Debates estratégicos de Nuestra América #03
Observatório da América Latina e Caribe (OBSAL)

 

Introdução – Esperançar diante dos desafios

 

Por Marcelo Álvares de Lima Depieri*

 

As condições externas

A crise civilizatória em que passa o mundo ganhou novas escalas com a pandemia da covid-19 e a Guerra da Ucrânia. Nos relatórios do Observatório de Conjuntura da América Latina e do Caribe (OBSAL), destacamos que a manifestação dessa crise é resultado do desenvolvimento capitalista, mais especificamente em sua fase que tem o capital financeiro como hegemônico para a sua acumulação, que se expressa socialmente pelas políticas neoliberais.

O aumento das desigualdades sociais, as catástrofes ambientais e as crises climáticas e a ascensão do neofascismo e de líderes políticos de extrema direita são algumas das expressões da crise civilizatória. A crise da covid-19 levou milhões à fome e à extrema pobreza, quebrou cadeias produtivas desorganizando a produção mundial. A Guerra da Ucrânia potencializou os problemas da pandemia, principalmente aqueles relativos ao acesso a alimentos, matérias-primas, energia e insumos essenciais para a reprodução material da vida no mundo inteiro. Um dos principais efeitos econômicos foi a inflação.

Muitos dos países do Norte Global, para combater a escalada dos preços, aumentaram suas taxas de juros. Essa forma visa, sobretudo, debelar a inflação pelo lado da demanda, mas possui suas consequências. É sabido que a elevação da taxa de juros pode trazer um efeito regressivo para as economias, dentre outras coisas, por encarecer o crédito e o investimento produtivo e inibir o consumo, principalmente aquele à prazo, deixando os investimentos financeiros com maior atratividade. Os Estados Unidos conviveram com uma recessão no primeiro semestre de 2022 ao apresentarem queda de seu PIB nos dois primeiros trimestres do ano. Esse resultado pode ser explicado, em parte, pelos sucessivos aumentos das taxas de juros norte-americanas desde 2021. Em julho de 2022, o Banco Central Europeu subiu sua taxa de juros pela primeira vez em 11 anos. Em setembro, houve nova alta, de 0,75 p.p., a mais alta desde 1999.

A China, por sua vez, na contramão do mundo, eliminou a extrema pobreza no país em 2021. Além disso, no campo da política econômica, diferencia-se do que vem sendo colocado em prática em muitos países do Norte Global, que é o aumento da taxa de juros. O governo chinês mantém sua política de estímulo monetário e creditício para induzir sua economia. Por outro lado, um fator de incertezas para o desempenho econômico global, pelo lado chinês, é a política de Covid Zero, que diminui as atividades econômicas em grandes cidades em momentos de surto da doença. Vale destacar que a medida é louvável do ponto de vista humanitário, priorizando a defesa da vida e mostrando que todas as vidas importam.

O relevante a se destacar dessa conjuntura internacional é que os efeitos das políticas monetárias do segundo semestre de 2022 serão sentidos ao longo de 2023, e a possibilidade de novas ondas de covid trazem um cenário de incerteza. O Fundo Monetário Internacional (FMI), em seu relatório de outubro de 2022, projeta uma desaceleração econômica para 2023, com possibilidades de recessão para economias importantes como a Alemanha e a Itália. Para a economia dos EUA, a projeção é de crescimento de apenas 1%, menor do que a projetada para 2022 (1,6%).

Desse modo, o ano de 2023 não será um ano fácil no contexto econômico mundial. As medidas que serão adotadas por cada país ganham maior relevância diante do cenário de relativa estagnação econômica. O cenário externo é um dos desafios que o terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva enfrentará.

 

As condições internas

Nos últimos quatro anos, o Brasil esteve sob a presidência de Jair Bolsonaro. No contexto da região da América Latina e do Caribe, foi a figura mais representativa do fenômeno global de ascensão de líderes protofascistas que levaram a cabo governos de extrema direita.

Nos informes de conjuntura realizados pelo OBSAL, desde 2021, o governo Bolsonaro foi caracterizado como um governo que colocou em prática um projeto de destruição. Essa forma de governar ficou muito aparente no trato à pandemia da covid-19, porém, o alvo desse projeto foi amplo, envolvendo as instituições democráticas, os direitos dos trabalhadores, as empresas estatais, os povos originários, a natureza, entre outros.

Os ataques de Bolsonaro à democracia se intensificaram no período eleitoral. Além do discurso questionando as urnas eletrônicas, colocando em xeque o processo eleitoral brasileiro, o governo abusou da utilização da máquina pública para tentar ganhar as eleições. Além disso, ao longo da campanha de segundo turno foi intensificada a utilização das fake news por parte de Bolsonaro, em falas públicas e em debates, e também por seus apoiadores.

O contexto interno impõe também uma série de desafios para reconstruir o que foi destruído nos últimos quatro anos. O novo governo terá que enfrentar uma composição do Congresso Nacional que, em sua maior parte, foi aliada de Bolsonaro. Na Câmara, o número de deputados que formavam a base  do governo Bolsonaro se manteve como maioria; já no Senado Federal, houve um aumento desses parlamentares, que já eram maioria desde o último período. No manejo das políticas públicas, o desafio fica para a destinação das verbas para o orçamento de 2023 realizada em 2022 pelo governo de Bolsonaro, que deixou de destinar recursos para políticas de transferência de renda e diminuiu para as áreas da saúde, educação e habitação.

