao mesmo tempo, o PIB (PPC) oferece uma base mais significativa para classificar os países em relação ao seu tamanho econômico e à sua contribuição para a economia global, em comparação com as classificações do PIB que utilizam a TCC. Nestas classificações, os países com moedas fortes podem ter uma classificação mais alta, mesmo que sua produção econômica real não seja tão significativa.

As Figuras 53 e 54 mostram as comparações dos cálculos de TCC versus PPC da porcentagem do PIB total mundial para 1) China versus Estados Unidos e 2) Sul Global versus Norte Global. Tanto a TCC quanto a PPC mostram um aumento expressivo nas porcentagens relativas da China e do Sul Global.

Entretanto, os fatores de conversão da PPC para medir os gastos militares são necessariamente menos confiáveis do que a TCC, pois não são coletados dados de preços relativos aos gastos militares. Desse modo, a natureza dos gastos militares carece dessas informações para que seja possível estabelecer comparações internacionais. O Sipri reconhece que o uso do ajuste de PPC para gastos militares é impreciso e, portanto, menos confiável do que o uso de taxas de câmbio. Com relação aos gastos militares, combinamos os dados da Monthly Review relativos aos gastos militares reais dos EUA, juntamente com os dados do Sipri, para calcular os gastos militares mundiais reais utilizando a TCC.

Quanto a outros dados militares, foram usadas diversas fontes para abordar de forma abrangente esse fenômeno central na análise do hiperimperialismo; no entanto, as limitações persistem devido a diferentes metodologias, variáveis de medição, escassez de dados e sigilo. Usamos dados do Serviço de Pesquisa do Congresso (CRS) dos EUA combinados com os dados do Projeto sobre Intervenção Militar (Military Intervention Project – MIP) relativos à quantidade de intervenções. Ainda que seja uma publicação oficial dos EUA que serve como fonte primária de dados sobre as intervenções militares dos EUA, o primeiro não inclui algumas missões secretas e não agrega dados para diferenciar os diversos tipos de intervenções realizadas pelas forças armadas dos EUA no exterior. Já o segundo adota uma definição mais abrangente de intervenção militar, embora publique apenas um resumo dos dados. Por fim, utilizamos as listas publicadas pelo World Beyond War, informações da Declassified UK e o relatório de estruturas de bases do Departamento de Defesa dos EUA para obter dados sobre bases militares.

Além das fontes de dados mencionadas acima, a elaboração da GSI neste relatório baseia-se em um conjunto mais amplo de fontes de dados listadas abaixo. A GSI criou novas categorias com muito cuidado e construiu plataformas complexas de integração de dados para oferecer a análise do ponto de vista do Sul Global. Os processos de classificação são inerentemente desafiadores e sujeitos a modificações, uma vez que as políticas nacionais e regionais podem mudar rapidamente. A extensa coleta e integração de dados em diversos países permitiu o teste de hipóteses. Por exemplo, para determinar quem eram os aliados mais próximos dos EUA, avaliamos a proximidade com a inteligência dos EUA. Os dados para essa análise foram expostos por Edward Snowden, quando mostrou-se que, além do “Cinco Olhos” – mais antiga parceria de inteligência do mundo entre cinco Estados ocidentais anglófonos, que começou com o Acordo de Inteligência de Comunicação entre a Grã-Bretanha e os EUA em 1946 –, havia dois outros grupos ocultos, o “Nove Olhos” e o “Quatorze Olhos” (SIGINT Seniors Europe, formado em 1982).

Este relatório se fundamenta na integração de bancos de dados, análise de dados e elaboração da GSI.

Figura 55

Fontes e descrição dos dados usados na pesquisa

Fonte Base de dados Descrição do GSI URLs
Agência Internacional de Energia Renovável (IRENA) Renewable energy statistics 2023 https://www.irena.org/Publications/2023/Jul/Renewable-energy-statistics-2023
Agência Nacional de Estatísticas da China (NBS, pela sigla em inglês) PIB trimestral da China de T3/2019 a 3T/2023 https://data.stats.gov.cn/english/easyquery.htm?cn=B01
Banco Mundial (BM) World Development Indicators (WDI) Poupança ajustada: consumo de capital fixo (US$ corrente) https://datatopics.worldbank.org/world-development-indicators/
Banco Mundial (BM) World Development Indicators (WDI) PIB em termos de taxa de câmbio corrente (TCC) usando US$ corrente https://datatopics.worldbank.org/world-development-indicators/
Banco Mundial (BM) World Development Indicators (WDI) PIB em termos de Paridade do Poder de Compra (PPC) usando dólar internacional corrente https://datatopics.worldbank.org/world-development-indicators/
Banco Mundial (BM) World Development Indicators (WDI) Formação bruta de capital fixo (US$ corrente) https://datatopics.worldbank.org/world-development-indicators/
Banco Mundial (BM) World Development Indicators (WDI) Indústria (incluindo construção), valor adicionado (% do PIB) https://datatopics.worldbank.org/world-development-indicators/
Conference Board (CB) Growth Accounting and Total Factor Productivity Contribuição do trabalho qualificado para o crescimento real do PIB https://data-central.conference-board.org/
Conference Board (CB) Growth Accounting and Total Factor Productivity Contribuição da quantidade de trabalho para o crescimento real do PIB https://data-central.conference-board.org/
Conference Board (CB) Growth Accounting and Total Factor Productivity Contribuição do total de serviços do capital para o crescimento real do PIB https://data-central.conference-board.org/
Conference Board (CB) Growth Accounting and Total Factor Productivity Contribuição do total dos fatores de produtividade para o crescimento real do PIB https://data-central.conference-board.org/
Conference Board (CB) Growth Accounting and Total Factor Productivity Crescimento real do PIB https://data-central.conference-board.org/
Congressional Research Service (CRS) Uso reconhecido das forças armadas dos EUA no exterior, 1798 a abril de 2023 https://crsreports.congress.gov/product/pdf/R/R42738/41
Declassified UK Bases do Reino Unido tornadas públicas, 2020 https://www.declassifieduk.org/revealed-the-uk-militarys-overseas-base-network-involves-145-sites-in-42-countries/
Departmento de Defesa dos Estados Unidos Base Structure Reports FY2023 Construções sob controle militar dos EUA em países no exterior https://www.acq.osd.mil/eie/Downloads/BSI/Base%20Structure%20Report%20FY23.xlsx
Enciclopédia Britânica Membros da comunidade britânica  
Enerdata Global Energy & CO2 Data Dados de energia global e CO2 https://www.enerdata.net/
Enerdata World Energy Efficiency & Demand Demanda e eficiência energética mundial https://www.enerdata.net/
Energy Information Administration (EIA) Natural Gas Reservas de gás natural https://www.eia.gov/naturalgas/
Ernst & Young Who owns the DAX? Analysis of the shareholder structure of DAX companies in 2018 – abridged version Estrutura acionária das empresas DAX 2018 https://assets.ey.com/content/dam/ey-sites/ey-com/de_de/news/2019/06/ey-wem-gehoert-der-dax-2019.pdf?download=.
Federação de Cientistas Americanos Compartilhamento nuclear, 2023 https://fas.org/wp-content/uploads/2023/11/Nuclear-weapons-sharing-2023.pdf
Federação de Cientistas Americanos Situação das forças nucleares mundiais https://fas.org/initiative/status-world-nuclear-forces/
Fundo Monetário International (FMI) World Economic Outlook (WEO) PIB medido em termos de Taxa de Câmbio Corrente (TCC) usando preços constantes https://www.imf.org/en/Publications/WEO/weo-database/2023/October
Fundo Monetário International (FMI) World Economic Outlook (WEO) PIB medido em termos de Taxa de Câmbio Corrente (TCC) usando preços correntes https://www.imf.org/en/Publications/WEO/weo-database/2023/October
Fundo Monetário International (FMI) World Economic Outlook (WEO) PIB medido em termos de Paridade de Poder de Compra (PPC) usando preços constantes https://www.imf.org/en/Publications/WEO/weo-database/2023/October
Fundo Monetário International (FMI) World Economic Outlook (WEO) PIB medido em termos de Paridade de Poder de Compra (PPC) usando preços correntes https://www.imf.org/en/Publications/WEO/weo-database/2023/October
Fundo Monetário International (FMI) World Economic Outlook (WEO) PIB per capita em termos de Taxa de Câmbio Corrente (TCC) usando preços correntes https://www.imf.org/en/Publications/WEO/weo-database/2023/October
Fundo Monetário International (FMI) World Economic Outlook (WEO) PIB per capita em termos de Paridade de Poder de Compra (PPC) usando preços constantes https://www.imf.org/en/Publications/WEO/weo-database/2023/October
Fundo Monetário International (FMI) World Economic Outlook (WEO) PIB per capita em termos de Paridade de Poder de Compra (PPC) usando preços correntes https://www.imf.org/en/Publications/WEO/weo-database/2023/October
Fundo Monetário International (FMI) World Economic Outlook (WEO) População https://www.imf.org/en/Publications/WEO/weo-database/2023/October
G-77 Grupo dos 77 na Organização das Nações Unidas https://www.g77.org/doc/
Green Finance & Development Center Países signatários de memorando de entendimento da Nova Rota da Seda  
Grupo de Amigos em Defesa da Carta das Nações Unidas Amigos da Carta das Nações Unidas  
IHS Markit Estrutura acionária por região, 2020  
International Institute for Strategic Studies (IISS) Informação de envios de tropas  
Maddison Historical Statistics of the World Economy
Monthly Review Gasto militar real dos EUA, 2022 https://greenfdc.org/countries-of-the-belt-and-road-initiative-bri/
Organização das Nações Unidas (ONU) World Population Prospects (WPP) Estimativas de expectativa de vida por região, sub-região e país, anual, 1950–2021 https://www.gof-uncharter.org/
Organização das Nações Unidas (ONU) World Population Prospects (WPP) Estimativas de expectativa de vida por região, sub-região e país, anual, 2022–2100 https://cdn.ihsmarkit.com/www/pdf/0621/DAX-Study-2020—DIRK-Conference-June-2021_IHS-Markit.pdf
Organização das Nações Unidas (ONU) World Population Prospects (WPP) Regiões, sub-regiões e zonas intermediárias conforme definição da ONU https://www.iiss.org/publications/the-military-balance/
Organização das Nações Unidas (ONU) World Population Prospects (WPP) Estimativas de população por região, sub-região e país, anual, 1950–2021 https://www.rug.nl/ggdc/historicaldevelopment/maddison/releases/maddison-database-2010
Organização das Nações Unidas (ONU) World Population Prospects (WPP) Estimativas de população por região, sub-região e país, anual, 2022–2100 https://monthlyreview.org/2023/11/01/actual-u-s-military-spending-reached-1-53-trillion-in-2022-more-than-twice-acknowledged-level-new-estimates-based-on-u-s-national-accounts/
Organização das Nações Unidas (ONU) Membros da ONU https://population.un.org/wpp/
Organização das Nações Unidas (ONU) Dados sobre votos na ONU https://population.un.org/wpp/
Organização de Cooperação de Xangai (OCX) Membros da OCX https://population.un.org/wpp/Download/Documentation/Documentation/
Organização de Países Exportadores de Petróleo (OPEP) The Annual Statistical Bulletin (ASB) Reservas comprovadas de petróleo bruto por país https://population.un.org/wpp/
Organização de Países Exportadores de Petróleo (OPEP) Membros da OPEP https://population.un.org/wpp/
Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) Participantes da Cúpula da OTAN em Vilnius, 2023 https://www.un.org/en/about-us/member-states
Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) Países membros da OTAN https://digitallibrary.un.org/search?cc=Voting+Data&ln=en&c=Voting+Data
Organização Internacional de Padronização (ISO) Países e territórios ISO https://eng.sectsco.org/
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) Capital Market Series Capital controlado por investidores não domésticos, 10.000 maiores empresas da OCDE https://asb.opec.org/
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) Capital Market Series Propriedade doméstica e estrangeira das ações nas principais bolsas de valores https://www.opec.org/opec_web/en/about_us/25.htm
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) PIB trimestral da Zona do Euro de T3/2019 a T3/2023 https://www.nato.int/cps/en/natohq/events_216418.htm?selectedLocale=en
Relatório Nuclear Mundial elatório de Situação da Indústria Nuclear Mundial, 2022 https://www.nato.int/cps/en/natohq/topics_52044.htm
SanctionsKill Campaign Países sancionados pelos EUA https://www.iso.org/iso-3166-country-codes.html
Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI) SIPRI Military Expenditure Despesas militares mundiais (dólar constante) https://www.oecd.org/corporate/Owners-of-the-Worlds-Listed-Companies.pdf
Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI) SIPRI Military Expenditure Despesas militares mundiais (dólar corrente) https://www.oecd.org/corporate/Owners-of-the-Worlds-Listed-Companies.pdf
Stuart Laycock (2012) Invasões do Reino Unido 927–2012 https://data.oecd.org/gdp/quarterly-gdp.htm
Sul Global Insights (GSI) Status colonial https://www.worldnuclearreport.org/IMG/pdf/wnisr2022-v3-hr.pdf
Sul Global Insights (GSI) História comum dos países imperialistas https://sanctionskill.org/
Sul Global Insights (GSI) Norte Global ou Sul Global https://www.sipri.org/databases/milex
Sul Global Insights (GSI) Anéis do Norte Global ou Agrupamentos do Sul Global https://www.sipri.org/databases/milex
Sul Global Insights (GSI) Bloco militar dos EUA
The Economist One Hundred Years of Economic Statistics Balanço de conta corrente do Reino Unido
The Economist One Hundred Years of Economic Statistics PIB do Reino Unido em termos de preços de mercado
The Economist One Hundred Years of Economic Statistics Balanço de conta corrente dos Estados Unidos 1885–1987
The Economist One Hundred Years of Economic Statistics Produto nacional bruto dos EUA (PNB) 1889–1987
US Bureau of Economic Analysis (BEA) International Transactions, International Services, and International Investment Position Tables Balanço em conta corrente https://apps.bea.gov/itable/?reqid=62&step=1&_gl=1*xxlwzz*_ga*Mjk5NDQ2MTIxLjE2OTA0NjEwMzA.*_ga_J4698JNNFT*MTcwMjMxNjAyMC4xNS4xLjE3MDIzMTYwMjkuMC4wLjA.#eyJhcHBpZCI6NjIsInN0ZXBzIjpbMSwyLDYsNl0sImRhdGEiOltbIlByb2R1Y3QiLCIxIl0sWyJUYWJsZUxpc3QiLCIxIl0sWyJGaWx0ZXJfIzEiLFsiMCJdXSxbIkZpbHRlcl8jMiIsWyIwIl1dLFsiRmlsdGVyXyMzIixbIjAiXV0sWyJGaWx0ZXJfIzQiLFsiMCJdXSxbIkZpbHRlcl8jNSIsWyIwIl1dXX0=
US Bureau of Economic Analysis (BEA) National Income and Product Accounts Produto Interno Bruto (PIB), índices de quantidade https://apps.bea.gov/itable/?reqid=19&step=2&isuri=1&categories=survey#eyJhcHBpZCI6MTksInN0ZXBzIjpbMSwyLDMsM10sImRhdGEiOltbImNhdGVnb3JpZXMiLCJTdXJ2ZXkiXSxbIk5JUEFfVGFibGVfTGlzdCIsIjMiXSxbIkZpcnN0X1llYXIiLCIyMDIxIl0sWyJMYXN0X1llYXIiLCIyMDIzIl0sWyJTY2FsZSIsIjAiXSxbIlNlcmllcyIsIkEiXSxbIlNlbGVjdF9hbGxfeWVhcnMiLCIxIl1dfQ==
US Bureau of Economic Analysis (BEA) National Income and Product Accounts Produto Nacional Bruto https://apps.bea.gov/itable/?reqid=19&step=2&isuri=1&categories=survey&_gl=1*es60tl*_ga*Mjk5NDQ2MTIxLjE2OTA0NjEwMzA.*_ga_J4698JNNFT*MTcwMjMxNjAyMC4xNS4xLjE3MDIzMTYyODEuMC4wLjA.#eyJhcHBpZCI6MTksInN0ZXBzIjpbMSwyLDMsM10sImRhdGEiOltbImNhdGVnb3JpZXMiLCJTdXJ2ZXkiXSxbIk5JUEFfVGFibGVfTGlzdCIsIjMxNyJdLFsiRmlyc3RfWWVhciIsIjIwMjEiXSxbIkxhc3RfWWVhciIsIjIwMjMiXSxbIlNjYWxlIiwiLTkiXSxbIlNlcmllcyIsIkEiXSxbIlNlbGVjdF9hbGxfeWVhcnMiLCIxIl1dfQ==
US Bureau of Economic Analysis (BEA) National Income and Product Accounts Poupança e investimento por setor https://apps.bea.gov/itable/?reqid=19&step=2&isuri=1&categories=survey#eyJhcHBpZCI6MTksInN0ZXBzIjpbMSwyLDNdLCJkYXRhIjpbWyJjYXRlZ29yaWVzIiwiU3VydmV5Il0sWyJOSVBBX1RhYmxlX0xpc3QiLCIxMzciXV19
World Beyond War USA’s Military Empire: A Visual Database 902 bases militares atuais dos EUA https://worldbeyondwar.org/no-bases/
World Resources Institute (WRI) Shapefiles dos limites e fronteiras nacionais, Perspectiva da Índia, última atualização em 4 de maio de 2017 https://github.com/wri/wri-bounds
XV Cúpula do BRICS 2023 Johannesburg II Declaration BRICS and Africa: Partnership for Mutually Accelerated Growth, Sustainable Development and Inclusive Multilateralism Membros do BRICS https://brics2023.gov.za/wp-content/uploads/2023/08/Jhb-II-Declaration-24-August-2023-1.pdf
Fonte: Sul Global Insights

Sul Global Insights

Sul Global Insights (GSI, pela sigla em inglês) é uma rede de pesquisadores comprometidos com o avanço da pesquisa quantitativa e orientada por dados no campo das ciências humanas e sociais. É parceira do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

A GSI adota tecnologias avançadas com foco em bancos de dados estatísticos de diversas instituições fidedignas, incorporando mecanismos abrangentes de governança e auditoria de dados.

Entre as questões comuns enfrentadas pelas pesquisadoras e pelos pesquisadores estão:

  • Fontes de dados complexas, dificuldade na integração de dados. No caso de dados de uso comum, como estatísticas sobre populações e o PIB, organizações como as Nações Unidas, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional têm abordagens estatísticas distintas. Não há padronização entre os dados divulgados por essas instituições, o que leva a diversos problemas de compatibilidade e interoperabilidade durante a integração de dados.
  • Qualidade de dados baixa, dificuldade na auditoria dos dados. Dados faltantes e errôneos são frequentes nos conjuntos de dados publicados por várias organizações. A auditoria dos dados originais e dos integrados/analisados depende muito de operações manuais, que exigem um trabalho intensivo e são ineficientes e propensas a erros, carecendo de repetibilidade.
  • Ferramentas básicas de processamento, dificuldade na análise avançada. A integração e a análise de dados dependem muito de ferramentas básicas como o Excel, ineficientes e complicadas de se utilizar em operações como a obtenção de médias móveis de 10 anos e regressão linear. Esses desafios dificultam a realização de análises abstratas de mais alto nível.
  • Visualização limitada, dificuldade na apresentação de insights. Contar com os formatos limitados dos gráficos fornecidos pelo Excel dificulta a criação de apresentações de dados mais expressivas, como gráficos compostos, mapas, mapas de calor etc. Não é possível atualizar automaticamente os gráficos criados com ferramentas de design após alterações de dados.
  • Falta de gestão de ativos de dados, dificuldade de colaboração em equipe. Os processos de pesquisa quantitativa baseados em arquivos de Excel carecem de acúmulo e gestão de ativos de dados, como dados de origem, resultados de auditoria de dados, fluxos de trabalho de processamento de dados, dados de processos e resultados provisórios, o que dificulta o apoio à pesquisa colaborativa de longo prazo entre diversas pessoas e diversos temas.

Lista completa de “Cento e onze países diversos do Sul Global”

