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Uma homenagem ao legado teórico de Horácio Martins de Carvalho

 

Da Redação

Horácio Martins de Carvalho foi um dos mais atuantes elaboradores e defensores da Reforma Agrária no Brasil. Engenheiro Agrônomo e cientista social, foi professor universitário, integrante e presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária. Atuou com os movimentos populares do campo tanto na análise das transformações sofridas no meio rural pela ação do latifúndio e do agronegócio, quanto na construção de políticas e ações de resistência. Colaborou incansavelmente com os movimentos e com a Via Campesina Internacional. O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social presta sua homenagem ao legado teórico e o exemplo como intelectual orgânico, reproduzindo aqui uma adaptação de sua exposição no seminário da Festa e Feira da Semente, Mudas e Raças Crioulas, promovida pelo Movimento Camponês Popular (MCP), em Catalão, Goiás, em julho de 2011. Horácio Martins faleceu no último dia 16 de março decorrente de problemas de saúde.

 

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A ESPECIFICIDADE CAMPONESA COMO NEGAÇÃO DA LÓGICA CAPITALISTA

 

Camponesas e camponeses,
Companheiras e companheiros,

A Festa Camponesa da Semente Crioula de 2011 evidencia que os camponeses podem cuidar de si próprios, não precisam de tutelas, nem das grandes empresas nacionais e as multinacionais nem dos governos.

Mostra que existe uma outra racionalidade, lógica ou jeito de produzir diferente daquele dominante – o da empresa capitalista, que tem como centralidade o lucro a ser obtido de qualquer maneira, ignorando o bem-estar e a felicidade das pessoas e do povo.

A valorização das sementes crioulas ou nativas sugere que o jeito de produzir camponês tem suas particularidades, mesmo que estejam mergulhados na formação econômica e social capitalista.

É uma maneira de produzir que afirma a biodiversidade, tem na diversificação de cultivos e criações, no extrativismo em relação harmônica com a natureza, no trabalho familiar direto, na superação constante do trabalho penoso, na valorização das relações sociais de vizinhança e comunitárias, na geração de inovações tecnológicas a partir dos saberes camponeses aliados a uma crítica incorporação de múltiplos outros saberes, entre tantas outras dimensões do seu que-fazer e do seu vir-a-ser, que lhe caracterizam um modo de ser e de produzir próprios, camponês.

A ideologia dominante insiste que a racionalidade capitalista é a única possível; a festa camponesa da semente crioula diz o contrário: nós temos um outro jeito de produzir e de viver.

Os camponeses não devem abrir mão de decidir sobre o seu futuro, sobre as suas esperanças e sobre as utopias que os impulsionam.

As grandes empresas capitalistas multinacionais querem pensar pelos camponeses, querem decidir por eles e por suas famílias. Os camponeses podem ser pobres, mas não são idiotas nem covardes.

As grandes empresas capitalistas multinacionais querem separar os camponeses, os produtores diretos, das suas condições de produção; querem dizer o que devem plantar, criar e como realizar essas atividades; querem impor as suas tecnologias e seu modo de gerenciar as terras camponesas; querem lhes ensinar como produzir. De fato querem que os camponeses adotem o seu modo de viver e de produzir, que esqueçam de ser felizes à sua maneira, que pensem apenas no lucro.

Tudo isso porque os burgueses não suportam nenhuma iniciativa que evidencie a diversidade nos modos de produzir e de viver na formação econômica e social brasileira.

No fundo, desejam mesmo é roubar as terras camponesas, os obrigando a vendê-las por preços vis e os impulsionando a migrar para as cidades. O que desejam é ter força de trabalho barata para fazer funcionar os seus negócios, é os explorar de várias outras formas e ainda dizer que lhes fazem favores.

O objetivo central das grandes empresas capitalistas multinacionais como Monsanto, Bunge, Syngenta, Bayer, Basf e DuPont, para maximizarem seus lucros, é o de retirar dos camponeses o controle sobre as sementes crioulas, destruí-las, provocando uma imensa e mundial erosão genética, num atentado contra a biodiversidade;

A estratégia dessas empresas é tornar as sementes transgênicas que geram as únicas disponíveis para os produtores.

Desejam definir o que se deve plantar e o que se deverá comer. Querem tornar os povos subalternos aos seus interesses privados. Impõem a tirania de uma dieta alimentar para facilitar a realização dos lucros.

Camponesas e camponeses, a semente crioula é o primeiro passo para a libertação dos camponeses da subalternidade à forma de pensar capitalista. É um caminho para não mais dependerem das empresas capitalistas multinacionais, dos favores dos programas de governos e dos seus recursos que, como esmolas, se os ajudam num momento breve, mais adiante vão torná-los cativos dos seus favores.

As grandes empresas capitalistas multinacionais impõem à sociedade brasileira a concentração das terras sob o domínio de poucas empresas, o monocultivo em grande escala, as sementes transgênicas, os agrotóxicos com uso indiscriminado, os fertilizantes de origem industrial, a redução da biodiversidade, enfim, uma lógica de produção que conduz à artificialização da agricultura tornando-a um simples ramos da indústria, ramo esse sob seu controle oligopolista.