 

Esperançar, sem medo de ser feliz

O país, após os quatro anos de governo Bolsonaro, a pandemia da covid-19 e a guerra da Ucrânia, saiu bastante machucado, mas não totalmente destruído. As eleições presidenciais de 2022 aconteceram, e Lula, do Partido dos Trabalhadores (PT), saiu vencedor, voltando ao poder depois de 12 anos.

Apesar de ter sido a eleição mais disputada da história política brasileira, em que Lula obteve 50,90% dos votos válidos, contra 49,10% de Bolsonaro, o petista bateu o recorde de votos recebidos por um candidato no Brasil, ultrapassando 60 milhões de votos. Essa vitória se torna ainda mais expressiva, uma vez que Lula teve que enfrentar, além de Bolsonaro, toda a máquina pública usada para reeleger o então presidente.

A derrota de Bolsonaro foi uma vitória dos setores democráticos contra a extrema direita e seus representantes neofascistas. O projeto defendido por Lula em sua campanha é um projeto de reconstrução, que visa recuperar a economia, debelar mazelas sociais como a fome e a extrema pobreza, retomar o protagonismo do país nas relações exteriores no âmbito da região da América Latina e do Caribe e na esfera mundial, retomar a política ambiental e a defesa do meio ambiente e ser figura inspiradora para lutas sociais no Brasil e na América Latina.

Lula, ao iniciar o seu mandato, ficará atrás apenas de Getúlio Vargas como presidente que mais esteve à frente do cargo na era republicana. Vargas ficou ao todo, contando o primeiro (1930-45) e o segundo (1951-54) mandato, mais de 18 anos no cargo. Já Lula entrará em seu nono ano à frente da presidência da república.

Incontestavelmente, Lula é uma figura que tem o respaldo internacional, dos setores internos da política brasileira, e, o mais importante, do povo brasileiro que o elegeu em uma votação histórica. Povo este que deu uma lição de dignidade e de formação de consciência, principalmente naquelas mentes gananciosas, que, por alienação, acham que todos possuem o mesmo pensamento curtoprazista e de ganho fácil. A maior parte do povo pobre desse país ficou com Lula, mesmo com o aliciamento descarado por parte do governo, que ofertou benefícios sociais no ano eleitoral sem verbalizar que esses mesmos benefícios seriam finalizados ao final de seu mandato.

O mundo das finanças e o neoliberalismo moldaram nossas subjetividades, mas as eleições no Brasil mostraram que há motivos para ter esperança e o voto do povo foi o principal deles. As condições materiais de hoje não são as mesmas das encontradas em 2002, ano da primeira eleição de Lula, mas a sensação de alma lavada talvez seja até maior. A sensação de prazer é subsequente da sensação de desprazer durante o governo Bolsonaro; os dissabores foram muitos. O momento é de esperançar, mas esperançar sob as condições dadas. E relembrando Marx, pois sempre foi assim, “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem, fazem sob condições materiais dadas”.

O presente Caderno teve como principal objetivo esperançar, reconhecendo nossas vitórias, nossas potencialidades e apontando as janelas de oportunidades para avançar, mas sem jogar falsas ilusões para o nosso povo e nem esconder os desafios e dificuldades que teremos pela frente.

Nosso estudo foi o resultado de um esforço de reflexão de cinco mulheres, que toparam ser parceiras do OBSAL nesta tarefa, para pensar sobre as perspectivas para o Brasil e pontuar os efeitos para a América Latina e o Caribe sob o terceiro mandato de Lula. O Caderno contou com quatro textos, uma entrevista e as considerações finais, além desta introdução.

O primeiro texto, Recuperar e construir o futuro, é de Rosa Maria Marques, que se debruçou sobre a economia brasileira, fazendo um rápido balanço dos retrocessos na área nos últimos anos e destacando as possibilidades de avanço no futuro governo. O segundo é de Tatiana Berringer, Política externa brasileira em 2023: desafios frente ao mundo em transformação, que inicialmente fez uma contextualização da política externa mundial e regional, aprofundando a análise da política externa brasileira sob a gestão Bolsonaro e finalizando com as perspectivas para a área, com base nas diretrizes do programa de governo do PT. Posteriormente, no terceiro texto, Balanço, projeção e desafios da Reforma Agrária Popular no Brasil atual, Ceres Hadich, além de analisar a política agrária desde o golpe contra Dilma Rousseff em 2016, iniciou o texto fazendo uma contextualização do desenvolvimento histórico do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o finalizou destacando os desafios do movimento e da política de distribuição de terras para os próximos anos. Em O futuro do bolsonarismo diante da derrota de Bolsonaro, entrevistamos Camila Rocha. Na entrevista, foram tratadas questões mais gerais como o fenômeno de ascensão da extrema direita em âmbito global, e também mais específicas como a caracterização do bolsonarismo. Ainda, foram feitos alguns apontamentos sobre o futuro da extrema direita no Brasil e na América Latina com a derrota de Bolsonaro e a vitória de Lula. Por fim, no quinto texto, O Poder Popular necessário – desafios e potencialidades, de Kelli Mafort, é analisado o Poder Popular como estratégia de mudanças diante dos desafios impostos pelo desenvolvimento do capitalismo na contemporaneidade e pela própria conjuntura brasileira.

Esperamos que essas “vozes” contribuam para a reflexão e possam servir para enriquecer os debates que temos nos movimentos populares de Nuestra América. Que a esperança sirva de impulso para (re)construir as lutas necessárias à libertação de nossos povos.

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* Marcelo Dipieri é Pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e professor titular de economia na Universidade Paulista (Unip).