Figura 56

Grupo 5: Sul Global diverso

Informações selecionadas, todos os países, classificados por PIB (PPC), 2022

Parte 1

País Geral História colonial
ONU
ano de entrada
População
(mi)
PIB (PPC)
(bi)
Taxa de crescimento
10 anos
média movel anual
PIB (PPC)
per capita
Situação
colonial
Principais
colonizadores
Ano de
independência
Egito 1945 111 1.676 4,3% 16.174 Colônia Reino Unido 1922
Paquistão 1947 236 1.520 4,0% 6.695 Colônia Reino Unido 1947
Tailândia 1946 72 1.482 1,8% 21.154 Semi-colônia Reino Unido, França
Bangladesh 1974 171 1.343 6,5% 7.971 Colônia Reino Unido 1971
Nigéria 1960 219 1.281 2,2% 5.909 Colônia Reino Unido 1960
Argentina 1945 46 1.226 0,3% 26.484 Colônia Espanha, Reino Unido 1816
Malásia 1957 34 1.137 4,1% 34.834 Colônia Reino Unido 1957
Emirados Árabes Unidos 1971 9 835 3,1% 84.657 Colônia Reino Unido 1971
Singapura 1965 6 719 3,3% 127.563 Colônia Reino Unido 1965
Cazaquistão 1992 19 603 2,9% 30.523 Independente
Chile 1945 20 579 2,2% 29.221 Colônia Espanha 1818
Peru 1945 34 523 2,8% 15.310 Colônia Espanha 1821
Iraque 1945 44 505 2,7% 11.948 Colônia Reino Unido 1932
Marrocos 1956 37 363 2,4% 9.900 Colônia França, Espanha 1956
Etiópia 1945 123 358 8,4% 3.435 Independente
Uzbequistão 1992 35 340 5,9% 9.634 Independente
Sri Lanka 1955 22 320 1,8% 14.267 Colônia Reino Unido 1948
Quênia 1963 54 311 4,5% 6.151 Colônia Reino Unido 1963
Catar 1971 3 309 2,2% 109.160 Colônia Reino Unido 1971
Mianmar 1948 54 261 3,3% 4.847 Colônia Reino Unido 1948
República Dominicana 1945 11 256 5,2% 24.117 Colônia Espanha 1844
Kuwait 1963 4 249 0,3% 51.238 Colônia Reino Unido 1961
Angola 1976 36 248 0,4% 6.944 Colônia Portugal 1975
Equador 1945 18 231 1,0% 12.818 Colônia Espanha 1822
Gana 1957 33 217 4,5% 6.752 Colônia Reino Unido 1957
Tanzânia 1961 65 209 6,2% 3.394 Colônia Reino Unido 1961
Sudão 1956 47 204 0,6% 4.366 Colônia Reino Unido 1956
Omã 1971 5 191 2,1% 38.699 Colônia Portugal 1650
Guatemala 1945 18 188 3,5% 10.076 Colônia Espanha 1821
Costa do Marfim 1960 28 184 6,8% 6.486 Colônia França 1960
Azerbaijão 1992 10 181 1,6% 17.800
Panamá 1945 4 173 4,1% 39.397 Colônia Espanha 1903
Tunísia 1956 12 154 1,2% 12.723 Colônia França 1956
Líbia 1955 7 143 -4,4% 21.104 Colônia Itália 1951
RD Congo 1960 99 136 5,3% 1.409 Colônia Bélgica 1960
Uganda 1962 47 134 4,8% 3.062 Colônia Reino Unido 1962
Costa Rica 1945 5 131 3,0% 25.000 Colônia Espanha 1821
Jordânia 1955 11 124 2,0% 12.055 Colônia Reino Unido 1946
Camarões 1960 28 124 4,0% 4.431 Colônia França, Reino Unido 1960
Turcomenistão 1992 6 119 1,1% 19.028 Independente
Paraguai 1945 7 108 3,1% 14.535 Colônia Espanha 1811
Uruguai 1945 3 99 1,6% 27.770 Colônia Espanha 1825
Bahrein 1971 1 90 2,7% 58.426 Colônia Reino Unido 1971
Camboja 1955 17 90 5,5% 5.613 Colônia França 1953
Líbano 1945 5 78 -4,0% 11.794 Colônia França 1943
Zâmbia 1964 20 78 3,2% 3.894 Colônia Reino Unido 1964
Senegal 1960 17 73 5,1% 4.117 Colônia França 1960
El Salvador 1945 6 70 2,1% 11.097 Colônia Espanha 1821
Iêmen 1947 34 68 -4,8% 2.035 Colônia Reino Unido 1967
Benim 1960 13 54 5,5% 4.048 Colônia França 1960
Armênia 1992 3 53 4,1% 17.795
Madagascar 1960 30 53 2,6% 1.817 Colônia França 1960
Tajiquistão 1992 10 49 7,1% 4.943 Independente
Mongólia 1961 3 48 4,4% 13.996 Colônia 1911
Moçambique 1975 33 48 3,9% 1.469 Colônia Portugal 1975
Botsuana 1966 3 48 3,8% 18.323 Colônia Reino Unido 1966
Quirguistão 1992 7 42 4,0% 6.127 Independente
Trindade e Tobago 1962 2 41 -1,4% 29.050 Colônia Reino Unido 1962
Gabão 1960 2 39 2,4% 18.207 Colônia França 1960
Papua Nova Guiné 1975 10 39 3,8% 3.252 Colônia Austrália 1975
Ruanda 1962 14 38 6,3% 2.904 Colônia Bélgica 1962
Haiti 1945 12 38 0,6% 3.161 Colônia França 1804
Malawi 1964 20 36 3,6% 1.628 Colônia Reino Unido 1964
Maurícia 1968 1 34 2,1% 26.934 Colônia Reino Unido 1968
Guiana 1966 1 34 13,4% 42.699 Colônia Reino Unido 1966
Jamaica 1962 3 34 0,6% 12.302 Colônia Reino Unido 1962
Brunei 1984 < 1 31 -0,5% 70.576 Colônia Reino Unido 1984
Mauritânia 1961 5 31 3,9% 7.113 Colônia França 1960
Somália 1960 18 30 3,1% 1.928 Colônia Reino Unido, Itália 1960
Chade 1960 18 30 1,2% 1.724 Colônia França 1960
Guiné Equatorial 1968 2 29 -4,2% 19.465 Colônia Espanha 1968
Rep. Congo 1960 6 26 -1,4% 5.277 Colônia França 1960
Togo 1960 9 23 5,0% 2.594 Colônia França 1960
Bahamas 1973 < 1 17 0,6% 42.023 Colônia Reino Unido 1973
Serra Leoa 1961 9 17 2,5% 2.009 Colônia Reino Unido 1961
Fiji 1970 1 14 2,0% 14.950 Colônia Reino Unido 1970
Maldivas 1965 1 13 5,3% 33.663 Colônia Reino Unido 1965
Essuatini 1968 1 13 2,5% 11.217 Colônia Reino Unido 1968
Suriname 1975 1 11 -1,7% 17.498 Colônia Países Baixos 1975
Burundi 1962 13 11 1,4% 856 Colônia Bélgica 1962
Butão 1971 1 10 3,4% 13.219 Colônia Reino Unido 1947
Timor Leste 2002 1 9 8,5% 7.064 Colônia Portugal 2002
Libéria 1945 5 9 1,5% 1.690 Colônia EUA 1847
Gâmbia 1965 3 7 3,6% 2.670 Colônia Reino Unido 1965
Sudão do Sul 2011 11 7 0,3% 456 Colônia Reino Unido 2011
Djibuti 1977 1 7 5,1% 6.502 Colônia França 1977
Lesoto 1966 2 7 0,3% 3.092 Colônia Reino Unido 1966
Guiné-Bisáu 1974 2 6 4,1% 2.911 Colônia Portugal 1973
República Centro-Africana 1960 6 5 -2,3% 1.081 Colônia França 1960
Cabo Verde 1975 1 5 2,2% 9.263 Colônia Portugal 1975
Barbados 1966 < 1 5 -0,3% 17.339 Colônia Reino Unido 1966
Belize 1981 < 1 5 2,8% 10.564 Colônia Reino Unido 1981
Seicheles 1976 < 1 4 5,3% 39.079 Colônia Reino Unido 1976
Santa Lúcia 1979 < 1 3 0,7% 17.840 Colônia Reino Unido 1979
Comores 1975 1 3 2,5% 3.363 Colônia França 1975
Antígua e Barbuda 1981 < 1 2 2,2% 23.575 Colônia Reino Unido 1981
Granada 1974 < 1 2 2,6% 18.843 Colônia Reino Unido 1974
São Vicente e Granadinas 1980 < 1 2 1,8% 16.216 Colônia Reino Unido 1979
Ilhas Salomão 1978 1 2 1,3% 2.325 Colônia Reino Unido 1978
São Cristóvão e Neves 1983 < 1 2 1,4% 27.767 Colônia Reino Unido 1983
Samoa 1976 < 1 1 0,1% 5.883 Colônia Nova Zelândia 1962
Dominica 1978 < 1 1 0,0% 13.293 Colônia Reino Unido 1978
Vanuatu 1981 < 1 1 1,8% 2.890 Colônia Reino Unido, França 1980
São Tomé e Príncipe 1975 < 1 1 3,2% 4.067 Colônia Portugal 1975
Tonga 1999 < 1 1 1,0% 6.686 Colônia Reino Unido 1970
Micronésia 1991 < 1 0 -0,2% 3.693 Colônia Imp. Alemão, Japão
Quiribati 1999 < 1 0 2,3% 2.271 Colônia Reino Unido 1979
Palau 1994 < 1 0 -1,2% 14.515 Colônia Imp. Alemão, Japão, EUA 1994
Ilhas Marshall 1991 < 1 0 1,9% 5.497 Colônia Espanha, Imp. Alemão, Japão, EUA 1986
Nauru 1999 < 1 0 4,4% 10.930 Colônia Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia 1968
Tuvalu 2000 < 1 0 3,5% 5.376 Colônia Reino Unido 1978
Total 2.242 21.171 9.687 103 Col+SemiCol
Porcentagem do mundo 28,1% 12,9%
Fonte: Elaboração de Sul Global Insights com base em dados da ONU, FMI
Figura 56

Grupo 5: Sul Global diverso

Informações selecionadas, todos os países, classificados por PIB (PPC), 2022

Parte 2

País Militar Alvo militar dos EUA
Gasto militar
aj. (mi)
Military spend
adj. per capita
> world avg. (times)
Sanções
dos EUA
lista
Intervenção
militar
dos EUA
hist.
Bases militares
EUA
Egito 4.646 0,1 S 7
Paquistão 10.337 0,1 8
Tailândia 5.724 0,2 S 3
Bangladesh 4.806 0,1
Nigéria 3.109 < 0,1
Argentina 2.578 0,2 S 3
Malásia 3.671 0,3
Emirados Árabes Unidos 3
Singapura 11.688 5,4 2
Cazaquistão 1.133 0,2
Chile 5.566 0,8 S 1
Peru 2.845 0,2 S 5
Iraque 4.683 0,3 S S 10
Marrocos 4.995 0,4 S
Etiópia 1.031 < 0,1 S S
Uzbequistão
Sri Lanka 1.053 0,1 S
Quênia 1.138 0,1 S 3
Catar 15.412 15,9 5
Mianmar 1.857 0,1 S
República Dominicana 761 0,2 S 2
Kuwait 8.244 5,4 S 8
Angola 1.623 0,1 S
Equador 2.489 0,4 S
Gana 229 < 0,1 2
Tanzânia 832 < 0,1 S
Sudão S S
Omã 5.783 3,5 8
Guatemala 431 0,1 S 8
Costa do Marfim 607 0,1 S
Azerbaijão 2.991 0,8
Panamá < 0,1 S 15
Tunísia 1.156 0,3 S S 2
Líbia S S
RD Congo 371 < 0,1 S S 1
Uganda 923 0,1 S S 2
Costa Rica < 0,1 S 4
Jordânia 2.323 0,6 S 8
Camarões 417 < 0,1 S 4
Turcomenistão
Paraguai 366 0,1 S S
Uruguai 1.376 1,1 S 1
Bahrein 1.381 2,6 10
Camboja 611 0,1 S 1
Líbano 4.739 2,4 S S
Zâmbia 326 < 0,1
Senegal 433 0,1 S 1
El Salvador 422 0,2 S 6
Iêmen S S 2
Benim 97 < 0,1
Armênia 795 0,8
Madagascar 98 < 0,1
Tajiquistão 103 < 0,1
Mongólia 118 0,1
Moçambique 282 < 0,1
Botsuana 489 0,5 1
Quirguistão 150 0,1
Trindade e Tobago 201 0,4 S
Gabão 278 0,3 S 2
Papua Nova Guiné 97 < 0,1 S
Ruanda 177 < 0,1 S
Haiti 13 < 0,1 S S
Malawi 76 < 0,1
Maurícia 20 < 0,1
Guiana 84 0,3 S
Jamaica 215 0,2 S
Brunei 436 2,7
Mauritânia 225 0,1 3
Somália 115 < 0,1 S S 6
Chade 357 0,1 S 3
Guiné Equatorial 157 0,3
Rep. Congo 266 0,1
Togo 337 0,1
Bahamas S 9
Serra Leoa 24 < 0,1 S
Fiji 67 0,2 S
Maldivas
Essuatini 74 0,2
Suriname S 2
Burundi 101 < 0,1 S 1
Butão
Timor Leste 44 0,1 S
Libéria 19 < 0,1 S S
Gâmbia 15 < 0,1
Sudão do Sul 379 0,1 S S 1
Djibuti S 2
Lesoto 35 < 0,1
Guiné-Bisáu 25 < 0,1 S S
República Centro-Africana 42 < 0,1 S S 3
Cabo Verde 10 < 0,1
Barbados
Belize 24 0,2 9
Seicheles 26 0,7 1
Santa Lúcia S
Comores S
Antígua e Barbuda S
Granada S
São Vicente e Granadinas
Ilhas Salomão S
São Cristóvão e Neves
Samoa S 1
Dominica S
Vanuatu
São Tomé e Príncipe
Tonga S
Micronésia
Quiribati S
Palau 3
Ilhas Marshall S 10
Nauru
Tuvalu
Total 131.182 17 63 192
Porcentagem do mundo 4,6%
Fonte: Elaboração de Sul Global Insights com base em dados de SIPRI e Monthly Review, ONU, CRS, World Beyond War
Figura 56

Grupo 5: Sul Global diverso

Informações selecionadas, todos os países, classificados por PIB (PPC), 2022

Parte 3

País Afiliações internacionais Votos na ONU
Amigos da
Carta da ONU
Org. de
Cooperação
de Xangai
Brics10 Cessar-fogo
em Gaza
10/2023
Retirada
da Rússia
02/2023
Egito Diálogo Novo A favor A favor
Paquistão Pleno A favor Abstenção
Tailândia A favor A favor
Bangladesh A favor Abstenção
Nigéria A favor A favor
Argentina A favor A favor
Malásia A favor A favor
Emirados Árabes Unidos Diálogo Novo A favor A favor
Singapura A favor A favor
Cazaquistão Pleno A favor Abstenção
Chile A favor A favor
Peru A favor A favor
Iraque Abstenção A favor
Marrocos A favor A favor
Etiópia Novo Abstenção Abstenção
Uzbequistão Pleno A favor Abstenção
Sri Lanka Diálogo A favor Abstenção
Quênia A favor A favor
Catar Diálogo A favor A favor
Mianmar Diálogo A favor A favor
República Dominicana A favor A favor
Kuwait Diálogo A favor A favor
Angola A favor Abstenção
Equador A favor A favor
Gana A favor A favor
Tanzânia A favor Não votou
Sudão A favor Abstenção
Omã A favor A favor
Guatemala Contra A favor
Costa do Marfim A favor A favor
Azerbaijão Diálogo A favor Não votou
Panamá Abstenção A favor
Tunísia Abstenção A favor
Líbia A favor A favor
RD Congo A favor A favor
Uganda A favor Abstenção
Costa Rica A favor A favor
Jordânia A favor A favor
Camarões Abstenção Não votou
Turcomenistão Não votou Não votou
Paraguai Contra A favor
Uruguai Abstenção A favor
Bahrein Diálogo A favor A favor
Camboja S Diálogo Não votou A favor
Líbano A favor Não votou
Zâmbia Abstenção A favor
Senegal A favor Não votou
El Salvador A favor Abstenção
Iêmen A favor A favor
Benim Não votou A favor
Armênia Diálogo A favor Abstenção
Madagascar A favor A favor
Tajiquistão Pleno A favor Abstenção
Mongólia Observador A favor Abstenção
Moçambique A favor Abstenção
Botsuana A favor A favor
Quirguistão Pleno A favor Abstenção
Trindade e Tobago A favor A favor
Gabão A favor Abstenção
Papua Nova Guiné Contra A favor
Ruanda Não votou A favor
Haiti Abstenção A favor
Malawi A favor A favor
Maurícia A favor A favor
Guiana A favor A favor
Jamaica Não votou A favor
Brunei A favor A favor
Mauritânia A favor A favor
Somália A favor A favor
Chade A favor A favor
Guiné Equatorial S A favor Não votou
Rep. Congo A favor Abstenção
Togo Não votou Abstenção
Bahamas A favor A favor
Serra Leoa A favor A favor
Fiji Contra A favor
Maldivas Diálogo A favor A favor
Essuatini Não votou Não votou
Suriname A favor A favor
Burundi Não votou Abstenção
Butão A favor A favor
Timor Leste A favor A favor
Libéria Não votou A favor
Gâmbia A favor A favor
Sudão do Sul Abstenção A favor
Djibuti A favor A favor
Lesoto A favor A favor
Guiné-Bisáu A favor Não votou
República Centro-Africana A favor Abstenção
Cabo Verde Abstenção A favor
Barbados A favor A favor
Belize A favor A favor
Seicheles Não votou A favor
Santa Lúcia A favor A favor
Comores A favor A favor
Antígua e Barbuda A favor A favor
Granada A favor Não votou
São Vicente e Granadinas S A favor A favor
Ilhas Salomão A favor A favor
São Cristóvão e Neves A favor A favor
Samoa Não votou A favor
Dominica A favor Não votou
Vanuatu Abstenção A favor
São Tomé e Príncipe Não votou A favor
Tonga Contra A favor
Micronésia Contra A favor
Quiribati Abstenção A favor
Palau Abstenção A favor
Ilhas Marshall Contra A favor
Nauru Contra A favor
Tuvalu Abstenção A favor
Total 3 17 3 77 A favor 20 Abstenção
Fonte: Sul Global Insights

Notas de fim

1 Vijay Prashad, Struggle Makes Us Human: Learning from Movements for Socialism (Nova York: Haymarket Books, 2022); Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Dez teses sobre marxismo e descolonização, dossiê no. 56, 20 de setembro de 2022, https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-dez-teses-sobre-marxismo-e-descolonizacao/.

2 Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Reforma agrária popular e a luta pela terra no Brasil, dossiê no. 27, 6 de abril de 2020, https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-27-terra/.

3 Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Um legado estratégico: o pensamento revolucionário do comandante Chávez 10 anos após sua partida, dossiê no. 61, 28 de fevereiro de 2023, https://thetricontinental.org/pt-pt/dossierchavez-pensamento-estrategico/; Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Um mapa do presente da América Latina: uma entrevista com Héctor Béjar, dossiê no. 49, 7 de fevereiro de 2022, https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-49-bejar-america-latin/; Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, O Ministério das Colônias dos EUA e sua cúpula, alerta vermelho nº 14, 25 de maio de 2022, https://thetricontinental.org/pt-pt/alerta-vermelho-14-cupula-americas/.

4 Immanuel Wallerstein, “The Three Instances of Hegemony in the History of the Capitalist World-Economy”, ed. Lenski, Current Issues and Research in Macrosociology, 1 de janeiro de 1984, 100-108, https://doi.org/10.1163/9789004477995_008.

5 NT: O documento adota os nomes oficiais da República Popular Democrática da Coreia (Coreia do Norte) e República da Coreia (Coreia do Sul).

6 Jens Stoltenberg, Ursula von der Leyen e Charles Michel, “Joint Declaration on EU-NATO Cooperation”, Organização do Tratado do Atlântico Norte, 10 de janeiro de 2023, https://www.nato.int/cps/en/natohq/official_texts_210549.htm.

7 Leila Khaled: “Onde há repressão, há resistência”, Capire, 27 de outubro de 2023, https://capiremov.org/entrevista/leila-khaled-onde-ha-repressao-ha-resistencia/.

8 Vladimir I. Lênin, Imperialism, the Highest Stage of Capitalism: A Popular Outline (Nova York: International Publishers, 1939); Walter Rodney, How Europe Underdeveloped Africa (Londres: Bogle-L’Ouverture Publications, 1972); Kwame Nkrumah, Neo-Colonialism: The Last Stage of Imperialism, reimpresso (Londres: Panaf, 2004).

9 Julian Assange, When Google Met WikiLeaks (Nova York: OR Books, 2014).

10 Donald Trump, “President Donald J. Trump Is Ending United States Participation in an Unacceptable Iran Deal”, Casa Branca, 8 de maio de 2018, https://trumpwhitehouse.archives.gov/briefings-statements/president-donald-j-trump-ending-united-states-participation-unacceptable-iran-deal/.

11 “US Completes Open Skies Treaty Withdrawal”, Arms Control Association, dezembro de 2020, https://www.armscontrol.org/act/2020-12/news/us-completes-open-skies-treaty-withdrawal; C. Todd Lopez, “US Withdraws From Intermediate-Range Nuclear Forces Treaty”, Departamento de Defesa dos EUA, 2 de agosto de 2019, https://www.defense.gov/News/News-Stories/article/article/1924779/us-withdraws-from-intermediate-range-nuclear-forces-treaty/; George W. Bush, “Statement by the President”, Casa Branca, 13 de junho de 2002, https://georgewbush-whitehouse.archives.gov/news/releases/2002/06/20020613-9.html.

12 Gisela Cernadas e John Bellamy Foster, “Actual US Military Spending Reached US$ 1,53 trillion in 2022 – More than Twice Acknowled Level: New Estimates Based on US National Accounts”, Monthly Review, 1 de novembro de 2023, https://monthlyreview.org/2023/11/01/actual-u-s-military-spending-reached-1-53-trillion-in-2022-more-than-twice-acknowledged-level-new-estimates-based-on-u-s-national-accounts/.

13 O Quincy Institute e outros autores também publicaram estimativas de gastos militares dos EUA significativamente mais altas. Andrew Cockburn, “Getting the Defense Budget Right: A (Real) Grand Total, over $1.4 Trillion”, Responsible Statecraft, 7 de maio de 2023, https://responsiblestatecraft.org/2023/05/07/getting-the-defense-budget-right-a-real-grand-total-over-1-4-trillion/.

14 “SIPRI Military Expenditure Database”, Instituto Internacional de Estocolmo de Pesquisa para a Paz, acessado em 20 de dezembro de 2023, https://www.sipri.org/databases/milex.

15 Chen Zhuo, “Explainer: Prudent Chinese Defense Budget Growth Ensures Broad Public Security”, Ministério da Defesa Nacional, República Popular da China, 6 de março de 2022, http://eng.mod.gov.cn/xb/News_213114/TopStories/4906180.html; Escritório Nacional de Estatísticas da China, acessado em 20 de dezembro de 2023,
https://data.stats.gov.cn/english/adv.htm?m=advquery&cnC01.

16 O ajuste de 2022 do Sipri inclui despesas relacionadas a (a) gastos com a força paramilitar da Polícia Armada do Povo (PAP); (b) pagamentos de desmobilização e aposentadoria de soldados do Ministério de Assuntos Civis; (c) financiamento adicional de pesquisa, desenvolvimento, testes e avaliação militares (PDT&A) fora do orçamento de defesa nacional; (d) despesas adicionais de construção militar; (e) ganhos comerciais do Exército de Libertação Popular (zero a partir de 2015); (f) subsídios à indústria armamentista (zero a partir de 2010); (e) importações de armas chinesas (zero a partir de 2020); e (g) a Guarda Costeira chinesa (desde 2013). A nova série continua consistente internamente ao longo do período entre 1989 e 2019. Ver Nan Tian e Fei Su, “A New Estimate Of China’s Military Expenditure”, Instituto Internacional de Estocolmo de Pesquisa para a Paz, janeiro de 2021, https://www.sipri.org/sites/default/files/2021-01/2101_sipri_report_a_new_estimate_of_chinas_military_expenditure.pdf; “Sources and Methods”, Instituto Internacional de Estocolmo de Pesquisa para a Paz, acessado em 20 de dezembro de 2023, https://www.sipri.org/databases/milex/sources-and-methods#sipri-estimates-for-china.

17 Os números do SIPRI sobre a China em 2021 são, em média, cerca de 1,36 vez maior do que o orçamento oficial da defesa nacional do país, embora reduzindo as estimativas feitas no passado. Por exemplo, para o ano de 2019, a nova estimativa do Sipri é de 1.660 bilhões de yuans ou US$ 240 bilhões, um pouco abaixo da antiga estimativa de 1.803 bilhões de yuans ou US$ 261 bilhões. De acordo com as estimativas anteriores, o Sipri aumentou em 48,6% o orçamento oficial de defesa da China correspondente a 2021. Com as novas estimativas, o orçamento da China para 2021 foi aumentado em 36,8% pelo Sipri. Com os novos ajustes, os gastos militares da China correspondem a 1,6% do PIB, comparado a 1,3% representado no orçamento oficial. Os cálculos do PIB se baseiam nos dados do PIB TCC do Panorama Econômico Mundial do FMI.

18 Escritório de Administração e Orçamento, “Historical Tables. Tabela 3.2. Outlays by Function and Subfunction: 1962-2028”, Casa Branca, acessado em 20 de dezembro de 2023, https://www.whitehouse.gov/omb/budget/historical-tables/.

19 Cálculos baseados nas estimativas de gasto militar real dos EUA para o ano de 2022 por Gisela Cernadas e John Bellamy Foster. Ver nota 11.

20 “USA’s Military Empire: A Visual Database”, World Beyond War, acessado em 27 de novembro de 2023, https://worldbeyondwar.org/no-bases/.

21 Há décadas, pesquisadoras e pesquisadores independentes reconhecem que os gasto militar real dos EUA representa, aproximadamente, o dobro do nível oficialmente reconhecido. As pesquisas independentes não se restringem aos círculos de esquerda, mas incluem o Quincy Institute for Responsible Statecraft, financiado pelo bilionário de direita George Soros, o Project on Government Oversight (POGO) e o “liberal” Center for American Progress. Ver Lawrence J. Krob e Kaveh Toofan, “A Trillion-Dollar Defense Budget? – Center for American Progress”, Center for American Progress, 12 de julho de 2022, https://www.americanprogress.org/article/a-trillion-dollar-defense-budget/; Cockburn, “Getting the Defense Budget Right: A (Real) Grand Total, over $1.4 Trillion”; William Hartung e Mandy Smithberger, “Making Sense of the $1.25 Trillion National Security State Budget”, Project on Government Oversight, 7 de maio de 2019, https://www.pogo.org/analysis/making-sense-of-the-1-25-trillion-national-security-state-budget.

22 Nossos números sobre Gasto Militar Mundial utilizam taxas de câmbio corrente (TCC). Os fatores de conversão de PPC para medir os gastos militares são necessariamente menos confiáveis do que as taxas de câmbio. As taxas PPC são estimativas estatísticas, calculadas com base em dados de preços coletados para cestas de bens e serviços relativos a anos de referência. Dados de preços desse tipo não são coletados referentes aos gastos militares. Portanto, a natureza dos gastos militares carece dessas informações para que seja possível realizar comparações internacionais. Assim, o cálculo dos gastos militares aplicando-se as taxas de PPC por meio de fatores de conversão do PIB é metodologicamente inválido, pois se baseia na suposição implícita de que a proporção dos preços militares equivale à proporção dos preços relativos do PIB, o que não é comprovado. O Sipri reconhece que o uso do ajuste de PPC para gastos militares é impreciso e, portanto, menos confiável do que o uso de taxas de câmbio. Ver Instituto Internacional de Estocolmo de Pesquisa pela Paz, “Frequently Asked Questions”, Banco de dados do Sipri sobre gastos militares, acessado em 25 de dezembro de 2023, https://www.sipri.org/databases/milex/frequently-asked-questions#PPP.