O modo de produção capitalista se reproduz como um modo social e ambientalmente degradante, negando o jeito de ser e viver dos camponeses contemporâneos e é contrário à construção de uma sociedade menos desigual e mais diversa.

Alguns casos ilustrativos como exemplos:

Concentração da terra no Brasil: Entre 2003 e 2010, a área total dos imóveis que constituem as
grandes propriedades (imóveis com área acima de 15 módulos fiscais2) foi a que apresentou o maior incremento: 48.4%, taxa essa que resultou da incorporação adicional, por essa categoria, de 104 milhões de hectares, dos quais, 73 milhões de hectares, ou 70%, na região Norte (onde predomina a região amazônica).³

Seis grandes empresas multinacionais — Syngenta, Bayer, Basf, Dow, Dupont e Monsanto, controlam a geração e oferta de sementes no país, sendo que as sementes transgênicas são a base das suas estratégias de inovação tecnológica e comercial;

Devido à pressão das grandes empresas multinacionais de sementes, o governo brasileiro já aprovou o uso comercial de 42 variedades transgênicas (30 para uso agrícola, 11 vacinas e uma levedura). [4]

Foram plantados 18,1 milhões de hectares com soja geneticamente modificada na safra 2010/11, no Brasil. No caso do milho, mais da metade da área foi plantada com as variedades transgênicas disponíveis, enquanto no algodão, quase um terço do plantio está sendo feito com sementes modificadas. Considerando as três culturas juntas, a área alcança 25,8 milhões de hectares, a maior taxa de adoção de transgênicos da história da agricultura nacional. [5]

Desde 1998 a ETC vem denunciando a tecnologia Terminador. AS empresas capitalistas multinacionais a denominam de Sistema de Proteção da Tecnologia. Essa tecnologia foi desenvolvida pela Delta & Pine (agora empresa subsidiária da Monsanto) com o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos: cinco das seis empresas oligopolistas transnacionais de sementes possuem patentes das sementes transgênica tipo Terminator. A Syngenta é a que possui maior número dessas patentes. [6]

O Brasil é o segundo maior consumidor de agrotóxicos no mundo, e até o final de 2011 deverá ser o primeiro consumidor mundial, ultrapassando os EUA que cultivam uma área 50% maior e ostentam uma produção de grãos que supera em três vezes e meia a brasileira. [7]

Registrou-se, nos últimos anos, cerca de 540 mil casos de intoxicação por praguicidas a cada ano no Brasil, com cerca de 4 mil mortes. [8]

O volume de agrotóxicos contrabandeados apreendidos nos Estados do Sul do Brasil aumentou 137% em 20109.
A liberação de mais de 20 variedades de soja, milho e algodão transgênico no Brasil se deu sob a condição de que todo agricultor que desejasse sementes convencionais poderiam obtê-las nos mercados. No entanto, em particular nos Estados do sul do país, já não se encontra nos mercados sementes de soja e de milho convencionais, só as transgênicas.

Há denúncia formal de prática de cartel no mercado nacional de fertilizantes por parte das empresas Bunge Brasil, Mosaic Fertilizantes e Yara Brasil Fertilizantes, conforme o processo protocolado (08012.003267/2008-07) no Departamento de Proteção e Defesa Econômica do Ministério da Justiça pela Comissão de Agricultura da Câmara de Deputados.

As três maiores redes de supermercados que operam no Brasil, Wal-Mart, Carrefour e Pão de Açúcar, que detêm cerca de 50% dos alimentos comercializados no país, também estariam pautando o que o consumidor brasileiro come, segundo o diretor de Política Agrícola e Informações da CONAB (Companhia Nacional de Abastecimento), Silvio Porto. [10]

O controle oligopolista da oferta de sementes e dos demais insumos para a produção agrícola, aliado ao controle também oligopolista das redes varejistas de alimentos, estabelece as tendências do que se deverá produzir e do que se deverá comer no país.

Isso tudo é um despropósito, um abuso contra os consumidores, um desrespeito à história de luta e de resistência social dos camponeses contra a sua maneira de viver e de produzir. Um desacato ao jeito de ser e de viver camponeses.
Os camponeses não se negam a debater nem a rever seus procedimentos de produção. Mas desejam respeito e diálogo sobre o que são e para onde poderão ir. São portadores de uma cultura e sabedoria aberta ao diálogo, mas não à manipulação.