23 Como os gastos militares da China se concentram apenas no território chinês, a expansão militar da China encontra limites evidentes. O país não tem bases militares significativas no exterior, ao contrário dos EUA, que tinha 902 em 2022. Essa ideia é sustentada pelo Quincy Institute for Responsible Statecraft: “Até o momento, a China estabeleceu apenas uma base militar real e operacional no exterior, no chifre da África, em Djibuti, e provavelmente está estabelecendo uma instalação naval no Camboja. Mas há limites reais até onde a China pode ir para duplicar esses locais. Como apontou Isaac Kardon, do Carnegie Endowment, a China não tem alianças militares formais (além do caso duvidoso da República Popular Democrática da Coreia) e é improvável que construa alguma em um futuro próximo, fato que impõe grandes restrições à sua capacidade de estabelecer bases militares sérias. Poucos países, se é que há algum, desejam se comprometer a abrigar instalações militares completas e de grande porte que poderiam projetar o poder militar chinês em sua região e, no processo, convidar uma resposta dos EUA”. Ver Michael D. Swaine, “Actually, China’s Military Isn’t Going Global”, Responsible Statecraft, 8 de setembro de 2023, https://responsiblestatecraft.org/china-military/.

24 Editores, “US Military Bases and Empire”, Monthly Review, 1º de março de 2002, https://monthlyreview.org/2002/03/01/u-s-military-bases-and-empire.

25 Editores, “US Military Bases and Empire”, Monthly Review, 1º de março de 2002, https://monthlyreview.org/2002/03/01/u-s-military-bases-and-empire.

26 The Military Balance 2023, Instituto Internacional de Estudos de Segurança, 15 de fevereiro de 2023, https://www.iiss.org/en/publications/the-military-balance/.

27 Sally Williamson, “Logistics Contractors and Strategic Logistics Advantage in US Military Operations”, Logistics In War, 4 de junho de 2023, https://logisticsinwar.com/2023/06/04/logistics-contractors-and-strategic-logistics-advantage-in-us-military-operations/.

28 “Agreement Between the United States of America and Ghana”, Tratados e outras leis internacionais, série 18-531, Departamento de Estado dos EUA, https://www.state.gov/wp-content/uploads/2019/02/18-531-Ghana-Defense-Status-of-Forces.pdf.

29 Vijay Prashad, “Why Does the United States Have a Military Base in Ghana?”, Peoples Dispatch, 15 de junho de 2022, https://peoplesdispatch.org/2022/06/15/why-does-the-united-states-have-a-military-base-in-ghana/.

30 Matthew P. Goodman e Matthew Wayland, “Securing Asia’s Subsea Network: US Interests and Strategic Options”, Centro de Estudos Estratégicos Internacionais, 4 de abril de 2022, https://www.csis.org/analysis/securing-asias-subsea-network-us-interests-and-strategic-options.

31 Centro de Dados de Utah, Diretório de vigilância doméstica, acessado em 27 de novembro de 2023, https://nsa.gov1.info/utah-data-center/.

32 Nick Turse, “Pentagon Misled Congress About US Bases in Africa”, The Intercept, 8 de setembro de 2023, https://theintercept.com/2023/09/08/africa-air-base-us-military/.

33 “USA’s Military Empire: A Visual Database”, World Beyond War, acessado em 27 de novembro de 2023, https://worldbeyondwar.org/no-bases/.

34 The Military Balance 2023.

35 The Military Balance 2023.

36 Barbara Salazar Torreon e Sofia Plagakis, Instances of Use of United States Armed Forces Abroad, 1798-2023, Serviço de Pesquisa do Congresso, 7 de junho de 2023, https://crsreports.congress.gov/product/pdf/R/R42738.

37 Kushi e Toft, “Introducing the Military Intervention Project”, 4.

38 Salazar Torreon e Plagakis, Instances of Use of United States Armed Forces Abroad, –1798-2023.

39 Sidita Kushi e Monica Duffy Toft, “Introducing the Military Intervention Project: A New Dataset on US Military Interventions, 1776-2019”, Journal of Conflict Resolution 67, no. 4 (2023): 752–779. https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/00220027221117546?icid=int.sj-full-text.citing-articles.1.

40 O Projeto sobre Intervenção Militar (Military Intervention Project – MIP) tem uma estimativa um pouco menor do que as listas maiores de fontes como o Serviço de Pesquisa do Congresso (Congressional Research Service – CRS), cujos números são citados com mais frequência pelos pesquisadores. O MIP usa uma variedade de bancos de dados publicados conhecidos. No entanto, por ter uma definição mais abrangente, seu processo de agregação resulta em um número total ligeiramente menor devido à reclassificação. O MIP e o CRS, portanto, têm conjuntos de dados e números brutos que não podem ser comparados, por terem maneiras diferentes de tratar datas, a escala, a duração, a legalidade e a intenção das operações. O MIP e o CRS têm abordagens metodológicas incomparáveis. Utilizamos o CRS porque são os maiores dados publicados disponíveis. Ver Kushi e Toft, “Introducing the Military Intervention Project”.

41 Claudia Jones, “International Women’s Day and the Struggle for Peace”, discurso proferido em um ato do 8 de março de 1950,  Liberation School, 29 de março de 2023, https://www.liberationschool.org/claudia-jones-1950-iwd-speech/.

42 Anthony Lake, “Confronting Backlash States”, Foreign Affairs, 1º de março de 1994, https://www.foreignaffairs.com/articles/iran/1994-03-01/confronting-backlash-states.

43 Francisco R. Rodríguez, ‘The Human Consequences of Economic Sanctions”, Centro de Pesquisa em Política Econômica, 4 de maio de 2023, https://cepr.net/press-release/new-report-finds-that-economic-sanctions-are-often-deadly-and-harm-peoples-living-standards-in-target-countries/.

44 Agence France-Presse, “US Commerce Chief Warns against China ‘Threat'”, South China Morning Post, 3 de dezembro de 2023, https://www.scmp.com/news/world/united-states-canada/article/3243657/us-commerce-chief-warns-against-china-threat.

45 Deutscher Bundestag, China-Strategie der Bundesregierung [Estratégia do Governo Federal para a China], 20/7770, 13 de julho de 2023, https://dserver.bundestag.de/btd/20/077/2007770.pdf.

46 Elaboração própria com base em dados de Christoph Nedopil Wang, “Countries of the Belt and Road Initiative (BRI) – Green Finance & Development Center”, acessado em 2 de dezembro de 2023, https://greenfdc.org/countries-of-the-belt-and-road-initiative-bri/.

47 Elaboração própria da Sul Global Insights com base nos Indicadores de Desenvolvimento Mundial do Banco Mundial e na Perspectiva Econômica Mundial do FMI.

48  Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Oito contradições da “ordem baseada em regras” imperialista, Estudos sobre os dilemas contemporâneos, 13 de março de 2023, https://thetricontinental.org/pt-pt/oito-contradicoes-da-ordem-baseada-em-regras-imperialista/.

49 Todas as imagens em “História comum dos países imperialistas” estão em domínio público ou em licença por Creative Commons. Ver atribuição, em relação cronológica: Joseph Swain, A bordo de um navio negreiro, c.1835, https://commons.m.wikimedia.org/wiki/File:On_Board_a_Slave-Ship,_engraving_by_Swain_c._1835_Colorized.jpg; Desconhecido, Destruição dos Pequots, c. século 19, https://en.m.wikipedia.org/wiki/File:Mystic_Massacre_1637_Destruction_Of_The_Pequots_in_Connecticut.png; Desconhecido, Conferência de Berlim sobre a divisão da África, c. 1884, https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Afrikakonferenz.jpg; William Heysham Overend, Soldados chineses destroem bandeira britânica, 8 de outubro de 1856, https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Chinese_officers_tear_down_the_British_flag_on_the_arrow.JPG; Edward N. Jackson, Conselho de Quatro na conferência de paz de Paris na Primeira Guerra Mundial, 27 de maio de 1919,  https://en.wikipedia.org/wiki/File:Big-Four-Paris_1919.jpg; Charles Levy, Nuvem atômica sobre Nagasaki, Japão, 9 de agosto de 1945, https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Nagasakibomb.jpg

50 Utsa Patnaik, “Revisiting the ‘Drain’, or Transfer from India to Britain in the Context of Global Diffusion of Capitalism”, em Agrarian and Other Histories: Essays for Binay Bhushan Chaudhuri, editado por Shubhra Chakrabarti e Utsa Patnaik (Nova Délhi: Tulika, 2017).

51 Michael Johnson, “Teaching about Slavery”, Instituto de Pesquisa em Política Externa, agosto de 2008, https://www.fpri.org/article/2008/08/teaching-about-slavery/.

52 Wendy Sawyer e Peter Wagner, “Mass Incarceration: The Whole Pie 2023”, Iniciativa sobre Política Carcerária, 14 de março de 2023, https://www.prisonpolicy.org/reports/pie2023.html.

53 Comércio transatlântico de pessoas escravizadas – banco de dados, SlaveVoyage, 2019, https://www.slavevoyages.org/voyage/database.

54 Rachel Nuwer, “Mississippi Officially Ratifies Amendment to Ban Slavery, 148 Years Late”, Smithsonian Magazine, 20 de fevereiro de 2013, https://www.smithsonianmag.com/smart-news/mississippi-officially-ratifies-amendment-to-ban-slavery-148-years-late-21328041/.

55 Maria Mies, Patriarchy and Accumulation on a World Scale: Women in the International Division of Labour (Londres: Zed Books, 2001).

56 Jean Enriquez, “Das ‘mulheres de conforto’ à prostituição nas bases militares”, Capire, 18 de julho de 2023, https://capiremov.org/entrevista/das-mulheres-de-conforto-a-prostituicao-nas-bases-militares/.

57 Cori Bush et. al., “Calling for an Immediate De-escalation and Cease-Fire in Israel and Occupied Palestine”, Pub. L. No. H.Res.786, 118º Congresso (2023-2024) (2023), https://www.congress.gov/bill/118th-congress/house-resolution/786/cosponsors.

58 Rosalind C. Morris, “Ursprüngliche Akkumulation: The Secret of an Originary Mistranslation”, boundary 2 43, no. 3 (1 de agosto de 2016), p. 29–77, https://doi.org/10.1215/01903659-3572418.

59 Daniel Larsen, Plotting for Peace: American Peacemakers, British Codebreakers, and Britain at War, 1914-1917, (Cambridge: Cambridge University Press, 2021), https://doi.org/10.1017/9781108761833.

60 Lênin, Imperialism; Rudolf Hilferding, Finance Capital: A Study of the Latest Phase of Capitalist Development (Londres: Routledge & Kegan Paul, 1985).

61 Vladimir Lenin, “Imperialism and the Split in Socialism”, em V. I. Lenin Collected Works, vol. 23 (Moscou: Progress Publishers, 1964), 114, https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1916/oct/x01.htm.

62 “Lista de participantes da Reunião de Bilderberg de 2023”, Public Intelligence, 19 de maio de 2023, https://publicintelligence.net/2023-bilderberg-participant-list/.

63 Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, O golpe contra o Terceiro Mundo: Chile, 1973, dossiê no. 68, 5 de setembro de 2023, https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-68-golpe-contra-terceiro-mundo-chile-1973/.

64 Nalu Faria, “O Feminismo Latino-Americano e Caribenho: Perspectivas Diante Do Neoliberalismo”, em Desafios Do Livre Mercado Para O Feminismo, Cadernos Sempreviva 9 (São Paulo: SOF, 2005).

65 Assange, When Google Met WikiLeaks.

66 Michael Hudson, Super Imperialism: The Origin and Fundamentals of US World Dominance (Londres: Pluto Press, 2003).

67 “The Transistor Revolution: How Transistors Changed the World”, Arrow, 22 de dezembro de 2022, https://www.arrow.com/en/research-and-events/articles/the-transistor-revolution-how-transistors-changed-the-world; Omar Sohail, “Apple’s M3 Max Has the Highest Generational Leap in Transistor Count with a 37 Percent Difference Compared to the M2 Max”, WCCF Tech, 3 de novembro de 2023, https://wccftech.com/apple-m3-max-highest-transistor-count-for-any-m-series-chip/.

68 2023 Year in Review – India Review, Comscore, dezembro de 2023, https://www.comscore.com/Insights/Events-and-Webinars/Webinar/2023/2023-Year-in-Review-India-Edition.

69 Kevin Townsend, “Bad Bots Account for 73% of Internet Traffic: Analysis”, Security Week, 16 de novembro de 2023, https://www.securityweek.com/bad-bots-account-for-73-of-internet-traffic-analysis/; Unheard Voices: Evaluating Five Years of pro-Western Covert Influence Operations, Graphika e Stanford Internet Observatory, 24 de agosto de 2022, https://public-assets.graphika.com/reports/graphika_stanford_internet_observatory_report_unheard_voice.pdf.

70 Janan Ganesh, “America’s Cultural Supremacy and Geopolitical Weakness”, Financial Times, 19 de dezembro de 2023, https://www.ft.com/content/dce07860-f39e-432b-a0f6-1a2124e4e1a3.

71 Ver Karl Marx, “Component Parts of Bank Capital”, em Capital, vol. III (Nova York: International Publishers, 1995), https://www.marxists.org/archive/marx/works/1894-c3/ch15.htm, p. 336-337.

72 “OTC Derivatives Statistics at End-June 2023”, Banco de Pagamentos Internacionais, 16 de novembro de 2023, https://www.bis.org/publ/otc_hy2311.pdf.

73 Estatísticas de Derivativos OTC no final de junho de 2023.

74 Samir Amin, “How to Defeat the Collective Imperialism of the Triad”, Monthly Review, 5 de dezembro de 2022, https://mronline.org/2022/12/05/samir-amin-how-to-defeat-the-collective-imperialism-of-the-triad/; Samir Amin, Globalisation and Its Alternative, entrevista por Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 30 de outubro de 2018, https://thetricontinental.org/globalisation-and-its-alternative/.

75“Religion and the Founding of the American Republic”, Exposições, Biblioteca do Congresso, https://www.loc.gov/exhibits/religion/rel01.html.

76 Mohammad Shahid Alam, Israeli Exceptionalism: The Destabilising Logic of Zionism (Nova York: Palgrave Macmillan, 2009), p. 109.

77 Stuart Laycock, All the Countries We’ve Ever Invaded: And the Few We Never Got Round To (Londres: The History Press, 2012).

78 ‘Israel Hits Gaza Strip with the Equivalent of Two Nuclear Bombs’, Euro-Mediterranean Human Rights Monitor, 2 de novembro de 2023, https://euromedmonitor.org/en/article/5908/Israel-hit-Gaza-Strip-with-the-equivalent-of-two-nuclear-bombs.

79 Jeremy M. Sharp, US Foreign Aid to Israel, Congressional Research Service, 1 de março de 2023, https://crsreports.congress.gov/product/pdf/RL/RL33222/, i.

80 “How Much Aid Does the US Give to Israel?”, USA FACTS, 12 de outubro de 2023, https://usafacts.org/articles/how-much-military-aid-does-the-us-give-to-israel/.

81 Vladimir Lênin, “Once Again on the Trade Unions: The Current Situation and the Mistakes of Trotsky and Bukharin”, em V. I. Lenin Collected Works, vol. 32 (Moscou: Progress Publishers, 1965), p. 70-107.

82 Justin Cremer, “Denmark Is One of the NSA’s ‘9-Eyes'”, The Copenhagen Post, 4 de novembro de 2013, https://web.archive.org/web/20131219010450/http:/cphpost.dk/news/denmark-is-one-of-the-nsas-9-eyes.7611.html

83 Ryan Gallagher, “The Powerful Global Spy Alliance You Never Knew Existed”, The Intercept, 1o de março de 2018, https://theintercept.com/2018/03/01/nsa-global-surveillance-sigint-seniors/.

84 Office of Press Secretary, ‘Remarks By President Obama to the Australian Parliament’, The White House, 17 November 2011, https://obamawhitehouse.archives.gov/the-press-office/2011/11/17/remarks-president-obama-australian-parliament.

85 NT: Alemanha Oriental.

86 “Japan Defence: China Threat Prompts Plan to Double Military Spending”, BBC, 16 de dezembro de 2022, https://www.bbc.com/news/world-asia-64001554.

87 De acordo com o Banco Mundial, “economias de alta renda são aquelas com um RNB per capita de US$ 13.846 ou mais”. Ver “World Bank Country and Lending Groups”, Banco Mundial, acessado em 20 de dezembro de 2023, https://datahelpdesk.worldbank.org/knowledgebase/articles/906519#High_income; “GNI per Capita, Atlas Method (Current US$) – China”, Dados do Banco Mundial, acessado em 20 de dezembro de 2023, https://data.worldbank.org/indicator/NY.GNP.PCAP.CD?end=2022&locations=CN&start=2005.

88 Xi Jinping, discurso na Cerimônia de Encerramento do Fórum Empresarial do Brics 2023. Texto completo: https://newsaf.cgtn.com/news/2023-08-23/Full-text-Xi-Jinping-s-speech-at-the-Closing-Ceremony-of-the-Brics-Business-Forum-2023-1mulkZSzuso/index.html

89 Para saber mais, ver Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, O mundo precisa de uma nova teoria socialista do desenvolvimento, dossiê no. 66, 4 de julho de 2023, https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-66-teoria-do-desenvolvimento/.

90 Larissa Mies Bombardi, Agrotóxicos e Colonialismo Químico (São Paulo, SP: Elefante, 2023).

91 Larissa Packer e Camila Moreno, ed., O Brasil Na Retomada Verde: Integrar Para Entregar (Brasília: Grupo Carta de Belém, 2021).

92 Elaboração própria com base em dados do Banco Mundial.

93 Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Servir ao povo: a erradicação da pobreza extrema na China, Estudos Socialismo em Construção no. 1, 23 de julho de 2021, https://thetricontinental.org/pt-pt/estudos-1-socialismo-em-construcao/.

94 Xi Jinping, Hold High the Great Banner of Socialism with Chinese Characteristics and Strive in Unity to Build a Modern Socialist Country in All Respects, relatório para o 20º Congresso Nacional do Partido Comunista da China, 16 de outubro de 2022, http://my.china-embassy.gov.cn/eng/zgxw/202210/t20221026_10792358.htm.

95 Karl Marx e Friedrich Engels, The Communist Manifesto, 22ª impressão da edição do 100º aniversário (Nova York: International Publishers, 1979).

96 Bureau of Political-Military Affairs, “US Security Cooperation with Ukraine”, Departamento de Estado dos EUA, 12 de dezembro de 2023, https://www.state.gov/u-s-security-cooperation-with-ukraine/.

97 Joe Biden, “Remarks by President Biden on the End of the War in Afghanistan”, Casa Branca, 31 de agosto de 2021, https://www.whitehouse.gov/briefing-room/speeches-remarks/2021/08/31/remarks-by-president-biden-on-the-end-of-the-war-in-afghanistan/.

98 Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Dossiê 3: A guerra sangrenta e implacável da Síria, dossiê no. 3, 5 de abril de 2018, https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-3-a-guerra-sangrenta-e-implacavel-da-siria/.

99 “Manufacturing, Value Added (% Of GDP) – South Africa”, Dados do Banco Mundial, acessado em 20 de dezembro de 2023, https://data.worldbank.org/indicator/NV.IND.MANF.ZS?locations=ZA.

100 Rodríguez, “The Human Consequences of Economic Sanctions”.

101 Tricontinental: Institute for Social Research, ‘The Emergence of a New Non-Alignment’, newsletter no. 24, 15 June 2023, https://thetricontinental.org/newsletterissue/new-non-alignment/.

102 Patrick Wintour, “Gulf States Fend off Call From Iran to Arm Palestinians at Riyadh Summit”, The Guardian, 12 de novembro de 2023, https://www.theguardian.com/world/2023/nov/12/gulf-states-fend-off-call-from-iran-to-arm-palestinians-at-riyadh-summit.

103 Elaboração própria com base em dados do Banco Mundial.

104 Patrick Wintour, “Gulf States Fend off Call From Iran to Arm Palestinians at Riyadh Summit”, The Guardian, 12 de novembro de 2023, https://www.theguardian.com/world/2023/nov/12/gulf-states-fend-off-call-from-iran-to-arm-palestinians-at-riyadh-summit.

105 “Exports of Goods and Services (Current US$) – Indonesia”, Dados do Banco Mundial, acessado em 20 de dezembro de 2023, https://data.worldbank.org/indicator/NE.EXP.GNFS.CN?locations=ID.

106 Daniel Kritenbrink et al., “Joint Statement on the United States-Indonesia Senior Officials’ 2+2 Foreign Policy and Defense Dialogue”, Departamento de Defesa dos EUA, 23 de outubro de 2023, https://www.defense.gov/News/Releases/Release/Article/3566363/joint-statement-on-the-united-states-indonesia-senior-officials-22-foreign-poli/; “US Embassy Tracked Indonesia Mass Murder 1965”, Arquivo de Segurança Nacional, 17 de outubro de 2017, https://nsarchive.gwu.edu/briefing-book/indonesia/2017-10-17/indonesia-mass-murder-1965-us-embassy-files.

107 Ana Esther Ceceña e David Rodriguez, “La Guerra Contra El Narco En México Como Política de Reordenamiento Social”, OLAG, no 157 (2022), https://geopolitica.iiec.unam.mx/index.php/node/1294.

108 Timothy A. Wise, “The US Assault on Mexico’s Food Sovereignty”, Global Issues, 6 de junho de 2023, https://www.globalissues.org/news/2023/06/06/33954.

109 Chaba Brahim, “‘Até que nossos territórios sejam livres’: mulheres do Saara Ocidental em luta permanente”, Capire, 18 de fevereiro de 2021, https://capiremov.org/entrevista/ate-que-nossos-territorios-sejam-livres/.

110 “The Spirit of Camp David: Joint Statement of Japan, the Republic of Korea, and the United States”, declaração à imprensa, Casa Branca, https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2023/08/18/the-spirit-of-camp-david-joint-statement-of-japan-the-republic-of-korea-and-the-united-states/.

111 Shanna Khayat, “GSOMIA vs. TISA: What Is the Big Deal?”, Fórum do Pacífico, 10 de fevereiro de 2020, https://pacforum.org/publication/yl-blog-19-gsomia-vs-tisa-what-is-the-big-deal.

112 Os dados e gráficos desta seção do documento baseiam-se em grande parte na pesquisa publicada pelo economista John Ross.

113 Calculado por John Ross a partir de One Hundred Years of Economic Statistics: United Kingdom, United States of America, Australia, Canada, France, Germany, Italy, Japan, and Sweden, compilado por T. Liesner (The Economist, 1989) e “International Transactions”, Tabela 1, Escritório de Dados de Análise Econômica, acessado em 13 de novembro de 2022, https://www.bea.gov/data/intl-trade-investment/international-transactions.

114 Lênin, “Once Again on the Trade Unions”.

115 Atish Rex Ghosh e Uma Ramakrishnan, “Current Account Deficits”, Fundo Monetário Internacional, acessado em 7 de dezembro de 2023, https://www.imf.org/en/Publications/fandd/issues/Series/Back-to-Basics/Current-Account-Deficits.

116 Hudson, Super Imperialism, 77.

117 Langston Hughes, The Collected Poems of Langston Hughes, 1ª edição (Nova York: Knopf, distribuído pela Random House, 1994).

118 Vladimir Putin, discurso proferido no Conselho de Segurança de Munique, Munique, Alemanha, 10 de fevereiro de 2007, https://is.muni.cz/th/xlghl/DP_Fillinger_Speeches.pdf.

119 Para entender por que evitamos usar os termos “grande recessão” ou “grande crise financeira”, ver estudo: O mundo em depressão econômica: uma análise marxista da crise, caderno no. 4, 10 de outubro de 2023, https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-caderno-4-crise-economica/.

120 Independent Voter Project, “DNC to Court: We Are a Private Corporation With No Obligation to Follow Our Rules”, Independent Voter News, 14 de agosto de 2022, https://ivn.us/posts/dnc-to-court-we-are-a-private-corporation-with-no-obligation-to-follow-our-rules.

121 Associated Press, “Many Who Met with Clinton as Secretary of State Donated to Foundation”, CNBC, 23 de agosto de 2016, https://www.cnbc.com/2016/08/23/most-of-those-who-met-with-clinton-as-secretary-of-state-donated-to-foundation.html.

122 Joseph A. Schumpeter, Capitalism, Socialism, and Democracy (Nova York: Harper Perennial Modern Thought, 2008).

123 The Military Balance 2022, Instituto Internacional de Estudos de Segurança, 15 de fevereiro de 2023, https://www.iiss.org/en/publications/the-military-balance/.

124 Vijay Prashad, The Poorer Nations: A Possible History of the Global South (Londres  e Nova York: Verso, 2014).

125 A. De La Cruz, A. Medina e Y. Tang, “Owners of the World’s Listed Companies”, Série de Mercado de Capitais da OCDEOECD Capital Market Series, 17 de outubro de 2019, https://www.oecd.org/corporate/Owners-of-the-Worlds-Listed-Companies.htm.

126 Who Owns the German DAX? The Ownership Structure of the German DAX 30 in 2020 – A Joint Study of IHS Markit and DIRK, IHS Markit, junho de 2021, https://cdn.ihsmarkit.com/www/pdf/0621/DAX-Study-2020—DIRK-Conference-June-2021_IHS-Markit.pdf.

127 Henrik Ahlers, Wem gehört der DAX? Analyse der Aktionärsstruktur der im Deutschen Aktienindex vertretenen Unternehmen [Quem é o dono do DAX? Análise da estrutura de acionistas das empresas no DAXem 2018 – versão resumida] (Ernst & Young, julho de 2023), https://www.ey.com/de_de/forms/download-forms/2023/07/wem-gehoert-der-dax-2023.

128   Quem é o dono do DAX alemão?

129 “Foreign Direct Investment, Net Inflows (BoP, Current US$) – Germany”, Dados do Banco Mundial, acessado em 20 de dezembro de 2023, https://data.worldbank.org/indicator/BX.KLT.DINV.CD.WD?end=2022&locations=DE&start=1971.

130 John Ross, 事实表明,中国经济表现继续远优于G7’事实表明,中国经济表现继续远优于G7国家 [Fatos mostram que a economia da China continua a superar com folga as economias do G7]”, Weibo (blog), 12 de abril de 2023, https://weibo.com/ttarticle/p/show?id=2309404975244548113063.

131 “US Companies Dominating European TV Market”, Moonshot News (blog), 20 de janeiro de 2022, https://moonshot.news/news/media-news/us-companies-dominating-european-tv-market/; Agnes Schneeberger, “Audiovisual Media Services in Europe – 2023 edition”, junho de 2023, Observatório Audiovisual Europeu e Conselho da Europa, https://rm.coe.int/audiovisual-media-services-in-europe-2023-edition-a-schneeberger/1680abc9bc#:~:text=Around%20one%20in%20five%20(18,in%20documentary%20and%20children’s%20programming, 7.

132 Hudson, Super Imperialism.

133 ‘Namibia Condemns Germany for Defending Israel in ICJ Genocide Case’, Al Jazeera, 14 January 2024, https://www.aljazeera.com/news/2024/1/14/namibia-condemns-germany-for-defending-israel-in-icj-genocide-case.

134 Marx, “Exposition of the Internal Contradictions of the Law”.

135 David Hoffman, “Russia’s Billionaire Matchmaker To the West”, Washington Post, 24 de setembro de 2002, https://www.washingtonpost.com/archive/lifestyle/2002/09/24/russias-billionaire-matchmaker-to-the-west/e6c98740-ac21-4933-a445-674ea6149102.

136 Brian D. Blankenship, “NATO and the Persistent Problem of German Defense Spending”, Cornell University Press (blog), 1 de novembro de 2023, https://www.cornellpress.cornell.edu/burden-sharing-dilemma-coercive-diplomacy-brian-blankenship-11-01-2023/.

137 Mari Yamguchi, “Japan to Jointly Develop New Fighter Jet with UK, Italy’, Associated Press, 9 de dezembro de 2022, https://apnews.com/article/business-japan-united-kingdom-government-states-219e0adadd5f14b115766141cd0c5f6f.

138 Valerie Insinna, “US Gives the Green Light to Japan’s $23B F-35 Buy”, 10 de julho de 2020, https://www.defensenews.com/smr/2020/07/09/us-gives-the-green-light-to-japans-massive-23b-f-35-buy/.

139 Se houver evidências de que a indústria tem uma conversão significativamente menor do que outros elementos do PIB, os números da PPC que apresentamos superestimariam as porcentagens do Sul Global. Acreditamos que, apesar desse possível erro, a direção dessa abordagem oferece contribuições úteis. A composição percentual do PIB por setor depende dos dados de preço usados para medir o valor agregado de cada um deles. Os fatores de conversão de PPC são estimativas estatísticas baseadas em cestas de bens e serviços relativos a anos de referência que são posteriormente aplicadas ao PIB relativas às estimativas de PIB (PPC).

140 Barbara Kollmeyer, “‘Right Now There Are Changes, the Likes of Which We Haven’t Seen in 100 Years.’ Here’s What China’s Xi Said to Putin before Leaving Russia”, Market Watch, 22 de março de 2023, https://www.marketwatch.com/story/right-now-there-are-changes-the-likes-of-which-we-havent-seen-in-100-years-what-china-president-xi-said-to-putin-before-leaving-russia-d15150ce.

141 Agnieszka Bryc, “The Russian Federation and Reshaping a Post-Cold War Order”, Politeja 5, no. 62 (31 de outubro de 2019), p. 161–74, https://doi.org/10.12797/Politeja.16.2019.62.09;  Vladimir Putin, discurso proferido no Conselho de Segurança de Munique, Munique, Alemanha, 10 de fevereiro de 2007, https://is.muni.cz/th/xlghl/DP_Fillinger_Speeches.pdf.

142 “Special Report: Cables Show US Sizing up China’s Next Leader”, Reuters, 17 de fevereiro de 2011, https://www.reuters.comarticle/idUSTRE71G5WH/.

143 Luke Hunt, ‘The World’s Gaze Turns to the South Pacific”, The Diplomat, 4 de setembro de 2012, https://thediplomat.com/2012/09/the-worlds-gaze-turns-to-the-south-pacific/.

144 Xi Jinping, “Remarks by President Obama and President Xi Jinping in Joint Press Conference”, 12 de novembro de 2014, Casa Branca, https://obamawhitehouse.archives.gov/the-press-office/2014/11/12/remarks-president-obama-and-president-xi-jinping-joint-press-conference#:~:text=At%20the%20same%20time%2C%20I,instead%20of%20mutually%20exclusive%20ones.

145 “China to Leapfrog US as World’s Biggest Economy by 2028 – Think Tank”, Reuters, 26 de dezembro de 2020, https://www.reuters.com/article/idUSKBN290003/.

146 Zbigniew Brzezinski, The Grand Chessboard: American Primacy and Its Geostrategic Imperatives (New York: Basic Books, 1997), 55; 30–31.

147 Editores, “Notes from the Editors”, Monthly Review 75, no. 4 (1 de setembro de 2023), https://monthlyreview.org/2023/09/01/mr-075-04-2023-08_0/;  Jake Sullivan, “Remarks by National Security Advisor Jake Sullivan on Renewing American Economic Leadership at the Brookings Institution”, Casa Branca, 27 de abril de 2023, https://www.whitehouse.gov/briefing-room/speeches-remarks/2023/04/27/remarks-by-national-security-advisor-jake-sullivan-on-renewing-american-economic-leadership-at-the-brookings-institution/.

148 Nomaan Merchant et al., “US Announces $345 Million Military Aid Package for Taiwan”, TIME, 29 de julho de 2023, https://time.com/6299419/us-military-aid-taiwan/.

149 Apesar das recentes denúncias de práticas fraudulentas, a economia comportamental foi utilizada com sucesso como arma pela inteligência dos EUA em campanhas de mídia on-line.

150 Daniel McAdams, “‘What Is The Empire’s Strategy?” – Col Lawrence Wilkerson Speech At RPI Media & War Conference”, Instituto Ron Paul pela Paz e a Prosperidade, 22 de agosto de 2018, https://ronpaulinstitute.org/what-is-the-empires-strategy-col-lawrence-wilkerson-speech-at-rpi-media-war-conference/.

151 Colum Lynch, “State Department Lawyers Concluded Insufficient Evidence to Prove Genocide in China”, Foreign Policy, 19 de fevereiro de 2021, https://foreignpolicy.com/2021/02/19/china-uighurs-genocide-us-pompeo-blinken/; ‘Textile Exports by Country 2023’, World Population Review, acessado em 26 de dezembro de 2023, https://worldpopulationreview.com/country-rankings/textile-exports-by-country; “China’s Major Exports by Quantity and Value, December 2022 (in USD)”, Administração Geral de Alfândegas, República Popular da China, 8 de janeiro de 2023, http://english.customs.gov.cn/Statics/aeb5aefa-b537-4ef3-8e13-59244228cb0e.html.

152 Li Xuanmin, “A Decade of BRI Development Transforms China’s Xinjiang Region into a Core Area of the Silk Road Economic Belt – Global Times”, Global Times, 1 de outubro de 2023, https://www.globaltimes.cn/page/202310/1299158.shtml.

153  Gregory C. Allen, “Choking off China’s Access to the Future of AI”, Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, 11 de outubro de 2023, https://www.csis.org/analysis/choking-chinas-access-future-ai.

154 Alex W. Palmer, ” ‘An Act of War’: Inside America’s Silicon Blockade Against China”, The New York Times, 12 de julho de 2023, https://www.nytimes.com/2023/07/12/magazine/semiconductor-chips-us-china.html.

155 Xinhua, “The Belt and Road Initiative: A Key Pillar of the Global Community of Shared Future”, Escritório de Informações do Conselho de Estado, República Popular da China, 10 de outubro de 2023, http://english.scio.gov.cn/whitepapers/2023-10/10/content_116735061_5.htm.

156 David Choi, “US, South Korean, Canadian Warships Train in Yellow Sea Ahead of Incheon Anniversary”, Stars and Stripes, 15 de setembro de 2023, https://www.stripes.com/branches/navy/2023-09-15/trilateral-naval-drill-yellow-sea-incheon-11383145.html.

157 An Dong, ‘黄海军演仅5小时,美准航母跑路,舰载机坠毁,美军被迫发帖寻找 [Apenas cinco horas depois de inicar exercício naval no Mar Amarelo, pseudo-porta-aviões dos EUA foge, carregador se acidenta e exército é forçado a mandar buscas para encontrá-lo]”, IFENG, 18 de setembro de 2023, https://i.ifeng.com/c/8TBMF5tH2bY.

158 “Investor FAQs”, Novo Banco de Desenvolvimento, acessado em 26 de novembro de 2023, https://www.ndb.int/investor-relations/inverstor-faqs/; Centro de Informaçeõs do Brics, ‘Treaty for the Establishment of a Brics Contingent Reserve Arrangement’, Universidade de Toronto, acessado em 26 de novembro de 2023, http://www.brics.utoronto.ca/docs/140715-treaty.html.

159 “Answers to the Questions of the Video Conference ‘SCO – Shaping Eurasia'”, Organização de Cooperação de Xangai, 27 de outubro de 2020, https://eng.sectsco.org/20201027/686658.html.

160 Christoph Nedopil Wang, “China Belt and Road Initiative (BRI) Investment Report 2023 H1”, Centro de Desenvolvimento e Finanças Verdes, 1 de agosto de 2023, https://greenfdc.org/china-belt-and-road-initiative-bri-investment-report-2023-h1/.

161 Mao Tsé-Tung, “Speech at the Wuchang Meeting of the Political Bureau of the Central Committee of the Communist Party of China”, em Selected Works of Mao Tse-Tung, vol. IV (Pequim: Foreign Languages Press, 1958), p. 98-99, https://www.marxists.org/reference/archive/mao/works/red-book/ch06.htm.

O quarto número da edição internacional de Wenhua Zongheng (文化纵横) traça a evolução histórica do socialismo e identifica as novas formas que estão surgindo. A revista inclui dois artigos que analisam a economia socialista de mercado da China, seu impacto sobre o movimento socialista global e como poderia superar o capitalismo.

“As novas formas de socialismo no século XXI” (新时代,新自觉——如何在当下重新思考社会主义) foi publicado originalmente no número 3 (2023) da Wenhua Zongheng (文化纵横).

O capitalismo liberal está diante de uma crise, depois de três décadas de expansão após o fim da Guerra Fria. Em meio a grandes desafios impostos pela recessão econômica, por conflitos geopolíticos, por clivagens sociais e pelas novas tecnologias disruptivas, um clima de incertezas envolve o mundo. Nessa conjuntura histórica, é preciso revitalizar o socialismo e desenvolver teorias socialistas ainda mais adequadas às novas condições do século XXI, pavimentando o caminho para um novo futuro para a humanidade.

Um longo percurso foi trilhado desde que Marx e Engels transformaram o socialismo, então utopia, em ciência, tal como sintetizado celebremente no Manifesto Comunista, em meados do século XIX. Nos últimos 175 anos, geração após geração de socialistas seguiram os passos de Marx e Engels, atuando sem cessar para elevar o socialismo de um conceito meramente ideológico à luta de classes, organizações políticas, revoluções sociais, governos e projetos civilizatórios. O desenvolvimento histórico do socialismo pode ser dividido em três modelos principais.

O socialismo clássico nos centros do capitalismo europeu

O movimento socialista se originou na Europa. Não foi coincidência sua transformação, de utopia em ciência, também ter acontecido ali. A Europa se beneficiou pelo capitalismo e se tornou a região mais desenvolvida do mundo. Com as vantagens decorrentes de terem sido os precursores da Revolução Industrial, os principais países europeus criaram uma nova e poderosa força produtiva.

Internamente, uma nova classe tornou-se dominante: a burguesia. Por meio de diferentes modelos de revolução burguesa, a burguesia tomou o poder sucessivamente em uma série de países europeus, criando estruturas sociais, políticas, mercantis e culturais, incluindo o Estado-nação moderno. Os avanços e as transformações do início da modernização capitalista finalmente viraram a página um tanto sombria da era medieval na Europa.

Externamente, os países europeus que lideravam a modernização também criavam as condições para uma globalização centrada na Europa que duraria séculos, por meio da expansão colonial permanente e de instrumentos abrangentes, incluindo guerras militares, imposição religiosa e agressão cultural. Vale a pena observar que, durante esse período, os desenvolvimentos interno e externo do capitalismo europeu estavam interligados e mutuamente condicionados. O desenvolvimento interno da política, da economia, da cultura e da sociedade impulsionou e conduziu a expansão externa. Por sua vez, a expansão externa sustentou e fortaleceu enormemente o desenvolvimento interno.

Por trás das realizações impressionantes do capitalismo europeu, no entanto, uma nova ideologia socialista era silenciosamente gestada e ganhava terreno. O desenvolvimento econômico e político do capitalismo europeu criou as condições sociais para o surgimento do marxismo. O crescimento da classe trabalhadora e o surgimento do movimento operário em luta por seus próprios interesses forneceram a base de classe. O florescimento das ciências sociais, da filosofia e da economia proporcionou o ambiente intelectual. Juntos, esses fatores convergiram para a publicação do Manifesto Comunista e para o nascimento do socialismo científico.

Marx, Engels e seus contemporâneos, fundadores do socialismo científico, generosamente reconheceram e felicitaram as realizações do desenvolvimento capitalista. No entanto, sua crítica implacável ao capitalismo europeu era o que os diferenciava da maioria de seus pares, assim como a firme convicção de que o sistema capitalista, aparentemente próspero, conduziria ao seu próprio ocaso. Esses socialistas apontaram corajosamente as profundas deficiências e contradições inerentes ao capitalismo, que podem apenas ser aliviadas, mas não erradicadas por esse sistema, apesar do desenvolvimento das forças produtivas e da riqueza material acumuladada, assim como dos avanços associados na política, na sociedade e na cultura. Dessa forma, o capitalismo nunca poderia ser considerado a forma definitiva do desenvolvimento social humano. Ele surgiu na história e será negado pela história.

Os socialistas daquela época acreditavam que a classe trabalhadora e outras forças sociais oprimidas tinham em suas mãos o poder de provocar mudanças e transcender o capitalismo. Para eles, era do interesse da classe trabalhadora buscar uma revolução e desmantelar o velho mundo e o sistema capitalista, em vez de se submeter à contínua exploração e opressão pelas mãos da burguesia. Com lutas políticas e revoluções sociais, as classes oprimidas iriam derrubar a burguesia, se tornariam a classe dominante e iriam construir um sistema mais racional e humano, em substituição ao capitalismo. O sistema ideal era o socialismo, que eventualmente avançaria para uma forma mais desenvolvida, o comunismo. Embora os detalhes precisos dessa sociedade ideal futura não pudessem ser descritos, esses pensadores argumentaram que a classe trabalhadora e seus partidos políticos inevitavelmente avançariam nesse rumo.

Mais importante que isso, no processo de crítica ao capitalismo e de construção de argumentos a favor do socialismo, essa geração de socialistas analisou detidamente as leis gerais do desenvolvimento social humano e formulou uma visão de mundo e uma metodologia cujo cerne era o materialismo histórico. Isso possibilitou que gerações sucessivas desenvolvessem compreensões mais precisas do mundo e do movimento da história humana.

Durante esse período, o modelo clássico de pensamento socialista desenvolvido na Europa consistia em três elementos principais:

1. O socialismo só pode surgir nas sociedades onde o capitalismo está mais desenvolvido. As forças produtivas, as formas políticas e os recursos ideológicos necessários para construir o socialismo são gerados dentro de formas avançadas de capitalismo.

2. O capitalismo pode e inevitavelmente será negado e transcendido. Não importa por quanto tempo o capitalismo se sustente, ele acabará sendo apenas um fragmento da história humana. Devido às suas contradições inerentes, o capitalismo não será um sistema eterno, ainda que possa fazer melhorias internas acompanhando a evolução de suas circunstâncias. Após cumprir sua missão histórica, o capitalismo será relegado à história.

3. O fim do capitalismo é o ponto de partida do socialismo. O socialismo será construído sobre as forças produtivas, a riqueza material, o desenvolvimento intelectual e a modernização já criadas pela humanidade. É precisamente com base nesses recursos acumulados no capitalismo que o socialismo busca resolver tensões e conflitos entre as forças produtivas e as relações de produção, superar as restrições da propriedade privada dos meios de produção e enfrentar todas as contradições que surgem dessa ordem. Sendo o socialismo, de fato, a crítica e a negação do capitalismo, ele também busca alcançar uma nova transcendência e sublimação. Quanto mais o capitalismo se desenvolve, mais ele prepara as condições materiais, entre outras, para o socialismo. Da mesma forma, à medida que as forças produtivas do capitalismo avançam, as relações de produção se tornam mais complexas, e a governança estatal se torna mais sofisticada, sendo cada vez mais desafiador alcançar maior produtividade, desenvolver forças produtivas mais poderosas, garantir uma verdadeira igualdade e construir uma sociedade harmoniosa. Em outras palavras, a necessidade de construir uma nova sociedade socialista cresce junto com o capitalismo. A humanidade é capaz de construir uma sociedade melhor.

Os socialistas clássicos oferecem uma narrativa abrangente e de imensa vitalidade, iluminando o caminho para a humanidade atravessar a selva do capitalismo e inspirando os povos a se envolverem na longa luta histórica rumo ao socialismo.

Formas transformadoras do socialismo em colônias e semi-colônias

Durante o século XX, o socialismo se desenvolveu de maneira significativamente diferente das expectativas do socialismo clássico. Em vez de progredir linearmente, o desenvolvimento socialista ocorreu alternando entre altos e baixos, incluindo o retrocesso em revoluções socialistas bem sucedidas na União Soviética e no Leste Europeu.

O socialismo não surgiu onde era esperado, ou seja, nos países capitalistas desenvolvidos da Europa. No entanto, novas áreas de crescimento surgiram além da visão dos pensadores marxistas clássicos. O socialismo não emergiu dentro do capitalismo global, mas fora dele; não nos países com as forças produtivas mais avançadas, mas nas regiões economicamente subdesenvolvidas; não no Ocidente, mas em países não ocidentais; não das tradicionais lutas de classes urbanas, mas dos movimentos de libertação nacional nas colônias e semi-colônias então sob o domínio do imperialismo. A lógica e o significado essencial do socialismo foram redefinidos. As conquistas extraordinárias do socialismo na Rússia, na China e em outros lugares transcenderam o marxismo clássico e constituíram uma forma distinta de socialismo transformador.

Na perspectiva do pensamento socialista, uma característica essencial do capitalismo é sua conquista do mundo. A invasão e o saqueio de vastas regiões não ocidentais são necessários para sustentar a prosperidade e o conforto dos centros capitalistas da Europa. O desenvolvimento de países ricos é construído sobre o subdesenvolvimento de países pobres. Dessa forma, o capitalismo não apenas cria desigualdade interna, mas também desigualdade externa. Os pensadores marxistas clássicos reconheceram o impacto destrutivo da expansão colonial capitalista no vasto mundo não ocidental, mas, devido a uma série de condições históricas objetivas, não desenvolveram uma compreensão sistemática e detalhada desse assunto. Apenas com Lenin e com os teóricos marxistas posteriores a ele, as lutas de libertação nacional das colônias e semi-colônias contra a agressão capitalista e imperialista receberam maior atenção. Refletindo essa maior ênfase, a proposição clássica “trabalhadores do mundo, uni-vos!” foi expandida para “trabalhadores do mundo e povos oprimidos, uni-vos!”. Embora o foco da teoria e da prática socialistas na época ainda estivesse nos países capitalistas centrais, a influência do movimento socialista europeu nas vastas colônias e semi-colônias continuou crescendo. As críticas socialistas ao capitalismo, o ideal e a busca de uma sociedade futura melhor, e a coragem e determinação da classe trabalhadora e de seus partidos para derrubar o velho mundo, foram fontes importantes de inspiração nos países colonizados. O socialismo demonstrou a viabilidade de que os povos oprimidos fizessem novas escolhas e construíssem novas sociedades, tornando-se, assim, um recurso intelectual extremamente importante para esses países em sua resistência contra a agressão e a conquista capitalista.

Uma nova e transformadora forma de socialismo se desenvolveu nas colônias e semi-colônias. O desenvolvimento do socialismo na China ilustra muitas das mudanças significativas entre a forma clássica e a forma transformadora. Essa nova forma surgiu da interseção e integração entre a lógica própria de desenvolvimento chinês e a lógica do desenvolvimento socialista.

No caso da China, após estar isolada no Oriente por milhares de anos, as portas do país foram violentamente abertas por potências ocidentais superiores economicamente, militarmente, tecnologicamente e em termos de governança. Essa turbulência não foi apenas o resultado de uma expedição ocidental contra um antigo país oriental, mas também um golpe destrutivo de um sistema capitalista ascendente contra uma ordem feudal em declínio. A humilhação da China, o sofrimento de seu povo e a mancha na civilização chinesa provocaram resistência nacional. Aqueles que buscavam a libertação nacional e a revitalização estavam desesperadamente em busca de novas fontes de inspiração intelectual. Diante do dilema de estagnação intelectual interna, muitos intelectuais chineses voltaram seu olhar para fora, especialmente em direção aos países ocidentais altamente desenvolvidos. Diversas ideias ocidentais foram introduzidas na China, sendo o socialismo e o marxismo apenas uma parte delas. No entanto, o socialismo foi a ideia que mais ressoou entre o povo chinês.

O encontro e integração da China com o socialismo foram o resultado de condições políticas, temporais e espaciais específicas. Em particular, três fatores levaram o povo chinês a abraçar o socialismo.

1. As regiões periféricas do mundo, incluindo a China, eram inerentemente contrárias à agressão dos países capitalistas ocidentais. Sendo uma civilização antiga com uma longa história própria, a China rechaçou a noção de que precisava ser descoberta, iluminada ou civilizada pelas potências do Ocidente. Após ter sido invadida e saqueada pelos países capitalistas ocidentais nos séculos XIX e XX, a China se inclinou mais ao socialismo.

2. O socialismo se identificou com os interesses dos oprimidos e a eles deu prioridade, particularmente à classe trabalhadora nos países capitalistas que resistiam ao domínio burguês, assim como às colônias e semi-colônias que resistiam à conquista por países capitalistas. Como uma nação oprimida, o povo chinês naturalmente tendia a se identificar com outros povos oprimidos e, portanto, os chineses foram atraídos pelo socialismo.

3. O socialismo revelou as falhas inerentes e a decadência do capitalismo. À medida que o povo chinês aprofundava sua compreensão sobre o capitalismo ocidental, tornava-se mais nítido o lado sombrio ocultado sob sua fachada glamorosa. Isso incluía os males do comércio de escravos, a corrida global por colônias, a situação de grupos empobrecidos nos países capitalistas e, especialmente, o massacre sangrento entre os países imperialistas durante a Primeira Guerra Mundial. Essas injustiças refletiam as falhas e contradições internas dos países capitalistas, alimentando assim o anseio do povo chinês por uma sociedade melhor. O socialismo representava a possibilidade de construir uma sociedade ideal.