Enquanto as empresas capitalistas impõem a homogeneização nos processos de os camponeses praticam uma ampla diversidade biológica e social que contempla:

Os saberes e as experiências de produção vivenciadas pelas famílias camponesas são referenciais importantes para a reprodução de novos ciclos produtivos;

As práticas tradicionais, o intercâmbio de informações entre vizinhos, parentes e compadres, o senso comum, assim como a incorporação gradativa e crítica de informações sobre as inovações tecnológicas que se apresentam nos mercados, constituem um amálgama que contribui para as decisões familiares sobre o quefazer;

O uso da terra pode ocorrer de maneira direta pela família, em parceria com outras famílias vizinhas ou parentes, em coletivos mais amplos ou com partes do lote arrendados a terceiros;

A diversificação de cultivos e criações, a alternatividade de utilização dos produtos obtidos, seja para uso direto da família seja para usufruir de oportunidades dos mercados, e a presença de diversas combinações entre produção-coletaextrativismo;

A produção de artesanatos e o beneficiamento primário de produtos e subprodutos;

A garantia de fontes diversas de rendimentos monetários da família, desde a venda da produção até a de dias de serviços de membros da família;

A solidariedade comunitária (troca de dias de serviços, festividades, celebrações), as crenças e os valores religiosos por vezes impregnando as práticas da produção;

A presença de elementos da cultura patriarcal;

E, enfim, mas não finalmente, as relações afetivas e simbólicas com as plantas, com os animais, com as águas, com os sítios de infância, com a paisagem…e com os tempos. [11]

O que desejam os camponeses: a superação da subalternidade perante as grandes empresas capitalistas multinacionais. Não mais serem pejorativamente tratados como ‘os pobres do campo’ nem ‘os povos sem destino’.

Portanto, é necessária uma ruptura ou superação do tradicional olhar camponês para o seu próprio mundo no sentido de sair da perspectiva de contemplar apenas o casulo da sua unidade de produção e de sua comunidade para vislumbrar — no sentido de pensar e propor, uma nova utopia para todo o campo.

A proposição de um novo modelo tecnológico que tenha por base a autonomia camponesa relativa perante o capital.
Os camponeses não desejam a pobreza, o trabalho penoso, o isolamento dos meios de comunicação; a precariedade de acesso aos serviços públicos; o desconforto. Não negam o acesso ao mais moderno, ao que se supõe o novo.

Desejam os camponeses é o respeito pela sua liberdade de escolha. São contrários à imposição de pacotes tecnológicos que os oprimem, os fazem cativos de dívidas crônicas, de mudarem para onde e da forma como os outros querem, sem ser o desejo de suas famílias, do seu jeito de viver e de se fazerem presentes na sociedade brasileira.

Os camponeses querem mudar. Aspiram que essas mudanças sejam fruto de processos participativos de reflexão, de estudo, de discernimento sobre o que vai acontecer.

Querem ser sujeitos sociais da sua história. Não desejam e não deixarão que outros escrevam por eles a sua história social.

A construção da autonomia camponesa não é um apelo a uma ‘utopia’ não realizável. Ao contrário, é a projeção de que a melhoria pretendida na obtenção da renda líquida familiar e nas condições de vida dos camponeses pode ser alcançada no âmbito de mudanças a partir da base estrutural existente no país.

Vislumbra-se o campesinato como classe social: ser camponês é estar construindo um mundo étnico, social e ecologicamente saudável para todos os povos.

Estou convencido de que só o camponês liberta o camponês.

Notas

[1] Módulo fiscal é uma unidade de medida agrária usada no Brasil, em conformidade com o art. 4 da Lei nº 8.629/93. É expressa em hectares e é variável, sendo fixada para cada município, levando-se em conta: tipo de exploração predominante no município; a renda obtida com a exploração predominante; outras explorações existentes no município que, embora não predominantes, sejam expressivas em função da renda ou da área utilizada; conceito de propriedade familiar. Um modulo fiscal, dependendo do município, pode variar de 5 a 110 hectares.

[2] Teixeira, Gerson. Agravamento do Quadro de Concentração da Terra no Brasil? Brasília, em 16 de junho de 2011, arquivo 19 p.

[3] Transgênicos Brasil. O quadro acelerado de liberações de OGMs no Brasil, o controle na cadeia alimentar e a sistemática violação ao princípio da precaução. In www.terradedireitos.org.br, 2011.

[4] Alexandre Inácio. Transgênicos ocupam área recorde. São Paulo, jornal Valor, 18 janeiro de 2011.

[5] Silvia Ribeiro. O Terminator ataca novamente: sementes suicidas. ETC GRopup, julho 2011, in http://unaic.blogspot.com/2011/07/o-terminator-ataca-novamente-sementes.html

[6] Gerson Freitas Jr. Brasil deve passar os EUA em venda de defensivos agrícolas. Jornal Valor, 22 de julho de 2011.

[7] Glifosato, duas décadas de mentiras de empresas e governos, in Blog de Luiz Nassif (http://www.luisnassif.com/profiles/blogs/a-monsanto-apronta-de-novo), Postado por Nina em 21 junho 2011 às 16:30.

[8] Luciana Dyniewicz. Apreensão de agrotóxico tem alta de 137%. São Paulo, Folha de São Paulo on line, 17 de junho de 2011.

[9] Vivian Oswald. Alimentos mais caros, e nas mãos de poucos. Rio de Janeiro, Jornal O Globo, 20 fevereiro de 2011

[10] Carvalho, Horacio Martins e Costa, Francisco de Assis (2011). Verbete Agricultura Camponesa do Dicionário sobre Educação no Campo. FIOCRUZ/MST, em elaboração.