Além da China, muitas colônias e semi-colônias ao redor do mundo encontraram as ideias socialistas, mas não as integraram da mesma forma. Por que, então, o socialismo se enraizou na China? A chegada do socialismo na China e sua escolha pelo povo chinês apenas demonstraram a potencialidade do movimento histórico. Para transformar esse potencial em realidade e produzir resultados positivos, outras condições cruciais eram indiscutivelmente necessárias. Entre elas, a presença de uma organização de vanguarda exemplar, uma geração de jovens dispostos a sacrificar tudo, intelectuais que simpatizavam com as massas trabalhadoras e líderes com uma compreensão profunda das condições nacionais da China e da essência do marxismo. A China tinha todas essas condições no século XX. Portanto, o socialismo se enraizou e floresceu em solo chinês.

A chegada do socialismo na China mudou a natureza da transformação social no país. No esquema do capitalismo mundial, a China estava situada na periferia, subordinada ao núcleo capitalista e relegada à dominação estrangeira. O desenvolvimento e a superação do status semi-feudal e semi-colonial da China era irrelevante para os países capitalistas centrais. Estes buscavam definir os termos de qualquer transformação social na China e garantir sua condução por agentes políticos que a orientassem para a homogeneização capitalista e os interesses do seu núcleo. Esse esquema foi encerrado após a chegada do socialismo à China, à medida que emergia uma visão diferente de transformação social. O Partido Comunista da China (PCCh) tomou o lugar dos partidos políticos burgueses do país e tornou-se a liderança da transformação social da China. Nesse processo, os operários e os camponeses, juntamente com outras classes, derrubaram a burguesia e tornaram-se a força motriz da transformação social chinesa. O plano da transformação social da China foi fundamentalmente redesenhado e passou a buscar os seguintes objetivos: oposição à agressão, opressão e exploração do capitalismo estrangeiro na China; oposição ao apoio do capitalismo estrangeiro às forças reacionárias na China; fim do domínio do feudalismo, do capitalismo burocrático e do imperialismo na China; e conquista da libertação e independência nacionais. O socialismo delineou uma visão revolucionária para a China, que subverteu completamente o conteúdo e os métodos propostos pela burguesia.

A visão socialista para a transformação social também mudou o método da China para a construção de um Estado moderno. Após a fundação da República Popular da China (RPC) em 1949, o novo Estado buscou uma transição direta para o socialismo, ao invés de seguir um caminho de desenvolvimento capitalista. Consequentemente, todo o processo de construção do Estado seguiu esse princípio, moldando a construção dos sistemas político, econômico e social básicos da China. Além disso, o Estado e suas instituições foram construídos com base nas condições específicas da China e visavam garantir a soberania do povo chinês sobre o país. Entre as principais características desse processo estão: a liderança do PCCh; o sistema de congressos do povo, que se estende do nível local até o nacional; o sistema de cooperação multipartidária e consulta política, organizado na Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC)1; o sistema de autonomia regional das minorias étnicas; e o sistema de governança participativa em nível comunitário. Dessa forma, a China conseguiu construir um Estado moderno e alcançar estabilidade política de longo prazo.

Por fim, o socialismo redefiniu o método para a modernização da China. Durante a transição da humanidade de sociedades agrícolas para industriais, os países europeus lideraram o processo inicial de modernização graças à vantagem de seu protagonismo na Revolução Industrial. Durante sua expansão, esses países impuseram formas incompletas e subordinadas de modernização capitalista a muitos países em desenvolvimento, incluindo a China. Esse processo não foi suave, mas caracterizado por retrocessos, estagnação e fracassos. Após a Revolução Chinesa, a República Popular da China seguiu um caminho soberano e não capitalista em direção à modernização. O PCCh efetivamente mobilizou e organizou centenas de milhões de chineses para promover vigorosamente a industrialização do país, buscando criar a base material para o socialismo. Esse processo ocorreu em um ambiente internacional hostil e passou por uma série de reviravoltas nas décadas iniciais após a revolução. Até o final da década de 1970, foi inaugurado um novo método para a modernização da China: a economia socialista de mercado, a participação ativa na economia mundial e a busca da prosperidade comum. Após o início da reforma e abertura, a China alcançou um milagre de desenvolvimento econômico rápido e duradouro, avançando significativamente na industrialização, na urbanização, na inovação tecnológica, no desenvolvimento da economia de mercado e na promoção do comércio internacional. Esses esforços incluíram a China na onda da modernização mundial.

Os parágrafos acima apresentam um esboço geral de como novas formas de socialismo e desenvolvimento socialista emergiram, com referência particular ao caso da China. O surgimento de uma forma transformadora de socialismo na China não representa um processo geral de desenvolvimento socialista, embora possa ter implicações relevantes para outros países. Pelo contrário, o nascimento e crescimento dessa nova forma ilustram vividamente a natureza diversificada do desenvolvimento socialista.

A construção de uma nova forma de socialismo que supere o capitalismo pelo auto-aprimoramento

Em meados do século XIX, o socialismo surgiu na Europa e assumiu sua forma inicial, baseada no desenvolvimento capitalista avançado como um ponto de partida. Essa forma original não desapareceu e continua a crescer lentamente. Ela se manifesta principalmente em críticas ideológicas e culturais ao capitalismo, assim como em movimentos sociais e políticos que buscam advogar pelos interesses das classes oprimidas. No entanto, essa forma de socialismo ainda tem um longo caminho a percorrer antes de poder ascender a uma posição dominante e substituir o capitalismo. As razões para isso incluem as divisões e variações dentro do próprio movimento socialista, bem como a extraordinária resiliência e capacidade de adaptação do capitalismo. Fundamentalmente, no entanto, o socialismo não cresceu nos países capitalistas desenvolvidos do mesmo modo que cresceu nos países em desenvolvimento, devido à ausência de partidos de vanguarda nos primeiros. Como resultado, o capitalismo tem sido capaz de operar normalmente.

No século XX, o movimento socialista abriu novas oportunidades de desenvolvimento em regiões não capitalistas do mundo. Países em desenvolvimento, como a China, definiram por não seguir o caminho oferecido pelos países capitalistas centrais e romperam seus laços com o capitalismo, tornando-se novas áreas de crescimento para o socialismo. Os desafios enfrentados por esses países não poderiam ser respondidos por teorias clássicas sobre a transição direta do capitalismo para o socialismo, visto que tratavam-se de sociedades pré-capitalistas ou semi-capitalistas, e estavam situados em posições históricas de atraso relativo em termos de desenvolvimento econômico, político, cultural e social. Felizmente, eles demonstraram uma iniciativa e criatividade históricas sem precedentes ao buscar revoluções, a construção de nações e a modernização orientadas ao socialismo. Como resultado, nos países em desenvolvimento surgiram teorias e práticas completamente diferentes de construção socialista, junto com novas formas de desenvolvimento socialista.

Como será a continuidade do progresso e desenvolvimento do socialismo no século XXI? Essa questão preocupa a todos os pensadores e militantes do socialismo. É evidente que as formas já mencionadas de desenvolvimento socialista e modernização tardia permanecem importantes em países em desenvolvimento e regiões não capitalistas. Ao mesmo tempo, à medida que o socialismo continua a se desenvolver na China, uma nova forma está surgindo. Tendo alcançado a modernização socialista, as forças produtivas sociais, a capacidade tecnológica, a pujança nacional como um todo e as conquistas da China em outros aspectos do desenvolvimento estão demonstrando a possibilidade de superação do capitalismo pelo socialismo, assim como sua superioridade e potencial. Para que essa nova forma de socialismo se fortaleça, a China deve ir além de seu nível atual de desenvolvimento, para alcançar um patamar mais elevado.

Essa nova forma não pode ser simplesmente uma extensão da forma existente de socialismo transformador, mas uma forma significativamente avançada. Em certo sentido, essa nova forma implica um retorno ao marxismo clássico, pois deve enfrentar a questão de como transcender o capitalismo dos países centrais (embora o faça a partir de fora). A nova forma visa superar o capitalismo por meio do auto-aprimoramento do socialismo.

Objetivamente, essa nova forma está apenas começando a surgir. Ainda não somos capazes de compreender totalmente sua direção geral e suas leis inerentes, apenas de fornecer um esboço básico de seus contornos fundamentais. Para fortalecer essa nova forma de socialismo na China, as seguintes áreas de desenvolvimento são essenciais.

1. Desenvolver uma compreensão teórica profunda e unificada do socialismo e cultivar habilidades correspondentes para alcançar um nível mais elevado de desenvolvimento. O PCCh, que lidera o desenvolvimento do socialismo na China, precisa se envolver em reflexões profundas, planejamento abrangente e estratégias de longo prazo, enquanto se adapta à situação em curso. É importante que o partido estabeleça essa base e sobre ela construa aprendizados adicionais, unifique seu pensamento e gradualmente estabeleça um processo contínuo de auto-aprimoramento. Em particular, desenvolver uma compreensão abrangente do nível de desenvolvimento do país, de seus gargalos, suas condições favoráveis e desfavoráveis, e de seus mecanismos operacionais, juntamente com uma compreensão das experiências práticas do capitalismo nos Estados Unidos e na Europa.

2. Reforçar o desenvolvimento como um todo. O nível de desenvolvimento da China é inconsistente quando diferentes campos são considerados. O desenvolvimento econômico, político, cultural, social e ecológico varia em termos de progresso, prioridades e desequilíbrios. É preciso promover o desenvolvimento equilibrado e integrado nesses cinco campos.

3. Promover o desenvolvimento de alta qualidade da produtividade e aprimorar a base material. Apesar dos grandes avanços da China ao alcançar e, em certos aspectos, superar o desenvolvimento econômico dos países capitalistas centrais, o país ainda tem um longo caminho a percorrer em termos de maior desenvolvimento da produtividade, eficiência produtiva, alta tecnologia e riqueza material. Sem isso, as vantagens inerentes do socialismo não podem ser totalmente concretizadas.

4. Fortalecer a maturidade institucional e as vantagens governamentais singulares. Esforços concretos devem ser feitos para acelerar o processo de consolidação das vantagens institucionais e governamentais singulares do socialismo. Somente assim a China pode desenvolver uma força institucional equivalente às instituições do capitalismo ocidental, que vigoram há centenas de anos.

5. Reforçar as vantagens inerentes do socialismo. O socialismo tem muitas vantagens singulares quando comparado ao capitalismo. Entre elas, tornar o povo os soberanos do país; o método centrado no povo que guia o partido, e não a influência de privilégios individuais e interesses próprios; a busca resoluta pela prosperidade comum para evitar desigualdades extremas de riqueza; os esforços coordenados para manter a natureza progressista, a integridade e a liderança forte do partido; e a ênfase na harmonia social e na prevenção de conflitos ou confrontos fundamentais entre as pessoas. Essas vantagens precisam ser valorizadas e cultivadas cuidadosamente. Além disso, um novo sistema deve ser construído para reunir e mobilizar recursos em todo o país em torno de questões importantes.

6. Reforçar o poder cultural e intelectual. Para a China, é de extrema importância ser uma nação e um Estado-civilização. A civilização chinesa possui características distintivas na linguagem, cultura e pensamento. A integração do marxismo e o surgimento de uma nova forma de socialismo na China devem muito à sua compatibilidade com a cultura chinesa, que sempre esteve profundamente enraizada na sociedade e na vida cotidiana do povo. Deve haver um esforço para transformar criativamente os valiosos recursos culturais da China em uma força cultural e intelectual mais proativa. A China também deve colaborar com outras culturas para destacar o valor da diversidade humana.

7. Destacar as vantagens comparativas globais do desenvolvimento socialista. O desenvolvimento da China criou vantagens comparativas globais em alguns setores, mesmo em relação aos países capitalistas desenvolvidos. A China avançou na modernização de um país com 1,4 bilhão de pessoas, superando a modernização combinada dos países capitalistas desenvolvidos em escala e alcance. Além disso, a modernização da China foi alcançada em um ritmo mais rápido, com custos sociais mais baixos e maior inclusão, utilizando um método mais pacífico. Essa é a maior experiência de modernização da história humana. A China também assumiu a liderança em áreas como energia renovável, proteção ecológica, redução da pobreza e desenvolvimento tecnológico, com conquistas impressionantes e comparáveis às dos países capitalistas desenvolvidos. Com a Nova Rota da Seda, a China embarcou em um ambicioso projeto de desenvolvimento cooperativo com os países do Sul Global, incentivando seus esforços de modernização. Para enfrentar os desafios comuns do mundo, a China apresentou o conceito de construir uma “comunidade com um futuro compartilhado para a humanidade” (人类命运共同体, rénlèi mìngyùn gòngtóngtǐ), além de uma série de propostas para promover a paz e o desenvolvimento global. A China recebe e incorpora cooperação, concorrência e diferentes formas de modernização e desenvolvimento ao redor do mundo. À medida que a própria modernização da China continua a avançar, suas vantagens comparativas internacionais devem se tornar mais proeminentes. Em relação às tentativas hostis de contenção da China por certos países, a China responderá com perspicácia e capacidade suficiente.

Na terceira década do século XXI, as rodas do progresso avançam rapidamente. O surgimento de novas formas de socialismo entusiasma todos os socialistas. De certa forma, com mais de um século de desenvolvimento socialista, parece que retornamos à era de Marx e Engels, que continuamente refletiram sobre como o socialismo superaria o capitalismo e se tornaria seu coveiro. Hoje podemos ver que o socialismo é melhor que o capitalismo em fazer o que este supostamente faz de melhor, ao mesmo tempo em que é bem sucedido em concretizar muito do que o capitalismo não é capaz. O socialismo na China continua a se fortalecer e se esforça para superar de maneira abrangente as formas mais avançadas do capitalismo contemporâneo, como Marx e Engels imaginavam, e criar uma sociedade melhor para a humanidade. Diante da emergência de uma nova forma de socialismo, precisamos de uma nova consciência.

Notas

1 Nota editorial: O Congresso Nacional do Povo (CNP) e a Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC) realizam reuniões simultâneas anualmente, em março, no evento político conhecido como as “Duas Sessões” (两会, liǎnghuì).

“A terceira onda do socialismo” (社会主义的第三次浪潮) foi publicada originalmente em Junho de 2021, no número 3 da Wenhua Zongheng (文化纵横).

O capitalismo enfrenta uma grave crise

A crise financeira de 2008 e a pandemia de Covid-19 evidenciaram a grave crise enfrentada pelo capitalismo. A economia global experimentou estagnação e declínio prolongados, desemprego generalizado, desigualdades de renda abissais, dívidas excessivas e bolhas de ativos. De maneira trágica, isso foi acompanhado por uma perda significativa de vidas humanas. A atual crise do capitalismo global é a maior e mais severa desde a Grande Depressão (1929-1933).

Nessa crise, os limites do capitalismo estão cada vez mais aparentes, sejam eles limites de mercado, tecnológicos ou ecológicos. Em primeiro lugar, a escassez de novos mercados e fontes de lucro levam a uma diminuição da força motriz da acumulação de capital. Em segundo lugar, embora a inovação tecnológica impulsionada por crises permaneça ativa, os benefícios dessa inovação estão cada vez mais concentrados em poucas mãos, marginalizando a maioria das pessoas no atual sistema capitalista. Em terceiro lugar, a capacidade ecológica do mundo tem sido pressionada até seu limite e o ecossistema do planeta não pode mais sustentar as pressões impostas pelo modo de vida e de produção capitalistas.

Os mecanismos acionados tradicionalmente para lidar com crises capitalistas falharam diante da crise atual. Após quase quatro décadas de neoliberalismo, os governos capitalistas enfrentam uma crise do gasto público, na medida em que a busca por mais reformas estruturais para estimular o capital privado entra em conflito direto com a necessidade de manter os níveis mínimos de bem-estar social. As políticas de flexibilização quantitativa criaram enormes bolhas de ativos e espirais de dívida, exacerbando as severas disparidades de riqueza previamente existentes.

Sob esta crise, ressurgem muitos elementos que caracterizaram o panorama do capitalismo global antes das duas grandes guerras mundiais: o crescimento do populismo, do militarismo e do fascismo; a intensificação de divisões sociais internas; um aumento na hostilidade e na competição de soma zero entre as nações; e tendências em direção à desglobalização e à política de blocos. Com o aumento das tensões internacionais, também aumenta a possibilidade de outra guerra mundial.

As crises desencadeiam guerras e as guerras levam a revoluções. Esse tem sido um tema recorrente na história do sistema capitalista. Na terceira década do século XXI, em meio a essa grave crise, o capitalismo irá passar por reformas profundas e superar sua crise? Ou este é o “momento Chernobyl” do capitalismo, que se encaminha para o seu fim?

A história chegou, novamente, a uma encruzilhada crítica.

As três ondas do socialismo

Como movimento e crítica ao capitalismo, o socialismo sempre coexistiu com este sistema, sendo um poderoso contrapeso e buscando, constantemente, caminhos alternativos para superar e substituir o capitalismo. Desde a criação da Primeira Internacional (1864-1876), o movimento socialista mundial passou por três grandes ondas.

A primeira onda ocorreu na Europa do século XIX, quando o movimento operário europeu transitava gradualmente de um estado de existência para um estado de autoconsciência. As principais características desse período foram o surgimento do marxismo, o estabelecimento de organizações internacionais de trabalhadores e as primeiras tentativas de realizar uma revolução socialista, como a Comuna de Paris, em 1871. A primeira onda do socialismo impulsionou o despertar político e a consciência da classe trabalhadora, dando origem a partidos políticos operários em diversos países. Durante essa onda, no entanto, ainda não surgiria uma forma de Estado socialista.

A segunda onda começou com o fim da Primeira Guerra Mundial, a partir da Revolução de Outubro, em 1917, e perdurou até a dissolução da União Soviética e dos Estados comunistas do Leste europeu, entre 1989 e 1991. Durante a segunda onda, um grande número de Estados socialistas surgiu em todo o mundo, primeiro na União Soviética e no leste europeu e, após o fim da Segunda Guerra Mundial, na China, em Cuba, na Coreia e no Vietnã, entre outros. Juntos, esses países formaram um sistema ou bloco socialista internacional. Além desse sistema formado por Estados, durante a Guerra Fria, uma grande parte do movimento socialista mundial se concentrou nos movimentos de libertação nacional da Ásia, África e América Latina. Muitos deles se identificavam como socialistas ou eram significativamente influenciados pelo socialismo. Assim, as duas principais características da segunda onda do socialismo foram o surgimento da forma de Estado socialista, com ampla propriedade estatal e planejamento econômico, e os movimentos de libertação nacional.

Após o fim da Guerra Fria, o socialismo sofreu grandes retrocessos globais. Apesar disso, no entanto, uma nova onda surgiria. A terceira onda começou a se formar após a China lançar suas reformas e abertura, no final da década de 1970, e foi capaz de resistir aos severos choques e testes após a dissolução da União Soviética e dos Estados comunistas do leste europeu. Enquanto o socialismo estava em baixa no mundo, a China permaneceu comprometida com o socialismo, ao mesmo tempo em que buscava reformas e abertura, trilhando gradualmente o caminho conhecido como “socialismo com características chinesas”. A principal característica do socialismo com características chinesas foi a incorporação de uma economia de mercado no sistema socialista, formando gradualmente uma economia socialista de mercado. Hoje, apenas três décadas depois da Guerra Fria, o socialismo com características chinesas experimentou um rápido crescimento, tornando-se uma força crucial que está remodelando a ordem mundial e o futuro da humanidade. Embora esta onda do socialismo ainda esteja em seus estágios iniciais, já provoca impactos significativos e atrai a atenção de todo o mundo, oferecendo novas opções para países que buscam seguir um caminho de desenvolvimento independente, o que representa um questionamento contundente àqueles que argumentavam que o capitalismo marcava o “fim da história”.

Os limites da segunda onda do socialismo

Antes de avançar na análise da realidade atual e das perspectivas futuras da terceira onda do socialismo, devemos primeiro revisitar a segunda onda e compreender as razões que provocaram seu retrocesso.

Com a Revolução de Outubro, em 1917, e a Revolução Chinesa, em 1949, o socialismo impactou o mundo, não apenas formando um bloco de Estados que representava uma ameaça significativa ao capitalismo, mas também impulsionando uma onda de movimentos de libertação nacional no vasto Terceiro Mundo da Ásia, África e América Latina. Nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, o sistema capitalista mundial estava em uma situação precária. À medida que o socialismo se espalhava globalmente, países socialistas implementaram economias planejadas no modelo soviético e sistemas de propriedade estatal, atingindo a etapa inicial da industrialização e construindo sistemas econômicos nacionais socialistas.

No entanto, o modelo soviético de economia planejada e o modelo de propriedade estatal pura tinham uma série de desvantagens. Primeiro, a economia planejada não era capaz de alocar recursos sociais e econômicos de maneira eficaz e flexível, resultando em um sistema econômico nacional rígido e distorcido que não respondia adequadamente aos indicadores da economia real. Segundo, o modelo de propriedade estatal pura e o sistema de distribuição igualitária careciam de mecanismos suficientes de incentivo ao trabalho nos níveis micro e intermediário. Isso levou à falta de concorrência construtiva e à pressão entre empresas e trabalhadores, resultando, em geral, em um nível baixo de eficiência econômica. Terceiro, as restrições e a eliminação da economia mercantil e do setor privado violaram a lei do valor e ultrapassaram o estágio de desenvolvimento das forças sociais produtivas. Disso resultou um fracasso sistêmico e de longo prazo em que o Estado não foi capaz de atender às necessidades complexas da vida econômica e social, nem de proporcionar melhorias significativas na qualidade de vida da população. Finalmente, ao longo do tempo, o planejamento e a gestão econômica do modelo soviético levaram ao desenvolvimento de um sistema cada vez mais fechado e voltado para dentro, caracterizado pelo burocratismo e dogmatismo, assim como por uma falta de sensibilidade e de capacidade de responder ao progresso tecnológico e à inovação organizacional.

Embora os retrocessos significativos da segunda onda do socialismo nas décadas de 1980 e 1990 possam ser atribuídos, em parte, a fatores externos, como a força do sistema capitalista e a fragmentação do bloco socialista, os fatores determinantes para tais retrocessos foram, em última instância, a inadequação dos mecanismos institucionais e os sistemas econômicos e sociais dos países socialistas. A insustentabilidade desses sistemas internos impulsionou as mudanças dramáticas na União Soviética, assim como o giro da China em direção à reforma e abertura.

O socialismo com características chinesas e a terceira onda do socialismo

Com o avanço da reforma e abertura, o socialismo com características chinesas se configurou como um caminho de desenvolvimento que se distinguiu tanto do modelo soviético de socialismo tradicional, quanto do capitalismo clássico de livre mercado. As teorias e a trajetória de desenvolvimento da China entram de forma contundente no cenário mundial. Embora o socialismo com características chinesas não seja um modelo estático e as práticas da China passem constantemente por experimentações, seis características principais podem ser identificadas após mais de quatro décadas dessa experiência.

A primeira característica é a prioridade dada ao desenvolvimento das forças produtivas. O socialismo com características chinesas ousa aprender com formas econômicas adequadas do capitalismo e permite o desenvolvimento do setor privado para promover o desenvolvimento rápido das forças produtivas avançadas. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento da economia estatal foi planejado estrategicamente em setores-chave, formando uma relação complementar com a economia privada e criando uma estrutura de propriedade mista.

A segunda característica é que a China promoveu uma profunda integração de sua base econômica e das relações de produção socialistas com a economia de mercado, estabelecendo gradualmente um sistema econômico socialista de mercado.

A terceira característica é que, enquanto se abria e se integrava ao sistema capitalista mundial, a China sempre se empenhou em manter sua soberania nacional e em garantir a natureza continuamente socialista do Partido Comunista da China (PCCh). A China permanece vigilante contra os riscos de desvio ao capitalismo, relacionados com as demandas de desenvolver uma economia de mercado.

A quarta característica é o método chinês de enfrentar, por meio do desenvolvimento, questões relacionadas à justiça social e às desigualdades. O desenvolvimento pode proporcionar o aumento da riqueza, mas, por uma série de fatores, isso também poderia levar ao aumento de divisões sociais. Somente um desenvolvimento mais avançado pode produzir a base material e a riqueza social necessárias para superar tais divisões e desigualdades sociais. No socialismo com características chinesas, o desenvolvimento tem sido a principal estratégia para enfrentar questões de justiça social, ao passo que outros métodos são adotados complementarmente. Isso exige medidas dinâmicas e proativas, em vez de métodos rígidos e uniformes.

A quinta característica é a adoção, pelo Estado, de uma série de medidas para equilibrar a desigualdade de riqueza dentro da economia socialista de mercado. Campanhas massivas de erradicação da pobreza foram realizadas para incluir grupos marginalizados pela economia de mercado e apoiar sua saída da pobreza por meio de esforços direcionados. Além disso, a prática de assistência pareada conecta instituições públicas, empresas e outros atores de áreas desenvolvidas com áreas pobres para transferir recursos e assistência a regiões menos desenvolvidas. Ao mesmo tempo, para enfrentar desigualdades regionais, transferências de recursos das regiões mais desenvolvidas do leste para as áreas menos desenvolvidas do centro e oeste tem contribuído para reduzir as distâncias entre a receita fiscal e a capacidade de investimento. Em países capitalistas, onde a propriedade privada é considerada sagrada e onde os processos eleitorais sustentam apenas os interesses da classe dominante, essas medidas são difíceis de se imaginar, quanto mais de serem implementadas.

A sexta característica é o fato de que o PCCh não está subordinado a interesses restritos de determinados setores da sociedade. Para manter-se nessa posição, o PCCh deve permanecer imune às tentativas de infiltrações e de controle do capital, além de superar as influências do populismo e do igualitarismo rígido, mantendo um equilíbrio dinâmico entre vitalidade econômica e equidade social.

A relação entre o socialismo e a economia de mercado

A história demonstrou que é impossível eliminar artificialmente a economia de mercado no socialismo. As limitações e o fracasso do modelo soviético de socialismo são evidências disso.

A economia de mercado é uma forma econômica antiga e sua lei de oferta e demanda regula espontaneamente o comportamento econômico humano. Ela pode ser combinada com o feudalismo, com o capitalismo e com o socialismo. O grau de combinação depende do excedente de produção social. Em termos gerais, quanto maior o excedente, mais desenvolvida se torna a economia de mercado. Como disse Deng Xiaoping, “não há contradição fundamental entre o socialismo e uma economia de mercado. A questão é como desenvolver as forças produtivas de forma mais eficaz”.1 Da mesma forma, ele afirmou: “uma economia planejada não é equivalente ao socialismo, porque também há planejamento no capitalismo. Uma economia de mercado não é capitalismo, porque também há mercados no socialismo. Tanto o planejamento como as forças de mercado são meios de controlar a atividade econômica”.2

O capital é o protagonista principal em uma economia de mercado moderna. O capital possui uma natureza dual: é a força mais eficiente para a alocação de recursos na economia de mercado, mas também pode manipular e monopolizar o mercado. Fernand Braudel, historiador francês e destacado estudioso da escola historiográfica Annales, argumentou que a economia de mercado não poderia ser equiparada ao capitalismo. Para Braudel, a economia de mercado “não passa de um fragmento num vasto conjunto, pela sua própria natureza que a reduz ao papel de ligação entre a produção e o consumo, e pelo fato de que, antes do século XIX, era uma simples camada mais ou menos espessa e resistente, por vezes muito delgada, entre o oceano da vida cotidiana que a inclui e os processos do capitalismo que, uma vez em cada duas, a manobram de cima”.3 Distinto da economia de mercado, Braudel escreveu que “o capitalismo deriva, por excelência, das atividades econômicas desenvolvidas na cúpula ou que tendem para a cúpula. Por conseguinte, esse capitalismo de alto vôo flutua sobre a dupla espessura subjacente da vida material e da economia coerente do mercado, representando a zona de alto lucro”.4 Na atual economia de mercado global, dominada pelo capitalismo moderno, forças internas de resistência a esse sistema continuam a emergir, impulsionando demandas e movimentos por igualdade econômica e social. Esses movimentos tendem a se aproximar e a defender o socialismo para enfrentar e superar as desigualdades do capitalismo. Dessa forma, o socialismo também é uma força interna da economia de mercado, um componente orgânico que, naturalmente, se opõe ao capitalismo.

Além do capital, o Estado também é um ator-chave em uma economia de mercado moderna. O Estado é um produto da demanda social por ordem e regras. Sua existência não é uma força externa imposta ao mercado, mas uma exigência intrínseca da economia de mercado. Mesmo em uma sociedade de mercado sem Estado, entidades quase governamentais irão surgir, como associações e câmaras de comércio. Além de regular e administrar a economia de mercado, o Estado frequentemente promove e desenvolve o mercado, especialmente nas fases iniciais das economias de mercado em países em desenvolvimento. Na verdade, é frequente que o Estado se torne a força motriz por trás da economia de mercado. Portanto, é um equívoco colocar o Estado e o mercado em completa oposição um ao outro, como se fossem entidades dicotômicas. O liberalismo considera o Estado como um mal absoluto e o modelo soviético de socialismo equipara a economia de mercado diretamente ao capitalismo: ambos cometem erros formalistas.

Uma economia socialista de mercado é aquela em que o movimento da economia de mercado é guiado por valores socialistas. Por um lado, esse sistema econômico adota a regulação estratégica nacional, para alavancar plenamente o papel fundamental da economia de mercado na organização da produção e do comércio, na orientação do consumo e da distribuição, e para aproveitar completamente a liderança do capital no desenvolvimento das forças produtivas avançadas. Por outro lado, utiliza o poderoso capital estatal e a superestrutura socialista para conter e equilibrar o capital privado, superar a tendência inerente da economia de mercado à divisão social e evitar o controle do capital sobre a vida econômica e social.

A economia socialista de mercado é um sistema que utiliza o papel decisivo da economia de mercado ao otimizar a função do Estado. Representa a combinação da economia de mercado moderna e do modo de produção socialista.

Manter o caráter socialista de uma economia socialista de mercado

A superestrutura e a ideologia do capital são compatíveis com seu modo de produção e seguem sua lógica operacional. Essa lógica não se altera sob as condições de uma economia socialista de mercado. O movimento espontâneo da economia de mercado e a busca dos atores capitalistas por lucro tendem a corroer a superestrutura e a ideologia do socialismo, podendo levar ao desequilíbrio ou mesmo à desintegração da economia socialista de mercado, o que conduziria a sociedade em direção ao capitalismo. Na era do capitalismo global, os desafios enfrentados pelas economias socialistas de mercado em nações soberanas tornam-se ainda mais evidentes à medida que o capital penetra nas fronteiras nacionais. Como, então, a China consegue manter o caráter e a direção socialista de sua economia socialista de mercado?

Em primeiro lugar, a chave está na liderança do PCCh e na garantia de que a natureza socialista do partido não seja alterada. Na economia socialista de mercado, o PCCh alavancou plenamente o papel do capital no desenvolvimento das forças produtivas avançadas e na promoção do crescimento contínuo da riqueza social, impedindo, ao mesmo tempo, a infiltração e manipulação do partido pelo capital. O partido controla ativamente o capital, colocando-o a serviço da maioria do povo. O Secretário-Geral Xi Jinping enfatiza a relação essencial entre a liderança do partido e o socialismo, afirmando que “a característica essencial e a maior vantagem do sistema do socialismo com características chinesas são a liderança do PCCh, sendo o Partido a suprema força de liderança política”.5

Em segundo lugar, a estabilidade da economia socialista de mercado também resulta do fato de que a China acumulou uma grande quantidade de ativos estatais nos últimos 70 anos de desenvolvimento, incluindo empresas, instituições financeiras e terras. O controle estatal desses ativos estratégicos sustenta a governança do PCCh e garante a independência do partido em relação às forças do capital, permitindo um governo baseado nos interesses fundamentais do país e do povo.

Em uma economia socialista de mercado, as empresas estatais e o capital estatal também devem operar e competir de acordo com as leis da economia de mercado. As lógicas do mercado e do capital penetram profundamente o comportamento cotidiano não apenas das empresas privadas, mas também das empresas estatais. Portanto, é especialmente importante garantir que os gestores desses ativos estatais massivos não se tornem agentes da burguesia, a fim de evitar que os ativos estatais sejam transformados em ativos privados ou que os gestores estabeleçam um controle interno vinculado aos interesses burgueses. Para manter o caráter socialista da economia socialista de mercado, o PCCh deve garantir tanto a eficiência operacional quanto a manutenção da propriedade estatal desses ativos.

Em terceiro lugar, a superestrutura e a ideologia do socialismo devem ser controladas pelo partido. Em setores como educação, publicações e mídia, a busca por benefícios econômicos deve estar subordinada aos benefícios sociais. A lógica da economia de mercado não deve dominar esses setores, e a liderança do partido deve ser integrada às suas operações cotidianas. Se o socialismo não fornecer liderança ideológica e cultural, o capitalismo inevitavelmente o fará.

Em quarto lugar, sob as condições de uma economia de mercado, o PCCh liderou o desenvolvimento da sociedade civil e de organizações não governamentais. O crescimento dessas forças sociais é um fenômeno inevitável em uma economia de mercado. Uma consequência do efeito de diferenciação da economia de mercado é o surgimento de demandas de diferentes grupos de interesse para lidar com questões como desigualdade de renda, degradação ambiental, desmoralização da sociedade e outros problemas gerados pelo capital privado. Considerando a forte tradição histórica de “feudalismo burocrático” da China, o desenvolvimento e construção dessas forças sociais pode contribuir para a superação do formalismo e da burocracia excessiva nos departamentos governamentais. Portanto, o partido liderou o desenvolvimento dessas forças sociais e incentivou sua organização, promovendo o desenvolvimento estável e de longo prazo da economia socialista de mercado.

Promovendo a terceira onda do socialismo

A oportunidade para uma nova onda global do socialismo emerge neste momento de grandes crises enfrentadas pelo sistema capitalista contemporâneo. O socialismo com características chinesas é um fator-chave dessa onda. À medida que a China continua a crescer e assume uma posição de liderança como potência global, o caminho do desenvolvimento chinês deve atrair mais atenção como uma alternativa viável, tanto de modo de produção como de estilo de vida, promovendo a formação de um novo sistema socialista global e de um sistema de valores que seja cada vez mais aceito pelas pessoas ao redor do mundo.

Ao mesmo tempo, durante esse período histórico de transição, o socialismo com características chinesas também enfrenta desafios e ameaças particularmente agudas. Desde a crise financeira de 2008, e especialmente desde a pandemia de Covid-19, as fortalezas do socialismo chinês tornaram-se cada vez mais evidentes no cenário internacional. A China transformou muitas dessas crises em oportunidades, impulsionando o país a alcançar um patamar mais elevado de desenvolvimento e aprimorando seu sistema e capacidade de governança. O contraste marcante entre a China e os países ocidentais nesses aspectos abalou fundamentalmente a narrativa do capitalismo ocidental. O impacto disso é maior do que apenas o poder militar e as taxas de crescimento econômico.

Como reação, diversas forças do capital internacional se mobilizam contra a China. São incontáveis os ataques e difamações de forças políticas liberais, nacionalistas e populistas. Até mesmo algumas forças da esquerda internacional criticam severamente a China em questões de democracia, direitos humanos e proteção ambiental, chegando a questionar se a China é verdadeiramente socialista. Desde que a administração Biden assumiu o poder nos Estados Unidos, a política de alianças aumentou em escala global. Uma “santa aliança” burguesa liderada pelos EUA está se formando rapidamente sob o pretexto de conter a China.

A terceira onda de socialismo que está emergindo sem dúvida irá enfrentar uma noite escura e experimentará tumultos e caos ainda mais intensos dentro do sistema capitalista mundial. Os socialistas chineses devem estar preparados.

Notas

1 Deng Xiaoping, “Não existe contradição fundamental entre o socialismo e a economia de mercado”, 23 de outubro de 1985, traduzido por Swen Zettler. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/deng-xiaoping/1985/10/23.htm.

2 Deng Xiaoping, “Excerpts from Talks Given in Wuchang, Shenzhen, Zhuhai, and Shanghai” [Trechos de falas proferidas em Wuchang, Shenzhen, Zhuhai e Xangai], 18 de janeiro – 21 de fevereiro de 1992, em Selected Works of Deng Xiaoping, vol. 5, 1982–1992 [Obras escolhidas de Deng Xiaoping, vol. 5, 1982-1992] (Pequim: Foreign Languages Press, 1994), 361. https://en.theorychina.org.cn/llzgyw/WorksofLeaders_984/deng-xiaoping-/.

3 Fernand Braudel, A dinâmica do capitalismo, trad. Álvaro Cabral (Rio de Janeiro: Rocco, 1987), 29.

4 Braudel, A dinâmica do capitalismo, 73.

5 Ver “Resolução do Comitê Central do Partido Comunista da China sobre as Grandes Conquistas e Experiências Históricas na Luta Centenária do Partido”, Xinhua Português, 16 de novembro de 2021. Disponível em: http://portuguese.news.cn/2021-11/16/c_1310314696.htm.

Bibliografia

Braudel, Fernand. A dinâmica do capitalismo. Traduzido por Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

Deng Xiaoping. “Excerpts from Talks Given in Wuchang, Shenzhen, Zhuhai, and Shanghai” [Trechos de falas proferidas em Wuchang, Shenzhen, Zhuhai e Xangai], 18 de janeiro – 21 de fevereiro de 1992. Em Selected Works of Deng Xiaoping, vol. 5, 1982–1992 [Obras escolhidas de Deng Xiaoping, vol. 5, 1982-1992]. Pequim: Foreign Languages Press, 1994. https://en.theorychina.org.cn/llzgyw/WorksofLeaders_984/deng-xiaoping-/.

Deng Xiaoping. “Não existe contradição fundamental entre o socialismo e a economia de mercado”, 23 de outubro de 1985. Traduzido por Swen Zettler. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/deng-xiaoping/1985/10/23.htm.

Partido Comunista da China. “Resolução do Comitê Central do Partido Comunista da China sobre as Grandes Conquistas e Experiências Históricas na Luta Centenária do Partido”. Xinhua Português, 16 de novembro de 2021. Disponível em: http://portuguese.news.cn/2021-11/16/c_1310314696.htm.

Diz um ditado popular chinês contemporâneo que “em 1949, o socialismo salvou a China. No século XXI, a China vai salvar o socialismo”. Em um discurso de 2018 a novos membros do Comitê Central, o presidente chinês Xi Jinping (习近平) lembrou que, após o colapso da União Soviética, se a experiência chinesa tivesse fracassado, “então a prática do socialismo teria que vagar na escuridão por um longo tempo e, de novo, seria um espectro”, como disse Marx em sua época.

Mas quais as principais características do socialismo com características chinesas? Por que mercado e planejamento não são antagônicos e como podem ser integrados em uma estratégia socialista? O que diferencia o socialismo chinês do modelo soviético? Quais os maiores desafios que a China enfrenta diante das contradições que o mercado impõe ao socialismo? A experiência chinesa pode inspirar outros países no caminho do socialismo? Estas são algumas das questões centrais levantadas pelos dois ensaios que publicamos no quarto número da edição internacional da Wenhua Zongheng (文化纵横): o primeiro de Yang Ping (杨平), editor-chefe da edição chinesa da Wenhua Zongheng, e o segundo de Pan Shiwei (潘世伟), presidente honorário do Instituto de Marxismo Chinês da Academia de Ciências Sociais de Xangai.

No artigo A terceira onda do socialismo, Yang Ping sugere que, durante o último século e meio, existiram três ondas de socialismo científico: o surgimento do Marxismo e de movimentos revolucionários na Europa, durante o século XIX (primeira onda); a criação de um grande número de Estados socialistas e movimentos de libertação nacional, durante o século XX (segunda onda); e, diante do colapso da experiência soviética e do esgotamento do socialismo da Era Mao Tse Tung, o surgimento de uma economia socialista de mercado, iniciada com a reforma e abertura da China, nos anos 1970 (terceira onda). Da mesma forma, no artigo As novas formas do socialismo no século XXI, Pan Shiwei afirma que surgiram três formas principais de socialismo: o socialismo clássico nos centros do capitalismo europeu, as formas transformadoras de socialismo nas colônias e semi-colônias e uma nova forma de socialismo que está se desenvolvendo na China e tem como objetivo superar o capitalismo. Ambos os autores acreditam que a nova onda, ou nova forma de socialismo, está em seus estágios iniciais e discutem como ela pode fortalecer ainda mais o socialismo na China e servir de inspiração para outras nações do mundo.

Em tempos de declínio econômico das potências imperialistas, mergulhadas em um frenesi bélico na Ucrânia e na Palestina – que corre o risco de se expandir para o Leste e Sudeste da Ásia e afundar a humanidade na terceira guerra mundial –, quais são as oportunidades que a ascensão da China socialista traz para o Sul Global? Dialogando com as perspectivas dos autores dos artigos, propomos algumas ideias nesta nota editorial.

Feitos e desafios do socialismo chinês

Após 45 anos de reforma e abertura, o socialismo de mercado transformou a China em uma potência industrial, tecnológica, financeira, comercial e militar. Pelo PIB por paridade de poder de compra (PPC), uma medida mais real para a comparação de economias nacionais, a China já supera os Estados Unidos com certa folga. Em 2002, o PIB PPC da China foi de US$30,32 trilhões contra US$25,46 trilhões dos EUA. Ou seja, o PIB PPC chinês equivale a 119% do estadunidense. Para que tenhamos uma dimensão histórica desse feito para o campo socialista, em 1975, no auge econômico da URSS, seu PIB PPC chegou, no máximo, a 58% do PIB dos EUA.

A China é a maior potência industrial desde o final dos anos 2000. O país produziu, no ano passado, 26,7% de toda a manufatura do mundo, seguida pelos EUA (15,4%), Japão (5,3%) e Alemanha (4%). Ou seja, a produção industrial chinesa supera a soma da produção das três maiores nações industriais do Norte Global. Os chineses também deram saltos tecnológicos impressionantes nas últimas décadas, passando a liderar mundialmente setores como telecomunicações (5G), trens de alta velocidade, energias renováveis, refino de minerais e veículos elétricos, além de terem atingido estágios avançados em muitos outros setores, incluindo inteligência artificial, computação quântica, biotecnologia e construção civil.

A China é a maior potência comercial do mundo, sendo a principal parceira comercial de mais de 120 países. Em 2022, exportou US$6,28 trilhões, com um superávit de US$860 bilhões, fechando o ano com reservas internacionais de US$3,13 trilhões. Nas finanças, o Estado chinês controla os quatro maiores bancos do mundo – Industrial and Commercial Bank of China (ICBC), China Construction Bank (CCB), Agricultural Bank of China (ABC) e Bank of China –, com um total de cerca de US$20 trilhões em ativos. O país tornou-se a maior fonte de financiamento para o desenvolvimento global, superando todos os países e todas as instituições multilaterais, inclusive o Banco Mundial.

Por fim, a China foi capaz de um dos maiores feitos da história: a retirada de 850 milhões de pessoas da extrema pobreza entre 1978 e 2021. Segundo o Banco Mundial, isso corresponde a 76% de toda a população mundial que se encontrava nesta situação no período.

No entanto, a China ainda é um país em desenvolvimento e enfrenta enormes desafios econômicos, sociais e políticos para avançar além do “estágio primário” do socialismo, como eles assim definem. Esses desafios incluem necessidade de reduzir a desigualdade entre campo e cidade e entre regiões do país (o Leste é muito mais desenvolvido do que o Oeste), de elevar a renda e o bem-estar social dos mais de 300 milhões de trabalhadores migrantes, de reduzir o alto desemprego na juventude, de diminuir a enorme dependência econômica do setor imobiliário sob a lógica financeirizada, de enfrentar as consequências ambientais causadas por uma industrialização hiper acelerada, de se adaptar ao envelhecimento da população e à desaceleração da taxa de natalidade, de retomar a formação política marxista no Partido Comunista da China e entre as massas (uma das prioridade de Xi Jinping), e de enfrentar as táticas de guerra híbrida aplicadas pelas potências ocidentais para tentar conter o avanço chinês.

Uma onda socialista ou desenvolvimentista no Sul Global?

A China conseguiu quebrar a maldição do Terceiro Mundo e rompeu o círculo vicioso de “desenvolvimento do subdesenvolvimento”. Após décadas de independência de sua condição de colônias das potências ocidentais, esse círculo vicioso continua definindo a experiência dos países da periferia do sistema capitalista. Graças a seu tremendo sucesso econômico, cada vez mais países do Sul Global veem a China como um exemplo que poderia ser seguido – levando-se em conta as particularidades locais –, mas também como uma possível parceira na busca de uma estratégia desenvolvimentista. A China, por sua vez, move-se cada vez mais para construir estas parcerias.

Em outubro de 2022, o relatório do 20º Congresso Nacional do PCCh apresentou uma contundente crítica marxista ao modelo ocidental de modernização, baseado na colonização, pilhagem, escravidão e exploração predatória dos recursos naturais e dos povos do Sul Global. Esse modelo não apenas serviu de base para os processos de industrialização da Europa e dos Estados Unidos, mas também para sua dominação econômica, política e militar sobre o resto do mundo, resultando na formação do imperialismo. Em resposta, a China elaborou o “caminho da modernização chinesa”, que pode ser caracterizado pelos princípios da prosperidade compartilhada entre uma população gigantesca, do progresso material e ético-cultural, da harmonia entre humanos e natureza e do desenvolvimento pacífico.

Essa consciência histórica formata a política de Estado da China, particularmente a Nova Rota da Seda (NRS), lançada em 2013, visando impulsionar o desenvolvimento do oeste chinês a partir de sua conexão com a Ásia Central. “Atravessando o rio, enquanto sente as pedras”, ao estilo Deng Xiaoping (邓小平), o governo chinês percebeu que esse poderia ser o pilar de sua estratégia para o Sul Global, assolado por mais de três décadas de neoliberalismo. Dez anos e centenas de bilhões de dólares depois, essa direção foi reforçada no 20º Congresso Nacional do PCCh, cujo relatório afirma o comprometimento da China em atuar para diminuir a distância entre o Norte Global e o Sul Global, apoiando a aceleração do desenvolvimento nas nações do Sul Global.

As recentes movimentações apontam para um estágio mais elevado de cooperação entre a China e os países em desenvolvimento. Por exemplo, na cúpula entre a China e países africanos – logo após a 15ª cúpula do BRICS, em agosto – líderes da África expressaram reconhecimento por todos os esforços chineses nas últimas duas décadas para promover a infraestrutura do continente, mas pediram à China que mude seu foco de investimento da infraestrutura para a industrialização.1 Xi Jinping concordou com a proposta. A propósito, debate semelhante foi feito na cúpula Rússia-África, em julho, confirmando a atual estratégia africana.

Em grande parte do Sul Global, a necessidade de industrialização volta a ocupar o debate público, desde países como o Brasil e a África do Sul, até países como a Bolívia e o Zimbábue. No primeiro caso, são países que já tiveram indústrias sólidas e diversificadas, mas que sofreram um processo de desindustrialização nas últimas décadas. No segundo caso, apesar de Bolívia e Zimbábue possuírem abundantes recursos naturais, nunca tiveram condições de acumular capital suficiente para iniciar um processo de industrialização consistente, devido à dinâmica de exploração pelas potências ocidentais.

Inúmeras parcerias entre empresas chinesas estatais e privadas com países do Sul Global têm sido estabelecidas no último período, muitas delas relacionadas ao processamento local de minerais de alta demanda, ou à produção de carros elétricos. Por exemplo, bilhões de dólares estão sendo investidos pela China em fábricas de processamento de lítio na Bolívia, em uma mega usina siderúrgica e uma fábrica de lítio no Zimbábue, em plantas de processamento de níquel na Indonésia e um hub de fábricas de veículos elétricos no Marrocos. Há uma grande expectativa de que iniciativas regionais, como a NRS, o BRICS 11 e a Organização de Cooperação de Xangai, possam servir como alavancas desse processo, ainda que enfrentem oposição das potências ocidentais.

Sem esse esforço de industrialização, os povos do Sul Global não conseguirão superar os profundos problemas que ainda enfrentam, como a fome, o desemprego, a falta de acesso à educação, à moradia e à saúde de qualidade. Por outro lado, isso não será possível apenas pelas relações com a China (ou com a Rússia). Sem o fortalecimento dos projetos populares nacionais, contando com ampla participação de setores sociais progressistas, sobretudo das classes populares, dificilmente os frutos de um eventual ciclo de desenvolvimento serão colhidos por aqueles que mais precisam. Porém, são raros os países do Sul Global que vivem processo de ascensão das lutas de massas. Por isso, ainda é muito difícil vislumbrar uma “terceira onda socialista” global, mas uma nova onda desenvolvimentista – que pode tomar um caráter progressista – parece viável. A contradição principal da nossa época é o imperialismo. E todos os esforços para enfrentá-lo são estratégicos.

Não há dúvida de que a China, assim como a Rússia, têm sido tão atacadas pelas potências imperialistas exatamente porque construíram fortes nações soberanas nas últimas décadas. Além disso, a China e, em menor medida, a Rússia oferecem um leque de capacidades industriais, tecnológicas, financeiras, comunicacionais e militares às quais o Sul Global nunca teve acesso. Isso amplia as opções do Sul Global e tem o potencial de enfraquecer a hegemonia das potências ocidentais. Não foi exatamente isso que faltou para o sucesso do “projeto do terceiro mundo” entre os anos 1950 e 1970, quando ocorreu a grande onda de processos de libertação nacional e de desenvolvimentismo, cujos sonhos foram abortados pelo neoliberalismo e pela máquina de guerra do Império?

Notas

1 Ver “As relações entre a China e a África na era da Nova Rota da Seda”, Wenhua Zongheng (文化纵横), edição internacional 1, número 3 (outubro de 2023). Disponível em: https://thetricontinental.org/pt-pt/wenhua-zongheng-2023-3-editoria-as-relacoes-entre-a-china-e-a-africa-na-era-da-nova-rota-da-sedal/.

As imagens deste dossiê são da coleção Medu Art Ensemble, de Freedom Park, que contém 150 materiais digitalizados, atualmente localizados na página da internet da Biblioteca da Universidade da Califórnia em Los Angeles.

Atuação de bailarinos durante o Simpósio e Festival de Artes Cultura e Resistência na Universidade de Botsuana em Gaborone, Botsuana, 1982.
Créditos: Anna Erlandsson via Freedom Park

Medu Art Ensemble, Shades of Change [Matizes da mudança], 1982. Peça de teatro com dois personagens que se passa em uma cela de prisão foi escrita por Mongane Wally Serote.
Crédito: Medu Art Ensemble via Freedom Park

De todas as terras

Uma dança de protesto. “Hai! Hai!”, canta a multidão, com os joelhos erguidos, os pés batendo e os dedos apontando para um inimigo invisível, porém conhecido. Com raízes nos exercícios militares do movimento de libertação da Argélia, o toyi-toyi, uma forma de cultura de resistência que mistura cantos de pergunta e resposta com passos enérgicos, percorreu os espaços de formação na Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue na década de 1960. Essa dança de protesto chegou aos destacamentos avançados de exilados do uMkhonto we Sizwe (“Lança da Nação”, também conhecido como MK), o braço armado do Congresso Nacional Africano (CNA), antes de retornar clandestinamente e ser popularizada nas cidades e fábricas da África do Sul (Gilbert, 2007). Quase trinta anos após a queda do regime do apartheid na África do Sul, o toyi-toyi evoluiu de acordo com as condições, as culturas e os objetivos políticos daqueles que o adotaram. Ele é visto em quase todos os protestos no país, desde os do movimento de luta por moradia Abahlali baseMjondolo até o Sindicato Nacional dos Metalúrgicos da África do Sul (Numsa) e dos movimentos de mineiros em Marikana até os dos estudantes do movimento Fees Must Fall.

Uma canção. A multidão vibra quando o lendário músico sul-africano Jonas Gwangwa apresenta sua música, Batsumi, para milhares de fãs que participam do maior festival anual de jazz de Joanesburgo. Estávamos em 2006. A música, no entanto, havia sido escrita 30 anos antes, no auge do regime de apartheid na África do Sul. Após tentar sua carreira musical por anos nos Estados Unidos, Gwangwa fez de Botsuana seu lar na década de 1970, absorvendo as tradições musicais locais de Setswana e, mais tarde, tornando-se um dos membros fundadores do Medu Art Ensemble em 1979, um coletivo cultural de artistas, a maioria deles exilados sul-africanos, criado e sediado em Botsuana. Batsumi, de Gwangwa, que significa “os caçadores”, homenageia a tradição de caça do Primeiro Povo de Botsuana e universaliza sua luta histórica contra a opressão como uma luta de pessoas “de todas as terras” (ba lefatshe lotlhe) (Ansell, 2019).

Um cartaz. A última edição da revista cubana Tricontinental tinha acabado de chegar em um espaço de formação longínquo em Angola. Um cartaz colocado entre suas páginas é desdobrado, com as quatro letras C-L-I-K escritas em uma fonte amarela contra um fundo azul-escuro. Mandla Langa, um escritor sul-africano exilado, membro do Medu e soldado do MK lotado ali, relembra esse momento: “lembro-me de um cartaz do qual não consigo esquecer, de quando os cubanos estavam sofrendo quedas de energia e queriam enviar mensagens por meio de cartazes aos vilarejos de todo o país sobre como economizar energia: Clique. Basta desligar” (Langa, 2020).1 Esse cartaz, feito pelo renomado artista gráfico cubano Félix Beltrán, em 1968, atravessou oceanos e continentes para chegar a esse remoto acampamento angolano alguns anos depois. Cartazes e revistas como esses foram essenciais para divulgar notícias sobre as lutas travadas em outros lugares. As pessoas corriam grandes riscos não apenas com revistas, mas com cartazes, músicas, danças e poemas para que essas armas culturais pudessem atingir o público-alvo.

Juntas, essas vinhetas são uma gota em um oceano de ricas experiências culturais na luta sul-africana contra o regime do apartheid da minoria branca e parte da tradição das lutas de libertação em todo o mundo colonizado. Quais foram as condições que exigiram e permitiram que a cultura se tornasse uma força mobilizadora tão forte, tanto em âmbito  nacional quanto internacional? O que era o Medu Art Ensemble e qual foi o papel de grupos culturais como esse para impulsionar esse momento da história? Nos últimos anos, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social conversou com vários membros do Medu e estudou alguns dos materiais, em grande parte não publicados, que o grupo produziu em seus curtos, mas impactantes anos de existência.

A história de Medu não é apenas uma história do sul da África ou da África do Sul, mas uma história internacional. Nenhuma luta de libertação pode existir sem a circulação e o intercâmbio de ideias, estratégias, recursos materiais, solidariedade política e cultura em todo o mundo. Refletindo sobre o papel da cultura nacional na luta contra o colonialismo, o revolucionário martinicano Frantz Fanon escreveu: “É no coração da consciência nacional que a consciência internacional se estabelece e prospera. E essa dupla emergência, de fato, é o foco único de toda cultura” (Fanon, 2004, p. 180).2 Em outras palavras, não existe uma cultura de libertação nacional que não esteja ligada ao internacionalismo. Durante seus seis anos de existência, de 1979 a 1985, o Medu Art Ensemble construiu e inovou com base nas práticas culturais e teorias artísticas das lutas africanas, asiáticas e latino-americanas pela libertação nacional. Thami Mnyele, um dos fundadores do Medu, nascido no bairro pobre de Alexandra, em Johanesburgo, e assassinado pelo Estado sul-africano por seu trabalho artístico e político, descreveu essa experiência:

Foi no Medu Art Ensemble que o papel dos artistas se concretizou: o papel de um artista é aprender; o papel de um artista é ensinar os outros; o papel de um artista é buscar incessantemente as formas e os meios de alcançar a liberdade. A arte não pode derrubar um governo, mas pode inspirar mudanças (…) todo o pequeno conjunto é uma oficina, uma sala de aula, uma selva por meio da qual as pessoas devem conquistar um lar […] A luta do artista deve estar enraizada na luta da maioria do nosso povo. Qualquer engajamento real na realização de mudanças deve, necessariamente, buscar inspiração e aliança com o movimento popular (Mnyele, 2009, p. 27).


Músicos tocam os tambores na inauguração do Simpósio e Festival de Artes Cultura e Resistência na Universidade da Botswana em Gaborone, Botsuana, 1982.
Créditos: Anna Erlandsson via Freedom Park

Medu Art Ensemble, The Spear Fights on Isandlwana, 1979.Credit: Medu Art Ensemble via Freedom Park

Medu Art Ensemble, The Spear Fights on Isandlwana [Lutas de lanças em Isandlwana], 1979.
Créditos: Medu Art Ensemble via Freedom Park

A cultura como arma de luta

a luta é o alimento
governo milenar dos cães de caça
dá origem à revolta
os dentes afiados da luta de classes
mastiga épocas inteiras
percorremos um longo caminho
em Soweto
éramos matadores
tanques de guerra com nariz de touro
e aprendemos
como um tijolo
pode sangrar uma bala até a morte

– Bheki Langa, “Isandlwana Incarnate”, escrito em 1979, no 100º aniversário da Batalha de Isandlwana em 1979 (Langa, 1984, p. 28).

O Medu Art Ensemble surgiu como uma necessidade de um momento histórico e de uma tradição secular de resistência cultural no continente. De acordo com Judy Seidman, integrante das unidades de gráfica e de pesquisa do Medu, as tradições que inspiraram a resistência cultural sul-africana podem ser categorizadas em quatro ondas: o início da era anticolonial, o movimento pan-africanista e, em seguida, a primeira e a segunda ondas de sul-africanos que foram para o exílio (Seidman, 2019). Seidman, que é dos Estados Unidos, passou sua juventude em Gana durante a presidência de Kwame Nkrumah, dedicou sua vida adulta ao movimento de libertação da África do Sul e ajudou a preservar grande parte da história de Medu.

A primeira tradição que inspirou a resistência cultural sul-africana consistiu em diferentes práticas culturais que responderam às invasões coloniais do século XVII ao início do século XX. Um marco importante nesse período de resistência foi a Batalha de Isandlwana, em 1879, quando os guerreiros do Reino Zulu derrotaram as tropas coloniais britânicas que tinham como objetivo expandir-se para o interior rico em diamantes e ouro. Essa fase de resistência cultural se desenvolveu com o surgimento das classes trabalhadoras sul-africanas como força social, desde os mineiros, ferroviários e portuários do século XIX até os trabalhadores fabris, domésticos e agrícolas do século XX, reunindo elementos culturais pré-coloniais e ideias dos movimentos socialistas e comunistas internacionais em ascensão.

A segunda tradição tem suas raízes no movimento pan-africanista, que começou nas duas primeiras décadas do século XX. Esse período foi moldado por líderes como o advogado de Trinidad e Tobago, Henry Sylvester Williams, mulheres acadêmicas como Anna Julia Haywood Cooper, dos Estados Unidos, e escritores sul-africanos como Sol Plaatje. Na Europa e nos Estados Unidos, Plaatje se relacionou com W.E.B. Du Bois, Langston Hughes e outros pensadores importantes. Nas décadas de 1940 e 1950, o movimento pan-africanista havia incorporado fortes tendências marxistas sob a influência de figuras importantes como Kwame Nkrumah (Gana), Sekou Touré (Guiné) e Amílcar Cabral (Guiné Bissau e Cabo Verde), que entendiam a cultura como um pilar fundamental da luta contra o colonialismo e pela unidade pan-africana. Um ano depois de assumir a presidência de uma Guiné independente, Touré fez um importante apelo aos escritores, enfatizando a relação simbiótica entre a produção cultural e os processos revolucionários que estavam em andamento: “Para participar da revolução africana, não basta escrever uma canção revolucionária; é preciso forjar a revolução com o povo. E se você fizer isso com o povo, as canções virão por si mesmas e de si mesmas” (Touré apud Fanon, 1959, p. 206).

A terceira tradição surgiu na década de 1950 com os sul-africanos que foram exilados após a consolidação do sistema político racialmente segregado que foi formalmente inaugurado com a eleição do Partido Nacional Afrikaner em 1948. Apesar da implementação de leis e restrições cada vez mais repressivas, como a Group Areas Act3 de 1950, que segregou ainda mais as áreas residenciais e comerciais, e o banimento do Partido Comunista da África do Sul de acordo com a Lei de Supressão do Comunismo, no mesmo ano, a luta pela libertação só se tornou mais engajada.4 Ele não exigia mais a inclusão na sociedade racializada existente, mas buscava reestruturar todos os aspectos da sociedade sul-africana. No auge desse momento, a histórica Carta da Liberdade foi adotada pelo Congresso do Povo de 1955 em Kliptown, nos arredores de Joanesburgo. Começando com sua proclamação inicial “o povo governará!”, a Carta abordou as necessidades materiais de terra, moradia e trabalho, bem como a libertação cultural, declarando que “as portas do aprendizado e da cultura serão abertas!” (Departamento de Educação do Governo da África do Sul, 2005, p. 12-13). Essa militância política foi recebida com maior repressão estatal, marcada pelo Massacre de Sharpeville, em 21 de março de 1960, no qual a polícia sul-africana matou 69 pessoas e feriu outras centenas.5 Quase imediatamente após o massacre, o CNA e o Congresso Pan-Africanista (CPA), um grupo cujos membros haviam se separado principalmente da Liga da Juventude do CNA, foram postos na ilegalidade e forçados à clandestinidade. Essa geração de exilados, incluindo os renomados músicos Miriam Makeba, Hugh Masekela e Jonas Gwangwa, interagiu com circuitos internacionais de artistas políticos e intelectuais, desde as Conferências de Escritores Afro-Asiáticos (nascidas da Conferência de Bandung, na Indonésia, em 1955) até os festivais culturais pan-africanos, conectando artistas negros da diáspora com os do continente.

A quarta tradição de resistência cultural veio com os estudantes e militantes sul-africanos exilados que participaram do Movimento da Consciência Negra, dirigido por Steve Biko. Esse movimento surgiu em meio ao vácuo político do final da década de 1960, que atingiu seu auge durante a Revolta de Soweto, em 1976, quando milhares de estudantes se revoltaram contra a imposição do africâner, o idioma de dominação do apartheid, como meio de instrução nas escolas negras. Em resposta, centenas de pessoas foram mortas, organizações afiliadas foram banidas e muitos dirigentes importantes foram exilados ou presos, inclusive Biko, que morreu um ano depois sob custódia policial. Ele tinha trinta anos de idade. Muitos dos estudantes e militantes politizados nesse momento acabaram deixando a África do Sul, inclusive alguns que formaram o Medu. Ao mesmo tempo, o aumento da militância no movimento sindical, como destacado pelos estivadores que dirigiram as greves de Durban em 1973, e a crescente proeminência dos sindicalistas (entre eles dirigentes como Emma Mashinini), fortaleceram a consciência de classe na comunidade artística e introduziram o conceito de “trabalhador cultural”, ressaltando a noção de que artistas e intelectuais fazem parte da classe trabalhadora (Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2023, 2019). No final da década de 1970, essas correntes políticas e culturais chegaram a Botsuana, cuja capital, Gaborone, fica a apenas 15 quilômetros da fronteira com a África do Sul e se tornou um vibrante terreno fértil para um novo projeto cultural.

“O Medu começou como uma união das diferentes energias de diferentes pessoas, às vezes de linhagens quase antagônicas”, lembra Mandla Langa sobre sua chegada a Botsuana. “Eu vim do Movimento da Consciência Negra e ainda estava tentando conhecer o terreno e o que estava acontecendo. Havia pessoas como Wally [Serote], que já estavam trabalhando para o CNA, e havia outros jovens que ainda estavam tentando se estabelecer em Botsuana” (Langa, 2020). Mongane Wally Serote, que nasceu no bairro negro pobre, mas culturalmente vibrante de Sophiatown e hoje é o Poeta Nacional Laureado da África do Sul 6, passou nove meses em confinamento solitário em 1969 sob a Lei de Terrorismo, que foi usada para reprimir muitos dos que estavam na primeira leva de exilados. Poucos meses após a chegada de Serote, Langa e outros a Botsuana, no final da década de 1970, a ideia de criar um coletivo cultural como o Medu começou a criar raízes. De fato, a palavra medu significa “raízes” no idioma Sesotho, do sul da África.

Além de reunir várias tendências e tradições, os militantes e artistas sul-africanos exilados em Botsuana foram expostos a um mundo muito mais amplo de lutas de libertação de todo o continente e do mundo. “Todo o sul da África estava envolvido na luta pela libertação – Angola, Zimbábue, Moçambique, Namíbia e assim por diante”, explica Wally Serote, membro fundador do Medu. E assim, estendemos nosso alcance aos outros países que também estavam em luta e, depois de discutirmos talvez por um ano, sentimos que deveríamos formalizar a questão [de criar o Medu] e consolidá-lo” (Serote, 2023). Foi nesse contexto que nasceu o Medu Art Ensemble. O Medu foi dividido em seis unidades criativas: teatro, artes gráficas e design, publicações e pesquisa, cinema, música e fotografia. Dirigido por um corpo executivo eleito anualmente, os objetivos declarados do Medu, em suas próprias palavras, incluíam

  1. formar cidadãos de Botsuana e exilados nas habilidades mencionadas;
  2. promover um ambiente adequado para o trabalho cultural;
  3. criar relações mais próximas entre os trabalhadores culturais e a comunidade;
  4. estabelecer relações mais estreitas e cooperação prática entre os trabalhadores culturais da África Austral (Kellner, González, 2009, p. 77-78).

O Medu estabeleceu vários programas, especialmente oficinas práticas em várias áreas artísticas para artistas e estudantes locais e sul-africanos. Em Botsuana, também foi importante criar uma frente legítima para que os exilados trabalhassem, obtivessem acesso a recursos e construíssem pontes com as comunidades locais sem aprofundar as tensões com o governo anfitrião. Para Serote, o fato de haver diferentes unidades criativas foi importante para permitir que o Medu criasse um relacionamento recíproco que colocasse a organização “à disposição de nosso pessoal, de modo que houvesse retorno para nós e também para as comunidades” (Serote, 2023).

Rompendo com o isolamento imposto pelo regime do apartheid, os sul-africanos exilados expandiram seus horizontes tanto artística quanto ideologicamente. “Havia muitos ensinamentos ideológicos por trás de tudo isso”, lembra Langa. Estávamos aprendendo sobre o Retorno à Origem de Amílcar Cabral e a primazia da cultura na luta. Estávamos encontrando escritores como Pepetela e entendemos como os angolanos, sob a liderança do [presidente] Agostinho Neto, estavam trazendo um impulso cultural para sua própria luta. Havia também escritores como Mário de Andrade, do Brasil, e Abdias do Nascimento, que era um pan-africanista” (Langa, 2020). Além de construir boas relações, garantir recursos e expandir sua exposição ideológica e criativa, o Medu precisava ser “consolidar”, como diz Serote, em um projeto político concreto.

Medu members Lulu Emmig and Thami Mnyele (seated at the table in the front, from left to right), and others attend a Woman’s Day function at the Swedish Embassy in Gaborone, Botswana, 1981.Credit: Sergio-Albio Gonzalez via Freedom Park

Os membros de Medu Lulu Emmig e Thami Mnyele (sentados na mesa da esquerda para a direita), e outros assistentes a um ato do Dia da Mulher na Embaixada da Suécia, em Gaborone, Botsuana, 1981.
Créditos: Sergio-Albio Gonzalez via Freedom Park

Medu Art Ensemble, Now You Have Touched the Women, You Have Struck a Rock [Agora você tocou nas mulheres, você bateu em uma pedra], 1981.
Créditos: Medu Art Ensemble via Freedom Park

Para se consolidar

Sobashiy’abazali’ekhaya
Sophuma sangena kwamany’amazwe
Lapho kungazi khon’ubaba no mama
silandel’inkululeko

Deixaremos nossos pais em casa
Vamos e saímos de países estrangeiros
Para lugares que nossos pais e mães não conhecem
Seguindo a liberdade

Sobashiy’abazali [Deixaremos nossos pais], uma canção popular de liberdade nos campos de treinamento (Gilbert, 2007, p. 433).

Embora muitos dos principais dirigentes do Medu já fossem membros do CNA e vinculados ao seu trabalho clandestino, a organização em si não foi concebida como uma frente cultural oficial do CNA. Para os membros fundadores do Medu, como Serote, estar ancorado em um projeto político não significava estar preso às fronteiras coloniais de nação, raça ou idioma, mas estar a serviço das várias lutas de libertação nacional que estavam sendo travadas. “Quando você conceitua uma estrutura como fizemos no contexto da África Austral, isso significa que você vai se ancorar na Frelimo [Frente de Libertação de Moçambique], vai se formar na Swapo [Organização Popular do Sudoeste Africano] [da Namíbia], vai agir e se considerar parte do movimento de libertação angolano” (Serote, 2023). Para poder trabalhar além das divisões políticas e atrair uma ampla gama de artistas e militantes, o Medu se estabeleceu como uma organização “não alinhada”, como descreve Serote, aberta a pessoas de diferentes origens e trajetórias políticas. Para ele, um fator orientador foi o fato de “o trabalho deles estar ancorado em lutas de libertação” (Serote, 2023).

Produzir um trabalho cultural ancorado em uma luta de libertação não é uma tarefa fácil. Músicas foram compostas, telas foram pintadas e poemas foram escritos em condições extremamente difíceis. Barry Gilder, membro da unidade de música do Medu, que atualmente é embaixador da África do Sul na Síria e no Líbano e trabalhou em estreita colaboração com Serote, relembra a vida cotidiana deles como trabalhadores culturais e militantes políticos: “Entre as reuniões clandestinas do RPMC [Conselho Político-Militar Regional do MK em Botsuana], as reuniões altamente secretas com contatos em casa, a extensa leitura dos relatórios desses contatos, a redação de relatórios volumosos para Lusaka, a evasão da Agência Especial de Botsuana e a ameaça constante de ataques de morte do apartheid, Serote continuou com sua carreira de escritor” (Gilder, 2021, p. 174).

Com muitos dos mais de 60 membros conhecidos do Medu frequentemente trabalhando clandestinamente, é impossível captar a amplitude e a profundidade da produção cultural da organização durante seus seis anos de existência (Byrd, Mings, 2020, p. 136). Como acontece com qualquer luta de libertação nacional, não há um arquivo histórico único que torne os artefatos e as produções culturais do Medu acessíveis ao público. Uma de suas maiores retrospectivas, The Peoples Shall Govern! Medu Art Ensemble and the Anti-Apartheid Poster, foi organizada pelo Art Institute of Chicago, em 2019, apresentando 130 obras de arte e artefatos do Medu, incluindo 60 de seus 90 cartazes conhecidos. Ainda assim, essa história continua praticamente fora do alcance dos sul-africanos engajados em movimentos sociais e políticos atuais e das gerações mais jovens de trabalhadores culturais em todo o mundo. No entanto, o que foi documentado demonstra uma variedade impressionante de experimentos criativos e um conjunto de trabalhos de alta qualidade. A unidade de publicações e pesquisa do Medu trabalhou em conjunto com as outras unidades para produzir um boletim informativo repleto de poesias, contos, resenhas de exposições, críticas literárias, entrevistas e análises políticas dos membros e artistas da organização, além de pensadores de outros países. Os poemas revolucionários de Tố Hữu no Vietnã e os ensaios do autor queniano Ngũgĩ wa Thiong’o, por exemplo, foram intercalados com os escritos do Medu, cujos autores se viram no processo de articular suas próprias práticas e teorias sobre a arte da libertação nacional.

Entre as realizações mais impressionantes do Medu está o Simpósio de Cultura e Resistência e o Festival de Artes, realizado de 5 a 9 de julho de 1982. De acordo com diferentes relatos, algo em torno de centenas a milhares de pessoas participaram do festival, com trabalhadores culturais chegando à pequena cidade de Gaborone em carros e ônibus, enquanto outros pegavam carona ou vinham de avião. Durante esses cinco dias, tanto os sul-africanos que viviam no exílio quanto os “inziles”, aqueles que viviam sua própria existência “exilada” na África do Sul, ao lado de pessoas da Europa, dos Estados Unidos e de todo o sul da África, reuniram-se na Universidade de Botsuana para discutir o papel essencial da cultura na aceleração da luta pela libertação da África do Sul, que se tornava mais iminente a cada dia. Wally Serote, Thami Mnyele e Sergio-Albio González (um membro do Medu originário de Cuba) dirigiram os preparativos iniciais para a conferência, convidando uma série de organizações de Botsuana e da África do Sul para participar do processo de planejamento nos dois anos seguintes (Kellner, González, 2009, p. 158).

O Festival de Artes Cultura e Resistência, seguindo uma longa linhagem de conferências e festivais realizados na África, Ásia, América Latina e Europa, representou “a primeira oportunidade significativa em décadas para que os artistas sul-africanos, residentes ali ou exilados, se conectassem uns com os outros – direta e intensamente – por meio de artigos, discussões, performances e interação social”, lembra Barry Gilder (2021), que participou de várias conferências no exílio realizadas nas décadas de 1970 e 1980. Embora não tenham sido feitas declarações formais, a conferência reuniu pessoas de todas as divisões políticas, raciais, sociais e geográficas para construir uma África do Sul livre. Eles não apenas falaram sobre cultura, mas a criaram  juntos durante o festival, o que deu origem a novas formações de resistência. Entre as mais significativas estava a United Democratic Front [Frente Democrática Unida], formada um ano após o festival por muitos de seus principais participantes e que mobilizaria as massas para dar um golpe letal no sistema do apartheid.

Oitenta e sete trabalhadores culturais de diversas origens contribuíram com mais de 300 pinturas, esculturas e fotografias para a exposição Art Toward Social Development [Arte para o Desenvolvimento Social], que acompanhou o festival. Essas obras incorporaram o medo e o desespero, mas também o otimismo e a esperança (Kellner, González, 2009). “É esse elemento de otimismo e esperança”, disse Thami Mnyele em seu discurso na noite de abertura, “que nos reuniu esta noite; é esse espírito de luta indestrutível e duradouro que alimenta nossa busca pelo desenvolvimento social e pela justiça” (Mnyele, 1982).

O festival incluiu apresentações de vários gêneros artísticos, como a produção de Marabi pela companhia de teatro Junction Avenue, uma peça musical que recuperou a vibrante vida cultural da classe trabalhadora africana e apresentou jazz, festas dançantes e fabricação de cerveja nos shebeens (tabernas que existiam antes do início das remoções forçadas na década de 1930 como parte das políticas de segregação racial das cidades). Houve também várias apresentações musicais com Hugh Masekela no trompete, Barry Gilder no violão e Abdullah Ibrahim (conhecido na época como Dollar Brand) no piano, que encerrou sua apresentação com uma melodia melancólica de Tula Dubula, cantada com um lampejo de esperança:

Há um novo mundo a caminho,
A falsidade desaparecerá.
Eles virão marchando
para a cidade ao amanhecer;
cantando canções de liberdade,
e rindo na chuva.
Esse velho mundo não existirá mais,
as coisas não serão mais as mesmas (Ibrahim, 2023).

Embora seja difícil captar o espírito da época, os debates e experimentos culturais destacados no simpósio e no festival, e durante toda a existência do Medu, continuam sendo relevantes para os trabalhadores culturais envolvidos em lutas políticas atualmente. O que se segue é uma tentativa de destilar algumas das teorias que surgiram das práticas de Medu sobre a ideologia, a estratégia, a forma e o conteúdo da cultura revolucionária, bem como a antiga tensão entre arte e política. Juntos, eles nos apontam para uma teoria da arte para a liberação nacional.

A necessidade da arte.“A necessidade da arte para a libertação nacional” foi o título do discurso de abertura proferido pelo membro do Medu Dikobe wa Mogale Ben Martins, no Simpósio de Cultura e Resistência. Seu título faz referência ao livro clássico do historiador de arte austríaco Ernst Fischer, The Necessity of Art: A Marxist Approach [A necessidade da arte: uma abordagem marxista] (1959). Para Fischer, a principal tarefa da arte – especificamente da arte socialista – é dupla: “conduzir o público a uma apreciação adequada da arte, ou seja, despertar e estimular sua compreensão, e enfatizar a responsabilidade social do artista” (Fischer, 1959, p. 210). Em outras palavras, o artista deve ajudar a conscientizar as pessoas e tem o dever social de fazer isso. Da mesma forma, para Dikobe wa Mogale, em uma sociedade de opressão racial e de classe, os artistas não podem se esconder atrás da “neutralidade artística”. Se a cultura é de fato uma arma de luta, então, segundo ele, “a arte deve ensinar as pessoas, das formas mais vívidas e imaginativas possíveis, a assumir o controle de suas próprias experiências e observações e como vinculá-las à luta pela libertação e por uma sociedade justa, livre de raça, classe e exploração” (Martins, 1982).

Essa responsabilidade artística também foi enfatizada nos escritos de Thami Mnyele, um importante membro do Medu que ajudou a teorizar o trabalho da organização. Tendo crescido no município de Alexandra, no nordeste de Joanesburgo, Mnyele ficou irritado com a opressão e o subdesenvolvimento infligidos às comunidades negras e com a seletividade higienizadora da “arte do município” que as galerias consideravam aceitável para o público e os compradores brancos. Em uma conversa por escrito com Dikobe wa Mogale sobre “neutralidade artística”, Mnyele perguntou: “Diante de tanto sofrimento, supressão e repressão (sem-teto moradores em ocupações, sentenças de morte, guerra em Angola, fome), como explicamos nossas obras e atividades ou inatividades diárias? Que credibilidade merecemos das pessoas?” (Mnyele, 1981). Para Mnyele, a credibilidade é conquistada por meio da criação de arte que sirva ao povo e que “popularize claramente e dê dignidade aos pensamentos justos e às ações do povo”. Com nossos pincéis e tintas, precisaremos visualizar a beleza do país em que gostaríamos que nosso povo vivesse” (Mnyele, 2009). A arte é necessária para a construção de uma sociedade futura, socialista, ao mesmo tempo que fornece o abrigo espiritual para um povo que ainda está em processo de libertação.

Nenhum solista revolucionário. Mesmo com a responsabilidade social do artista revolucionário estabelecida, a relação entre o artista individual e o coletivo é muitas vezes tênue na prática. As tradições artísticas socialistas rejeitam as ideias de “arte pela arte” e de “liberdade artística” herdadas do Romantismo e do liberalismo do século XIX, que centralizam a criatividade, as aspirações e até mesmo o protesto do indivíduo em detrimento do coletivo. Mas em tempos revolucionários, que estavam se formando no sul da África, o conflito entre o indivíduo e o coletivo aumenta. Keorapetse William Kgositsile (ou “Bra Willie”), um importante membro do Medu que mais tarde se tornou o primeiro Poeta Nacional Laureado da África do Sul, refletiu sobre essa tensão em seu discurso principal no Simpósio de Cultura e Resistência. Ele começou com uma anedota sobre um colega escritor sul-africano que lhe perguntou como ele “ainda conseguia escrever romances e poemas”, sugerindo que seu engajamento político ativo estava em desacordo com sua produção criativa. Kgositsile respondeu: “com um pouco de ácido na língua, sempre me perguntei como um escritor sul-africano poderia estar fora do movimento e esperar escrever algo de valor ou significativo” (Kgostsile, 1984, p. 23). Afirmando o fato de que a produção artística surge de relações sociais concretas, Kgositsile continuou: “Não existe uma criatura como um solista revolucionário. Todos nós estamos envolvidos. O artista é um participante e um explorador imaginativo da vida. Fora da vida social não há cultura, não há arte; e essa é uma das principais diferenças entre o homem e o animal” (Kgostsile, 1984, p. 29-30). Como antídoto para a praga do individualismo, Mnyele enfatizou a importância da organização e das habilidades de organização como uma das “armas mais eficazes contra nossos problemas” (Mnyele, 2009, p. 26). Um artista que é socialmente responsável é, portanto, um artista que está organizado ao lado das pessoas, uma parte de seus movimentos, e não à parte deles.

Para ser entendido. Para que a arte cumpra sua função social, ela deve ser compreendida pelas pessoas. Um dos diagnósticos de Mnyele sobre os artistas sul-africanos contemporâneos foi que seu trabalho era “extremamente abstrato”, “perdido para o místico” e atormentado pela “distorção” (Mnyele, 2009, p. 25). Em outras palavras, suas obras de arte confundem e distraem em vez de esclarecer e permitir que seus espectadores entendam melhor o mundo ao seu redor. Como resultado, explicou Mnyele, “a obra perdeu aquela qualidade essencial de comunidade, o imediatismo da comunicação com as massas [a quem] o artista afirma se dirigir” (Mnyele, 2009, p. 25).

No início da década de 1980, as tendências que dominavam o mundo da arte ocidental – às quais os movimentos de liberação não estavam imunes – eram repletas de abstração, desde as esculturas minimalistas de aço inoxidável de Jeff Koons até a arte pop de Andy Warhol. Isso não foi por acaso. A abstração como estilo estético foi até mesmo utilizada pela Agência Central de Inteligência (CIA) para combater a tradição soviética do realismo socialista durante a Guerra Fria, uma forma de guerra cultural que continua até hoje. Na década de 1950, artistas como Jackson Pollock, por meio de suas pinturas abstratas “por gotejamento”, foram ativamente divulgados em âmbito internacional para representar o individualismo robusto e o anticomunismo da cultura dos Estados Unidos.

“O Ocidente era agressivamente contra o realismo socialista soviético e, portanto, a forma como se fazia arte no contexto de um movimento de libertação era realmente um problema”, lembra Judy Seidman, falando das “discussões intermináveis” sobre o realismo socialista que definiram esse período (Seidman, 2020).7 Era comum que os artistas da época criticassem “cartazes de pessoas com punhos cerrados [por serem] realistas socialistas no pior sentido possível da palavra”. Ela se lembra do que Mnyele costumava dizer aos opositores do estilo artístico de “punhos e lanças”: “Quando vou a reuniões e desenho pessoas com os punhos no ar, é porque é isso que estou vendo e é isso que estou desenhando”. Para Seidman e Mnyele, não é possível nem responsável excluir as representações das realidades das pessoas em sua arte. Em vez de aderir a um estilo rígido, os membros do Medu tinham como objetivo fazer arte que refletisse as realidades concretas das pessoas, com todos os seus horrores, dores e injustiças, ao mesmo tempo que injetavam a confiança de que essas realidades poderiam ser mudadas. Para realizar ambas as tarefas, uma obra de arte deve ser capaz de ser compreendida pelas pessoas para as quais foi criada.

Rumo à arte socialista.Como uma organização não alinhada, não racial 8 e ideologicamente diversa, o Medu não tinha uma prática ou teoria singular em relação à arte. Ao analisar alguns de seus escritos e debates, no entanto, pode-se dizer que o grupo estava se movendo em direção a uma teoria e prática da arte socialista e à restauração da arte em sua função social, que o capitalismo e o colonialismo haviam destruído. Os membros do Medu inspiraram-se em diferentes tradições estéticas e de libertação para escapar das garras das galerias de arte da classe dominante, que, de acordo com Mnyele, eram “não apenas os postos avançados e santuários monopolistas da arte africana, mas também determinavam a forma e o conteúdo que a arte deveria assumir” (Mnyele, 2009, p. 25). Em vez disso, eles procuraram muralistas socialistas como David Alfaro Siqueiros e Frida Kahlo no México e teóricos culturais marxistas como Bertolt Brecht e Ernst Fischer. Por exemplo, a formulação de Fischer da arte socialista como aquela que “antecipa o futuro” com o passado “tecido em seu tecido” é ecoada na própria compreensão histórica e materialista de Mnyele sobre o desenvolvimento da arte e da estética (Fischer, 1959).

Os membros do Medu se inspiraram em artistas comunistas de todo o mundo, desde as canções do músico chileno Victor Jara até a poesia do escritor vietnamita Tố Hữu. Eles aprenderam com o pensamento cultural das lutas de libertação nacional da tradição marxista, como as de Amílcar Cabral, Frantz Fanon e Mao Zedong, cujas teorias e práticas foram adaptadas às suas próprias realidades. Serote lembra, por exemplo, que “houve muita influência, especialmente de Mao. Lemos muito sobre isso e também discutimos e sempre nos perguntamos: ‘como podemos garantir que os dois interajam e se influenciem mutuamente, e o que recebemos da China e o que queremos fazer no sul da África e na África do Sul?’” (Serrote, 2023).

O caminho em direção à arte socialista pode ser entendido mais como uma perspectiva, um método e uma atitude do que como um estilo monolítico e, de muitas maneiras, essa é a orientação que Medu defendeu e tentou articular à medida que os processos revolucionários se desenrolavam. Devido ao fim trágico e prematuro do Medu, é impossível, é claro, prever onde essas inovações práticas e teóricas poderiam tê-los levado.

Actors rehearse Marumo by playwright Mandla Langa at the Gaborone Town Hall in Gaborone, Botswana, 1979.Credit: Sergio-Albio Gonzalez via Freedom Park

Atores ensaiam Marumo, do dramaturgo Mandla Langa, na Prefeitura de Gaborone, Botsuana, 1979.
Créditos: Sergio-Albio González via Freedom Park

December 16 – Heroes Day, 1983.Credit: Medu Art Ensemble via Freedom Park

Medu Art Ensemble, December 16 – Heroes Day [16 de dezembro – Dia dos Heróis], 1983.
Créditos: Medu Art Ensemble via Freedom Park

Meu sangue nutrirá a árvore que produzirá os frutos da liberdade

Você não o ouviu hoje?
Ainda agora
Cante seu poema de amor
Escreva um epitáfio de amor
Com VIDA
‘Meu sangue nutrirá a árvore
Que produzirá os frutos da liberdade’…

Sim, para ele também com VIDA
Devemos alcançar os ricos estados da liberdade…
Marchando
Ao ritmo ininterrupto
De lanças dançantes que surgem

– Lindiwe Mabuza, “Epitaph of Love” [Epitáfio do amor] (em memória de Solomon Mahlangu, executado em 1979). (Mabuza, 1984, p. 27)

Na noite de 13 de junho de 1985, um caminhão transportando 63 homens da Força de Defesa da África do Sul e um arsenal de rifles, pistolas 9 mm, bombas de efeito moral, máscaras de gás e muito mais cruzou a fronteira com Botsuana. Cerca de 60 outros tanques e veículos blindados estavam de prontidão.

Era 1h15 da manhã quando uma equipe de oito homens chegou à casa de Thami Mnyele. Ele ainda estava acordado. Em poucos minutos, toda a sua casa, suas obras de arte e o próprio Mnyele foram atingidos por balas. Ele morreu tentando escalar a cerca ao lado de um espinheiro enquanto suas canetas estavam destampadas, com a tinta recém-derramada. Talvez seu último ato na vida tenha sido pintar esses mesmos espinhos, o que ele fazia com frequência para mostrar não apenas a beleza, mas também a dor e a violência deste mundo (Wylie, 2008, p. 201-202).

Michael Frank Hamlyn. Cecil George Phahle. Lindiwe Phahle. Joseph Malaza. Themba Duke Machobane. Dick Mtsweni. Basil Zondi. Ahmed Geer. Gladys Kesupile. Eugenia Kolobewere. Peter Masoke, de seis anos de idade (Kellner, González, 2009). Essas são as doze pessoas – duas delas membros do Medu – que foram identificadas como vítimas das incursões realizadas naquela noite pelas Forças Especiais da Força de Defesa Sul-Africana no território soberano de Botsuana, enquanto outras escaparam por pouco, pois souberam de um possível ataque. Alguns membros e militantes do Medu que sobreviveram permaneceram em Botsuana após os assassinatos, enquanto outros foram enviados a outros lugares para continuar sua militância política e artística. No entanto, essa operação marcou o fim do Medu Art Ensemble. Em 2002, 17 anos após o ataque, a Comissão da Verdade e Reconciliação argumentou que a ação transfronteiriça não estava dentro de sua área de competência, e os únicos homens que foram julgados foram aqueles que coletaram informações sobre os alvos. Eles receberam anistia. Hoje, ainda mais distante dos tempos e das condições que produziram o Medu, o que pode e deve ser recuperado dessa história para aqueles que se dedicam às lutas e ao trabalho cultural?

Mandla Langa reflete sobre a clareza ideológica do Medu durante a luta pela libertação da África do Sul e sobre como o conceito de nação e a análise marxista de classe ajudaram a estruturar sua compreensão de quem eram os oprimidos na África do Sul. “Infelizmente, hoje, tudo ficou confuso”. Ele compara a jovem democracia da África do Sul a “um adolescente mais velho” com “impurezas hormonais” que requerem “muito desaprendizado” para entrar no caminho certo (Langa, 2020). Na mesma linha, Barry Gilder aponta para a importância de preservar a história no processo de transição para o poder estatal: “Tínhamos um medo, uma sensibilidade em relação à nossa história, nossa história cultural, nossas músicas e assim por diante. Medo de ofender aqueles com quem nos reconciliamos” (Gilder, 2023). Para ele, o processo de reconciliação também foi um processo de esquecimento de lições críticas e duramente aprendidas que vieram da luta revolucionária, inclusive no âmbito da cultura. Da mesma forma, Serote lamenta a perda de intercâmbios culturais internacionalistas desde o período da libertação: “Não me lembro quando foi a última vez que li um romance da China (…) Temos muita literatura desse tipo em nossas livrarias dos Estados Unidos, da Europa e assim por diante, mas não do Vietnã, nem da China, nem de Cuba. Há algo errado” (Langa, 2020).

Não há dúvida de que a transição da África do Sul para a democracia não proporcionou à maioria de seu povo a libertação pela qual tantos lutaram e morreram, que seu processo de libertação nacional está incompleto. A Carta da Liberdade está longe de ser cumprida, e a África do Sul continua sendo uma sociedade extremamente dividida e desigual, na qual os 10% mais ricos da população, em sua maioria brancos, detêm 85% da riqueza agregada do país (World Inequality Database, 2020). O processo de libertação nacional não termina com a transferência formal do poder das mãos coloniais nem com a queda de um regime de apartheid. A sociedade de classes não desaparece da noite para o dia em um projeto socialista, e o imperialismo não fica de braços cruzados enquanto as nações e os povos tentam traçar um caminho soberano. Em vez disso, a libertação continua a ser um processo e uma luta que deve ser moldada continuamente pelas pessoas e com elas.

Os membros de Medu, Tim Williams, Wally Serote e Sergio-Albio González imprimem o cartaz Unity Is Power [Unidade é poder] em Gaborone, Botsuana, 1979.
Créditos: Teresa Devant via Freedom Park

Organisers prepare for the first session of the Culture and Resistance Symposium and Festival of the Arts, Gaborone, Botswana, 1982.Credit: Anna Erlandsson via Freedom Park

Medu Art Ensemble, Unity Is Power [A unidade é poder], 1979.
Créditos: Medu Art via Freedom Park

Abrindo o futuro

Um cartaz. Dezenas de pessoas se reúnem em uma sala de conferências no Diakonia Council of Churches em Durban, África do Sul. Estamos em outubro de 2020, no auge da pandemia global, e o Abahlali baseMjondolo (AbM) está organizando este e outros eventos para comemorar seu décimo quinto aniversário. Desde sua fundação, em 2005, o AbM criou um movimento democrático auto-organizado formado pelos pobres e despossuídos na África do Sul, ocupando terras, garantindo moradia, produzindo alimentos e formando politicamente seus 100 mil membros. Um banner grande e centralizado diz: “Quinze anos de nossa luta revolucionária por terra, moradia e dignidade”. Abaixo dele, há cartazes de artistas e militantes de todo o mundo, de Cuba à Índia, da Venezuela ao Líbano, do Brasil à Indonésia. Essa obra de arte faz parte da série de quatro partes da Exposição de Cartazes Anti-Imperialistas, organizada em conjunto pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e a Semana Internacional de Luta Anti-Imperialista.9 Para a comemoração, os membros da AbM selecionaram, entre os mais de 200 pôsteres que testemunham as lutas dos povos em âmbito internacional, os que mais se assemelham às suas próprias realidades locais. Entre eles está um retrato desenhado à mão em homenagem a Thuli Ndlovu, presidente do AbM em KwaNdengezi e um dos 25 dirigentes assassinados desde a fundação do movimento (Kgositsile, 1984). Acima, há um cartaz que Judy Seidman, do Medu, produziu para a Exposição de Cartazes Anti-Imperialistas que viajou pelo mundo e pela Internet antes de chegar a estas paredes em Durban. O cartaz diz: “O capitalismo mata, mas nós nos levantaremos”.

No discurso de Kgositsile no Simpósio de Cultura e Resistência de 1982, ele disse: “Nossos artistas têm, ao longo dos anos, lutado junto com o povo, sensibilizados e expressando os sentimentos, sofrimentos, esperanças, fracassos e conquistas em nossa luta pela libertação nacional” (Idem, p. 29). Escrever sobre a história de Medu e as lutas de libertação da África Austral hoje não é um esforço nostálgico. Essa tentativa visa, como escreveu Fanon, “usar o passado com a intenção de abrir o futuro, como um convite à ação e uma base para a esperança” (Fanon, 1963, p. 232). A arte, portanto, tem a capacidade de capturar nossas vitórias e derrotas coletivas, incluindo a história do Medu Art Ensemble, e transformá-las em uma força mobilizadora para as lutas de hoje e as que ainda estão por vir. De fato, o artista tem a responsabilidade de fazer isso.


Organisers prepare for the first session of the Culture and Resistance Symposium and Festival of the Arts, Gaborone, Botswana, 1982.Credit: Anna Erlandsson via Freedom Park

Militantes se preparam para a primeira sessão do Simpósio e Festival de Artes Cultura e Resistência, Gaborone, Botsuana, 1982.
Créditos: Anna Erlandsson via Freedom Park

Posters displayed on the walls at Abahlali baseMjondolo’s fifteenth anniversary celebration at the Diakonia Conference Centre in Durban, South Africa, 2020. Top: Judy Seidman, Capitalism Kills, but We Shall Rise, 2020. Bottom: Pan Africanism Today, Thuli Ndlovu, 29 September – Day of Remembrance, 2020. Credit: Abahlali baseMjondolo

Cartazes expostos nas paredes da celebração do décimo quinto aniversário do Abahlali baseMjondolo no Centro de Conferências Diakonia de Durban, África do Sul, 2020. 
Arriba: Judy Seidman, O capitalismo mata, mas nos levantaremos, 2020.
Abaixo: Pan-Africanism Today, Thuli Ndlovu, 29 de setembro – Dia da Memória, 2020.
Créditos: Abahlali baseMjondolo

Notas

1 Para saber mais sobre a história dos cartazes cubanos, ver: Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, A Arte da revolução será internacionalista, dossiê n. 15, abr. 2019. Disponível em: https://thetricontinental.org/the-art-of-the-revolution-will-be-internationalist/.

2 Para saber mais sobre Fanon, ver Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Frantz Fanon: o brilho do metal, dossiê n. 26 mar. 2020. Disponível em: https://thetricontinental.org/pt-pt/brasil/frantz-fanon-o-brilho-do-metal/.

3 Lei aprovada em 1950 que favorecia a segregação racial nos bairros, proibindo a convivência entre as raças na mesma região.

4 Para saber mais sobre os primórdios do Partido Comunista da África do Sul e o movimento de resistência após sua proibição, ver Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Josie Mpama, Estudos sobre Feminismos n. 5, mar. 2023. Disponível em: https://thetricontinental.org/pt-pt/estudos-feminismos-5-josie-mpama/.

5 Para saber mais sobre a história política de meados do século e o Movimento de Consciência Negra, ver Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Programas da Comunidade Negra: a manifestação prática da filosofia da Consciência Negra, dossiê n. 44, set. 2021. Disponível em: https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-programa-da-comunidade-negra/.

6 Um poeta Laureado Nacional é uma nomeação oficial de um governo que acarreta responsabilidades, que podem incluir compor e recitar poesia em ocasiões importantes, orientar gerações mais jovens de poetas e promover a poesia e as artes.

7 Judy Seidman (trabalhadora cultural e artista visual), entrevista por Tings Chak, Joanesburgo, África do Sul, 8 de junho de 2020.

8 O não racialismo é uma ideologia e tradição política proeminente na África do Sul que nasceu da oposição ao sistema racializado do apartheid. O termo está consagrado como um valor fundamental no capítulo um da Constituição da África do Sul, embora seu significado preciso seja contestado por diferentes forças políticas. O Partido Comunista da África do Sul era uma das principais organizações de políticas não raciais, enquanto, por exemplo, o CNA reservou sua filiação exclusivamente para africanos até 1969. Consultar Imraan Buccus, “The Dangerous Collapse of Non-Racialism”, New Frame, 30 de julho de 2021.

9 Ver Anti-Imperialist Poster Exhibitions, International Week of Anti-Imperialist Action e Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, julho a dezembro de 2020, https://antiimperialistweek.org/en/posters/.

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